Ponto de Cultura – Museu Aberto
Entrevistado: Nabil Georges Bonduki
Entrevistadores: Márcia Ruiz e Joana Zatz
São Paulo, 30 de setembro e 9 de outubro de 2008.
Entrevista PCMAHV_156
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por: Tereza Ruiz
Revisão: Heci Regina Candiani
P1 – Teu nome, local e ...Continuar leitura
Ponto de Cultura – Museu Aberto
Entrevistado: Nabil Georges Bonduki
Entrevistadores: Márcia Ruiz e Joana Zatz
São Paulo, 30 de setembro e 9 de outubro de 2008.
Entrevista PCMAHV_156
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por: Tereza Ruiz
Revisão: Heci Regina Candiani
P1 – Teu nome, local e data de nascimento.
R – É Nabil Georges Bonduki, São Paulo, 4 de fevereiro de 1955.
P 1 – Qual é o nome dos seus pais e avós, Nabil?
R – Meu pai é Georges Gabriel Bonduki, minha mãe Suad Orfali Bonduki. Meu avô paterno é Gabriel Issa Bonduki e minha avó paterna é Zachi Bonduki. E minha avó materna é Lídia Luca Orfali e o meu avô materno é Miguel Orfali.
P1 – E me diz uma coisa Nabil, qual era a profissão dos seus pais e avós?
R – Bom, é uma longa história. Meu avô materno e todos os meus avós nasceram em Homs, na Síria. Meu avô veio pra São Paulo em 1898, ele tinhas dezesseis anos, alguma coisa assim, começou trabalhar como mascate e depois virou comerciante, industrial, até 1929. Em 1929 ele faliu. Assim, continuou a ser comerciante, mas sem estar estabelecido, foi um momento assim de crise familiar. Meu avô foi pra Síria, casou com a minha avó, trouxe a minha avó, tiveram três filhos. Meu pai é o primogênito, nasceu em 1906, depois nasceu meu tio Mili, minha tia Jamile e isso até 1910. Aí, quando nasceu minha tia, minha avó ficou doente e o meu avô foi pra Síria, em [19]14, aliás em [19]13, levar minha avó pra ser internada em um sanatório e meu pai foi junto. Foi junto com a minha avó e o meu avô. E aí então a família do meu avô pediu pra deixar o meu pai lá na Síria. E o meu avô precisava voltar pra cuidar das coisas dele, etc.. Então, a minha avó ficou internada, o meu pai ficou em Homs, na Síria. Embora tenha nascido em São Paulo, ele, com seis anos, foi pra Síria e não voltou. E exatamente nesse período estourou a Primeira Guerra Mundial, cortaram as comunicações e meu pai ficou na Síria, ficou em Homs durante a guerra, que foi muito forte ali, porque ali foi uma guerra, na verdade de libertação da Síria em relação ao Império Otomano. Claro que com os ingleses por trás disso. E aí houve massacres, uma série de coisas, e se interrompeu também as comunicações do Brasil com a Síria. Inclusive meu avô que mandava o dinheiro pra lá, já nessa altura era a família daqui que sustentava a família de lá. E aí se interromperam as comunicações, foi um período de fome e tudo o mais, e aí meu avô ficou aqui, não voltou mais. E meu pai acabou ficando lá até completar 18 anos. Quando ele fez 18 anos, em [19]24, ele veio para o Brasil. Então, embora ele tenha nascido no Brasil, na verdade, ele passou boa parte da infância e da adolescência, do começo da juventude, na Síria.
P1 – Nabil, deixa eu só voltar um pouquinho pra entender. Esse seu avô por parte de pai, quando veio ao Brasil, ele veio por quê? Ele veio sozinho? Como foi essa história?
R – Ele veio, quer dizer, não sei se foi exatamente sozinho porque ele veio num navio de imigrantes.
P1 – De família só veio ele? Da parte da tua família...
R – É, acho que veio primo, que ali tudo é meio primo. Quer dizer, veio gente da cidade. Da família próxima, veio sozinho. Foi o primeiro que veio dessa família. Depois veio o irmão dele, depois foi vindo um monte de gente. Inclusive a família da minha mãe, que também era da mesma cidade. Meu pai conhecia eles lá, tanto que meu pai contava que foi ao casamento do pai da minha mãe, quando ele tinha doze anos, alguma coisa assim, que eles moravam na Síria ainda. Então meu avô foi o primeiro que veio, aqui tinha aquela coisa de colônia. Acho que ficou na casa de um primo, de um tio, uma coisa assim, que já tava aqui. Mas esse navio de 1898, pelo que contam, era um navio importante. Veio uma grande quantidade de Homs pro Brasil. Na verdade não era Brasil, eles vinham pra América, né? Vinham pros Estados Unidos ou pra São Paulo, fundamentalmente. Ou pra Buenos Aires, alguns foram pra Santiago do Chile... Então, era a América. Pra eles era tudo a mesma coisa. Aí o meu avô materno, o Miguel, e a minha avó, a Lídia, eles foram em [19]21. A minha mãe nasceu em Homs, nascida, mas com três meses foi pra Buenos Aires. A família da minha mãe foi pra Buenos Aires, se instalou lá e ela só quando casou, na verdade eles mantinham um certo contato, porque tinha o Club Homs de Buenos Aires e o Club Homs de São Paulo. Então sempre um ia visitar o outro. E aí foi nisso, isso já em [19]50, [19]49, por aí, minha mãe conheceu o meu pai e se casaram.
P1 – Voltando um pouquinho... Você sabe por que seu avô paterno veio para o Brasil?
R – Porque, quer dizer, por razões óbvias, para trabalhar. Fundamentalmente, pra fazer a América, aquela coisa de sempre. Eu não sei, porque eu não conheci meu avô. Quando eu nasci ele já tinha morrido, mas é um pouco aquela geração toda. Aí eu já estou falando mais sociologicamente, historicamente, do que por história da família, mas veio porque, vamos dizer assim, lá você não tinha oportunidades, tanto que, na verdade, foi o meu avô que, muito precocemente, mandava dinheiro pra família de lá, pra mãe dele, que foi quem sobreviveu à guerra. Quem sobreviveu à guerra foi a mãe dele e o meu pai. Então é isso. E também, eu imagino, mas aí é uma questão que precisaria pesquisar um pouco mais, porque na verdade eles eram cristãos ortodoxos. Então, uma boa parte dos cristãos ortodoxos de Homs veio pro Brasil. Tanto que a colônia aqui é muito grande. Então eu acredito que também talvez tivesse alguma razão de fundo religioso, dos cristãos ortodoxos que buscavam talvez com mais facilidade naquela época sair de lá, talvez algum tipo de discriminação que pudesse existir... Mas parece que não era exatamente essa a questão principal.
P1- Nabil, e quando o seu avô volta e o seu pai fica ali ele acaba morando com a mãe do seu avô?
R – É, numa famosa casa que não existe mais, mas que era a casa um pouco clã, que todo mundo morava naquela casa.
P1- E o teu pai volta ao Brasil em [19]24 com dezoito anos, é isso? E ele acaba vindo pra cá porque seu pai insistiu? Como é que foi essa história da vinda dela pra cá?
R – Não. Porque nessa altura o irmão do meu pai, que tinha vindo pra cá, ele e a mulher dele cuidavam dos meus tios. Porque o meu pai voltou pra lá, mas meus dois tios, tio Mili e tia Jamile, eles continuaram morando em São Paulo e eles ficaram, nessa altura, com meu tio avô e com minha tia avó que depois foram pra São Carlos, tinham uma loja em São Carlos, aí nasceram os filhos deles também. E esse meu tio avô, minha tia avó, depois da guerra, se não me engano [19]21 ou [19]22, voltaram pra Síria. Meu pai, meus tios passaram a morar juntos e só o meu avô ficou aqui, que tinha lojas, já tinha a fábrica. Onde hoje é o SESC Belenzinho era a fábrica do meu avô.
P1- E era uma fábrica do que Nabil?
R – Uma fábrica de tecidos. E ele tinha loja na 25 de Março. Nessa altura ele já era muito rico, tinha sócios, tudo. E a família toda estava lá, os três filhos com o irmão dele morando em Homs. E o que meu pai contava é que ele tinha a maior vontade de estar com o pai. Então logo que ele pode viajar sozinho e tudo ele voltou para São Paulo pra morar com meu avô.
P1 – E os irmãos dele ficaram na Síria?
R – Ficaram na Síria, ficaram na Síria até os anos 30. E uma das coisas que meu pai queria muito era juntar a família e foi só nos anos 30 que acabou juntando. Mas aí já foi depois inclusive da falência do meu avô. Meu avô faliu em 29, na crise de 29. Aí meu pai, que nessa altura tinha vinte e poucos anos, 23, 24 anos, começa a mascatear de novo. Meu pai contava muito que ia pra São Paulo e para o Rio levando mercadoria. Iá de noite no trem, aí vendia mercadorias no Rio, pegava mercadoria e trazia para São Paulo. Depois tentou fazer uma fábrica, acho que foi de botões. Depois de 29, meu avô que mandava o dinheiro para a família de lá já não podia mais mandar. Aí meu tio, meu tio Mili, que hoje tem 99 anos, ele fez um concurso, acho que de um banco francês de Beirute. Ele conta assim que foi um super esforço, porque estava muito difícil conseguir qualquer tipo de emprego. E ele acabou conseguindo esse lugar no banco e ele passou a sustentar a família de lá. Até vir para o Brasil. E eles conseguiram então formar casa de novo.
P1 – E Nabil, vamos falar um pouquinho agora do lado materno. Seus avós maternos saíram da Síria, na verdade, posteriormente à família do seu pai, você falou que foi na década de 20, né?
R – Eu nem vou falar muito da família da minha mãe porque eu tava pensando agora que minha mãe está viva, acho que ela podia dar um depoimento até com mais conhecimento. Inclusive porque a parte da minha família que ficou em Buenos Aires, até conheço muito menos. E ela está viva, a prima dela também, tem alguns outros parentes da parte dela que estão vivos e com condições de falar. Já o meu tio, infelizmente, já podia ter dado esse depoimento, mas agora ele está com dificuldade.
P1 – E aí conta um pouquinho pra gente então como é que seus pais se conheceram...
R – Meus pais se conheceram dessa maneira. Era uma comunidade Síria de Homs em Buenos Aires, a outra aqui em São Paulo. Eu acho que a minha mãe pode dizer melhor como eles se conheceram... Mas parece que começou com uma espécie de excursão do Club Homs de Buenos Aires que veio para São Paulo e aí se conheceram no Club Homs daqui. Depois o meu pai foi lá e aí pediu minha mãe em casamento e casaram em Buenos Aires. Meu avô materno tinha uma loja também, era comerciante. Eu não sei exatamente os detalhes, mas ele também faliu, mas ele faliu mais pra frente. Não foi ele que faliu não, aí teve um problema lá, depois que ele morreu, que ele já morreu bem mais tarde, nos anos 60. Meu avô materno eu não cheguei a conhecer. Numa única vez que eu fui para Buenos Aires, nessa época ele tava vivo, em 63, quando casou um tio meu lá, que foi a única vez que eu fui para Buenos Aires assim nessa época de criança, adolescência. Quando eu era formado e tudo eu fui várias outras vezes para Buenos Aires, mas aí boa parte da família da minha mãe tinha vindo para o Brasil. Os primos, a irmã dela que também está viva, que também podia dar um depoimento... Aliás, teve uma coisa interessante que começou com meu pai que foi um pouco o casamento da família do meu pai com a família da minha mãe. Porque o meu tio casou com uma prima da minha mãe, depois um amigo do meu pai casou com a irmã da minha mãe. Depois teve outros primos do lado do meu pai que casaram com outras primas da minha mãe. Então teve uma congregação assim dos Luca com os Bonduki. Mais dos Luca do que com os Orfali. Agora essa parte dos Luca, têm vários aqui. Várias pessoas vivas aqui que acho que podem contar melhor essa parte de Buenos Aires. Aí, casaram, meu pai alugou uma casa na rua Augusta 1940 que ainda existe a casa, atrás de umas lojas, e aí nós moramos nessa casa até 63. Bom, primeiro então casaram, nasceram meus irmãos. Primeiro meu irmão mais velho, depois a minha irmã, depois eu, depois minha outra irmã... O meu tio, irmão do meu pai, casou com a prima da minha mãe e foram morar na mesma casa. Então, nos primeiros anos, nos três ou quatro primeiros anos da minha vida, moravam as duas famílias juntas. Era uma casa razoavelmente grande.
P1- E como é que ela era Nabil? Você lembra?
R – A casa?
P1 – É.
R – Lembro. Eu não lembro da primeira etapa, que na primeira época a casa tinha um grande quintal do lado esquerdo, esse quintal eu não lembro de ter conhecido. Sepois eles venderam, alugaram esse terreno, que era um terreno grande do lado. Ela continuou grande, continuou tendo um terreno, tinha um jardim na frente, tinha um corredor do lado direito que descia pro fundo. E tinha um quintal grande no fundo. Aí tinha uma sala, um hall, uma sala em frente, outra sala atrás. Tenho muitas fotos dessa casa, meu pai fazia muitas fotos, eu tenho muitos álbuns da gente nessa casa. Em cima tinha quatro quartos, num primeiro período os quartos do fundo ficavam com meu tio e os da frente com a minha mãe, meu pai e a gente. Depois juntaram, ocuparam a casa toda até 63.
P1 – E como é que era esse cotidiano nessa casa? Você lembra um pouco quais eram os hábitos? Essas duas famílias morando juntas? Fala um pouquinho pra gente disso.
R – Dessa época eu lembro muito pouco, porque acho que meu tio mudou quando eu tinha três anos ou quatro. Mas essa casa, hoje eu não sei mais dizer, mas meu pai sempre ia todo dia almoçar em casa, ia jantar em casa. Sentava todo mundo na mesa nos seus lugares, tem seus lugares pré-definidos, meu pai e minha mãe falavam em árabe. Meu pai falava bastante árabe com a minha mãe. Eu, aliás, fui o que menos aprendi árabe. E não houve uma preocupação dele de os filhos assim falarem árabe. E ele inclusive dizia que ele não queria fazer com que os filhos fossem muito, com eu diria, não se integrassem localmente. Porque ele passou por duas adaptações. Ele nasceu no Brasil, foi para a Síria com seis anos, sete anos, voltou para o Brasil com dezoito. Aí só falava árabe, não falava português, teve que se alfabetizar em português com dezoito anos. Então essa questão da integração, certamente quando ele chegou na Síria ele deve ter tido problemas de integração, não sei bem... E depois quando chegou aqui, idem Então ele não fez questão da gente aprender árabe. Porque meu pai, depois que ele começou a mascatear de novo, tentou fazer uma fábrica. No final ele fez uma sociedade com outros primos. Era uma loja, mas era também uma tipografia, tipografia, editora árabe, que editava os jornais e as revistas em árabe no Brasil. E ele pertencia a um partido, Partido Nacional Sírio, que era uma espécie de um partido nacionalista, influenciado pelo fascismo, na época, isso nos anos 30, 40. Então eles imprimiam o jornal em árabe, era a única tipografia em tipos árabes que existia. Tinha uma papelaria na frente, no fundo a tipografia. Depois, quando o meu tio veio pra cá, meu tio começou a entrar no ramo de fios e abriu uma fábrica de fios também. E até os anos 60, acho que até meados dos anos 60, a tipografia funcionava. Eu conheci a tipografia. Tinha a loja na frente, que era papelaria fundamentalmente, e a tipografia atrás. Depois venderam as máquinas, tudo. Ainda tinha um setor de montagem... Porque tinha que montar com os tipos. Então tinha alguns funcionários que continuavam trabalhando na sobreloja, mas aí virou uma loja que continuou papelaria e começou a vender fios, começou cada vez mais a virar do ramo têxtil, de fiação.
P1 – Onde era essa tipografia, essa papelaria?
R – Era na rua Cavalheiro Basílio Jafet, que é uma travessa da 25 de Março. A continuação da Ladeira Porto Geral. Depois, quando meu pai morreu, em 76, meu irmão continuou com a loja. Quer dizer, a minha família ficou com a loja, mas quem cuidava era meu irmão, minhas irmãs foram trabalhar e aí meu tio ficou com a fábrica. Na verdade, eu fui o que mais fiquei distante. Eu tava falando do cotidiano da casa, a questão do árabe. Na verdade, eu fui quem mais me distanciei da coisa da colônia toda, do clube. Acho que tinha até um certo preconceito. Um pouco porque era todo mundo muito conservador. Meu pai era muito conservador, tinha hábitos conservadores... E aí um pouco na adolescência, juventude,
porque quando o meu pai morreu eu tinha 20 anos, 21 anos, eu já tava com uma visão muito diferente da visão dele e tudo. Então eu fiquei um pouco isolado, me isolei um pouco dessa coisa da colônia. Então nesse período, ao contrário dos meus irmãos que eram mais integrados nas coisas do clube, eu era mais isolado. Mas a casa era uma casa muito tradicional. Minha mãe era dona de casa, meu pai ia pra loja de manhã cedo, voltava na hora do almoço. Aí jantava em casa e ia pro clube, para o Club Homs. Meu avô fundou o Club Homs, meu avô paterno, fundou o Club Homs. O Club Homs era meio a segunda casa deles, principalmente dos homens. Então meu pai quase toda noite ia para o Club Homs.
P1 – E o que eles faziam? Você sabe qual era a atividade do clube à noite? Qual era o cotidiano?
R – Ah, eu acho que tinha o lado da discussão política. Tinha esse partido, que continuou existindo durante muito tempo, tinha as coisas do próprio clube. Meu pai foi presidente do Club, foi da comissão de obras da expansão do Club Homs... Tinhas as coisas do clube mesmo. Tinha essa coisa do carteado, que meu pai sempre foi contra. Tanto que depois que ele foi presidente, teve um presidente que autorizou ter jogo de cartas no clube, e ele meio que se afastou um pouco, porque ele era totalmente contra. Mas ele jogava tauli...
P1 – O que é tauli?
R – Tauli é gamão. No clube tinha uma sala belíssima, a sala de tauli, várias mesas de tauli, aquelas madrepérolas... Ele jogava muito isso e eu também aprendi a jogar xadrez com ele. Era uma das coisas que a gente tinha de aproximação, o xadrez. E também assim um pouco de andar pela cidade, que eu acho que até no meu livro “Origens da Habitação Social do Brasil”, que é um livro que trata muito da história da cidade, a história social da cidade, tem até uma dedicatória a ele que fala um pouco de que ele que me levava para conhecer a cidade. Porque eu acabava indo muito na loja, na 25, no centro, e ele mostrava as coisas. E depois, quando fui fazer arquitetura e urbanismo e depois dei muita aula de história do urbanismo. E a cidade de São Paulo sempre foi uma referência importante. Ele me mostrava um pouco algumas coisas. Então, por exemplo, uma coisa que depois que eu entendi melhor, pra ir lá pra 25 você vem pela Prestes Maia e entra na Carlos de Souza Nazaré e passa debaixo daquele pontilhão, onde passa a Florêncio de Abreu. A Florêncio de Abreu passa por cima. E aí, quando passava ali, ele dizia – eu era muito pequeno, mas ele falava assim que ele se escorregava dali até a água. E era uma coisa que eu não entendia, exatamente naquela época. E depois quando eu fui estudar... Quer dizer, ali na verdade era o córrego do Anhangabaú. Não do Anhangabaú, que o Anhangabaú faz a curva. Ele vem ali pelo vale do Anhangabaú, faz a curva exatamente onde hoje é a Carlos de Souza Nazaré, para desaguar no Tamanduateí. Então, no final da Carlos de Souza, ali perto do mercado tem um pontilhão, né? Então eu dei muito tempo história do urbanismo lá no curso de arquitetura em São Carlos, que eu fui professor da USP de São Carlos. E eu trazia meus alunos e a gente sempre fazia esse percurso. Era um percurso que fazia com muita freqüência. A gente vinha de São Carlos de ônibus, descia na Luz, visitava a Estação da Luz, visitava aquele nucleozinho em torno da Luz, que tem um certo interesse, e a gente caminhava pela Florêncio de Abreu. E para os meus alunos eu falava assim: “Esse percurso que a gente está fazendo é o percurso do imigrante que chegava na Estação da Luz, ou de quem vinha do interior de São Carlos, daquelas fazendas de café, e que chegavam. E que vinha da estação da Luz para o centro da cidade, para a cidade”. Aliás, meu pai sempre falava quando ele ia para loja ele falava: “Estou indo para a cidade”. A gente morava ali na rua Augusta, quase esquina da Paulista. E isso eu estou falando dos anos 60, para ele, ele estava indo para a cidade, quando ele ia para o centro. A gente passava ali na Florêncio de Abreu, a gente sempre parava naquele pontilhão e eu contava um pouco essa história dos rios, de como a cidade perdeu suas referências naturais. E também falava um pouco da colina histórica, porque, se a gente foi pensar, a colina histórica, onde a cidade foi fundada, ela foi fundada exatamente ali, entre o Tamanduateí e o Anhangabaú. E aquela lá era quase uma porta de entrada da colina histórica, aquele pontilhão. E tinha essas reminiscências do meu pai, que tinha me levado lá. Eu sempre lembro, também, de um dia, da grande enchente que teve em 66, 67. A loja ficou embaixo da água, teve um super prejuízo , porque ficava na baixada... E aí, uns três ou quatro dias seguidos, dois ou três dias, não sei, na minha cabeça era muito tempo, mas deve ter sido dois dias, porque não é possível que tenha sido tanto tempo assim. Ia de carro por cima, pela Boa Vista, descia a Porto Geral e olhava lá embaixo e água estava cheia ainda. Essa relação da cidade e da colina histórica e da parte baixa, e das enchentes do Tamanduateí, eu lembro muito disso com meu pai. Então esse primeiro olhar tem um pouco a referência do meu pai.
P1 – Vamos voltar um pouquinho só Nabil. Você falou que você morou nessa casa na Augusta até os seis anos mais ou menos, até 63, não foi isso?
R – Isso, 63 para 64.
P1 – E quais eram as suas brincadeiras, quem eram os seus amigos nessa época? Quais eram suas brincadeiras favoritas nessa fase e com quem você brincava?
R –Eu brincava fundamentalmente com os meus irmãos, os meus primos que eram, nessa altura já eram muitos, né? Outros primos além desses que tinham morado com a gente, que eram mais velhos. Mas na verdade, nessa época, e praticamente até o colegial, eu era muito isolado, muito sozinho, porque os meus primos eram mais da idade do meu irmão do que da minha idade. Os homens. E as meninas que eram mais da minha idade e tinha aquela coisa, nessa época, de muita separação dos meninos e das meninas. E muita coisa meu irmão e os primos, que eram um pouquinho mais velhos que ele ainda, me excluíam, porque eu era muito criança. E tinha um outro problema, que também é importante falar. Quando eu tinha três anos eu tive uma febre muito alta, eu tive uma caxumba, e no contexto dessa febre se descobriu que eu tinha um sopro no coração. Havia uma hipótese de que tinha sido a febre que tinha causado, um sopro, tinha um barulho esquisito no meu coração, que só foi detectado nesse período que eu tive uma febre de 41 graus, fiquei muito mal, quase morri. E aí se descobriu esse sopro e os médicos achavam que era por causa da febre que eu tinha tido esse problema no coração. E na época a medicina era muito precária... E então eu comecei a ter um tratamento, ninguém me contou nada disso, porque também era aquela coisa de esconde coisas das crianças. Ninguém me contou nada, mas ao mesmo tempo havia uma recomendação médica de que eu não podia fazer esforço físico. Então, ao mesmo tempo, não contavam o que eu tinha, mas ao mesmo tempo ficavam me limitando de fazer coisas que um moleque dessa idade faz, que é jogar bola, que é correr... Então, eu lembro várias vezes de estar jogando bola com o meu irmão e meu pai chegar lá e mandar eu ir para casa que eu não podia jogar bola, ou que eu já tinha jogado muito, ou coisas desse tipo. Isso inclusive na escola acontecia. Porque na escola, até acho 11 anos, até o comecinho do ginásio, o pessoal da escola sabia que eu não podia fazer muito esforço, então me poupavam. Eu começava a fazer alguma coisa de esporte, o cara me mandava sentar no banco. E eu não entendia muito bem por quê. E eu só fui descobrir que eu tinha esse problema, acho que eu tinha 11 anos, no começo do ginásio, porque eu fui fazer exame médico na escola, o médico ouviu, mandou sentar, ouviu de novo não sei o quê e mandou chamar os meus pais. Meus pais, nessa época, estavam na Argentina. Então veio o meu tio. Aí, nesse contexto, acabei sabendo que eu tinha um problema no coração, não podia entrar no time de futebol de escola. Aí você começa, nessa idade, você começa a ser visto pelos colegas como um cara meio, com uma certa discriminação,
na escola, porque o cara não jogava futebol, não podia fazer esforço. E a coisa que eu mais fazia nessa época era ler, eu lia muito. Nessa época eu comecei a ler muito livro de história. Eu lembro que são os livros que eu mais curti ler, isso já com, sei lá, oito, nove anos, aquela “História do Mundo para Crianças”, do Monteiro Lobato. E depois, a partir dali, eu comecei ler um monte de livro de história que tinha em casa ou que eu ia atrás. Então o que eu fazia muito era ler. E também andava muito de carro, porque nessa época meu pai tinha um motorista que fazia entregas na cidade. A gente ia à loja, na fábrica, e eu curtia muito andar com ele de carro e eu conheci muito a cidade: o Brás, o Bom Retiro, a Mooca. E outros bairros também, né? Conheci muito fazendo isso, até os 13 anos, 14, acho que até uns 14 anos, tinha um motorista que atendia a família assim, me levava na escola, essas coisas. E também trabalhava na fábrica,
fazendo entrega. E tinha um motorista, chamava Ernesto, que eu gostava muito, tinha uma relação assim muito próxima com ele. E em 69, eu tinha 14 anos exatamente, ele teve um infarto e morreu na minha frente, na cozinha de casa. Aí já na casa que eu fui morar em 63 que era no Jardim Europa, na rua Itália, que é até hoje a casa da minha mãe. Foi o dia que morreu o meu tio-avô, o irmão do meu pai, que tinha cuidado das minhas tias, da minha tia, do meu tio. Eu lembro que toda a família estava no velório, o enterro ia ser 5 da tarde, e ele veio almoçar em casa e ia me levar para o velório, para ir para o enterro. E eu estava almoçando e ele caiu ali, de uma hora para outra. E estava só eu e ele em casa...
P1 – E aí o que você fez?
R – Aí liguei para o pronto-socorro. Foi a primeira vez que eu tive que cuidar de um assunto assim... Eu lembro que depois que ele morreu, que foi, quando eu tinha 14 anos, aí eu já não queria mais, acabou essa fase de andar de carro com ele. Aí, nessa época, foi uma virada grande na minha vida, porque eu comecei a me interessar por outras coisas. Passou um pouquinho essa primeira adolescência e comecei a andar pela cidade, curtir cinema, curtir um pouco a política, uma atuação mais política...
P1 – Então, Nabil, você estava comentando sua fase, até os 14 anos, mas eu queria retomar esse caminhar pela cidade com o seu pai. Como é que era isso? Se você fazia a pé, em que momentos? Se era só quando ia ao trabalho?
R – Olha, eu acho que era muito para ir ao centro, ir à loja. A loja, antes da reforma, depois da reforma ficou uma loja mais ou menos como a cara das lojas de hoje, não as de hoje, mais ou menos daquela época. Mas antes era um lugar muito interessante, porque você tinha a frente, que era uma papelaria, você tinha aquelas portinhas de madeira com vidro, atrás você tinha as máquinas todas. Era uma gráfica funcionando, uma gráfica em árabe, que era uma coisa bastante interessante e durante o dia a tipografia era uma espécie de um centro político-cultural da colônia. Então tinham os poetas que iam lá, os intelectuais, considerados os intelectuais da colônia, os tradutores. Então andar com o meu pai era muito ir para a loja e um pouco ali na avenida Paulista, onde era o Club Homs, ali onde fica até hoje. Meu pai nunca guiou, então ele ia muito de ônibus e ele contava muitas coisas, por exemplo, ele contava a época dos bondes... Ele tinha uma ligação com o cotidiano da vida na cidade, os lugares, as casas onde ele morou... Ele não lembrava quase da rua, porque ele nasceu na rua Guarani, no Bom Retiro. E depois, quando ele voltou da Síria ele foi morar numa pensão de uma suíça, morava ele e meu avô, na mesma pensão suíça. Depois quando minha tia e meu tio vieram, que eles tomaram uma casa, o clã, pelo que ele contava, a grande aspiração dele era juntar a família. Então vieram os meus tios e meu pai foi morar no Cambuci. Agora não lembro o nome da rua, a rua existe até hoje. E aí moraram lá. Então, a cidade, que eu andava com ele era muito a cidade em torno da 25...
P1 – E como é que era a 25 nessa época?
R – A 25, nessa época, tinha a coisa das enchentes... O grande pavor eram as enchentes, quando chovia muito, ele ficava ligado com a coisa de que podia subir o rio, que podia entrar na loja, que tinha que levantar as coisas da loja. Então a questão das enchentes era uma coisa marcante. Outra coisa era que todas as lojas, daquela época, todas as lojas eram da colônia. Então tinha uma vida muito síria. Na época inclusive era mais síria do que libanesa, embora sírio-libanês sempre foi uma coisa meio junto, mas era muito sírio. Tinha o Empório Sírio, que até hoje existe, que fica lá muito próximo. Tinha vários pontos que eram referência. Então eu lembro muito também que a gente saía ali da loja e andava por ali para tomar café numa ruazinha que fica ali do lado. E aquele lugar era um outro centro, todo mundo falando em árabe. Então tinha essa coisa do árabe era muito forte. E até eu fico pensando agora porque que na época eu não aprendi o árabe, porque eu ouvia muito o árabe. Você ia, por exemplo, nesse barzinho só se falava em árabe. Até os caras que atendiam, que não eram da colônia. Tinha também a Vitória, que às vezes a gente ia, o restaurante da Vitória, que ficava na 25 de Março, o restaurante da Dona Vitória. Era uma circulação muito ali naquele entorno, a pé era muito no entorno da loja que eu andava com o meu pai. Agora, de carro, já não era com o meu pai, era menos com o meu pai, a gente ia muito na Visconde de Parnaíba, a fábrica ficava na Visconde de Parnaíba, do lado de cá da estrada de ferro. Até uma coisa engraçada, porque muitos anos depois, quando eu fui no Museu do Imigrante, que fica do lado de lá da estrada de ferro, encostado,menos de cem metros da fábrica, eu nunca tinha me dado conta porque ali tinha uma barreira, você não passava, ali na Visconde de Parnaíba, naquele trecho. Aquele trecho do Brás, eu circulava muito por ali. Tinha a fábrica onde se instalou a Souza Cruz, tinha aquele cheiro de cigarro que dava um certo enjôo. E eu ficava muito na fábrica, ficava lá esperando carregar a perua, era uma perua Dodge verde. Depois a gente rodava muito por aquelas ruas, rua Oriente, a Bom Retiro, a rua da Graça. Porque era muito comum vender os fios para as tecelagens e para as coisas de costura que estavam fundamentalmente ali, no Bom Retiro, na Mooca, um pouco no Brás... Eu lembro, por exemplo, quando se construiu os viadutos, o viaduto Alcântara Machado, isso já na época do Brasil grande. Que era um dos problemas cruzar a estrada de ferro, que era muito aquela região no entorno da estrada de ferro. E aquela coisa impressionante ter aquele viaduto de quase um quilômetro. Acho que a Radial Leste também tava meio que se implantando naquela época, ou pelo menos tava sendo alargada, arrumada e eu andava muito nessa região, na região da 25 de Março, menos na região do centro, do triângulo, isso com o meu pai e muito no Brás, no Bom Retiro... Eu conhecia bastante aquele pedaço.
P1 – E como é que era o Brás, o Bom Retiro naquela época, Nabil?
R – Ah, o que eu me lembro era de ser muito aquelas lojas. Eu estou falando assim de um período que eu não estava tão ligado nas questões urbanas. O cotidiano era muito das lojas. E às vezes eu ficava também na loja do meu pai, ficava acompanhando ele fechar o caixa... Eu sempre tive muita facilidade para fazer conta, matemática e tal. Ele usava todo um sistema de fechar o caixa com o barrame, que tinha toda uma técnica, o que era registrado, o que não era registrado, como ele anotava, o controle que tinha... Tinha o controle oficial e o controle paralelo. Todas as lojas, todo mundo funcionava assim. E acompanhava muito ele ali no fechamento do caixa... Quando eu fui ficando um pouquinho mais assim, sei lá, talvez com 12, 13 anos, às vezes eu ficava no caixa também. Mas eu não ia tanto porque eu estudava. Ia geralmente à tarde... Mas só uma coisa, para aproveitar essa fala dessa idade: quando eu estava no primeiro ou segundo colegial, colegial não, no científico. Eu fui para o científico e tinha um amigo, que é o Rogério, Rogério Corrêa, que depois virou cineasta e tudo, que foi para o clássico. Então, quando eu estava no último ano do ginásio a gente ficou muito amigo, foi justamente nessa época que eu falei que foi uma virada grande. A gente ficou muito amigo, porque o colégio era muito conservador, eram aqueles boyzinhos e tal, e a gente tinha um olhar um pouco diferente, mais politizado. Isso no Dante Alighieri.
P1 – É depois eu vou retomar um pouco isso.
R – É, o Dante Alighieri. E ele foi para o colegial e resolveu fazer um filme, um Super8. E ele veio: “nós vamos fazer juntos um Super8 sobre o Mário de Andrade”. O Mário de Andrade na cidade. Quem o estimulou a fazer isso foi o professor Dino, que era um professor de literatura. E a gente fez. E eu tinha uma câmera de Super8, porque o meu pai sempre teve máquina fotográfica, câmera de filmar. E ele propôs da gente fazer um filme, um filme em Super8, que foi um filme sobre as poesias de São Paulo, o Lira Paulistana e o Paulicéia Desvairada, que tratavam de São Paulo. Eu tinha 15 anos, 15 para 16 anos. A gente estudou essas poesias e fizemos afizemos a seleção, o Dino ajudou, e fomos visitar os lugares. Para filmar aquilo que estava nas poesias.
P1 – Em que lugar que vocês foram?
R – Ah, fomos em todos os lugares! Sim que eu conheci bastante,
eu subi o morro. Porque eu estava ali na 25 de Março, eu subi para o triângulo, filmamos ali em cima, na São Bento, filmamos o Correio... Tem aquela famosa poesia, acho que é “Saudades de São Paulo”: “Quando eu morrer não conte para os meus inimigos,/ quero ficar enterrado na minha cidade/ saudade/Enterrem os pés na rua Aurora,/ o sexo no Paissandu,/ a cabeça na Lopes Chaves,/ o ouvido direito no Correio,/ o esquerdo no Telégrafo,/ quero saber da vida alheia,/ sereia”. E vai daí pra frente. Então, são várias referências da cidade. Nós filmamos o Correio, o Telégrafo, a rua Aurora, a Lopes Chaves, o Jaraguá – “meus olhos vão ficar no Jaraguá”. Só a Universidade que nós não filmamos – “os joelhos na Universidade” – nós não filmamos a Universidade. Várias poesias: “Ruas do meu São Paulo”... A gente filmou aquelas ruas de quatro cantos, filmamos o largo São Francisco, o Tietê –“Ode ao Tietê”. Então foi, eu acho duas coisas: eu decidi fazer arquitetura porque meu pai era encanado com engenharia,
ele queria ter um filho engenheiro de qualquer maneira. E queria que os filhos fossem engenheiros, queria ter sido engenheiro certamente. Mas ele nunca tinha podido estudar. Aquela coisa dessa geração, porque essa geração do meu pai, que não estudou projetara muito nos filhos. E ficaram muito voltados para fazer a América. Ele queria ter um filho engenheiro e
teve um dia que me deu um clique e eu falei assim: “Não, vou fazer arquitetura”. Porque de alguma maneira...
P1 – Tá próximo.
R – É, quer dizer, por um lado não era engenharia, mas o meu pai achava que era tudo a mesma coisa... E por outro lado, eu já tava muito ligado com uma questão da cidade e a questão da história. Porque tudo isso, no fundo juntou um pouco. Eu já, desde o ginásio, já era um aluno bom de história, estudava muito, lia muito. Bom, eu era um bom aluno em geral, de matemática, de física... Tanto que nessa época, nessa mesma época, quando eu estava no colegial, eu comecei a dar aula particular de matemática e física para gente do ginásio. Principalmente matemática, até hoje eu faço conta de cabeça, não quer dizer nada... Mas a coisa da história, eu estava muito ligado. Meu pai comprava aquelas enciclopédias enormes, também era outra mania do meu pai. Porque naquela época a Abril começou a publicar aquelas enormes...
R – Conhecer, Barsa...
P1- Conhecer, Barsa e tal.
Ele comprou uma coleção da Segunda Guerra Mundial, acho que era doze volumes. E eu li aquilo tudo, você aprende todas as coisas, as mais absurdas, inutilidades, as batalhas... Mas na verdade era uma coisa que, provavelmente, se fosse hoje, ia ver vídeo, televisão, não sei o quê. Naquela época eu não via muito televisão, não gostava muito de televisão e nunca gostei muito. Gostava muito de cinema, mas não muito de televisão.
P1 – Nabil, vamos voltar para essa questão da formação. Você iniciou os seus estudos em que escola?
R – Primeiro meu pai queria me por no Dante Alighieri. Meus irmãos já estavam lá e parece que não tinha vaga, eu não sei. Eu só sei que eu não entrei no pré-primário, eu entrei direto no primário, no primeiro ano primário, no Dante Alighieri, que ficava muito perto de casa. Minha casa ficava na Augusta entre a Jaú e a Santos. E o Dante Alighieri ficava ali na Jaú. Então era muito perto. Eu comecei lá no Dante Alighieri, que era uma escola muito conservadora e que ficou muito fascista, porque, quando eu tinha oito, nove anos, teve o golpe, o golpe militar. E quando teve o golpe militar, não sei se é uma questão de memória minha, ou se de fato isso aconteceu, você passou a ter uma estruturação muito mais fascista, muito mais nacionalista da escola. Então, eu lembro muito bem que toda a manhã eu ia para ao pátio da escola, ficavam todas as crianças enfileiradas, as filas das várias turmas, naquele pátio central do Dante Alighieri, estilo panóptico, com a sacada da escada no centro. E ali em cima ficava o diretor, veio um novo diretor na época, e tocava o Hino Nacional, todo dia de manhã tocava o Hino Nacional e depois a gente ia, em fileira, cada um para sua sala. Era uma coisa bem fascista. E a escola tinha aquela disciplina toda, e era aquela classe média alta que tinha todo aquele preconceito contra os homossexuais. Na minha turma tinha um menino que era claramente homossexual, tinham um preconceito contra ele. Tinha preconceito contra mim, porque eu não fazia esporte, e era classe de menino e de menina separado, não tinha sala mista. Então era só menino. Então tinha uma coisa assim muito machista, né? E eu era o CDF da turma, já desde de mais ou menos o segundo ano, o terceiro ano. E tinha aquela coisa, que também é meio fascista, de você dar medalha, dar diploma, para os primeiros colocados. Então todo mês,
os primeiros colocados ganhavam diplominha,
no final do ano fazia a média geral, quem tinha a nota mais alta ganhava uma medalha de ouro, depois medalha de prata. Era uma coisa que hoje a gente criticaria fortemente como método educacional. Mas era assim, e eu acabava sendo sempre o primeiro, o segundo, às vezes o terceiro, mas geralmente era o primeiro e o segundo e tinha uma concorrência, porque tinha um outro menino, eu e ele concorríamos muito por ser o primeiro.
R – Quem era? Você lembra o nome dele?
P1- Ricardo Zaccaro, acho que era isso. É que ou era um, ou era outro. Então isso criava naturalmente uma disputa. Mas ao mesmo tempo tinha muita repressão na escola. O Rogério foi uma das primeiras pessoas. No colegial eu fui conhecendo outras pessoas que também tinham uma visão crítica, que eram mais de esquerda. Isso já na época da ditadura, isso tudo que eu estou falando, quando eu estava na quarta série do ginásio era 6970, 71. E era muito para o comportamental. Então, por exemplo, no colegial, que eu já tava mais na rebeldia, eu tinha um cabelo grande, deixava crescer o cabelo, o diretor entrava na sala, olhava, olhava, olhava, apontava os que tinham cabelo comprido e mandava sair, tinha que cortar o cabelo.
Eu ia lá no bar da frente, molhava o cabelo, ele encolhia, voltava para a escola com o cabelo encolhido... E nessa época, já no segundo colegial, depois já no terceiro colegial, a gente já tinha um grupinho que saia junto, que ia ao cinema, fazia festinhas, tinhas as meninas... Algumas pessoas, que ficaram meus amigos, de vez em quando ia no sítio de um deles e era um grupo meio marginal da escola,
com hábitos diferentes, com visão política diferente. Nessa época a gente já tinha 16, 17 anos, tentava
entrar no cinema que era proibido, 18 anos, tentava falsificar as cadernetas para poder passar no cinema. Ia muito no Bijú, que o Bijú deixava entrar. Eu lembro que uma coisa que ficou muito marcante desse período foi o “If”, que era um filme sobre uma escola interna, uma escola inglesa que tinha uma disciplina muito rigorosa, eles fazem um bombardeio à escola... Era mais ou menos o que a gente queria fazer com o Dante Alighieri.
P1 – Nabil você falou de uma fase da escola, da primeira à quarta série, e depois tem o ginásio que é como se dividia naquela época. Essa fase da primeira à quarta série você teve algum professor que te marcou, que você acha que foi importante?
R – Eu tive um professor chamado Carlos, acho que ele foi professor dois anos...
P1 – Ele dava aula do quê?
R – Não, naquela época no primário era tudo. Era tudo, era um professor só.
P 1 – Isso estava se adaptando.
R – Entrei, não tive outra escola. Quer dizer, comparado com os meus filhos que estudaram e que já estavam em escola desde, sei lá, oito meses de idade, em creche, tal... Que também isso gerava uma sociabilidade que eu não tive, quer dizer, eu entrei na escola com oito, sete anos. Então, eu não tive a sociabilidade da escola, da pré-escola, que é muito importante. No segundo ano que eu comecei a me destacar mais, tanto que no final do ano eu lembro do Carlos falar assim, no final assim: “Você brilhou”. Porque ao longo do segundo ano, fui melhorando e o Carlos era professor. Depois ele foi professor acho que no terceiro e no quarto.
Tinha aquela coisa de fazer o cursinho para pular o quinto ano, porque tinha quinto ano na época. Então tinha que fazer um cursinho e tal. E eu lembro que sei lá quem montou um cursinho. Eu acho que foi o professor Carlos inclusive que montou. Era um cursinho na casa de um aluno que ficava na Paulista, num daqueles casarões na Paulista. Era Roberto Abdala que ele chamava. E a gente fez um cursinho lá na casa do Roberto Abdala, que era um cursinho para pular o quinto ano. Pulou o quinto ano e no ginásio, acho que a professora mais marcante que eu tive foi a Hebe Reali, que era professora de história,
uma professora marcante...
P1 – Por que ela foi marcante para você?
R – Ela foi marcante, porque ela era professora de história. E ela era uma pessoa que eu estudava, eu tinha um interesse maior. Então ela foi uma professora marcante.
P1 – E as classes no ginásio eram mistas ou continuavam sendo meninos e meninas?
R – Meninos e meninas. Aliás, a única classe mista que eu tive foi no terceiro científico, porque eu fui para o científico, eram só meninos, tinha pouquíssimas meninas. Acho que tinha uma classe mista e depois não tinha. E no terceiro científico dividiu arquitetura e engenharia. Aí
era o contrário,
era uma classe com cinco, seis meninos e 30 meninas. Nessa época eu já tinha uma turma assim, que envolvia o pessoal da arquitetura, mas também o pessoal do clássico e tal.
P1- E o Dante ele dividia em clássico...
R – Clássico e científico.
P1- Ah, clássico e científico.
R – Clássico e cientifico. Eu era científico e no terceiro ano é que dividiu pra...
P1 – Para as áreas de interesse.
R – Para arquitetura e engenharia. Exatas, porque teve... Isso já era meio no formato do vestibular, porque o vestibular já tinha se formado com essas áreas mais ou menos separadas.
P1 – Nabil, na primeira parte do depoimento você falou algumas coisas, eu queria só retomar. Você me falou muito de jogar xadrez com o seu pai, eu queria que você falasse um pouquinho como é que se deu isso?
R – Bom, acho que quando eu fiz cinco anos, no Natal de quando eu tinha cinco anos, meu pai me deu um jogo de xadrez, um tabuleiro, as peças. Aliás, o tabuleiro até hoje eu tenho. E me ensinou a jogar xadrez e eu gostei muito. Eu tenho impressão de que ele me deu o jogo de xadrez por causa daquilo daquela questão que a gente tinha conversado, que era o fato de que eu não podia fazer esforço, porque tinha aquele problema do coração, então era um jogo que não exigia o esforço físico... Eu comecei a jogar xadrez com ele. Falando isso porque, por exemplo, ele não deu para o meu irmão o xadrez? Meu irmão nunca jogou bem xadrez e eu jogava muito com ele xadrez nessa época, a partir de cinco anos, aprendi logo e tudo, comecei a jogar xadrez, depois eu inclusive estudei um pouco de xadrez, comprei uns livros de xadrez, estudava as posições. Eu era um bom enxadrezista. Cheguei a ser um bom enxadrezista. Mas nunca sai desse âmbito muito doméstico, nunca fui para competição. Graças a Deus porque isso é uma coisa que fica muito viciado. Mas até hoje eu jogo razoavelmente bem xadrez.
P1 – Teu pai jogava gamão também, né?
R – Jogava gamão, agora gozado, eu também jogava gamão com ele, mas gamão não era uma coisa que eu me envolvi tanto como xadrez. Bom, não sei, xadrez é um pouco mais divertido como jogo, eu acho. Não tem dados tal, aquela coisa de sorte, eu nunca joguei... Nunca gostei muito de jogar nos dados. E o xadrez não dependia disso.
P1- Nabil, você falou que teve um momento da sua vida que teve uma mudança radial, que trouxe uma nova visão, mudou um pouco as questões da sua vida. Eu queria que você falasse um pouco dessa fase, por que foi importante, o que aconteceu?
R – Acho que foi um processo. Quer dizer, foi um processo que começou talvez quando eu estava na quarta série, tinha acabado de fazer 14 anos, e foi até entrar na faculdade. Foi o momento em que começou a se constituir uma turma, que era uma turma da escola meio, vamos dizer assim, que não seguia muito os padrões tradicionais da escola. Isso foi 68 para 69... A gente tava exatamente no momento de maior fechamento político do país. Evidentemente isso, de alguma maneira, repercutiu na escola, embora a gente fosse muito adolescente ainda. Meu irmão estava entrando na universidade nessa época, na USP, então comecei a ter um pouco mais de convivência com o pessoal dele, da universidade, que era bem o pessoal underground... Ele foi para a ECA logo em seguida, então comecei a ter um contato com esse pessoal. Comecei a discutir um pouco mais política, comecei a ir ao cinema, isso já mais com 16, 17 anos... Tentar entrar nos filmes que eram proibidos até 18 nos cinemas, vamos dizer assim, mais alternativos. Quando eu estava no cursinho,
tinha 17 anos, estava na terceira série, tinha aquela sessão maldita do cine Maraxá que era uma sessão que passava às 10 horas da quarta-feira, até hoje eu me lembro do dia, que era uma sessão que passava os filmes fora do circuito mais tradicional e a gente estava na época da ditadura. Ou eram proibidos ou que não eram bem vindos. E também no Bijú, porque era o cinema que deixava entrar... A gente entrava porque não pedia carteirinha. Ia muito no Bijú, ia muito no Maraxá, que era um pouco o circuito mais alternativo. O que existia de circuito alternativo naquela época. E também, nessa época, eu fiz dois anos de cursinho. E no segundo ano de cursinho, que eu fiz no Equipe, isso em 73, eu tinha 18 anos já. E o Equipe era bem um lugar alternativo, tinha shows, era um lugar que tinha muito debate político, alguns professores que até hoje tenho algum tipo de relação, porque eram pessoas interessantes... Então, esse período, vamos dizer assim, até entrar na faculdade, foi um período importante da minha formação como pessoa, como visão política, como visão de mundo. Eu acho que foi um momento importante e no Dante tinha um grupo, depois tinha outro grupo no cursinho, fui conhecendo outras pessoas que eram fora do circuito mais tradicional do Dante Alighieri, que eram pessoas mais conservadoras.
P1 –Você falou da visão do Equipe. Quem foram as pessoas que te marcaram nessa época, quando você vai para esse circuito mais alternativo, diferente da visão do Dante. Quem foram essas pessoas que te marcaram e por quê?
R – Bom, eu lembro que eu fiz primeiro o Universitário, eu já estava no terceiro ano do Dante, eu fiz Universitário que ficava lá perto da praça 14 Bis, ali 9 de Julho... Ali eu lembro bastante de um professor que chamava Pedro Ivo, na verdade o nome real é Joel Rufino dos Santos, que era professor de história, e era clandestino... E eu gostava muito de história e curtia muito as aulas dele... E eu lembro inclusive que no último dia de aula nós saímos, fomos tomar uma coisa lá no bar do lado, uma cerveja, eu me despedi dele e depois eu soube que naquele dia ou no dia seguinte ele foi preso. Foi o último dia da aula acho que... Já deviam estar acompanhando ele e prenderam no dia seguinte. Isso era 72. Aliás, ele era um professor negro, que era raríssimo você ter um professor negro no cursinho ou na escola, na escola eu nunca tive, no Dante Alighieri. Depois, no Equipe, uma outra pessoa que me marcou bastante foi um outro professor de história, foi o Ricardo Maranhão e também a gente conversava muito. Tinha um outro professor, que agora não estou muito lembrando o nome, que era um português, que era professor de história, porque ele era professor de história geral e o Maranhão era de história do Brasil. E esse português também exilado. No ano seguinte, que isso era 73, logo no começo do ano seguinte, 74, quando teve a Revolução dos Cravos, ele voltou. Na verdade, ele era do partido comunista português e voltou para lá, depois nunca mais vi. Tinha também o professor de literatura, Gilberto, que era lá no Equipe também. Na verdade, o que aconteceu foi o seguinte, contando um pouquinho melhor essa história do Equipe e do Universitário. Quando eu fui para o Universitário, eu estava no terceiro ano do Dante, eu fui fazer arquitetura. Então eu tinha as aulas de física, de química, de matemática etc.. E eu tinha uma formação muito forte na área de exatas, no Dante Alighieri. Tinha dado aula particular, já falei, de física e matemática. Eu ia muito bem nessas matérias, então no Universitário eu, algumas vezes, fui primeiro colocado naqueles rankings, no cursinho sempre faziam aqueles rankings. Tinha os simulados e saía a lista dos primeiros colocados, que tinham notas maiores. Bom, na arquitetura você tinha, além dessas disciplinas tradicionais, linguagem arquitetônica, que era de desenho, de criação. E eu tinha mais dificuldade, porque a minha formação no Dante Alighieri disso era ridícula. Era uma formação meio de artes acadêmicas, aquela coisa que eu nunca tive muito interesse, não tinha uma formação forte nessa área. Nesse ano, particularmente no vestibular, todo mundo achava que eu ia entrar na FAU, porque lá estava muito bem colocado. E eu acabei não entrando na FAU e eu só fiz vestibular na FAU, naquela época. Isso sozinho. Duas ou três faculdades, eu fiz a FAU e não entrei e não entrei inclusive por conta de que eu fui muito mal em linguagem arquitetônica e naquele ano na FAU, até foi uma reação dos professores da FAU ao vestibular, aquele vestibular de testes e tudo, eles radicalizaram. Eles deram zero para quem estava mal no desenho e deram nota alta para quem acharam que estava bem, para minimizar o peso das outras notas. Então eu não entrei, o que eu achei muito bom, na verdade, depois. Porque esse ano seguinte foi muito bom. Eu, no ano seguinte, resolvi fazer Equipe, eu fiz um teste, porque naquela época você fazia teste, era engraçado isso, você fazia um teste e aí, de acordo com a tua nota no teste, você tinha um desconto, quer dizer, uma bolsa. Não sei se isso é assim ainda. Fiz o teste e recebi uma bolsa maior do que a máxima, porque eu fui muito bem naquele teste. E fui para o Equipe, foi uma opção exatamente na sequência desse processo que eu vinha antes, porque era o lugar mais aberto. O Equipe era quase um centro cultural naquela época, ficava ali na Caio Prado, no convento. E tinha o auditório, tinha um pátio, tinha uma escadaria maravilhosa que você ficava lá tomado sol. E eu não fazia mais nenhuma disciplina exata, porque eu achava que eu estava o suficiente, eu só fazia as disciplinas de humanas, que é o que eu tinha uma formação mais frágil, do Dante Alighieri, até porque eu fiz científico. Então, fazia literatura, geografia do Brasil, geografia geral, história do Brasil, história geral e linguagem, que não era muito uma linguagem arquitetônica, mas minha opção foi exatamente de fazer isso e fazer Escola Brasil. A Escola Brasil era uma escola de arte, de alguns artistas que se juntaram, e que dava uma formação muito aberta, muito boa, de artes plásticas, de tudo... Esses professores da Escola Brasil, todos eles me marcaram bastante, alguns até o hoje eu tenho uma relação grande, o Fajardo, o Baravelli,
o Nasser e o Resende, José Resende. E eram quatro noites por semana. Então eu fazia assim o Equipe de manhã, desse jeito, ficava muito ali naquela escadaria nas aulas de matemática, de física, tomando sol e conversando... E à noite eu ia para a Escola Brasil, que na verdade me deu uma formação artística mais ampla, de uma maneira mais geral sobre criatividade, sobre relação entre a política e a arte,
porque alguns deles, por exemplo, o Resende era uma pessoa muito engajada politicamente. Foi talvez um dos melhores anos da minha vida esse. E no Equipe, todo domingo domingo passava um filme, os filmes que eram proibidos no cinema passavam no Equipe. Tinha show, teve show do Gil, do Caetano, artistas daquela época, que alguns estavam voltando do exílio, em 73, eles tinham voltado alguns naqueles anos, o Jorge Ben, o Macalé. Realmente foi um período muito intenso assim de abertura para a vida, abertura para muitos aspectos de relacionamento também. A primeira namorada foi ali no Equipe também. E foi isso. E no meio disso, eu resolvi fazer a operação do coração, porque esse problema que tinha desde a infância, e que na adolescência tinha sido acho que um grande problema, ficou ali e meu pai, minha mãe... Meu pai, que era quem decidia essas coisas, tinha decidido que não ia me operar até eu fazer 18 anos, porque operação de coração naquela época era uma coisa que as pessoas tinham o maior medo, de mexer no coração e tal. Estava começando, aqui no Brasil já tinha um pouco de experiência, e então ele deixou... Quer dizer, ele queria que eu tivesse 18 anos e que eu decidisse fazer, minha mãe tava apavorada de fazer operação de coração, mas eu decidi que ia fazer. Foi nesse período, do Equipe, eu fiz, foi em agosto de 73,
que eu resolvi fazer a operação... Quer dizer, eu já tinha decidido antes, então esse ano todo foi o ano pra tirar isso a limpo. Então teve uma série de exames prévios, teve que conseguir assim as condições para fazer porque era muito caro, fez uma parte pelo INSS, uma parte ele pagou. E eu fiz na Beneficência Portuguesa com o doutor Adib Jatene. E a operação, embora fosse uma operação relativamente simples, teve toda uma série de exames prévios para descobrir o que eu tinha, por que eu tinha sopro... Então aquele cateterismo, que entrava uma sonda dentro do coração, coisas que hoje são absolutamente comuns, mas estamos falando de 35 anos atrás, né? Naquela época era uma coisa relativamente, não era nova, mas não era muito comum. Eu fiz aqueles exames todos, descobriu-se que eu tinha uma membrana que envolvia a aorta, e que era por isso que dava o sopro. Aí foram feitos todos os testes e tal e aí fiz a operação, mas a operação, embora fosse relativamente simples, não era trocar a coronária, essas coisas que se faz hoje, que acho que também se fazia na época, o procedimento todo era o procedimento normal. Tinha que cortar aqui no peito, serrar o externo, abrir, colocar coração e pulmão artificial, desligar o coração e desligar o pulmão, para poder mexer no coração. Obviamente, eu falava isso para a minha mãe e ela ficava apavorada, porque para ela era uma coisa, na época, era uma coisa muito inusitada, ela não conhecia ninguém que tinha feito isso. E aí eu fiz. Foi relativamente tranqüilo. Foi no dia 31 de agosto de 73. Aí, você passa dois dias meio grogue e depois vai par ao quarto, recupera, recuperei razoavelmente bem. Eu lembro que no dia 11 onze de setembro de 73, foi o dia que caiu o Allende, aí vieram todos os meus amigos visitar, porque fiquei uma semana que não podia receber visita e tal, aí calhou de virem nesse dia. E veio todo mundo de luto porque tinha tido o golpe lá no Chile. Aí logo eu voltei para casa, fiquei um mês em casa, que eu só tinha que fazer caminhadas no bairro. Depois fui aos poucos recuperando a vida normal, mesmo assim, esse corte no coração me deixava muito... Porque doía muito, então deixava uma postura muito caída, aí e aí fiquei acho que quase uns dois anos, uma postura meio torta, por conta daquilo. Aí, depois eu comecei a fazer ginástica e recuperei. E aí fui fazendo aqueles testes e tal, no começo tinha algumas restrições, depois passei a ter uma vida sem me preocupar com essa questão de coração, que até então era uma coisa que você não sabia o limite, o limite do esforço.
No fundo, em tese, não tinha nenhum risco, você não podia fazer lá muito esforço, mas é claro você tinha a aorta mais estreita do que o normal. Então, se eu fizesse um esforço e acelerasse muito o coração poderia dar algum problema.
P1 – Qual foi o significado da operação para você? Porque essa decisão foi sua. O que significou pra você a operação?
R – Ah, significou muito eu acho, porque de certa forma aquilo era uma limitação para mim. Então era quase como ter me aberto para outras possibilidades. É uma coisa que até então eu não sabia muito bem qual era o limite e ninguém sabia qual era o limite exato. Então foi uma coisa um pouco de abertura e ela foi num momento também de abertura. Esse período aí de 18 anos. Nesse período do Equipe culminou o processo que começou com 14 anos, que foi um processo de abrir para o mundo, de ter as próprias ideias, de construir um novo tipo de relacionamento. Nessa época também a gente ia muito para o sítio de um desses meus amigos que ficava em Amparo e que era um lugar em que a gente tinha absoluta liberdade, porque estava longe da casa dos pais...
P1 – Nabil, eu queria que você falasse um pouquinho desse momento histórico. Do que você lembra desse momento histórico e político que a gente viveu na época. Se andar na rua tinha alguma coisa que te chamava a atenção...
R – Esse período que eu te falei foi o período mais forte da ditadura. Uma coisa que eu me esqueci de falar e que também fez parte disso foi que eu fiz um curso de fotografia no SESC. Acho que eu também tinha 15, 16 anos, nessa mesma época, com o Ramalho, que era um professor que depois foi da ECA. Foi marcante, porque a fotografia foi uma das outras coisas que eu também passei a fazer com muito prazer. E também é uma coisa que vem do meu pai, porque meu pai também fazia muito fotografia, só que o meu pai fazia fotografia da família. Fotos desse período do meu pai, da minha casa, deve ter sei lá quantas, dez mil fotos. Eu lembrei disso porque foi num dia de uma aula de fotografia que teve um dos sequestros, acho que foi do embaixador japonês, ou do embaixador alemão, não lembro mais qual deles, e o Ramalho comentou isso lá no curso de fotografia. Então foi um período que eu acompanhava bastante do processo político, mas pelos jornais, por ouvir falar. Eu não tive nenhum envolvimento nesse período com nenhum grupo de esquerda organizado, como algumas pessoas da minha geração um pouquinho mais velhas do que eu,
quando chegaram na faculdade tinham tido. Principalmente o pessoal do Aplicação teve uma relação grande... Mas lá, o Dante Alighieri era muito conservador, não tinha nenhum núcleo disso e esse grupinho nosso, embora provavelmente a gente tivesse num ambiente que tivesse algum tipo de relação, foi uma coisa muito indireta, muito de acompanhar, a gente sentia. Você se sentia um pouco assim, discutia política, mas discutia de uma maneira muito tímida, ficava preocupado com quem estava em volta para não ouvir. Você sentia um clima. Também teve o clima do “Ame-o ou deixe-o”, uma coisa que me incomodava bastante, mas que você também não ficava totalmente fora, né? Por exemplo, 70 estava no começo desse processo. Então você tinha uma visão crítica àquilo, mas ao mesmo tempo se envolvia, porque envolvia também a Copa do Mundo, o futebol era uma coisa que no fundo era de todo mundo. Então era um sentimento meio contraditório do “Ame-o ou Deixe-o”, da Copa do Mundo de 70. Você via aquilo sendo utilizado, mas ao mesmo tempo não era uma coisa que você deixava de participar, de comemorar. Eu lembro bastante da Copa do Mundo como um momento de contradição: você estava querendo comemorar, participar daquela vitória do Brasil e vendo aquilo ser utilizado pelo Medici, pela ditadura, de uma maneira muito acintosa. Principalmente 73,
acho, quando teve a morte [Alexandre] Vannucchi, a época que eu tava no Equipe. Era um momento assim que tinha muito medo, a gente tinha um certo receio do que poderia estar acontecendo. E aí, depois, de 74 para frente já foi outra história, foi quando eu entrei na FAU. Mas até 73 eu diria que era uma coisa um pouco de olhar um pouco de fora, você percebia gradualmente que a coisa estava desmontando. A oposição ao regime, as pessoas sendo presas e, por exemplo, eu soube da prisão do Pedro Ivo, que era o Joel Rufino do Santos. Eu soube, três meses depois, que tinha acontecido. E falei “Pô, eu estive com ele até algumas horas antes de ele ser preso”. Tudo isso deixava a gente meio recuado em relação a uma atuação política mais ativa.
P1 – E por que arquitetura?
R – Ah, acho que eu já falei disso. Eu acho que arquitetura foi um pouco o encontro entre essa formação mais de ciências exatas com uma abertura mais para história, pra política, um pouco para exatas... Lembrei dessa coisa da fotografia, eu tinha esquecido disso, dessa coisa de ter feito o curso de fotografia. E eu acho que arquitetura é o que todo mundo que faz, muita gente que faz arquitetura porque você pode tanto ir para engenharia, para um lado, como você pode ir para artes plásticas, como você pode ir um pouco para a teoria história. Eu acho que foi meio óbvio ter ido para a arquitetura. E foi bom porque eu acho que me permitiu ter essa formação mais ampla, mas aberta, um pouco mais generalista. A FAU particularmente tem uma formação mais generalista e foi importante. Deixa eu te falar, você me perguntou assim dos professores que foram referências importantes. Eu vou falar um pouquinho entre uma coisa e outra. Teve um professor que, no final, foi bastante importante pra mim, que é o Júlio Abe. O Júlio Abe era professor de linguagem arquitetônica do Equipe. Porque no Universitário era o Baravelli e o Fajardo, que depois me levaram para a Escola Brasil. Quando eu fui para a Escola Brasil, porque tinha conhecido o Fajardo no Universitário. E aí o Júlio Abe, e o assistente dele, que era o Odair, era estudante na época, da FAU. E o Júlio Abe já era professor da FAU. Tinha um curso de linguagem arquitetônica muito mais aberto até do que o curso do Universitário. O Universitário era muito assim de artes plásticas mesmo tudo. E o curso do Julio Abe era um curso mais aberto. Eu lembro que em julho de 73, quando eu tava lá, eu não sei bem por que, ele mandou fazer um trabalho lá em Perus, na fábrica de Perus, que foi um trabalho que eu fiz um monte de fotografia. E na época estava tendo a greve dos operários em Perus. E Perus era uma fábrica de cimento do J. J. Abdala, tinha toda uma questão da poluição, que tinha aquele pó de cimento que cobria as casas. Então, já era um trabalho de leitura urbana. Eu fui com a minha namorada, que eu tinha começado a namorar, e fui pela primeira vez para Perus. Recentemente, agora na campanha, eu fui muito para Perus, lembrei muito dessa história que mudou totalmente. Eu fui lá na fábrica de novo... Inclusive agora estavam em um processo de expulsar os moradores, que os moradores ficaram lá, porque tinha uma vila, uma vila operária dentro da fábrica. E eu entrei em contato, porque quem dava assessoria jurídica para os operários da fábrica era a Frente Social do Trabalho, que era uma instituição ligada à igreja e tinha um advogado que era o Mário de Jesus, acho que é Mario de Jesus, acho que já morreu, mas o filho dele é jornalista. E aí eu tive contato com a Frente Nacional de Trabalho, depois eu fui algumas vezes na Frente Nacional de Trabalho. Fiz umas fotos da fábrica, daquela região que até eu quero ver se ainda existem, porque eram slides, devem ter se desfeito quase, mas eu tenho ainda essas fotos. Então, esse foi talvez o primeiro trabalho de história urbana ou de leitura urbana que eu fiz. Eu tava no Equipe nessa época. E aí no final desse ano, de 73, logo antes de fazer o vestibular, o Odair, que era esse estagiário, perguntou se eu queria fazer um trabalho no IPHAN, um levantamento. Eu fui lá no IPHAN. Isso foi assim: foi no sábado, no domingo eu fiz o vestibular e na segunda-feira eu fui lá conversar com o Jorjão. Eles estavam fazendo o levantamento de fazendas e de casas do clico do café no Vale do Paraíba. Já tinham sido feito vários setores, faltava fazer o setor de Pindamonhangaba para cá, pegando o Vale do Paraíba, pegando várias cidades ali. E eram cem casas e cem fazendas. E aí então eu topei fazer. Foi formada uma equipe e eu lembro que logo depois do vestibular nós fomos para lá, para Taubaté e aquela região toda. E foi um trabalho muito bacana, muito legal, antes de entrar na FAU. Inclusive quando eu descobri que eu tinha entrado na FAU, o dia que saiu publicado, eu estava em Taubaté fazendo esse trabalho. Eu lembro que estava eu e um outro colega. A gente foi na rodoviária de Taubaté e compramos o jornal e vimos que a gente tinha entrado na FAU. E esse trabalho foi o primeiro trabalho, vamos dizer assim, profissional que eu fiz na área de arquitetura propriamente dita. Começou logo depois do vestibular e eu fiquei quase o primeiro ano todo da FAU completando esse levantamento, que era um levantamento, na cidade era razoavelmente fácil – nas cidades,
porque a gente tinha que fazer Taubaté, Pindamonhangaba, Jambeiro, Caçapava, São José, Natividade da Serra Paraibuna, Paraitinga já tinha sido feito, Paraibuna, Santa Branca... Isso era razoavelmente fácil. Depois tinha a parte rural, das fazendas, que tinha uma referência, mapas do começo do século... Eu lembro que eu fui com um carro que era o carro do meu pai, que praticamente acabou nesse trabalho, porque aquelas estradas de terra, que você passava por umas picadas incríveis, atolava o carro... Esse levantamento foi legal porque tinha que identificar as fazendas que eram de fato do período, do ciclo do café, fazer o levantamento arquitetônico, documentar e isso foi fundamental. Eu estou fazendo um trabalho, um livro agora que é dos conjuntos habitacionais dos anos 40 e 50, e eu vejo a experiência que eu tive naquela época de levantamento, ela até hoje ela é importante para essa atividade de pesquisa.
P1 – Nabil fala um pouquinho da tua fase na FAU. Como é que foi? Quem foram os professores marcantes? Como é que você direcionou sua carreira? E quais eram as suas expectativas em relação a essa profissão na época?
R – Ah eu não sei se eu tinha assim expectativas específicas. Faculdade você vai um pouco sendo levado, então seria natural, até por essa experiência que eu tive particularmente todo o primeiro ano, o começo do segundo, era natural que eu fosse para área do patrimônio, mas eu acabei não indo, talvez até porque, não sei, porque acabei tendo contato com outros professores que acabaram me puxando para uma outra coisa,
então...
P1 – Quem foram esses professores?
R – É, por exemplo, no primeiro ano assim eu lembro que, logo no primeiro dia que eu entrei na FAU, na tarde do primeiro dia, teve aula com o Flávio Império. Eu entrei no auditório, a aula era no palco do auditório do teatro da FAU, e a aula era uma aula de sensorial. Então, todo mundo ficou sentado no palco, ele pôs uma venda no olho de todo mundo e aí a aula é essa, as pessoas se tocarem. Depois teve aulas assim maravilhosas com o Flávio Império, durante o período que ele deu aula, porque mais ou menos na metade do semestre ele teve vários conflitos com a direção da escola, aí ele praticamente parou de dar aula. Mas foi uma experiência muito marcante, muito diferente. Isso um pouco que eu tava falando, que a FAU dá abertura para tudo. Então, era muito mais uma aula de sensibilidade, embora fosse uma aula de formação visual. Então, em alguns momentos tinha que montar um palco, tinha coisas de usar materiais de sucata para se vestir, umas coisas muito legais nas aulas do Flávio Império. Mas o Flávio Império ele foi marcante para mim, mas ele não foi uma pessoa que eu acompanhei muito. Ele foi marcante desde desse primeiro dia até um pouco antes dele ficar doente e morrer. Porque aí eu já era professor com ele na Belas Artes. Isso 10 anos depois, 8, 10 anos depois. Porque em 81 eu fui dar aula na Belas Artes. Eu dei aula desde muito cedo, na Faculdade de Arquitetura. Eu fui dar aula na Belas Artes e vários dos meus professores, que foram marcantes na faculdade, eram professores lá, Flávio Império, a Renina, vários. E aí eu tive muito contato com ele, já como colegas. Claro que ele era muito mais professor do que colega, ainda. Mas foi muito marcante ver a vida de uma maneira mais diversa, não tão esquemática. Como de certa forma tinha sido a minha formação, tanto na família como no Dante Alighieri. O Flávio Império faz parte um pouco dessa época toda, uma certa abertura para coisas, vamos dizer assim, fora daquele padrão do modo de vida tradicional. Acho que o Flávio Império foi importante nisso. Foi um pouco a vivência desse período. Eu lembro que eu assisti, vamos dizer assim, peça que o Zé Celso fez no Oficina antes de um período que fechou o Oficina... Acho que foi também 73 ou 74, porque aí depois logo em seguida ele foi para Portugal, o Zé Celso. Eu tava assistindo esse dia aquela coisa do Zé Celso, que tem a peça falando do país, da merda que tá o país e não sei o quê. E aí fechou o teatro e depois desse dia ele foi para Portugal, logo depois da Revolução dos Cravos. Então voltando, para a FAU, quem foi mais marcante para minha trajetória profissional foi o Gabriel Bolaffi, que era um sociólogo, professor de fundamentos sociais. E aí foi engraçado, porque no primeiro dia, no primeiro mês, logo depois do primeiro mês, teve uma prova, as pessoas foram entregando as provas, e ele ia corrigindo na hora. E ele é muito crítico, e criticava todo mundo. Aí ele começou a ler minha prova, leu o primeiro lado da prova e nem leu o final, deu 10 e falou assim: “Vá para minha casa, você vá para minha casa tal dia, tal hora, quero conversar com você”. E ele chamou três pessoas para ir para a casa dele: eu, a Raquel Rolnik, que até hoje é minha amiga, trabalha comigo, e o Marcelo Suzuki,
que também é meu amigo, embora não tenha tido uma trajetória com ele tão forte como com a Raquel. E aí então ele estava formando um grupo de estudos lá na casa dele e aí nós começamos a participar desse grupo de estudos.
P1 – E esse grupo de estudos era sobre?
R – Sobre habitação. Por isso que eu digo que foi marcante do ponto de vista profissional. Ele ia fazer um trabalho, tava fazendo um trabalho de habitação na época. E tinha acabado o doutorado dele que era sobre BNH e aí ele me levou na Vila Maria Zélia. Nós fomos na Vila Maria Zélia, fizemos algumas entrevistas... ele era muito desorganizado, fazia muita coisa... Então esse grupo existiu durante um período, mas eu comecei a me interessar e estudar mais essa coisa da habitação, por conta da disciplina dele e foi bastante marcante porque depois, se você pegar o “A Origens da Habitação Social”, o livro tem lá todo um trabalho sobre a Vila Maria Zélia. Eu levava os meus alunos à Vila Maria Zélia e até hoje é um lugar importante pra mim. Foi ali que eu conheci o Chico de Oliveira, por exemplo, na casa dele. Eu passei a fazer parte daqueles alunos que os professores levam para os lugares... Então ele foi marcante. Outro professor que foi marcante, não teve muito desdobramento, mas teve o desdobramento do ponto de vista do meu interesse, foi o Dácio Ottoni. Porque no semestre seguinte eu fiz uma disciplina dele que foi História do Urbanismo, principalmente das cidades medievais e renascentistas na Itália, na França... E ele tinha uma coisa de leitura de cidade. Pra mim isso foi bastante importante do ponto de vista de meu interesse da história do urbanismo, que depois cruzou muito com a história da habitação também, que vinha do meu interesse de história de uma maneira mais geral. Eu era um aluno que na faculdade estive muito mais voltado para as disciplinas da área de história do que para áreas de tecnologia ou mesmo de projeto. Embora projeto também tenha tido alguns trabalhos bem interessantes e algumas pessoas marcantes. Porque a FAU naquele momento tinha era meio dividida em dois grupos, dois grandes grupos. Hoje com olhar meu de fora, até já escrevi sobre isso, meio falsa, mas era muito forte, que era o grupo do Partidão, que era muito vinculado ao Artigas e o grupo do não Partidão, da esquerda não Partidão, que tinha como referência o Sérgio Ferro. O Sérgio Ferro tinha sido professor da FAU e tinha uma obra bastante interessante, depois eu posso falar um pouco dela, porque eve uma influência grande também, é uma outra referência importante pra mim. Depois ele foi para a luta armada, estouraram umas bombas lá debaixo do aviãozinho do 14 Bis e ele foi exilado. Ele, aliás, fez parte daquele grupo conhecido como Cultura Nova, o Flávio Império, o Rodrigo e o Sérgio. O Rodrigo ficou preso, o Flávio não tinha entrado nisso... O grupo deles, da luta armada, que era o dos arquitetos, era além do Rodrigo e do Sérgio, era a Mayumi, que depois também teve uma relação importante comigo, tivemos uma relação mais importante, a Mayumi, o Sérgio de Souza Lima, que é o marido da Mayumi, e mais uns dois ou três arquitetos que faziam parte desse núcleo que tinha sido preso. Então esse núcleo foi o núcleo com quem na verdade acabou tendo uma relação também forte. O Sérgio estava na França e quem foi a referência mais importante na verdade a princípio foi o Rodrigo, que o Rodrigo ficou preso um tempo e depois conseguiu ser readmitido na FAU e foi professor nosso. Foi talvez na área de projeto com quem mais eu tive relação. Na FAU tinha esses dois grupos, um que era da revista “Desenho”, outro era da revista “Ou”, só que isso tinha sido já antes de eu entrar. Na época que eu entrei essas revistas já não existiam mais, mas existia o grupo, o grupo do Partidão e um grupo meio disperso que tinha como referência o Sérgio Ferro. E aí então eu me aproximei mais desse grupo do Sérgio Ferro e aí um professor que foi marcante, além do Rodrigo, foi a Hermínia, a Hermínia Maricato. Hermínia Maricato foi a minha professora no segundo ano e o trabalho que a gente fez na disciplina, que era desenho industrial, foi um levantamento em Osasco do mobiliário e dos equipamentos da habitação popular. Nós fomos lá para loteamentos periféricos de Osasco, tinha que fazer o levantamento das casas e ver que tipo de equipamento tinha. Móveis e equipamentos, eletrodomésticos. E a tese que está por trás disso, que é a tese dela, que está em alguns artigos dela, é que embora as casas fossem autoconstruídas, fossem precárias, em loteamentos precários, os bens modernos, a geladeira, o fogão e principalmente a televisão tinham penetrado nessa casa. Então isso fazia parte de toda uma análise da sociedade brasileira que estava baseada no Chico de Oliveira, da sociedade dualista e da autoconstrução como uma reminiscência, uma prática mais atrasada, mas que se combinava e servia muito bem para o processo capitalista moderno. Isso foi muito importante porque, a partir daí, pelo Bolaffi e depois pelo Lúcio Kovarik, que eu vou falar que foi outro professor que foi uma referência importante pra mim. O Bolaffi, quando eu tava no final do segundo ano, foi para a Inglaterra fazer um pós-doutorado, ou coisa assim, e aí indicou o Lúcio Kovarik, que não era professor da FAU, era professor da ciências sociais, para orientar um trabalho que a gente estava começando a formular, eu com a Raquel. Nessa época eu e a Raquel trabalhávamos muito juntos já.
P1 – Só voltar um pouquinho Nabil. Fala um pouquinho, quando você vai fazer esse levantamento em Osasco, conta pra gente como é que era Osasco nessa época. Como era urbanisticamente, as ruas...
R – Bom, então deixa eu completar, porque eu vou fazer a pesquisa em Osasco. Quer dizer, além dessa ida que nós fizemos com a Hermínia, que foi só foi um pouco a sedução por esse levantamento, a gente ganhou uma bolsa de iniciação científica da FAPESP e fomos com o Bolaffi. Mas logo a gente caiu com o Lúcio Kovarik, era uma pesquisa sobre a periferia da Grande São Paulo, sobre o processo de autoconstrução e a formação dos bairros de periferia. Nós escolhemos cinco loteamentos em Osasco, fizemos o levantamento entre o final de 77 e o começo de 78, que tá publicado no meu primeiro livro, que chama “Periferias”. Tem artigo também sobre ele. E Osasco nessa época, o próprio nome... Foi interessante isso, porque no começo era assim, periferia, periferia... Aliás eu discuti muito isso agora na campanha. Hoje todo mundo fala de periferia como uma coisa, virou quase uma categoria, a periferia virou uma categoria na cultura contemporânea, nas metrópoles. E aí a gente foi para a periferia, depois de ter feito o trabalho, na hora de dar o título,
para o trabalho, nós demos “Periferias”. Porque na verdade o que a gente verificou é, é claro que para quem está no centro, na universidade, na USP, mora em Pinheiros e convive no centro de São Paulo, no centro expandido de São Paulo, o resto é periferia. Só que para quem vai conhecer a periferia, você percebe que a periferia tem muita diversidade. E assim uma das coisas que nós detectamos em Osasco é que a periferia era formada de várias camadas. Você tinha áreas bem bem bem precárias, como, sei lá, Jardim Cirino, Jardim Flor da Primavera,
que foram alguns loteamentos que nós pesquisamos, que você não tinha guia na sarjeta, não tinha água, não tinha esgoto e as pessoas autoconstruíam suas casas. Aliás, talvez seja até interessante para vocês, mas nós fizemos entrevistas com umas trinta pessoas que eram moradoras de Osasco naquela época e que contaram o seu processo de construção das casas. Mas eu não sei se ainda dá para ouvir alguma coisa das entrevistas. Você tinha esses bairros muito precários de infraestrutura, que não tinham nada, que às vezes as pessoas autoconstruíam essas casas nos tempos vagos. Isso era o objeto, isso foi o tema do trabalho... E aí você tinha outros bairros que tinham sido isso, mas já não eram mais, que estavam já urbanizados, já tinham substituído grande parte dos moradores, por exemplo, o Jardim Umuarama, que é Osasco mais próximo de São Paulo, perto de Itaúna, que já era um bairro consolidado, já tinha asfalto, já tinha sarjeta, que era um bairro dos anos 50, tinha uns 20 anos e já não era mais periferia. Você tinha essa diversidade. Tinha o centrinho de Osasco. Osasco era um centro industrial muito importante. Tinha sido palco das greves de 68 e era um lugar com uma certa tradição operária forte.
P 1 – E quem eram? Migrantes nordestinos, tinham imigrantes? Você lembra?
R – Eram migrantes de primeira geração, grande parte deles, esses que estavam nesses loteamentos pioneiros eram migrantes de primeira geração, muito deles empregados da indústria. Aquele momento era um momento de expansão forte da economia no Brasil. Então quase todos eles eram empregados, tinha metalúrgico... Essa experiência com o Bolaffi e o Lúcio Kovalik, quando ele foi nos orientar, ele tinha acabado de concluir, junto com uma equipe do Cebrap, aquele estudo “São Paulo, crescimento e pobreza”... Foi um estudo marcante,
patrocinado pela Cúria, que mostrava como o Brasil, apesar do crescimento econômico, tinha gerado muita pobreza, era uma tese, forte, do grupo do Cebrap formado por Fernando Henrique, o Singer, o Chico de Oliveira. Era toda uma concepção, que naquele momento tava todo mundo mais ou menos junto nessa análise, dos professores que tinham sido aposentados da USP. O Lúcio era uma geração um pouco posterior, mas ele teve um papel importante nesse estudo. Só que era um estudo muito teórico, muito de quem não tinha ido, pisado na lama, vamos dizer assim. Era uma análise muito mais geral, genérica, de dados secundários, uma observação um pouco mais distante do que esse trabalho primeiro da Hermínia e depois esse trabalho nosso. Porque esse trabalho a gente foi lá, entrevistou as pessoas, olhou os processos, viu as casas, fotografou. Tem um levantamento fotográfico muito interessante que foi feito na época desses bairros. Que foi feito por um colega nosso, o Gerson Ferracini, que trabalhava mais com fotografia, a gente achou que era legal ter alguém só para fazer as fotos. Então ele fez as fotos. Esse estudo nosso virou um clássico, esse “Periferias”, porque ele comprovava as teses do “São Paulo, crescimento e pobreza”, mas com uma pesquisa empírica forte, com muito depoimento, dava voz para os moradores desses bairros. E voltando então a falar dos professores marcantes, eu falei um pouco por cima do Rodrigo, mas o Rodrigo foi muito marcante. Nós conhecemos o Rodrigo em, acho que foi 75, e aí o Rodrigo foi para Grenoble, onde estava o Sérgio Ferro, ele ficou lá acho que 6 meses, 1 ano em Grenoble. E entre 75 e 76, eu, a Raquel e Bartira, que era outra amiga nossa da faculdade, que era um grupinho, fizemos uma viagem pela Europa e fomos visitar o Rodrigo onde estava o Sérgio Ferro. Então eu conheci o Sérgio Ferro lá em Grenoble nessa época. Fomos dois dias, foi uma coisa curta, nem deu para conhecer muito, mas eu e a Raquel principalmente, acabamos ficando um pouco uma referência do Sérgio Ferro aqui como alguém que estava na FAU, estudante e tal. E a primeira versão que ele fez do “O Canteiro e o Desenho”, que depois virou um livro importante dele, ele mandou pra gente. É um livro muito difícil de ler, não era um livro, era um texto, veio datilografado, chegou datilografado, foi a primeira versão. Nós lemos o livro e isso foi muito importante, porque nesse contato com o Rodrigo e com o Sérgio deu para entender um pouco melhor as ideias dele. Nesse momento já tinha se formado a Libelu na FAU. Então a FAU, nesse primeiro ano aí, 74, tinha o Partidão, que era o estava no grêmio, que tinha uma tradição muito forte. Na FAU tinha muitos professores, a maior tradição da arquitetura era do Partidão e o Artigas. O Artigas estava aposentado na época, o Paulo Mendes estava aposentado. Então juntou os professores aposentados do Partidão e tinha o Sérgio Ferro que era aposentado, exilado, do outro grupo. E aí se formou um grupo que era do Partidão, que era um grupo que defendia o desenho, que o projeto era transformador, que tinha que trabalhar com o projeto. E foi se formando o outro grupo, no final do primeiro ano, e esse outro grupo meio que capturou os alunos do primeiro ano que tinham uma visão mais crítica. Principalmente a Clara Ant, que agora é assessora do Lula. Ela foi conversar com a gente e foi criado um grupo que chamava Sai dessa Maré, da organização dela,
que é a OSI, que virou a Libelu. A Libelu virou um grupo muito importante nesse período na USP, na USP não, no meio estudantil como um todo. Só que não aparecia como um grupo político, aparecia o Sai dessa Maré. Esse grupo, Sai dessa Maré, fez um ciclo de debates e foi aí que eu conheci a Marilena Chauí, a gente convidou várias pessoas intelectuais da USP para fazer debates na FAU. Esse grupo Sai dessa Maré acabou formando uma chapa para o grêmio e ganhando a eleição e iniciou um período de predomínio da Libelu na FAU, que durou quatro anos. Só que nem eu, nem a Raquel entramos no grupo, porque na hora que era para formar a chapa do grêmio a gente tinha uma série de críticas também a maneira como a Libelu funcionava. E nós não chegamos a formar um grupo, mas a gente participava do movimento estudantil e não estava vinculado a nenhum grupo. Quer dizer, tinha na FAU basicamente a Libelu e o Partidão. O Partidão recuou logo em seguida que muita gente foi presa, na época do Herzog, logo no começo de 75. Então o pessoal do Partidão ficou muito acuado, o pessoal da Libelu existiu e nós ficamos no meio do caminho. Porque nós começamos a ter muita crítica também a maneira como a Libelu funcionava. E a Libelu, mas só para voltar a questão do Sérgio, né. Então a Libelu era um pouco um grupo que dizia que projetar não adiantava nada, que era se vender ao sistema e que a gente tinha que fazer uma crítica ao processo de produção e que casava muito com aquilo que a gente tava fazendo que era pesquisa na periferia. Então esse contato com o Sérgio Ferro e com o Rodrigo foi importante para a gente entender melhor as ideias deles, que não eram as ideias de não projetar. Era simplesmente uma crítica ao processo de projeto e ao processo de produção capitalista, mas na perspectiva de se construir uma outra maneira de projetar, uma outra maneira de se relacionar com o operário da construção civil, com o usuário. Depois que ele me mandou o “O Canteiro e o Desenho”, que a gente leu, nós começamos discutir muito isso na FAU. Isso acabou tendo uma repercussão importante já logo que eu me formei, quando formamos o laboratório de habitação, na Belas Artes, que começamos a trabalhar dando assessoria para o movimento de habitação, trabalhando muito na ideia do mutirão e da autogestão. Introduzimos a questão da autogestão, da participação no projeto. Tem uma série de desdobramentos profissionais e políticos posteriores que vieram muito desse contato que eu tive com o Rodrigo e com o Sérgio. Por exemplo, o Rodrigo era uma pessoa do projeto, foi importante porque era um cara que tinha uma visão crítica em relação à maneira como o Partidão se posicionava, o próprio projeto do Partidão, mas ao mesmo tempo não era do “não projeto”. Acho que esses foram os professores talvez mais influentes desse período. Teve mais um que eu acho que foi influente sim, que foi o Cândido Malta Campos Filho, era professor de planejamento. Ele foi meu professor, mas ele já era secretário do Olavo Setúbal, praticamente todo esse período de faculdade ele foi secretário. E no meu disso o Lúcio trabalhava lá na Sempla. Entre ter feito o projeto de pesquisa na Fapesp e esse de Osasco e começar de fato o trabalho, eu fui estagiar na Sempla, na época era Cogep. Naquela época era um grande centro para pensar o planejamento da cidade. E o secretário era o Cândido, o Cândido chamou um monte de gente de várias tendências e tinha lá um grupo que era de indicadores socioeconômicos que quem coordenava era o Lúcio Kovarik. E aí ele chamou eu, a Raquel, para sermos estagiários. Ficamos lá até sair a bolsa da Fapesp, que levou quase um ano nas tramitações todas. Nesse período eu trabalhei, fui estagiário na Cogep e conheci todos os planejadores de São Paulo que estavam lá. Quer dizer, alguns que tinham sido professores, mas assim de menos influência, tipo o Luis Carlos Costa, Flávio Vilaça, e outros que eram mais velhos do que eu, já eram profissionais, mas que depois foram colegas. Várias pessoas com que eu passei a ter relação depois, que não eram colegas de faculdade, porque eram cinco anos mais velhos, conheci na Sempla, que é um pouco essa comunidade do planejamento. Muita gente que até hoje eu tenho uma relação forte, como amigos, como colegas de trabalho nessa área de planejamento, eu conheci inicialmente nesse momento na Sempla e logo depois que eu me formei eu passei uns dois anos trabalhando na Sempla. E um pouco essa comunidade do planejamento urbano que foi outra linha importante de atividade profissional.
Eu fiz um curso com o Cândido que era um curso sobre o centro, propostas para o centro de São Paulo. Foi uma optativa que era um trabalho sobre o centro. Mas o que foi interessante, eu resolvi escrever no final, que ia entrar no meu trabalho assim, “uma carta para o prefeito”. E eu lembro que o Cândido adorou isso, que ele era secretário na época. E era uma carta dirigida ao prefeito, por que o projeto era daquele jeito. E o Cândido adorou aquilo e falou assim: “Não, você agora tá aprendendo o que é planejamento, porque se você não fizer política você nunca vai conseguir colocar em prática as suas propostas”. Me lembrei disso agora porque, de fato, essa relação entre atuação profissional e política acabou sendo uma marca pro resto da vida. E talvez essa carta tenha sido o primeiro momento em que teve uma relação desse tipo.
P1 – Nabil, como tudo isso influenciou a maneira como você direcionou a sua questão profissional e a forma como você se posicionou dentro da arquitetura? Queria que você falasse um pouco das relações sociais da FAU com os amigos. Como é que era um pouco essa vida universitária?
R – Ah era muito intensa. A FAU tinha várias tribos, tinha o grupo dos artistas, tinha o grupo do pessoal da Atlética, tinham os grupos políticos. E a gente tinha um grupo também, que se formou nessa época e de alguma maneira até hoje continua sendo um grupo Claro que foi se mudando, alguns saíram, outros entraram, outros brigaram, mas tinha um grupo que fazia coisa junto, fazia trabalho junto, viajava, fazia política. Então, na verdade esse grupo que a gente teve na FAU, era um grupo primeiro que tinha uma visão política, tinha um engajamento político, mas não estava vinculado a nenhuma tendência. Nessa época na USP você tinha as várias tendências. Tinha o grupo do Partidão, tinha o grupo da Libelu, esses dois eram os dois que existiam na FAU e depois tinha os outros fora, tinha o PCdoB, tinha os da Refazendo... Embora tivéssemos engajamento político, nós não estávamos participando dessa articulação maior, porque não éramos de nenhum partido. Tinha um certo viés de crítica aos partidos já. Eu digo já porque embora eu tenha entrado no PT e a maior parte dessas pessoas entrou no PT, sempre entrou com uma certa visão crítica, tinha um certo viés autonomista. Era uma corrente também que existia. Da crítica ao dogmatismo, uma crítica muito forte ao socialismo real, às visões muito centralizadoras da esquerda tradicional. Ao mesmo tempo, tinha uma crítica muito grande às ideias conservadoras, uma visão muito crítica ao niilismo, à alienação, às várias formas de organização partidária. Por exemplo, eu e a Raquel trabalhamos praticamente todo o período da faculdade juntos e depois também, era muito forte. E depois tinha outras pessoas que faziam parte, o Horácio, que é um poeta, hoje é professor da USP. O Milton Hatoum em Manaus, na época o Milton Hatoum,
também fazia parte desse grupo. A Sônia Lorenz, o André Villas Boas, pessoas que não eram da FAU também, eram de outras escolas. O André que é indianista. Tinha várias pessoas. Então era um grupo, a gente ia muito para o sítio do André lá em Itapecerica, viajava muito. Essa viagem que eu fiz para a Europa com a Raquel e com a Bartira... Primeiro fui para Portugal, que tinha recém saído da Revolução dos Cravos, encontrei vários brasileiros lá, o próprio Zé Celso, que eu falei. Que estava indo para a Angola na época e conheci vários brasileiros que estavam exilados e o próprio Sérgio Ferro. Mas foi marcante principalmente porque, quando eu tava em Londres... Foi uma viagem dessas assim, que começou na Espanha, foi para Portugal, tudo de mochila e viajando de trem, dormindo de noite no trem e com pouco dinheiro e tal, ficando em albergue, Uma viagem longa, que era para durar mais tempo até do que durou no meu caso.
P1 – Você ficou quanto tempo?
R – Ah, pra mim durou dois meses e meio, mas a Bartira e a Raquel ficaram mais seis meses, quase seis meses. Mas foi marcante por causa disso, porque eu tive que voltar. Porque eu tava em Londres. O roteiro começou na Espanha, depois fomos para Portugal, depois fomos para Grenoble, para a França, depois fomos para a Itália. Na Itália foi um momento particularmente complicado porque nós fomos roubados, o passaporte da Raquel foi roubado, quase que ela foi obrigada a ficar lá pro resto da vida, porque naquela época tinha muito exilado brasileiro na Europa, o passaporte brasileiro custava muito e era usado para as pessoas voltarem... Bom, mas aí a gente conseguiu sair da Itália, fomos para a Tchecoslováquia, fomos para Amsterdã e aí fomos para Londres. E aí quando eu tava em Londres, descobri por vias totalmente tortas, porque nquela época você viajava pela Europa, você ia para a Europa, você raramente conversava com alguém do Brasil, mandava uma carta de vez em quando... E eu quando eu tava em Londres eu descobri por uma amiga que tava lá, que já tinham procurado ela, que meu pai tinha morrido. Meu pai morreu durante o período da viagem. Quando eu descobri, ele já tinha morrido há uma semana. E também não me contaram na hora. Falaram assim que era para eu voltar, que ele tava doente. Aí então eu voltei, eu voltei em março, ele morreu em primeiro de março, eu voltei acho que lá pelo dia 10 de março, 12 de março, uma coisa assim. Então a viagem acabou sendo marcada por isso. Isso também foi uma mudança, não chegou a ser uma mudança marcante, mas este ano aí, que foi 76, foi um ano de mudança grande. Porque eu pai morreu, aí durante um período eu fiquei na faculdade e fiquei cuidando da loja também. Porque foi uma transição na loja, então, meu tio, meu pai era sócio do meu tio, meu tio fazia um acompanhamento, mas precisava de alguém lá, todo um outro lado aí da história. E também foi nesse ano que eu conheci a Bel, que até hoje é a minha mulher, que é uma portuguesa e que estava no Brasil. E foi interessante, porque eu fui para Portugal, gostei muito de Portugal e quando eu voltei para cá aí eu conheci a portuguesa e me apaixonei e fiquei. Então foi um ano, 76, um ano importante assim desse ponto de vista, de dar uma virada assim um pouco nas coisas pessoais, né?
P1 – Então Nabil, você falou que o ano de 76 foi um ano muito importante da questão pessoal sua, foi quando você conheceu a sua esposa. Onde você a conheceu? Conta um pouquinho pra gente.
R – Eu conheci ela na FAU. Ela tinha chegado acho que no ano anterior de Portugal e ela começou a fazer parte desse grupo. No começo, era aquela coisa da FAU, quer dizer, tinha um monte de gente, então de vez em quando você encontrava. Mas ela acabou indo morar com a Aninha, com a Ana Rossi que era da minha turma, que era mais ou menos próxima desse grupo maior. Tinha um grupo menor e um grupo maior dentro da FAU,
tinha um grupo um pouco maior. Aí tinha esse meu amigo Horácio, ele era muito ligado nas coisas de Portugal, gostava muito dela, ela era uma referência. Eu tenho impressão que inclusive eu estava fazendo um trabalho com o Horário na casa dele, ela estava por ali. Bom, em suma, nós começamos a namorar na festa junina de 76, que era a festa do Equador, na FAU a festa do Equador era a festa da virada do semestre, do curso, final do segundo semestre do terceiro ano, que é metade do curso, que chama festa do Equador. Foi nessa festa que eu, já tava assim meio paquerando, e comecei a namorar com ela ali. Ela na verdade tinha começado o curso de arquitetura em Portugal, aí teve a Revolução dos Cravos, a escola fechou, ela ficou lá um tempo. O pai dela logo depois da Revolução dos Cravos veio para cá, era professor universitário, tinha um convite, veio trabalhar na Unicamp. Assim, um pouco também por conta da Revolução, que ele era muito conservador. Mas ela não tinha vindo com ele. Quando fechou a faculdade e lá não estava acontecendo nada, ela acabou vindo para a FAU, tentou fazer a transferência, fez uma série de cursos, foi aí que a gente se conheceu. Mas no final de 76 reabriu a escola lá, e ela não tinha conseguido, a FAU não deixou ela entrar no curso. Então ela fez uma série de disciplinas, mas era muito rigorosa essa história, ela só poderia entrar na FAU se fizesse outro vestibular, ela já tinha feito dois anos lá e tal, ela resolveu voltar. E nós fizemos uma viagem... Acho que eu não falei disso. No final de 76 nós fizemos uma viagem bem interessante, começou em São Paulo, passamos pelo Brasil inteiro, e terminou no Recife. Aí, do Recife, ela voltou para Portugal e eu vim para São Paulo. Então nós ficamos um ano e meio, ela lá e eu aqui. E essa viagem foi uma viagem bem interessante, porque a gente saiu aqui de São Paulo e foi para Brasília, aí pegamos Belém-Brasília, fomos até Araguaiana, pegamos a Transamazônica, fomos para Santarém, para Marabá, Santarém, Altamira, Monte Alegre, aí entramos pelo rio, fomos até Manaus. O objetivo era chegar em Manaus, a gente ia encontrar o Milton Hatoum. Ficamos lá na casa dele e depois voltamos pelo rio Amazonas para Belém e depois fizemos uma viagem de carona pelo interior. Pelo sertão do nordeste, saindo de Belém, entrando pelo Amazonas, Piauí, esse sertão de Pernambuco até Recife. E eu recentemente fiz uma exposição na FAU das fotos dessa viagem. Foi um período também de reconhecimento do Brasil, desse, que era na época muito pouco conhecido. A Transamazônica ainda era aquele mito do Brasil grande, era toda cheia de buraco aquela devastação, aquela coisa toda. Ela foi para Portugal e durante 77 ela ficou lá e eu aqui. Eu tenho uma longa correspondência, porque naquela época a gente se correspondia por carta, então era cartas que iam e vinham, que foi também uma coisa interessante como correspondência. No começo de 78 eu fui para lá encontrar com ela, passamos dois meses juntos. Fomos para Paris, passamos um mês em Paris e um mês em Lisboa. E aí resolvemos que a gente ia ficar junto. Ela terminou o curso e voltou para cá em julho, agosto de 78 e nós fomos morar juntos numa casa na Previdência, até então eu morava com a minha mãe. Logo depois que eu voltei de Portugal, eu voltei da Europa, quando meu pai morreu, eu fiquei morando na casa da minha mãe. Você falou como era a FAU daquele período. Naquele período praticamente todo mundo, todos os meus amigos saíram da casa dos pais no meio da faculdade, que era uma coisa muito comum, que hoje já não é tão comum. Até porque a coisa da autonomia em relação aos pais era uma coisa muito importante naquela época. Então se constituíram várias repúblicas, várias casas que eram casas de amigos nossos, amigos meus, essas turmas todas. Tinha a casa da Isabel de Castela, várias casas, tinha a casa da rua Martins, que eram casas que eram dos amigos que saíram da casa dos pais. E como o meu pai tinha morrido e minha mãe tava sozinha, meu irmão e a minha irmã já não moravam com a minha mãe, eu fiquei lá. Eu fiquei até quando a Bel voltou e nós fomos morar com os outros amigos na Previdência. Isso foi em setembro mais ou menos de 78, que eu ainda não tinha me formado. Eu me formei no final do ano.
P1 – E como foi essa coisa de começar a dar aula. Você falou que começou a dar aula na Belas Artes. Você se direcionou para essa área acadêmica como?
R – Na verdade eu comecei a dar aula antes disso. Eu já falei da outra vez que eu comecei a dar aula particular e eu fui dar aula no Objetivo, isso em 75 ao começo de 76, até voltar dessa viagem. Na verdade eu paguei essa viagem com o dinheiro que eu ganhei lá no Objetivo, eu ganhava bem no Objetivo na época.
P1 – Você dava aula do que?
R – Dava aula de linguagem arquitetônica e história da arte para o cursinho e para o colégio. E eu fui dar aula com a Raquel. Dei aula com o Horácio, que é esse outro amigo meu que também dava aula, só que ele foi demitido logo, porque alguém acho que não foi com a cara dele lá. E depois a Raquel, quando nós fomos para a Europa, até nós irmos para a Europa nós dávamos aula lá. Na verdade era aula de história da arte, não foi uma coisa muito marcante para mim não. Quer dizer, um pouco marcante para entender o que era o Objetivo, como é que era aquilo e tal, mas não foi uma experiência marcante. Depois eu dei aula, antes da Belas Artes eu dei aula em Taubaté. Logo que eu me formei, eu me formei em 78, começo de 79 eu fui dar aula em Taubaté. Na verdade, no último ano da FAU se formou um grupo de pesquisa lá no departamento de história. Convidaram a Raquel e eu, que estávamos fazendo aquela pesquisa na periferia, nos convidaram para ir trabalhar nesse grupo, que era coordenado principalmente pelo pessoal da área de ciências humanas da FAU, Neide Patarra, Coleta, algumas pessoas da FAU muito da área de demografia que coordenavam esse grupo e nós fomos lá como pesquisadores juniores, alguma coisa assim. E nessa mesma época, tinha isso na área de história, que era um grupo de pesquisa, o primeiro grupo que se constituiu organizado, tinha um financiamento da Fundação Ford. E ao mesmo tempo o Lúcio Kovarik, desde a época eu nós começamos a trabalhar com ele, ele tinha m grupo também de estudos, que tinha várias outras pessoas mais velhas todas. Foi esse período que eu estudei muito. Ele tava estudando a história de São Paulo, a história social, que foi o tema da livre docência dele. Então foi nessa época que aprofundei muito o estudo. Eu lembro quase toda aquela bibliografia de história social de São Paulo no começo do século, na virada do século, ele tava estudando movimento operário, anos 10, anos 20, a greve de 17, todas essas coisas. E aí então eu estudei muito isso, que acabaram sendo muito importantes para o meu doutorado, que na verdade era mestrado e depois virou doutorado, eu vou explicar isso mais para frente. Se você pegar todo o primeiro capítulo do meu doutorado, ele é sobre a questão da habitação na República Velha. Eu comecei a estudar isso com o Lúcio, o Wilson Cano, o Arandim, Sérgio Silva, toda essa bibliografia, Boris Fausto, tudo isso a gente estudou muito nesse grupo. E esse grupo evoluiu para um grupo maior que juntou com o pessoal da FAU, o pessoal que tava estudando mais a questão urbana. Então o Lúcio Gregori entrou nisso, que depois foi Secretário de Transporte da Erundina, o Rodrigo Lefèvre, o Jorge José que era um outro professor da FAU na época e que era mais jovem também. Na verdade juntou um pouco esse grupo do Lúcio Kovarik com um grupo que tava em torno do Rodrigo Lefèvre, e aí juntou num grupo maior que virou um grupo de estudos de referência importante em sociologia humana. Nós fomos estudar Castells, uma série de outros autores que estavam estudando assim a urbanização capitalista contemporânea em nível internacional. Nessa época eu tava muito nessa perspectiva bem acadêmica, já estava me distanciando bastante da arquitetura enquanto projeto. Na verdade mais planejamento urbano e estudo da cidade, e sociologia urbana, era bastante forte isso, Então era meio natural ir para área acadêmica, dar aula, fazer pesquisa. Isso teve uma outra reversão quando eu fui para a Belas Artes, por uma outra linha, um outro caminho. Mas essa perspectiva no início da minha vida profissional era muito acadêmica. Aí entrei no mestrado, logo em seguida, o que também gerou uma certa ciumeira dentro da FAU.
P1 – Você fez o mestrado na FAU?
R – Eu fiz o mestrado na FAU, fiz o mestrado na FAU e gerou uma certa ciumeira porque eu e a Raquel entramos recém-formados
e aí outros professores que eram fora um pouco desse grupo, achavam que era um absurdo recém-formado entrar. Ao contrário de que é hoje, hoje é o normal. E nós fomos meio precursores disso, nós saímos da graduação e fomos direto para o mestrado, eu e a Raquel. E aí na verdade o mestrado na FAU estava sendo formado muito para pegar o pessoal mais velho que estava dando aula nas escolas e tal e que não tinha titulação. Principalmente os arquitetos. E a gente era visto com uma certa reserva pelos arquitetos, porque era o grupo da sociologia urbana, era o grupo que não fazia projeto e aí então eu fui dar aula. Nós tivemos um problema sério com esse grupo dos demógrafos. Porque aí nós nos formamos, eu e a Raquel, nos formamos, fizemos uma série de propostas de pesquisas grandes, conseguimos recursos para desenvolver pesquisa, mas aí começou a haver um choque meio divisão de mundo e um pouco político.
P1 – Por quê?
R – Porque ali tinha hierarquia, porque a gente era meio rebelde. Nós fizemos aquele trabalho, que foi publicado logo em seguida, teve uma puta repercussão. As pessoas viam a gente muito como as criancinhas que eram muito brilhantes. Em 78 fizemos uma apresentação na SBPC, que era uma mesa assim, o Lúcio Kovarik, a Ruth Cardoso eu e a Raquel. E a gente ainda era aluno de graduação. E lá no grupo no Prodeur tinha uma hierarquia, acho que eram do Partidão também, e a gente era crítico ao Partidão. Mas isso não era muito aberto na época. A gente tinha uma postura política, vamos dizer assim, muito diferenciada em relação ao grupo maior que estava lá.
P1 – O que era diferente? Como é que vocês se posicionavam diferente?
R – Por exemplo, nesse período estavam pintando as greves do ABC. Naquela época a coisa das greves era uma coisa muito mais libertária. A gente também já estava começando a ler Foucault... Então eu lembro, por exemplo, que lá era uma instituição, um grupo de pesquisa, tinha coordenador, tinha os pesquisadores seniores... E a gente era estagiário, os pesquisadores juniores. E a gente começou a contestar um pouco a estrutura de poder, que as decisões eram tomadas e a gente não participava. E aí aquelas leituras todas do Foucault da política, da micropolítica das instituições. Então a gente começou a ter uma série de críticas em relação à maneira como funcionava, mas isso assim muito veladamente. Eu sei que essa pesquisa da periferia me deu muita repercussão. O Lúcio Gregori, na época, era diretor da Emplasa e ele fazia parte desse outro grupo. Porque tinha esse grupo de pesquisa formado e tinha aquele grupo de discussão, que era mais informal, um grupo de estudos. E o Lúcio Gregori fazia parte dele e conheceu o trabalho. Ele que apresentou no outro grupo tal. E ele achou muito interessante e resolveu bancar uma pesquisa que a gente estava já formulando o projeto de pesquisa no Prodeur.
P1 – E essa pesquisa era sobre o quê?
R – Era sobre migrações. Na verdade é um tema que até hoje é muito interessante. Como o grupo era de demografia, tinha o nome de migrações, mas na verdade era o processo de mudança das pessoas dentro da região metropolitana. No fundo, era um processo de expulsão, que era uma coisa que na pesquisa anterior da periferia, eu já tinha verificado, que o cara que pagava aluguel num bairro de periferia menos consolidado ele só conseguia comprar um lote numa periferia mais distante. E você tinha um processo, portanto, de mudanças territoriais vinculadas ao processo de valorização imobiliária. Que era uma coisa bastante interessante e importante, que até hoje acho que é um tema importante para entender o deslocamento populacional dentro da região metropolitana. E isso era de interesse da Emplasa, que era a Empresa Metropolitana de Planejamento. E aí ele resolveu bancar uma pesquisa sobre isso. Só que a gente não era nem formado quando isso aconteceu, estava se formando, e
entrou o coordenador que era um dos coordenadores seniores lá do grupo de pesquisa. E quando começaram as primeiras reuniões nesse grupo, as pessoas se referiam muito mais à gente do que ao coordenador, começou a gerar ciumeira dentro do grupo. Bom, acabou que a gente acabou saindo, a pesquisa ficou lá e a gente saiu, acharam que não era o caso da gente continuar. E foi um trauma, do ponto de vista de cortar uma certa trajetória, porque a gente estava fazendo uma trajetória dentro da FAU, que esse grupo era de dentro da FAU, tinha entrado no mestrado muito por conta dele. Mais aí foi bom pra gente acontecer isso. Porque a gente estava com a bola muito alta, tivemos que ficar do nosso tamanho mesmo, porque estava muito cacifado dentro desse processo todo. Então eu fui dar aula em Taubaté, eu e a Raquel, fomos dar aula em Taubaté. E fomos fazer o mestrado. Eu mudei meu tema de mestrado, porque o meu tema de mestrado tinha a ver com essa pesquisa, eu mudei o tema, mudei de orientador.
P1 – E o seu tema passou a ser qual?
R – O meu tema passou a ser parte do tema que está no doutorado. Embora seja mestrado. Era para fazer o mestrado, era o tema do mestrado, que era estudar o processo de formação histórica da periferia nos anos 40 e 50. Só que depois eu voltei um pouco mais para trás, cresceu mais, quando virou doutorado. Nesse momento nós dividimos, porque a Raquel foi estudar o começo do século e eu fui estudar os anos 40, depois os anos 30, o processo de formação da periferia. E foi o período que a gente tinha uma pesquisa mais ou menos casada, eu e a Raquel, nesse período. Mas a Raquel acabou rapidamente o mestrado, fez um trabalho bem interessante que depois acabou nem sendo publicado. E foi fazer o doutorado nos Estados Unidos. Foi o momento que a gente se separou, academicamente. Porque a gente já tinha vários trabalhos publicados juntos. E ela foi para os Estados Unidos. Porque até aí nós fomos dar aula juntos em Taubaté, depois fomos dar aula juntos na Belas Artes Até aí nos tínhamos uma vida muito próxima, e ela foi para os Estados Unidos fazer o doutorado e eu fiquei na Belas Artes. E na Belas Artes eu já estava escrevendo o mestrado e comecei a trabalhar no Laboratório da Habitação. Então, só voltando um pouquinho, esse período que nós saímos do Prodeur foi um período que eu entrei de cabeça na história, porque eu comecei a fazer o mestrado, que tinha a ver com a história, comecei a ir visitar os arquivos. Fui muito para Unicamp, aqui em São Paulo fui para vários arquivos de várias faculdades. Foi uma pesquisa muito forte do ponto de vista de história e de arquivos. Li jornais, pesquisei muito na [Biblioteca] Mário de Andrade, passei assim meses indo na Mário de Andrade. Então teve um outro olhar sobre o centro da cidade, porque eu passava o dia lá, e almoçava no centro da cidade. Foi também um período bem interessante, de mergulho. Também foi período que, nem lembrava mais, eu fiz a reforma da minha casa que até é onde eu moro, aqui na Vila Madalena. Isso aí tudo que eu tô falando é 79, 80, até meados de 81. Eu comprei a casa que era uma casa velha, na época era um buraco, ali a Vila Madalena, o lugar onde eu morava, na Fidalga com a Rodésia, porque ali era uma área de depressão, não tinha rua. Eu tinha uma lembrança daquele lote, foi até interessante porque naquela rua, na Fidalga naquele trecho, a Fidalga lá para o fim, dessa turma toda, dessas turmas todas que tinham na época da FAU, a Bartira com umas amigas dela fizeram um ateliezinho, que eu não morava, mas era um lugar que a gente ficava muito. Que era lá na rua Fidalga, que era uma casa de fundo, que era o lugar que a gente se reunia, trabalhava... Uma casa de fundo, aquelas casinhas que tinha antigamente na Vila Madalena, tinham cinco, seis casas assim. Então eu conhecia esse lugar ali, esse trechinho, que era bem desconhecido, bem fim de mundo. Aí eu comprei ali um lote. Porque quando o meu pai morreu teve uma herança, e eu comprei o lote e tive uma reforma, que foi um momento importante, que eu tive uma relação muito forte com o Rodrigo. Eu era recém formado e o Rodrigo estava também reformando uma casinha na Vila, e a gente fez uma coisa muito casada, aprendi muito com ele de obra, de projeto, na reforma da casa. E aí eu fui morar nessa casa na Vila Madalena.
P1 – Você já era casado nessa época?
R – Já tava casado. Aliás, esse tempo eu morei primeiro lá na Previdência, com mais um outro casal e uma outra menina. Depois eu fui morar na casa da rua Martins, que era uma dessas casas que eu já tinha falado. Nós desmanchamos a casa da Previdência e tinha vaga lá na casa. Então eu morei nessa época com o Horácio, com o Milton também. Não, morei no quarto do Milton, mas o Milton ainda ia lá de vez em quando. O Milton Hatoum, na rua Martins. E aí nesse período eu tava fazendo a reforma da casa e mudei na casa em 80. Esse foi o período que eu estava fazendo mestrado, estava dando aula em Taubaté, depois fui dar aula na Belas Artes, estava com bolsa na FAPESP e fazendo muita pesquisa de arquivo. Em 80 eu entrei no PT, mas começamos a fazer aquelas campanhas de filiação. No começo eu fui do núcleo de arquitetos e aí eu comecei a me envolver um pouco mais com o PT e em 82 nós formamos o Laboratório de Habitação da Belas Artes. Aí foi uma reflexão importante nessa trajetória profissional.
P1 – Por que neste momento a necessidade de se envolver... Por que se filiar ao PT e por que a necessidade de se filiar a um partido?
R – Eu acho que porque, de certa forma, o PT apareceu naquele momento como um espaço aberto para se fazer política. Isso veio no entusiasmo das greves do ABC, que eram uma coisa importante. Talvez fosse uma ilusão ainda, de que o PT pudesse ser um espaço mais libertário de fazer política, menos ortodoxo e de fato o PT era. E até hoje é, eu acho que apesar de tudo, de várias frustrações em relação ao PT, ele, até por ser grande demais, dá espaço para abrigar muita coisa. Quer dizer, no PT tinha uma coisa assim, que boa parte desses intelectuais que eu respeitava muito, que eu tinha relação, passaram a ter uma relação forte com o PT. Tinha a questão de ser um partido que agregava a classe operária e, naquele momento, inclusive o movimento sindical era muito crítico em relação à estrutura sindical tradicional. Então ele tinha uma visão contra a estrutura sindical que veio lá de Getúlio. E eu, nesse momento, estava estudando muito, como eu falei, estava estudando muito o movimento operário do começo do século. Então, eu via relação entre uma coisa e outra, entre o movimento sindical que, vamos dizer assim, que ia contra uma tendência de burocratização do movimento sindical. Depois isso se frustrou totalmente, diria que hoje isso se frustrou totalmente porque não foi esse o caminho. Tinha a coisa dos movimentos populares também, que foi por onde eu acabei tendo uma relação mais forte, principalmente a partir do Laboratório de Habitação, um pouco do que vinha das relações que a Aninha já tinha com o movimento de habitação. Então tinha também um viés um pouco da igreja [Teologia] da Libertação, que também estava no PT. Você tinha a coisa dos intelectuais, a coisa dos sindicatos, a coisa da igreja, da libertação, dos movimentos sociais. Por várias razões, de repente, é o PT. O PT é diferente daqueles outros partidos. Mas eu sempre fiquei entre os que não tinham relações com os grupos mais organizados. Sejam os grupos organizados que permaneceram organizados dentro do PT, seja com o grupo majoritário, tipo o Zé Dirceu e tal, que trabalhava um pouco a ideia do PT como um partido, vamos dizer assim, mais estruturado e tal. O PT era uma grande frente. E também, eu diria que a opção pelo PT foi uma opção revertendo um pouco a opção do PMDB, que na época também era uma grande frente, mas dos partidos mais ortodoxos de esquerda. O PCdoB, o PC, estavam dentro do PMDB. E dentro do PT eu comecei a me aproximar mais de um grupo que se desfez, se desestruturou dentro do PT, eu era o Refazendo, que era o grupo mais aberto, um pouco mais, com uma visão mais aberta de mundo, com novos temas. A tentativa de trazer esses novos temas para dentro do PT, a questão do meio ambiente, a questão da diversidade, tinha várias questões que a gente via o PT como um espaço para incorporar. Acho que havia espaço para isso. Eu acho que o PT também foi se fechando ao longo do tempo. Então tinha aquela coisa dos núcleos, no começo, que eram núcleos que se organizavam das mais diferentes maneiras, por local de trabalho, por categoria profissional, por grupo... A ideia dos núcleos era um pouco isso, uma ideia mais aberta de formação partidária, que depois foi se encaixando, porque aí teve que fazer os diretórios, para poder se legalizar como partido, teve que ir assumindo um pouco da cultura política tradicional e foi se transformando nisso.
P1 – E a ideia dos núcleos? Como é que era isso dentro do partido. A formação desses núcleos era para trabalhar alguns temas? Em qual que você se envolveu? Qual que era a relação do pensar dentro desses núcleos com o fazer mesmo?
R – Eu me envolvi inicialmente com o núcleo de arquitetos do PT, que nós formamos um núcleo de arquitetos. Então discutia as coisas no meio dos arquitetos. Mas a ideia dos núcleos, a ideia original dos núcleos era um grupo de pessoas que se reuniam em um bar, por exemplo... Mas essa ideia durou pouco. Durou pouco porque logo em seguida o partido teve que se burocratizar para poder concorrer às eleições. Ele tinha que se legalizar e para ele se legalizar tinha que formar os diretórios. Eu fui participar de um diretório, mas por sorte foi um diretório muito bacana, que era o do Jardim América, que ficava lá na Arthur. E por que grande parte dessas ideias casou com o PT e o PT pra mim continua sendo isso que eu pensava desde o início? Porque ali no diretório do Jardim América reuniu uma série de gente que pensava muito igual. Tinha um núcleo predominante, que era da Refazendo, com uma visão bastante aberta e boa de como fazer política. E nós bolamos, inventamos lá a candidatura da Caty, da Caty [Caterina] Koltai. Não sei se você lembra disso. Mas era uma candidatura totalmente alternativa, cujo o lema era “Desobedeça”. O tema da campanha era “Desobedeça”. Então tinha um texto maravilhoso que foi feito pela Caty e pela Marijane também, que participava lá e que teve um papel importante na campanha, que era o “Desobedeça”. Tinha o “Desobedeça”, as várias coisas que deveriam ser desobedecidas.
P1 – Como o que, por exemplo?
R – Ah, a gente trabalhava com temas como a legalização da maconha, a descriminalização da maconha, descriminalização do aborto, as ideias mais libertárias. Foi uma campanha que envolveu muita gente nessa linha e que acabou depois gerando um processo. A Caty teve um processo por conta da descriminalização da maconha, que fez com que ela se afastasse do partido, que não defendeu ela. Então foi a primeira grande decepção com o partido, que não assumiu totalmente essas teses e a Caty saiu do partido. E foi um período que eu já comecei muito mais uma relação com o movimento de habitação, trabalho... Porque esse grupo, depois que a Caty perdeu a eleição – aliás ela foi muito bem, teve um puta resultado bom na eleição, foi aquela eleição de 82, valia até um estudo mais aprofundado, porque o PT tinha muitos candidatos fantásticos, coisa que se perdeu totalmente. Eu me sinto um pouco herdeiro de muita coisa que aconteceu naquela época e foi desaparecendo. Naquela época você tinha, só de vereadores, tinha a candidatura do Vicente Trevas, o Vinícius Caldeira Brant, o Marco Aurélio Garcia, todos candidatos a vereador. Deputado você tinha o Éder Sader, vários intelectuais, professores, pessoas que tinham muitas propostas, muitas ideias. Então foi um momento de muita fervilhação de ideias importantes. Então o PT era muito diferente desses outros partidos, dessas correntes que existiam antes. E acho que foi isso muito que me entusiasmou no PT na época.
P1 – Fala um pouquinho do que era o Laboratório de Habitação para a gente.
R – O Laboratório de Habitação é uma coisa importante, bastante importante pra mim. Logo no primeiro ano, quando eu estava na Belas Artes, o Caron, o Jorge Caron, que era o coordenador do curso, chamou um grupo de pessoas que ele resolveu fazer uma série de órgãos extracurriculares dentro da Belas Artes. E um deles falou em fazer um Laboratório de Habitação, a ideia era prestar assessoria técnica para a população de baixa renda, uma coisa que ele conseguiu que a diretoria da escola bancasse, ia ter professores e monitores trabalhando. E isso vinha dentro de uma linha que tinha começado a ser feita lá no sindicato dos arquitetos, que era a cooperativa de arquitetos. A cooperativa de arquitetos era uma coisa que funcionou durante um período. Eu acompanhei meio de longe, mas acompanhei, ainda não estava formado. Objetivava abrir um novo campo de trabalho para os arquitetos, voltado para baixa renda. Aquilo não deu certo, na época, no sindicato e ele pensou em trazer essa ideia para a faculdade. E houve um cruzamento, porque nessa época eu estava começando a me envolver, a conhecer várias lideranças e vários movimentos de moradia na periferia... E tinha um amigo meu, que também trabalhava com movimento de moradia, o Guilherme Coelho, que acabou morrendo no ano seguinte em um acidente de carro, que tinha ido no finalzinho de 81, tinha ido para o Uruguai conhecer as cooperativas de ajuda mútua. E ele fazia parte de um grupinho que a gente formou em 81 que era um grupo de para discutir política habitacional e urbana no PT já visando a campanha de 82. Nesse grupo eu lembro muito bem, estava a Hermínia, a Mayumi, o Flávio Vilaça, eu e o Guilherme. E aí o Guilherme foi lá para o Uruguai e conheceu as cooperativas de ajuda mútua, que eram cooperativas em mutirão e autogestão, no Uruguai. Ele fez um vídeo e trouxe para cá e esse vídeo acabou sendo uma referência importante. E aí ele tinha uma arquitetura muito interessante de habitação popular, que era uma coisa que nós não conhecíamos no Brasil e tinha também a coisa da autogestão, da participação de organização dos movimentos. Então essa ideia casou com a ideia de fazer o Laboratório de Habitação na Belas Artes que trouxesse a questão da arquitetura, do projeto de qualidade para a habitação como uma coisa importante. E ao mesmo tempo fizesse uma relação com os movimentos de habitação, desse uma assessoria, os movimentos lutavam ali por outros programas habitacionais... Nós já estávamos na época do BNH. Isso acabou gerando uma ideia de uma proposta de Laboratório de Habitação, que tivesse essas duas perspectivas: uma perspectiva de ser um órgão de formação, ou seja, formar arquitetos com uma visão social, uma visão de trabalhar com habitação popular, uma visão de trabalhar com movimento social e dar assessoria ao movimento de habitação, e uma perspectiva profissional de abrir um campo de trabalho onde pudesse aproximar habitação de arquitetura, da boa arquitetura.
P1 – Eu queria que você falasse um pouquinho mais como isso foi se estruturando e o que isso impactou nessa questão do movimento de moradia, mesmo do engajamento dos arquitetos, como que isso ajudou na periferia?
R – Ele acabou tendo vários desdobramentos. Primeiro, o laboratório era um espaço com cinco professores, que acompanhavam, e quinze monitores que iam trocando. No final passaram quase cem monitores pelo laboratório. E ele era um órgão de formação complementar. Chegou uma época que eu estava na Sempla, saí e fiquei só na Belas Artes,
eu dava aula e participava do laboratório. E acabou sendo um espaço de apoio ao movimento e de pensar política pública de habitação. Eu tava num viés muito acadêmico, e passei a ter que me preocupar com o projeto. E aí teve uma outra pessoa que acho que foi importante na minha formação, não foi meu professor formal, mas acabou sendo muito importante que foi o Juan Villà. O Juan Villà era o coordenador do laboratório, ele era um arquiteto já com uma certa experiência, não tinha essa relação com movimentos que eu tinha, de habitação, mas ele era um arquiteto que tinha uma preocupação de qualidade de projeto. Então foi o momento que eu passei a dar uma importância grande à questão do projeto voltado à questão da habitação. E pra mim foi importante esse contato principalmente com ele. E outra pessoa também que foi importante no laboratório foi o Vitor Lotufo, que nessa época estava começando a desenvolver uma série de experiências construtivas alternativas, com formas alternativas. Inclusive aqui, as pizzarias dele aqui na Vila [Madalena], a Oficina de Pizza, o Matterello, que fazem parte dessa pesquisa que ele vem fazendo de construção, de projeto de construção. Então foram dois professores importantes ali na Belas Artes e do Laboratório de Habitação. Então pra mim foi uma abertura pra isso. Por outro lado foi um momento que eu passei a ter uma coisa que até hoje eu tenho muito forte que é uma relação forte com os alunos. Ia muito pra periferia com os alunos, fazia muitos trabalhos e a partir daí eu sempre tive um trabalho grande assim com estagiários, com bolsistas de iniciação científica. Até hoje tem uma relação grande de formar pessoas também não só no ambiente estritamente da universidade, mas também fora, em trabalhos profissionais. E com o movimento foi muito importante, foi uma outra forma de aproximação com o PT, quer dizer, na verdade isso de certa forma foi solidificando a relação PT porque todos os movimento ali estavam no PT. E os movimentos ali naquela época, quase todos ligados à igreja, à Teologia da Libertação, que tinham muito essa ideia da solidariedade, da construção, da união que constrói o coletivo. E nós resolvemos trabalhar muito na perspectiva da autogestão. E eles estavam muito falando do mutirão, eles colocavam muito a questão do mutirão, nós trouxemos a questão da autogestão que veio muito da experiência do Uruguai e dessa perspectiva mais libertária também. E também casava com uma terceira coisa importante, que vinha do Sérgio Ferro, que era fazer a discussão do projeto com quem vai morar e com quem vai trabalhar, porque uma das principais questões que o Sérgio Ferro levanta, em “O Canteiro e o Desenho”, é a crítica que ele faz à maneira tradicional do projeto, de que o desenho é uma ordem autoritária que vem de cima pra baixo, do arquiteto para o trabalhador da construção civil e pro usuário. Então nós começamos a trabalhar com a ideia do mutirão, com a autogestão, com participação... Na verdade o mutirão com autogestão juntava o morador com o trabalhador e eles iam participar da concepção do projeto e da gestão do empreendimento. Essa era a concepção que estava por trás disso. Claro que isso não era compreendido pelo movimento de uma maneira integral, nesse momento, mas foi um processo também de formação do movimento que foi crescendo ao longo do tempo. E tinha muita coisa aí de utopia, de utopia mesmo. Tanto que o meu mestrado mudou porque eu fui me envolvendo com esse trabalho do laboratório, até eu fiz um projeto de pesquisa pra conseguir recursos pro laboratório, no fundo era um trabalho de análise, uma coisa que a gente mesmo estava construindo, que eram esses novos processos de organização pra produção habitacional em oposição ao BNH, a produção mais tradicional. E comecei a me envolver com isso. Quando chegou em 85, 86, eu tinha que fechar o mestrado, porque o mestrado aquela época durava muito. Então eu comecei em 79 e o meu prazo final era 86. Então eu estava com uma pesquisa, tinha até capítulos escritos, a pesquisa histórica, tinha alguns capítulos já escritos daquela pesquisa que eu estava fazendo. E esse trabalho que eu fiz um relatório, um relato dessas experiências do laboratório com alguns movimentos, principalmente lá da zona sul. Eu cheguei pro meu orientador, que era o Bolaffi, nessa altura era o Bolaffi que trabalhava na Cohab, falando “olha, eu tô pensando em deixar minha pesquisa, a pesquisa do trabalho que eu estava fazendo, histórica, pro doutorado, e fazer o mestrado sobre a experiência do laboratório, porque é uma experiência muito atual, que não pode se perder, a conjuntura política, porque isso faz parte de uma luta pela mudança política habitacional...” Tinha acabado de iniciar o governo que devia ser do Tancredo, que tava discutindo a mudança do BNH. Bom, ele era totalmente contra mutirão, totalmente contra autogestão. Ele tinha uma visão bem centralizada do que tinha que ser feito, de habitação, do BNH, da Cohab, ele trabalhava na Cohab, então ele foi totalmente contra, mas ele falou: “olha, mas se você quer fazer...” E aí eu fiz o mestrado dessa experiência do laboratório e dei um título que era exatamente isso, “Construindo territórios de utopia”. Porque na verdade era uma série de coisas assim, participação do usuário no projeto, autogestão, fazer disso uma experiência... No fundo o que estava colocado ali é que a gente estava construindo uma nova forma de pensar a cidade, de pensar a relação entre as pessoas e de pensar também a produção, já dentro de uma crítica a uma visão do socialismo real, que era evidente que estava colocado, e ao capitalismo. Então, pensar formas solidárias de produção e de organização. Isso aí foi meu mestrado. Aí a defesa dele foi um caos, porque estava realmente uma tese. Até no próprio trabalho colocava, quando eu analiso as formas de pesquisa, pesquisas acadêmicas têm uma parte metodológica, eu falo da Pesquisa-Ação, falo “mas não é uma Pesquisa-Ação, é uma pesquisa militante”, porque, tinha todo um relato da experiência dos vários atores que atuavam nesses movimentos, o Estado, as assessorias. Era uma pesquisa, mas era uma pesquisa que eu não fiz nem como Pesquisa-Ação muito menos como pesquisador acadêmico, distante, mas um pesquisador absolutamente envolvido com o tema e participante do tema. E a defesa foi muito isso, veio gente dos movimentos, a sala cheia da FAU e já sabendo que eu ia ter problemas com o meu orientador, chamei a Marilena Chauí pra banca, que tinha tudo a ver com a questão da competência, do saber competente, crítica ao saber competente, o trabalho. E aí teve mesmo porque a Marilena fez um monte de elogios ao trabalho e quando começa a arguição, que não era pra ser a arguição do meu orientador foram cinquenta minutos de crítica ao trabalho. Eu também abusei, aquela coisa da rebeldia juvenil. No texto me refiro a ele como ideólogo – “porque os ideólogos da Cohab” –, citando um texto dele, que é o meu orientador, dazendo a crítica. Então foram cinquenta minutos de agressão,
eu fui responder, ele retrucou, eu respondi. Foi um caos, mas fez parte um pouco desse processo. O laboratório foi importante porque foi o primeiro laboratório, em faculdade de arquitetura, que começou o trabalho de pensar junto à comunidade, junto a movimentos. Hoje existe em várias escolas de arquitetura essa forma de trabalhar. Ele lançou essa questão da autogestão, que no governo Erundina, eu fui superintendente e coordenei a área de habitação popular do governo Erundina, foi muito na linha de implementar o programa de autogestão e nós conseguimos viabilizar mais de cem convênios com associações comunitárias de construção. Logo em seguida a isso eu acabei candidato a presidente do sindicato dos arquitetos. Aliás, eu já tinha sido em 83, no meio do processo do laboratório, não ganhamos e aí, em 86, nós ganhamos, que era no grupo em oposição ao Partidão, ao grupo do PC, ao grupo do PCdoB e ao grupo dos arquitetos tradicionais. Na verdade era uma empreitada difícil na época, em 83 nós não ganhamos, 86 ganhamos. E uma das questões principais do Laboratório de Habitação era exatamente abrir novos campos de trabalho pro arquiteto voltado a questão da habitação popular e a pensar o projeto de habitação social de uma maneira nova. É claro que eu tô falando isso muito centrado na minha história, mas isso fazia parte de um grupo. Por exemplo, dentro do sindicato era um grupo junto com a Libelu, que a Libelu tinha entrado no PT tinha se diluído no PT. Então teve um grupo de arquitetos mais amplo, que fazia parte disso, que estava na CUT. Essa chapa era uma chapa da CUT, era uma chapa que trabalhava na linha de uma maior articulação com outros sindicatos. Nesse período todo vai se constituir o movimento da reforma urbana, que também aglutina movimentos e profissionais e entidades, que acabou tendo um papel importante na Constituição de 88. Porque nós formamos, eu já era presidente do sindicato, nós formamos um movimento que era pra fazer uma emenda à iniciativa popular na Constituição 88, pra introduzir alguns temas importantes da função social da propriedade.
P1 – Que tema seria?
R – Principalmente o tema da função social da propriedade, de combater a especulação com terra ociosa, de garantir o reconhecimento a terra pra quem nela mora, regularização fundiária em favela... Assuntos constitucionais. A gente tinha até um campo mais amplo, mas os constitucionais principais eram a discussão do conceito de propriedade urbana na perspectiva da função social da propriedade. E nós conseguimos aglutinar várias entidades, os sindicatos dos arquitetos, a Federação Nacional dos Arquitetos, na época tinha uma federação grande do pessoal dos mutuários, o MDF (Movimento de Defesa dos Favelados), a ANSUR (Associação Nacional de Reforma Urbana)... Foram vários. Nós conseguimos então fechar uma proposta de emenda, eu inclusive fui o porta-voz desse grupo na apresentação da emenda na comissão específica no congresso. A gente apresentou a emenda depois de uma noite em claro pra conseguir fechar a proposta, porque tinha visões meio diferentes, então conseguimos fechar uma proposta. E foi a primeira vez que eu fui ao Congresso Nacional, pra apresentar essa emenda da reforma urbana. Isso veio no bojo das emendas de iniciativa popular. Iniciativa popular são emendas assinadas por trezentos mil, sei lá, por um número grande de pessoas. Na época tinha no mínimo 80 mil. Então foram vários, se não me engano, vinte e tantas emendas. Tinha os direitos da mulheres, tinha os direitos dos homossexuais, os direitos dos trabalhadores, a ciência de tecnologia, várias emendas de iniciativa popular. Esse foi um momento também importante, já depois do fim da ditadura militar, no processo constituinte, a mobilização em torno da democracia direta, dos temas da democracia direta. Eu era presidente do sindicato nessa época,
e participei desse processo. Foi um momento de renovação do sindicato, pessoal novo. A primeira vez que eu fui candidato a presidente do sindicato eu tinha 28 anos, o pessoal achava uma afronta... Mas não era eu, era o grupo todo, era um grupo muito grande de pessoas. Com exceção do Paisani, que era o fundador do sindicato e que tinha sido do Partidão, e ele viu nessa época que a perspectiva de renovação do sindicato, era moçada nova, e eu lembro muito bem que quando nós formamos a chapa em 83 obviamente todo mundo falou: “não, Paisani é o candidato a presidente porque ele era o único cara velho do ali do grupo”. E ele falou: “não, só estou nesse movimento porque acho que tem que renovar o sindicato, tem que renovar, vocês têm que ser quem tem que assumir, eu topo ser tesoureiro, porque eu sei que uma das coisas mais complicadas de qualquer entidade é garantir a sustentação financeira”. E então olharam em volta e falaram: “não, é o Nabil”. Um pouco por causa dessa relação que eu tinha com o movimento e um pouco por não ser Libelu, que a Libelu era muito estigmatizada, e se fosse alguém da Libelu na presidência ia ser mais difícil eleitoralmente. Aí me puseram de presidente, candidato a presidente, um pouco representando esse grupo de renovação do sindicato.
P1 – Nabil, eu quero que você fale um pouquinho pra gente agora como é que se deu o caminhar, dentro do PT, até ser candidato.
R – Veja, nesse período nós formamos um grupo, dentro do PT assim. Depois dessa história da Caty, nós formamos um grupo chamado PT Vivo, que era um grupo muito pequeno, muito, muito, muito pequeno, de pessoas que tinham um perfil técnico. Muitos deles davam assessoria pro partido, davam assessoria para alguns vereadores, principalmente para Luíza Erundina, e que tinham uma relação com movimento social. A ideia do PT Vivo era essa ideia da relação com o movimento social. Era pouca gente, mas gente com certo destaque do ponto de vista profissional. E foi o único grupo mesmo que eu participei dentro do PT. Mas nesse grupo tava o Pedro Dallari, o Zé Eduardo Narciso Cardoso, a Hermínia, Silvo Caccia-Bava, do Pólis. O Polis, na verdade, nasceu nesse período, nasceu lá no sindicato, a assembléia de constituição do Pólis foi no sindicato dos arquitetos. Várias pessoas que depois foram pro Pólis, o Almir Cair, foi secretário da Erundina. Esse grupo que se formou no PT e eu na verdade não tinha um envolvimento muito grande com o PT. Eu era sempre do grupo que fazia os programas de governo. Programas de governar e adaptação, eu sempre participava, me chamavam... Mas não era muito, nunca quis ser diretor, presidente de diretório, essas coisas... Participava de vez em quando, ia lá e opinava. Mas tinha um trabalho mais com o movimento, primeiro com o movimento no laboratório, quando o laboratório foi fechado... Isso eu não falei, mas quando todo o nosso grupo da Belas Artes foi demitido, isso final de 85 pra 86. Teve uma greve muito grande na faculdade, foi todo mundo demitido, eu fiz um concurso pra USP de São Carlos, eu fui pra USP de São Carlos. Depois eu fui presidente do sindicato, então nunca tive um envolvimento assim muito na burocracia do partido, na direção partidária. Era o cara que fazia assessoria das áreas de habitação, era muito chamado pra discussão com movimento social, o movimento me chamava. Então, quando a Erundina ganhou a eleição, eu era presidente do sindicato e eu acabei indo pra um cargo lá de superintendente de Habitação Popular e secretário do Funaps, que era um fundo, era o fundo de habitação popular. Na verdade, a Secretaria de Habitação tinha dois órgãos executivos, um era a Habi, que é a superintendência de habitação popular e a outra a Cohab que a secretária foi a Hermínia. Então eu acabei indo pra Habi e a Habi ficou responsável por pensar política alternativa de habitação. Porque a Cohab tinha os financiamentos do BNH, que não era mais BNH, que era Caixa, que tem aquela coisa bem tradicional, aquela posição política tradicional que se considerou que não era o caso de parar, porque ela estava com muita coisa em andamento, e muitos projetos, mas aqueles projetos bem tradicionais... E eu fui então encarregado de fazer a parte... E eu só teria ido assim... Que pra mim era o que eu queria mesmo, pra fazer a política alternativa de adaptação que era a relação com os movimentos sociais e pensar os programas alternativos fora dos programas tradicionais. E foi aí então que eu passei a ter uma relação muito grande com todos os movimentos de habitação, mas era muito localizada, da cidade. E nós começamos a montar os programas alternativos na discussão e na tensão com os movimentos, que foi uma coisa que nós assumimos de uma maneira tranqüila, que é deixar muito claro qual era o papel do governo qual era o papel do movimento. Tinha uma postura que era não chamar ninguém do movimento pra fazer parte da administração, mas fazer um trabalho em conjunto com os movimentos que vai gerar uma série de programas muito interessantes: programa de mutirão com autogestão, nós conseguimos formatá-lo, o fato de ter o fundo municipal de habitação foi muito importante, porque era um fundo que permitia fazer convênios com entidades que tivessem os mesmos fins... Com isso nós pudemos alavancar o programa de autogestão, que foi muito importante, que passou a ser inclusive uma referência fundamental de toda ação do movimento de habitação do Brasil daí pra frente. Tanto que a autogestão foi tema do último encontro nacional da União de Movimentos de Moradia e hoje é um programa nacional. Então nós criamos esse programa, criamos o primeiro programa de habitação de área central que teve no Brasil. Impulsionamos o programa de urbanização de favela e o programa de assessoria jurídica gratuita, que também não existia. Foi um momento de muita abertura para o movimento social, para propostas alternativas, propostas novas... A Habi, que era a superintendência de habitação popular cresceu muito, eu criei ali várias diretorias regionalizadas, descentralizamos a Habi, estruturamos de maneira pra dar conta dessa dimensão de problema... Nós trabalhamos só com recursos do município, na época você não tinha, praticamente não tinha repasse da União. A Erundina veio do movimento de habitação, na verdade a Erundina tinha sido funcionária exatamente desse setor de Habi. A Habi tinha muitas assistentes sociais, porque na verdade a Habi até então cuidava de maneira assistencialista do programa de habitação e a virada que teve foi ela cuidar não só de maneira assistencialista, mas de maneira como política. Então você tem uma formulação de uma política alternativa. E claro que isso suscitou um pouco a ideia de que eu tinha que ser candidato, em 92. Teve uma pressão grande pra eu sair candidato, mas eu não quis sair, candidato a vereador. Primeiro porque eu tava no meio desse trabalho e depois porque eu também achava que ia passar a impressão de que esse trabalho de relação com o movimento tinha objetivos eleitorais, tinha um objetivo que não era de construir um movimento com autonomia, com capacidade de ser protagonista, que é o que eu defendia, que eu defendo, e sim uma coisa instrumental pra uma candidatura. E aí eu não fui candidato acho que foi certo não ter sido, na época. Porque acho que não era o caso. Isso o PT Vivo, que na época ainda era o PTV, nem existia o PT Vivo. Nós tínhamos eleito o Pedro Dallari em 88, vereador, depois elegemos ele deputado estadual em 90. E esse era o grupo que era um pouco o apoio principal da Erundina. E acho que na época, inclusive em 92 a ideia era que tivesse dois candidatos desse grupo, era o Zé Eduardo, que é mais pra um setor, e eu, mais pro setor popular. E eu acabei não topando e também não estava com essa bola toda, tanto que o Zé Eduardo ficou segundo suplente na época e mesmo assim acho não era o caso. E aí então ficou essa coisa: “Bom, então não nessa, então na outra”. E a partir daí eu fui candidato algumas vezes. Fui candidato primeiro em 94, deputado estadual, depois em 95, vereador e em 2000 vereador, quando eu fui eleito, fui eleito vereador em São Paulo. E aí já é história mais recente.
P1 – Nabil, depois que você saiu da Belas Artes você falou que você foi pra USP de São Carlos. E como é que você veio para a FAU?
R – É. Isso bem mais recentemente. São Carlos foi uma experiência bem acadêmica mesmo. A Belas Artes está aqui em São Paulo, e lá estava no interior, estava num núcleo que era um núcleo muito acadêmico e foi uma experiência muito boa. Todo esse período foi muito conturbado, eu fiquei em São Carlos de 86 a 2005, vinte anos quase. Nesse período eu fui presidente do sindicato, eu fui superintendente de habitação, eu fui vereador... Então foi um período sempre com uma ou outra atividade além da faculdade, mas eu nunca parei de dar aula, dei os vinte anos de aula. Lá eu aprofundei muito o estudo de história do urbanismo, eu fui professor de história do urbanismo praticamente esse período todo. Fui também professor de humanidades pros cursos de engenharia, porque lá é escola de engenharia, tem curso de arquitetura e engenharia. Na arquitetura, eu era professor de história do urbanismo, e era professor de humanidades na engenharia. E lá eu acabei desenvolvendo uma outra faceta importante, que foi trazer um pouco mais a história da arquitetura pra essa história toda,
porque eu acabei tendo muito contato com outra pessoa que também foi muito importante na minha formação, embora tenha sido colega, foi o Carlos Martins, que era professor de história da arquitetura e estava estudando o movimento moderno e acabou me fazendo ver da importância que era, nesse trabalho que virou meu doutorado, trazer toda experiência do movimento moderno para a discussão da habitação dos anos 40 e 50, que ainda era meu tema. Aquele meu tema lá dos anos 79, 80, aquele doutorado, ficou meio parado, mas depois que eu defendi o mestrado eu retomei como doutorado em 87, eu já estava em São Carlos. Retomei como doutorado e muito discutindo com o Carlos, muito dentro do ambiente lá de São Carlos, que tinha um grupo de história da arquitetura e do urbanismo muito bom. Acho que era o principal núcleo da escola, que era na verdade um monte de gente que não veio pra FAU e acabou indo pra lá. Agora acho que quase todos, quase todos não, uma parte, está na FAU. Mas na época, até porque era um pessoal que não era da turminha da FAU, era um pessoal meio de outra turma, acabou indo pra PUC de Campinas e acabou indo pra São Carlos, que era escola da USP, pública. Tinha lá um grupo muito importante. Tanto que o meu doutorado vai ter um capítulo que é exatamente o capítulo da arquitetura moderna e habitação que vai resgatar a produção de habitação dos anos 40 e 50 feita pelo Estado, que tem uma qualidade de projeto muito importante. É um capítulo isso, outro capítulo é a produção. Esse livro, minha tese que depois virou o livro “Origens da habitação social”, acabou sendo um livro que trabalha com história social, forte. Toda pesquisa que eu fiz em jornais, o movimento social, a relação disso com a questão da habitação. Ele acabou trabalhando muito com questões econômicas, economia política, principalmente por conta da lei do inquilinato, que já era um tema original do meu trabalho. Então eu analiso todos os impactos da lei do inquilinato no mercado de habitação, as razões de ordem política. Então ele também é um trabalho um pouco de política porque, as razões políticas todas que fizeram, não só Getúlio como num período da democracia pós-Getúlio manter a lei do inquilinato e essa política e a ele ter um lado de arquitetura que trabalha com a produção de habitação dos anos 40 e 50 e os órgãos públicos que promoveram isso, principalmente os institutos de aposentadoria e pensão, a fundação da casa popular. E ainda tem uma última parte que trabalha um pouco a formação da periferia de São Paulo e os loteamentos. E eu amarro tudo isso dentro de uma linha que é o que deu amarração, porque na verdade teve várias coisas, de várias origens e a amarração disso é exatamente o estudo e a maneira como o Estado passa a intervir na questão da habitação. Seja através do controle dos aluguéis, seja através da produção, seja através de permitir que a periferia se constitua sem controle urbano, seja através do jogo político que existe em torno desse tema. O livro acabou amarrando coisas, se você pegar, por exemplo, o primeiro capítulo do livro foi escrito no comecinho de 82. O capítulo quinto, que é da lei do inquilinato, e o sexto, foram escritos em 83 quando eu estava pra concluir o mestrado. Aí o capítulo terceiro e quarto na versão do livro, foram escritos em 93, 94, praticamente dez anos depois, que foi exatamente nesse período depois do governo da Erundina que eu tinha que acabar o doutorado. Já tinha toda essa experiência da história da arquitetura, do movimento moderno lá de São Carlos e também tinha tido a experiência do governo da Erundina, quando eu fui gestor de política habitacional e quando eu trouxe a preocupação da qualidade do projeto para a produção pública de habitação, que era uma preocupação que vinha lá do Laboratório de Habitação, que já tinha referências dessa produção dos anos 40 e 50, que era uma produção de qualidade. E um pouco da experiência internacional que eu estava começando a estudar também, para poder então produzir uma habitação, embora popular, de qualidade. E São Carlos teve muito a ver com isso, com essa trajetória. E depois nesse período aí entre 93 e 2000,
eu desenvolvi ali algumas outras pesquisas e também alguns trabalhos de consultoria que com algumas consultorias fora de São Paulo. Então eu fiz consultoria, nesse período, em Natal, em Ipatinga, em Franca, em Belo Horizonte. Depois fiz uma pesquisa grande pro conselho curador do FGTS. Nesse período, que foi o período que eu não estava em nenhum outro cargo, fiquei na faculdade, mas fiquei fazendo consultoria e pesquisas. Entre as quais uma que foi depois que eu entreguei o doutorado e publiquei o livro, que é a que eu tô concluindo agora. O levantamento de todos os conjuntos habitacionais produzidos nesse período. Um levantamento tentando resgatar arquivos absolutamente dispersos, soltos, que estão por aí, no Brasil inteiro, coisas que não têm mais nenhum registro e que vão virar um livro com dois volumes. É um inventário de toda essa produção e uma análise dos projetos mais significativos. Ele é fruto, embora agora eu já esteja na FAU, desde 2003 eu esteja na FAU, ele é fruto dessa experiência toda de São Carlos.
P1 – Nabil, você está dando aula na FAU... Que matéria você dá na FAU?
R – Então, na FAU eu dou de planejamento urbano. Eu dei até 2004 eu dei aula em São Carlos, de história do urbanismo até 2005... Foi um último ano que eu estava na transição. Mas eu fiz o concurso em 2002 na FAU, entrei em 2003, o pessoal de São Carlos não queria que eu saísse. Fiquei dando aula em São Carlos e na FAU e sendo vereador nesse período. Era uma loucura. E aí como eu não me elegi em 2004, eu tinha que voltar pro tempo integral, porque eu era do tempo integral, estava de licença do tempo integral, tinha que voltar pro tempo integral. Tinha que optar por um ou por outro. Então eu acabei pedindo demissão. Na verdade, eu pedi demissão na FAU, e fiz uma transferência, porque eu era estável em São Carlos, eu transferi meu cargo de São Carlos pra FAU e aí eu fiquei dando aula de planejamento urbano. Na verdade essa opção de ficar na FAU, vir pra FAU e estar dando aula de planejamento urbano na FAU, foi influência da minha vida política para a minha vida acadêmica. Porque eu era vereador, trabalhei muito com o plano diretor, fui relator do plano diretor, do zoneamento. Então, na verdade, ficava um pouco contraditório eu estar trabalhando com a cidade de São Paulo, estar com a cabeça em São Paulo, e estar dando aula em São Carlos, história do urbanismo. Pra mim, pra falar verdade, era assim delicioso sair aqui dessa coisa e passar dois dias mergulhado em outro tema, com outro ambiente, em outra cidade. Mas começou a ficar difícil, porque eu era chamado a entrevistas, falar sobre São Paulo, então aí eu acabei optando por vir pra FAU e ficar na área de planejamento, embora a minha paixão continue sendo a história do urbanismo. Planejamento é, eu gosto muito, mas gosto até mais como prática do que como ensino. Então eu continuo, do ponto de vista acadêmico, fazendo pesquisa mais sobre história do que sobre planejamento propriamente dito. Um pouco das duas coisas...
P1 – Nabil, agora pra coisa familiar. Você e a sua mulher, quantos filhos?
R – Então, meu filho mais velho nasceu em 81. E minha filha em 84.
P1 – Eles fizeram o quê?
R – O Manuel fez São Francisco, Direito. Está trabalhando no Ministério Público, fez um concurso pra agente da promotoria, trabalha no Ministério Público. Mas agora ele passou no concurso de gestor, então é federal, deve estar indo pra Brasília, a partir de novembro. E a minha filha faz arquitetura.
P1 – Faz na FAU?
R – Faz na FAU. Quer dizer, atualmente ela está fora também. Como ela estudava em Barcelona, foi fazer um intercâmbio e está trabalhando lá, foi trabalhar na Islândia, agora está trabalhando em Portugal, mas volta em janeiro pra terminar o curso.
P1 – Eu ia falar um pouquinho isso. O que foi assim a experiência de ser pai pra você? Como é que foi isso dentro desse contexto todo?
R – Ah foi muito boa! Foi muito boa. Apesar de ser um pouco, um pouco, como é que eu diria? Em certos momentos essas atividades todas, que eram muitas, porque eu tentei levar durante esse período uma atividade profissional e acadêmica ao mesmo tempo que uma atividade política, isso foi reduzindo bastante a minha convivência com eles. Em alguns momentos mais, outros momentos menos. Mas, digamos assim, tem um primeiro momento, principalmente até eu ir pra São Carlos... Teve um período que eu ia pra São Carlos, então passava dois dias fora, três dias fora algumas épocas. Nesse período era uma convivência muito grande assim, eram os primeiros, sei lá, cinco, seis anos do Manuel, que tinha uma convivência muito grande. Levava ele pra tudo que era lugar, passeava. Ele ia muito assim, em algumas coisas políticas ele ia junto. O pessoal sempre lembra... Os mais velhos do PT lembram dele de carrinho de bebê nas passeatas, na época do PT no começo. Depois lá no diretório do Jardim América, ele ia muito. Levava ele no mutirão, na época do Laboratório de Habitação. Tem até foto dele lá no mutirão. E também levava ele no teatro, levava ele no parque, o Manuel até mais do que a Inês dessa primeira idade. Tanto que ele sempre reclama que em uma certa época o pai sumiu, porque eu viajava com ele, ele e os amigos, ia lá pra Boiçucanga. Ele tem uma casa em Boiçucanga, já tinha desde essa época. Na época eu não achava que era bebê, já tinham três anos, mas hoje a gente acha que é bebê, porque quando eles fazem dois anos que eles começam a ter uma relação mais direta, passa a ser muito... Então ele tinha três, quatro anos, a gente ia, eu ia com três, quatro meninos pra Boiçucanga, ficava sozinho com eles, então tinha uma relação muito grande com o Manuel. Com a Inês um pouco menos, também, mas um pouco menos porque ela já era menor e quando ela foi ficando um pouco maior já tava nessa loucura toda. Mas depois eu acabei tendo mais de relação com a Inês por conta de ter uma maior proximidade de interesse profissional, de conversar mais esses assuntos com ela. O Manuel sempre teve mais uma atuação política... Por esse lado tinha uma relação um pouco maior com ele. Fiz algumas viagens muito legais com eles. Em 84, logo depois, depois que acabou o governo da Erundina, fiz uma viagem de quase um mês com o Manuel na Europa. Essa viagem pareceu aquela que eu fiz, tinha feito antes. Viagem de trem, viajando pra várias cidades tal. Foi um momento bonito. Fiz algumas viagens com eles aqui no Brasil também, de carro... Ah tem uma boa relação, de uma maneira geral, tem uma boa relação, claro que tem seus problemas, mas isso acho que ele resolveu na terapia.
P1 – Quais foram as principais lições que você tirou, Nabil, da sua trajetória de vida?
R – Que pergunta, hein? Olha, eu acho, em primeiro lugar... Lições... Olha eu acho assim, primeiro eu acho que eu fiz algumas opções na vida que eu acho que foram opções, não sei, é difícil de dizer se foram certas, ser foram erradas. Mas foram opções que me levaram para um certo caminho e eu acho que esse caminho foi um caminho positivo. Acho que foi um caminho positivo. Mas eu acho que a vida leva a gente muito, não sei... No meu caso foi muito isso, não sei se talvez tenha a ver um pouco com a minha personalidade. Eu fui muito mais levado pela vida do que a vida me levou. Ou seja, as coisas foram acontecendo e eu fui me envolvendo, à medida que eu fui me envolvendo, as opções foram se dando quase como naturais, e eu não fui capaz de fazer grandes cortes. Eu não sei, não sei, se isso talvez tenha a ver com a personalidade, um pouco de conciliar, de não ser uma pessoa de rupturas muito radicais em nada. Então isso tem a ver um pouco com, também com a minha postura política em muitos aspectos. Acho que eu fui muito mais levado pela vida do que levei a vida e isso me deu muitas satisfações, talvez por isso muitas coisas que eu fiz acabaram dando certo, dando resultados... Não sei se é por isso, se é por outra razão... E por outro lado talvez eu não tenha vivido grandes aventuras, porque as rupturas sempre levam a aventuras maiores e às vezes me parece que eu sinto um pouco falta de ter pirado totalmente e mudado muito radicalmente. Sei lá, eu entrei na política, mas eu acho que eu não entrei de cabeça. Entrei de meio corpo. Porque tem gente que abandona tudo pra ir pra política... Mas acho que isso também tem a ver um pouco com a postura, eu acho que hoje, pra mim, parece, acho que foi uma lição que me deu, se você quiser colocar assim. Acho bom porque acho que a minha postura política é um pouco essa, de que todo mundo tem que estar na política. E, portanto, ninguém tem que estar de cabeça 100% na política. Todo mundo tem que estar um pouco ali, um pouco aqui, porque isso também é importante pra você ter volta. Eu sinto que às vezes as pessoas ficam muito na política e se acabam ali porque não tem volta. Ela não deixa um nada fora, a política. E aí também chega uma hora que cria uma ojeriza total. Acho que uma lição que eu tirei foi que essa compatibilização, ela é uma compatibilização importante pra quem faz política. Eu aprendi muito com a política, aprendi muito de relacionamento, de conhecer gente, de conhecer lugares... Ela também me ensinou muito, me ensinou muito, eu acho que muito do que eu sou também tem a ver com aquilo que você vai aprendendo ao longo de uma trajetória. Então acho que, na verdade, a minha vida ainda tá no meio, então acho eu vou tirar ainda muitas lições.
P1 – Eu queria que você falasse pra mim como é que você sentiu, o que é que você achou de dar esse depoimento pro Museu da Pessoa?
R – Ah, eu gostei muito. Achei que me fez voltar pra muitas coisas, me fez entender um pouco as trajetórias todas, de vida. Como é que as coisas vão se somando, às vezes coisas que estão perdidas, elas tiveram um papel importante na formação. Entender um pouquinho também como que a história do país marcou a vida, a história do entorno. Embora eu, no começo, achei que ia falar uma hora, no primeiro dia, eu chego no final achando que eu deixei de falar muita coisa. Então isso é bom, geralmente quando eu vou pra uma cidade e eu tenho muita coisa pra ver e eu vou embora, eu vou embora num momento assim, bom, que eu gostaria de ficar na cidade. Eu sempre digo, “ah isso é bom”. Porque mostra que eu vou precisar voltar. Termino esse depoimento dizendo assim, acho que eu vou ter que voltar uma outra hora pra contar um monte de coisa que não deu tempo de contar nessa e talvez muita coisa que ainda vá acontecer.Recolher