Ponto de Cultura Museu da Pessoa
Depoimento de Gilberto Dupas
Entrevistado por Karen Worcman e Mauro Malin
São Paulo, 28/08/2008
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PCMA HV_144
Transcrito por Paula Leal
IDENTIFICAÇÃO
Gilberto, deveria ser “Dupá” (pronúncia francesa), tran...Continuar leitura
Ponto de Cultura Museu da Pessoa
Depoimento de Gilberto Dupas
Entrevistado por Karen Worcman e Mauro Malin
São Paulo, 28/08/2008
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PCMA HV_144
Transcrito por Paula Leal
IDENTIFICAÇÃO
Gilberto, deveria ser “Dupá” (pronúncia francesa), transformou-se em Dupas por uma questão difícil de ser explicada. Houve algumas tentativas na história da família do nome ser pronunciado na sua forma original francesa, mas a realidade foi mais forte e virou Dupas, né? Eu mesmo tentei algumas vezes fazer essa transformação, também sem sucesso, alguns põem o assento no lugar correto, Dupás, mas o “Dupá” desapareceu cenário dos tempos e virou o Gilberto Dupas.
Eu nasci em Campinas, no interior - coisa que os campineiros não gostam que seja dita - de São Paulo, em 1943.
ORIGEM E TRAJETÓRIA DOS PAIS
Meu pai, Irineu Dupas, foi um funcionário público a vida toda. Basicamente, os irmãos dele vieram de uma tradição toda rural. O meu avô, Ancelmo Dupas, veio da França com 16 anos, ninguém sabe exatamente como e porque, né? Talvez fugindo de alguma convocação militar ou buscando alguma oportunidade qualquer. Veio sozinho, provavelmente no porão do navio, trabalhando no navio e tal, e conheceu na ida para Buenos Aires, que é aonde iam normalmente os imigrantes europeus naquela época, um senador fazendeiro do interior de São Paulo que deve ter servido o navio, provavelmente alguma atividade ali, e que lhe ofereceu um cartão dizendo: “Se por acaso aparecer em São Paulo, você por favor me procure”. Também por caminhos que não se consegue entender bem, de Buenos Aires aos poucos ele foi chegando ao Brasil e a São Paulo, procurou esse senador, que lhe deu oportunidade de abrir um pequeno comércio na fazenda. Naquela época, esses comércios nas fazendas dos cafeicultores importantes e tal eram pra vender de caderneta e pra atender as necessidades mínimas do pessoal que trabalhava [ali]. Então, meu avô ia, pegava o trem, ia pra Santos pra comprar azeitona, azeite, bacalhau e coisas do gênero. Eu tô pensando aqui como é que os trabalhadores de fazenda comiam azeitona, azeite e bacalhau naquela época, se isso é verdade, né? Não deixa de ser animador pra época. [Ele] se estabeleceu e tentou durante três ou quatro vezes ser um proprietariozinho agrícola. Por circunstância do destino nunca conseguiu, embora fizesse questão de ter uma professora na casa pra que pudesse educar os filhos, né? Ele nunca conseguiu ser um proprietário agrícola. Tentou duas vezes. A crise de [19]29 o pegou e ele teve que devolver a pequena fazenda. Na outra vez, meu pai até conta como tradição da família, comprou também uma pequena propriedade e num dia bem cedo de manhã houve uma geada fora de época, ele levantou-se preocupado, pegou o cavalo, voltou e disse: “Olha, entreguei a fazenda ao compadre Tal porque não vou poder pagar as prestações, tá tudo queimado”. Então, os irmãos do meu pai vieram dessa tradição agrícola e se transformaram quase todos, com duas exceções, do meu pai e de um outro irmão aqui em São Paulo, em administradores de fazendas no interior de São Paulo.
Perto da região de Campinas. Hélio, que está aqui, até conhece algumas dessas histórias que envolvem até pessoas da relação dele. Eu cheguei a frequentar a casa de um desses meus tios lá em Campinas, o Tio João, que era administrador de uma dessas fazendas do Eliseu Teixeira de Camargo, que era um desses fazendeiros tradicionais. Meu pai e um irmão mais velho, que veio trabalhar numa grande companhia de tecidos de São Paulo, fugiram desse padrão. Meu pai veio pra São Paulo, começou como bancário trabalhando no banco, acho que no primeiro banco do Gastão Vidigal, né? Ele contava que quando o Gastão entrava no banco ali na [rua] XV de Novembro, os funcionários todos se levantavam, o Gastão passava, eles faziam um gesto de deferência e sentavam novamente. Finalmente, ele [o pai] resolveu fazer um concurso público pra fiscal de rendas do Estado. Foi onde ele começou de fato uma carreira e terminou como funcionário público aposentado em Campinas. Num primeiro momento, fomos lá pra Araras [SP], porque meu avô materno tinha morrido. Meus pais foram morar na casa deles – minha avó tinha morrido! - pra cuidar do meu avô. Então, foi aí que eu passei minha infância de seis anos.
Minha mãe tem um nome exótico, de novo mais uma vez uma corruptela estranha de pronúncia, ela se chama Lady Alice Fachini Dupas, mas obviamente o exotismo do nome como decorrência significa corruptela da pronúncia, então ela é Dona Ladi Fachini Dupas, enquanto ela deveria ser Lady Alice Fachini, ou Fachini Dupas.
INF NCIA NO INTERIOR DE SÃO PAULO: A MOTOCICLETA IMAGINÁRIA
Meu avô tinha uma serraria em Araras, quando derrubava árvore era apresentado ainda como um belíssimo, másculo desafio. Eu me lembro de fotografias do meu avô e dos amigos dele abraçando toras imensas. O que hoje seria uma coisa politicamente absurda e incorreta naquela época era motivo de orgulho, o tamanho da árvore. Minha mãe era uma dos seis irmãos e fez até o Curso Normal e depois era uma dona de casa e foi uma dona de casa a vida toda. Então, a história dos meus pais é uma história de classe média: ele era funcionário público e ela, dona de casa e mãe de família, modelo bem tradicional.
Meu avô morava na cidade, em Araras, e tinha a serraria, então ele morava numa casa grande lá, cercado um pouco dos parentes. A fazenda eu frequentava por conta dos tios dos meus pais, que eram administradores de fazenda. Era muito comum eu passar férias nas casas deles, e aí subindo em mangueira, indo especialmente pra oficina onde ainda existiam naquela época os foles em que se batiam as ferraduras, os tratores, aquele cheiro de óleo, a mão cheia de graxa, ferramentas. Até hoje eu entro numa oficina e aquele cheiro me desperta imagens muito interessantes. Foi isso que me levou em um primeiro momento a imaginar ser engenheiro mecânico. Em última análise, foi a minha aparente vocação quando entrei na Engenharia, na Politécnica [Escola Politécnica da Universidade de São Paulo] pra ser engenheiro mecânico.
Havia um primo meu que eu frequentava bastante, que o pai era suíço, Vladimir, morava em Pirassununga [SP], que tinha um laticínio, ele tinha sido diretor de uma dessas grandes companhias, Nestlé, acho eu, e depois montou um laticínio próprio em Pirassununga, e teve vários filhos. Aliás, é uma história de família curiosa, porque nenhum dos filhos teve filhos, então foi uma geração que praticamente se estancou. E um desses filhos era surdo-mudo, e era um grande amigo meu, tá vivo, tem uns 80 anos, 70 e tantos anos. Ele adorava mexer nas oficinas do pai, e como o pai queria dar a ele uma função, embora ele fosse surdo-mudo e tivesse sido marginalizado das rotinas normais, ele tinha como função fazer duas ou três atividades logo no início da operação dos laticínios, abrir uma válvula, fazer o retorno de um processo qualquer. Depois, passava o dia na oficina construindo uma motocicleta imaginária que ele tinha projetado e que ele construía peça por peça, imaginando que um dia ia andar na motocicleta que ele construiu. Eu passava parte das férias com ele, era uma das minhas férias mais interessantes, metido naquela vida absurda, Kafkiana, ou Borgiana pelo menos, em que ele ficava desenhando peça por peça. Ele tinha curso de desenho técnico e tal. E fazendo na oficina as pequenas peças de uma moto que ele ia montando e que, evidentemente, nunca ficou pronta depois de 50 ou 60 anos. Me agradava muito ir pra oficina com ele e mexer no torno, mexer nessas coisas era uma coisa muito gratificante. De alguma forma construiu um pouco esse lado meu de gostar de mexer manualmente com as coisas e talvez isso influa um pouco na própria maneira de pensar e de construir as idéias. Essa foi um pouco a mitologia desse lado da minha família, né? Com essa situação do construir, da construção, ainda que uma coisa completamente utópica e estranha como essa moto que em última análise nunca existiu, a não ser na imaginação desse meu primo.
TRAJETÓRIA DOS PAIS
Eu tenho em casa um documento feito naqueles papeis almaço, lembra-se, né? Escrito à mão, que aliás a Guita Mindlin, minha velha amiga, fez o obséquio de reconstituir, porque ele estava todo erodido. Tem o contrato, o primeiro contrato, um dos contratos que meu avô fez de seu pequeno armazém assinado pelo tal Senador Uchôa, que era o dono da propriedade em que ele passou muito tempo.
INF NCIA: CASA E COTIDIANO
A casa que eu vivi realmente do um aos seis anos, que foi a casa dos meus avós lá em Araras, no interior de São Paulo. Era um casarão muito grande, tinha um pátio no meio. Os irmãos homens eram todos muito brincalhões, divertidos; as irmãs mulheres eram mulheres sérias, refletindo claramente meu avô e minha avó. Minha avó era uma mulher séria, era a parteira da cidade, saía com o trollerzinho [modelo de jipe] dela de madrugada, à noite, com um revolverzinho, isso em Araras em 1947, 48, porque just in case, mas ia atender de graça, evidentemente, aquelas moças, senhoras que viviam lá por aquelas estradas de terra e tal. Era uma mulher dura, enérgica, e meu avô um homem sorridente. Os filhos eram homens alegres, divertidos e as mães eram mulheres sérias, minha mãe e as duas tias. Meu avô então, tinha um pátio interno na casa e se divertia muito chamando as crianças, eu, mais alguns netos e crianças da redondeza pra dar choques elétricos. Ele pegava uma tomada e enfiava dois fios, então ele ficava carregado de eletricidade e dava choques nas crianças, que se divertiam muito com essa história. Era uma casa interessante, a minha mãe uma mulher também enérgica e tal acabou, com o falecimento da minha avó, sendo a que controlava a casa. Então, provavelmente continuou os métodos da mãe. Eu me lembro que aos quatro, cinco anos a família depois do jornal se reunia em torno do rádio, era provavelmente um RCA Victor, que tinha aqueles olhos verdes e quando a estação sintonizava o olho diminuía. Depois do almoço, depois do jantar a família se reunia pra ouvir, evidentemente, o Repórter Esso, da Rádio Nacional do Rio, que ia às oito horas da noite (entrevistado imita vinheta do programa): tã tã ran, tã tã tã tã tã ran. Logo depois havia um programa humorístico chamado [Edifício] Balança Mas Não Cai ou um programa de auditório, no auditório da Radio Nacional do Rio. A rádio pegava com modulações curiosas e existia um cantor que cantava músicas tipo country na época, era famoso, e quando isto acontecia iam me chamar no quarto, eu já devia estar dormindo, era a exceção que abriam pra eu poder ouvir um pouquinho de rádio e tal. Então, essa era um pouco a vida da família.
A serraria... Você vê aquele episódio do primeiro conto de Jonas [referência ao livro de contos Retalhos de Jonas, escrito pelo entrevistado] tem muito dessa história, cheiros, né? Aquelas máquinas grandes, porque não era uma marcenaria, era uma grande serraria, serrava toras e aqueles dentes serrando aquelas toras cheias de seiva, aromas fantásticos. Meu avô era o homem das mãos, tinha mãos calosas, mexia com madeira. Eu vivi a minha infância ali sentado, às vezes até em cima daquelas máquinas que corriam imensas, a serragem no chão, brincando na serragem, isso ficou impregnado. Eu não consigo ler um livro sem cheirar muito o livro, o cheiro do livro é uma coisa maravilhosa, cada livro tem um cheiro, depende da tinta, do papel. E o cheiro das madeiras, especialmente as recém-cortadas, então essa seiva das madeiras, o pau-ferro ali no nosso bairro como todo bom pau-ferro descascado, aquela superfície que se você põe a mão ali um pouco vem o aroma daquela seiva maravilhosa. Tudo isso vem um pouco aí das lembranças do meu avô. Era uma casa grande com razoável movimento, um belo grande fogão a lenha onde de manhã se fazia uma refeição maravilhosa, que era a polenta, na boa tradição italiana, na chapa. Então, eu acordava de manhã e de novo os cheiros, aquele cheiro maravilhoso de polenta na chapa, a mesa ali estava posta com umas tigelas grandes e os guardanapos de pano. Cada um tinha sua argola, colorido com o seu nome, que era pro guardanapo durar várias refeições. Hoje não existem mais essas coisas, hoje se joga tudo fora, se corta as nossas árvores por outras razões, pelo menos por conta dos guardanapos e lenços de papel que a gente joga fora, naquela época não. A gente ia até o fogão a lenha onde já estava lá o bule de café recém feito, com café moído na hora e um bule de leite, obviamente derramado e, portanto, com aquele cheirinho do leite queimado sobre a chapa. A gente pegava esta polenta com aquela crosta com uma espátula de madeira e cortava com cuidado pra não queimar as mãos e punha naquelas tigelas. Na mesa, açúcar, café com leite e essa era uma refeição maravilhosa. Não sei se tipicamente italiana, diziam que sim, a polenta certamente. Então, era uma casa divertida. Eu me lembro de ter chegado a primeira geladeira, foi uma das primeiras geladeiras de Araras, era alimentada com blocos de gelo. Depois chegou uma segunda em que havia um motorzinho em cima, mas nessa época do bloco de gelo já se faziam sorvetes naquele grande quintal que tinha ali. Eram feitos com salmoura, eram sorvetes que tinham que ser consumidos em cinco minutos, porque derretiam imediatamente. São lembranças interessantes.
Tinha um pomar com mangueira, onde eu subia evidentemente e tal, mas eu não me lembro especialmente das frutas. Eu me lembro mais de uma coisa maravilhosa que era o dia do abate do porco, era um ritual fantástico que se montava desde de manhãzinha. De madrugada eu já estava antenado porque havia o urro, o grito do porco, que já sabia que ia ser morto. Curioso, né? E finalmente o grito lancinante final, que era quando enfiavam aquela coisa embaixo do braço e corriam com as vasilhas pra aproveitar o sangue, que era um elemento fundamental pra fazer o chouriço. Aí era atividade de um dia todo, aquelas mesas de madeiras postas e as partes do porco sendo retalhadas, separando as mais nobres que eram separadas ou pra consumo imediato ou outras peças que eram mergulhadas naquelas tinas enormes de metal, na banha do porco, numa espécie de sepulcro, pra serem seladas e consumidas durante o ano. Depois as linguiças feitas ali com tripas na hora e tal, todo esse ritual. No final deste período, que levava provavelmente o dia todo, uma água fervendo era jogada sobre aquelas placas de madeira, aquelas tábuas. Eram desmontadas até o mês seguinte, era um ritual. Me lembro mais disso, do ritual do porco do que das frutas. As frutas naquela época eram tão comuns que a gente comia no pé quase todas, isso era fruta. Hoje em dia as nossas frutas são todas devidamente processadas e perdem grande parte do seu atrativo, mas as frutas daquela época a gente comia no pé, era um privilégio.
INF NCIA: VIDA RELIGIOSA
A religião era uma obrigação, muito mais, me parece, do que uma devoção. No núcleo da família havia algumas tias, havia uma tia fantástica, Tia Maria, que era uma exímia jogadora de pôquer. Tinha lá um dia, uma noite em que ela jogava pôquer com as amigas e tal, acho que não era truco, era pôquer, mesmo. E então, de madrugada quando o pessoal saía ali daquele jogo saía com mantilhas, com terços, imaginando que estavam voltando da missa, da primeira missa das seis e tal. Mas no domingo frequentavam, mas era mais uma obrigação de uma família católica do que, me parece, uma grande devoção. E não teve uma importância muito grande, embora o rito religioso fosse naquela época como o terno que você veste. Quer dizer, fazia parte na família.
Íamos à missa no domingo, assistíamos as procissões da semana Santa. Me lembro até muito de um ritual interessante, também no interior de São Paulo, onde morava uma das minhas tias, irmã do meu pai. [Era] em Santa Cruz das Palmeiras, onde nós passávamos a Páscoa e depois ali a semana da Paixão. Os rituais de cidade do interior eram maravilhosos, porque você ia pra pracinha única e tinha o “footing”. O “footing” era os rapazes numa direção da praça em frente à igreja, as meninas em outra e na fila do meio iam os casais que por acaso já tinham se juntado. As procissões com vela, a vela protegida com aqueles cones. E principalmente as comidas da minha tia, que eram maravilhosas, apesar dos tais jejuns pascais, que eram simplesmente não comer carne em certos dias e comer um peixe maravilhoso. E as coisas que eram feitas lá: as massas pra sopa e pras lasanhas e tal, todas feitas ali. Então, isso era um ritual muito próprio, muito da infância do interior de São Paulo também, imagino eu.
TRAJETÓRIA ESCOLAR
[Mudamos para Campinas quando eu tinha] seis anos, porque o meu avô morreu e, portanto, a minha razão de estar em Araras se foi. Meu pai voltou pra Campinas, pro posto fiscal de Campinas, onde ele estava quando foi removido pra Araras por conta do interesse da minha mãe estar próxima do meu avô, né? A primeira escola foi uma escola na garagem da casa de três irmãs solteiras. Elas faziam um grupo escolar particular de alfabetização, que permitia a gente, não sei bem como, depois entrar no grupo escolar público já na segunda série. Era uma professora muito curiosa, muito original, era a garagem da casa dela e tinha ali, sei lá, meia dúzia de carteiras, onde ela atendia um grupo de meninos e meninas. Ao mesmo tempo em que ela estava atendendo a gente ali, na janela lá se você olhasse estavam fazendo goiabada no quintal num grande tacho, aquele cheiro de novo maravilhoso. Goiabada essa que era derrubada ainda quente naquelas caixinhas de madeira revestidas de papel manteiga. E a gente ali fazendo aquelas lições horríveis naqueles métodos absolutamente tradicionais de ditado, tendo que aguentar aquelas coisas maravilhosas rolando ali no quintal. Então, essa foi a primeira lembrança de escola, né? Isso me permitiu entrar no grupo escolar um ano antes, porque o grupo escolar tinha idade certa pra entrar. Fazendo isso entrava no segundo ano já tendo sido alfabetizado no primeiro ano. O grupo escolar já era um pouco distante de casa, tinha um bonde e eu com seis anos, sete anos ia evidentemente sozinho. Pegava o bonde, como acontecia nas cidades do interior durante tanto tempo, ia pro grupo escolar onde eu fiz os primeiros quatro anos. São as lembranças de menino daquela época mesmo, principalmente colecionar figurinha, jogar bafinho, que era um negócio de virar as figurinhas e ganhar. Muito eventualmente, [jogar] uma bola de futebol, mas muito eventualmente. E, principalmente, aquelas benditas balas, toneladas de balas nas quais vinham embrulhadas as figurinhas e que ninguém queria de tanta bala que tinha por ali e tal. Era uma infância num grupo escolar, eu fiz escola pública a vida toda e escolas boas, sempre. Nesse ponto, o mundo mudou muito, o Brasil mudou muito. Depois, havia o ginásio de escola pública, o Ginásio Culto à Ciência, que era um ginásio muito tradicional de Campinas, por onde tinham passado aquelas figuras ilustres. A gente tinha que fazer um cursinho, havia dois cursinhos especializados em Campinas, a gente passava um ano pra poder fazer o exame de admissão ao ginásio. Eu fiz um deles, entrei no ginásio e cursei o famoso Culto à Ciência em Campinas, que tinha professores muito ilustres, [isso] longe de significar que ensinavam bem, mas eram professores... Um deles era da Academia Campinense de Letras, ensinava o Português; o outro não sei o que e tal. Figuras conhecidas na cidade mas, de novo, não significa que, por exemplo, eu tenha tido um bom Português graças a isso.
PRIMEIRAS LEITURAS
Eu lia bastante, mas lia fundamentalmente o Tesouro da Juventude, que era aquela enciclopédia da época em que os jovens encontravam de tudo. E lia aventuras, principalmente a coleção completa do Conan Doyle, do Sherlock Homes, essa foi a minha leitura preferida de quando eu era adolescente. Eu comecei a ler um pouco mais de literatura e de coisa mais sérias e tal, lia por obrigação, e aí de novo o ginásio tradicional fazia o seu papel negativo. Toda essa literatura lida por obrigação não me causava nenhum prazer. Eu fui ler realmente muito, e hoje sou um leitor, assim, obsessivo, a partir do momento em que eu descobri do meu jeito o prazer na literatura e depois na Sociologia, na Filosofia, na Política, mas eu descobri o prazer, a motivação. Aliás, até hoje eu tenho um enorme prazer quando circulo, especialmente na França, aonde vou com uma certa frequência, e ainda se edita muito na França, e se edita muito de várias línguas, inclusive do alemão, onde a França costuma ser a primeira a traduzir livros da literatura e em geral de filosofia, da sociologia alemã. Até hoje eu tenho um prazer especial em descobrir um autor que depois se transforma num autor importante e referência pra algumas das minhas coisas, mas eu descobri. Fuço, olho, descubro, é um prazer parecido com o cheiro do livro. Então, eu encontrei o prazer de ler efetivamente coisas mais sérias a partir de uma busca muito pessoal. Na escola, foi o contrário, foi desestimulada pela tal literatura obrigatória, pelas leituras inclusive dos escritores nacionais. Você tinha obrigação de ler Raul Pompéia, O Ateneu; José de Alencar, Iracema. Era muito deprimente a leitura obrigatória. E era muito típico do ensino naquela época, né?
RELAÇÃO COM AOS LIVROS E A LITERATURA
Outro dia eu tive uma experiência concreta. Fui na minha biblioteca de literatura que está em casa, porque a outra está lá no Instituto, e resolvi tentar olhar e perceber mesmo daqueles, sei lá, talvez três mil, quatro mil livros que estão ali, alguma coisa desse gênero, quais que eu li inteiros, quais que eu li pedaços, quais que eu folheei e quais que eu nunca li. Um exercício interessante esse, pra tentar descobrir uma dúzia de livros que realmente me marcaram profundamente, tipo o Homem sem Qualidades, do [Robert] Musil, coisa assim.
É interessante, né? O Deserto dos Tártaros é outro que está lá separadinho. Mas me pareceu interessante porque o resultado final foi o seguinte: metade dos livros eu nunca li, comprei, dei uma olhada, senti o cheiro, nunca li. Provavelmente, uns outros 15 por cento eu li pedaços e parei depois. Aliás, isso é uma coisa que eu faço com frequência, livro que eu não engato eu paro, não perco um minuto a mais porque acho que é uma judiação. Quer dizer, tô gastando meu tempo com uma coisa que eu percebo que já não está dando. Uns 35 por cento deles eu li até o fim. Aí eu peguei alguns desses livros que me marcaram muito, por exemplo, O Quarteto de Alexandria, que são quatro livros: Clea, Balthazar, não me recordo agora os outros dois, que inclusive estão associados pra mim a Racmaninoff, porque no período que eu li, dois deles eu li inteiros, o terceiro eu parei na metade e o quarto eu não li, que acho que é Clea, é, eu estava mergulhado em Racmaninoff, então O Quarteto de Alexandria pra mim é Racmaninoff, que evidentemente não têm nada a ver. Comecei, separei aí 20 livros e comecei a tentar olhá-los de novo e percebi que alguns não me faziam mais sentido, naquele momento tinham sido experiências fantásticas e eu dizia: “Mas não é possível, me marcaram tanto, onde é que me marcaram?”. Eu folheava e não achava, né? De vez em quando tem um outro ponto que me recordava, por exemplo, eu acho que é na abertura do Clea, em que tem uma frase do Freud que diz: “Na cama, o casal nunca está a dois”. Essa é uma frase do Freud provavelmente, né? Mas pequenos detalhes, mas aquele mergulho, aquela descoberta prazerosa do mergulho não apareceu mais, o que é sinal que ele cumpriu uma função, um momento na minha formação intelectual e depois não cumpre mais. O Deserto dos Tártaros, por exemplo, é uma coisa que eu estou receando ler a terceira vez, porque tenho medo, é uma coisa tão preciosa. O Deserto dos Tártaros pra quem leu tem uma cena de referência fantástica, que é um rapaz que é recrutado pra prestar serviço militar por seis meses, numa fronteira imaginária e fica a vida toda. A primeira vez que ele vai, volta esporadicamente pra uma ou outra férias, e a primeira vez que ele vai ele demora quatro ou cinco dias pra conseguir dormir porque havia o gotejar de uma cisterna a noite toda que impedia que ele dormisse e depois de quatro, cinco dias não reparou mais nisso. Numa das vezes que ele volta pra uma dessas férias muito rápida de uma vida que não termina nunca, e que eles estão sempre lá à espera de uma invasão que nunca acontece. Ele passou o primeiro dia e não consegue dormir, passa o segundo e ele não consegue dormir na cidade, no terceiro dia ele descobre que estava sentindo falta do ruído do gotejar da cisterna. Quer dizer, são coisas que ficam, vão ficar pro resto da vida, mas eu tenho medo de enfrentar O Deserto dos Tártaros a terceira vez, com medo que eu me decepcione. E então, pra mim o livro tem muito isso, ele incorpora, ele faz parte, e aí é um perigo. A gente discute isso muito quando a gente escreve e tal, o quanto você incorpora, é o negócio do copyright, do direito autoral, chega até aí essa conversa, o quanto o pensamento tem dono e o quanto o pensamento alheio se incorpora. Você digere e a partir daí é seu. E o quanto durante muito tempo a gente discursa ou escreve sobre o pensamento do outro digerido ligeiramente e o quanto a gente tem direito de fazer ou não. A minha conclusão é que é inevitável, não há pensamento absolutamente original. O pensamento é sempre sobre um outro pensamento, sobre outros pensamentos, a gente adiciona alguma coisa, incorpora outras, rouba outras e digere bem ou mal. Por isso que em alguns casos em diversos livros meus eu peço desculpas aos autores que eu cito, porque na avidez de incorporar dessas ideias pode ser que eu vá rápido demais à superfície e carregue um pouco de folhas na cabeça, que não são minhas de fato. E isso é uma coisa curiosa, pra mim funciona assim, né? Os livros que me marcaram e que eu sei que foram essenciais não são necessariamente livros que eu leria de novo agora, eu não sou, como acontece com muita gente, um leitor que volta com frequência às coisas que leu e que o marcaram, eu vejo esses meus amigos: “Olha, estou lendo pela décima quinta vez Memórias Póstumas de Brás Cuba.”, eu nunca faria isso. Tem tanta coisa importante pra ler, eu nunca voltaria a ler mais de duas vezes uma obra, ou três, dez é inimaginável, eu não consigo, não faz parte da minha forma de estruturar o pensamento.
ESCOLA: ESPORTE E POLÍTICA ESTUDANTIL
Eu tinha, embora eu tivesse durante a época do colegial uma participação razoável na chamada política estudantil ali. Nós estamos falando de 1957, 56, até 60. Na realidade, eu dividia uma participação intelectual, a gente fazia pequenos clubes naquela época dos rapazes que a gente se reunia pra fazer poesia, todas muito ruins, e pra pequenos saraus literários e tal, mas na realidade eu tinha duas coisas importantes: o desafio do esporte, que pra mim era uma questão de afirmação. Eu era um rapaz, assim, meio doentinho, meio franzino, excessivamente cuidado pela mãe e tal, e a minha afirmação era o esporte. E o esporte era normalmente o futebol. Eu sempre fui um jogador medíocre, embora adore futebol, até hoje goste muito de futebol, sempre fui um jogador medíocre e isso me exigiu um grande esforço de ser um jogadorzinho decente, respeitável pelo menos pelo seu esforço. Jogava bem pingue-pongue, essas coisas, tinha que ter alguma coisa que você jogasse melhor. Então havia este lado e havia o lado que efetivamente acabou permitindo a minha afirmação como indivíduo, que era mais essa questão da política estudantil, muito ligada naquela época a movimentos católicos. JEC [Juventude Estudantil Católica], que era o movimento estudantil ainda conservador naquela época, alguns dos seus orientadores espirituais tinham proximidade exóticas até com esses, tipo o nosso amigo integralista, o Plínio Salgado. Mas era a atividade política que me atraía, reunião dos jovens, organização dos seminários etc. Aí eu, mas sob o ponto de vista profissional, eu estava absolutamente convencido de que queria ser um engenheiro mecânico pra projetar automóveis, caminhões etc. Isso veio do ginásio e ficou num cantinho da minha cabeça, então a escolha pra fazer Engenharia e Engenharia Mecânica foi uma coisa que não foi questionada, era óbvia, ela estava em paralelo a essas outras coisas que estavam se desenvolvendo na minha cabeça, que eu não sabia bem o que era.
MUDANÇA PARA A CAPITAL E INGRESSO NA UNIVERSIDADE
Fiz um ano de cursinho em São Paulo, vindo do interior era obrigatório, [era] praticamente impossível entrar direto na Politécnica e tal, era muito difícil. Fiz um ano de cursinho aqui, morando em pensão, como fiz durante todo o tempo depois, e entrei na Escola Politécnica, pra minha surpresa muito bem, e também na FEI [Faculdade de Engenharia Industrial] e comecei o primeiro ano de Engenharia Mecânica, que era um ano básico. Tive oportunidade de ir às oficinas, com torno, aquelas coisas todas que eu trabalhava lá com meu primo mais velho em Pirassununga e viver aquilo de uma forma já encaixada num curso universitário e tal. Isso durou muito pouco, porque foi logo o período de intensa atividade política universitária, Greve do Um Terço [1962], e aí imediatamente eu me aproximei da JUC [Juventude Universitária Católica], que era o movimento católico daquela época que estava em política universitária, só que a vertente conservadora, vinha do interior e tal. Deu conta durante dois meses, aí imediatamente eu me abri pra uma realidade nova, que era a realidade realmente do oprimido, vamos dizer assim, e da chamada consciência histórica, que era a responsabilidade do sujeito de mudar a sociedade de alguma forma em benefício daqueles que, em suma, poderiam ser melhor, digamos, encaixados na vida em sociedade com isso, esse era um pouco o clima da política universitária naquela época.
ATIVIDADE POLÍTICA NA UNIVERSIDADE DURANTE A DITADURA
Ainda naquela época muito com medo do comunismo que vinha como herança de toda aquela tradição muito conservadora e tal, eu me lembro de uma charge interessante no jornal da UNE [União Nacional dos Estudantes], jogada no corredor do Grêmio Politécnico que tinha um sujeito que tinha levado um tiro, todo em preto e branco, e tinha saído uma mancha vermelha e dizia “Comunista”. Isso marcou muito as minhas reflexões sobre essas questões, embora tenha durante todo o período de política universitária mantido com os comunistas da época, né? Partido Comunista, trotskista e todas aquelas coisas, Polope [Política Operária] e tal, uma relação de rivalidade porque nós, a esquerda católica, não nos misturávamos com aquele grupo muito radical e tal. Isso durou um certo tempo só e, portanto, o engajamento com a política universitária e eu fui logo no primeiro ano eleito pra ser o representante do curso fundamental no Grêmio Politécnico. À medida que eu ia olhando o mundo de uma forma diferente, imaginando, construindo a minha ideia de responsabilidade pela sociedade e tal, uma ideia razoavelmente onipotente, mas que de certa forma tá aí enfiada em mim até hoje e tal, é, eu fui rapidamente mudando de foco e, de repente, eu olhava aquela Engenharia Mecânica, aquelas matérias todas, embora gostasse muito de Matemática, de Cálculo e tal, no fundo não tinha mais nada a ver comigo, né? Como tinham começado um curso de Engenharia de Produção, que era o Economic Engineering americano e eles traziam algumas cadeiras de microeconomia, macroeconomia, planejamento, então falei: “É por aí”. Entrei imediatamente na coisa de Engenharia de Produção, ao mesmo tempo em que tive uma atividade muito intensa em política universitária. A gente começou a se organizar em grupos de estudo, pra estudar Economia, Sociologia e tal, em paralelo com a própria faculdade. Foi assim que eu me envolvi bastante. Houve um momento que foi o momento mais radical, logo depois do golpe e tal, em que havia que fazer uma opção: uma parte do meu grupo ficou mais na reflexão conceitual, teórica sobre as questões relativas à sociedade, economia e a outra parte foi pro embate político. A parte que foi pro embate político foi o pessoal da AP [Ação Popular], que se engajou e vários deles foram presos, torturados junto com as outras áreas de esquerda, todas de formação mais tipicamente marxista. Eu, seguindo um pouco essa minha já certa vocação, resolvi ficar nesse grupo mais de reflexão sobre questões de natureza sociológica, política, econômica e tal. Foi quando eu completei a faculdade, que acabei sendo o orador da turma, num discurso em que o Dom Elder era o paraninfo, num discurso, assim, muito marcado por essa coisa da responsabilidade, diante de um mundo marcado pelas injustiças, já muito marcado pela chamada consciência histórica, uma coisa que veio lá da formação católica do Theilard de Chardin, depois de alguns teólogos católicos que fizeram essa tradição, mas nesta altura a questão religiosa pra mim já estava resolvida. Eu era completamente um agnóstico e, portanto, não cabia mais pra mim dentro da minha maneira de olhar o mundo a questão da crença. Eu já tinha me transformado num agnóstico e pra minha visão de mundo naquela época era uma coisa do tipo: “Bom, se Deus existe, que importância prática tem? O que altera na minha maneira de olhar o mundo? A maneira de se engajar no mundo é dar de alguma forma significado às suas ações e um significado social”. Essa era um pouco a ideia e tal, então aquele Cristo engajado, a serviço do amor ao próximo e tal tinha se transformado, assim como o impasse que o Theilard de Chardin teve como filósofo católico que tentou conciliar ciência com religião e, evidentemente, foi muito mal sucedido, porque não há muito como conciliar, na minha maneira de ver. Eu também percebi que isso não era uma discussão importante pra mim e, portanto, fiz uma transição nessa direção.
O [José] Serra é dessa época. O Serra é um ano mais velho do que eu na Poli. Ele teve que abandonar o curso antes, ele não completou Engenharia porque foi se exilar. Aquele famoso encontro da UNE aqui próximo de São Paulo, em Ibiúna, e eu não conheci o Serra naquela época, porque ele estava já na UNE, no Rio, mas vim conhecê-lo depois, na época do governo Montoro, em que nós fomos secretários juntos e tal. Acompanhei a distância, mas o Serra já estava engajado na Ação Popular e claro, ele junto com o Sergio Motta, o Luis Carlos Mendonça de Barros, que eram todos contemporâneos, esse sim contemporâneo. O Luis Carlos era colega de turma meu, era um desses que participava desses grupo de estudos com a gente e fez a opção pela política engajada na época.
Partir pra um engajamento político mais radical exigia a estrutura interior, de combatente, do jeito exposto a riscos de combatente. Era esse o clima da época, tratava-se de um combate e isso exige uma estrutura interior especial. Eu me lembro, por exemplo, até que admirava muito o tato do Luis Carlos, a gente tinha muita relação, fazíamos estágio juntos e tal, pela capacidade que ele tinha de fazer demonstrar quando não gostava de alguém, pela capacidade que ele tinha de passar por alguém reto, se não dando uma ombrada, quando não gostava dele. Eu invejava muito isso, eu tinha uma enorme dificuldade de fazer isso, tenho até hoje (risos). Todos esses cuidados, essa certa delicadeza interior – que é o lado do meu pai, claramente, tipicamente o lado do meu pai - que normalmente se exige de um combatente e eu não tinha muita vocação pra isso. Tive situações duras, sofridas. Por exemplo, estávamos no Rio, eu trabalhava no Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], no Ministério do Planejamento, e Margarida, minha mulher, grávida do meu primeiro filho, e nós ainda com as coisas encaixotadas no apartamento, num pequeno apartamento que tínhamos comprado no Rio, estávamos fazendo uma pequena reforma, quando aparece um casal do Sul, conhecidos de uns amigos nossos que tinham engajamento político forte, justamente naquela época crítica da repressão de [19]70, pedindo abrigo em casa porque estavam sendo perseguidos, podiam ser presos. Minha mulher grávida estava, inclusive, precisando fazer repouso e tal, o apartamento todo com as coisas encaixotadas ainda. E como foi duro dizer não, muito penoso. É quase um ato de covardia, sentindo assim, no entanto um ato de responsabilidade do outro lado. Essa tensão é uma tensão inevitável e pra alguém que se engaja numa luta política e tal ele faz esse exercício o dia todo, né? Abriga o sujeito, corre o risco, isso eu admiro muito, mas não era o meu forte, aí eu não ia me dar bem. E então, realmente, provavelmente por essas coisas eu acho que o engajamento intelectual fica um recurso à mão, porque o pensamento pode ser muito perigoso, mas é mais perigoso pra quem lê do que pra quem produz. Eu acho que isso é uma vantagem do intelectual, o intelectual engajado ou não engajado, a velha discussão, por exemplo, clássica, francesa, que aconteceu muito no caso do Sartre, o engajamento do Sartre e o não engajamento de outros intelectuais importantes franceses e tal, aí é uma coisa diferente. Mas o intelectual pode se dar o direito de ser radical, sendo que o risco maior não é necessariamente dele, às vezes é, mas nem sempre é, Sócrates tá aí pra provar que é. Acho que essas opções são muito dessas filigranas, da estrutura do ser de cada um e tal que acabam fazendo você seguir caminhos que você se sinta melhor, né?
Essa era uma época muito complicada, porque o que havia no movimento estudantil era, o mais engajado era uma clandestinidade, especialmente a partir de 70, e eu saí da faculdade um pouco antes, eu saí da faculdade em 66. E então, aí foi logo depois da revolução, aquele período mais duro veio um pouco depois, então as coisas ainda eram mais leves. Naquela época, foi se formando pra mim uma convicção que acabou predominando um pouco na minha vida depois, inclusive profissional. O sistema, a organização da força de poder e o sistema existem e a única forma, ou talvez a melhor forma de você tentar alterá-lo é de alguma forma vivê-lo, participar dele, desde que você consiga manter a razão critica, a capacidade crítica e a independência, que nem sempre é fácil, na maioria das vezes é quase impossível. Isso foi se firmando como uma convicção, então, as minhas experiências profissionais depois sempre partiram do pressuposto de que era preciso conhecer muito bem o sistema, o modelo, o seu funcionamento. O que eu escrevo, por exemplo, hoje sobre a lógica global do capital, e com uma originalidade bastante especial, seria impossível de ser feito se eu não tivesse vivido experiências profissionais e executivas no mundo do capital, né? Entendendo sua lógica, vivendo sua lógica, e tentando ao mesmo tempo em que cumpria essa lógica, porque era exigência profissional, manter uma visão crítica e independente, de tal forma que eu pudesse a qualquer momento sair disso. É um pouco parecido com a visão que eu tenho hoje sobre as tecnologias. Eu não tenho nenhum fascínio sobre as tecnologias, nenhum. As tecnologias são muito sedutoras, fazem parte da lógica essencial do capital, que é basicamente obsolescência, tornar os produtos velhos pra poder novos produtos, de continuarem gerando a máquina da acumulação e tal, essa é a lógica do capitalismo global, né? Mas eu não tenho nenhum fascínio pela tecnologia, nada na tecnologia me fascina. Eu olho, acho interessante, confortável às vezes, né? É muito perigoso pelo seu papel sedutor. E costumo brincar quando estou fazendo conferência e tal e dizem: “Escuta, mas o que é isso? O senhor não usa celular? O senhor não usa computador?”, aí eu brinco e digo assim: “Eu uso, moderadamente mas uso. Só que eu antes de usar, sempre tento me perguntar ‘Eu saberia fazer sem?’. Se a resposta for sim, eu uso.” É uma brincadeira, é claro. Imagina se eu faço isso todas as vezes, mas esse distanciamento crítico, que eu acho que foi, inclusive, a origem do meu pensamento das coisas que eu escrevi e refleti, justamente a retomada de uma razão crítica sobre um discurso hegemônico, que é a lógica da sociedade em que a gente vive e que é fundamentalmente a lógica do capital e não há porque não ser assim, e assim que a economia funciona e assim que as relações de poder funcionam. E é assim que a sociedade é e, se a gente pode dar alguma contribuição como intelectual, eu acho que hoje o intelectual é aquele que é capaz de desconstruir os discursos hegemônicos, do tipo: “Se eu tiver um novo celular, eu serei um pouquinho mais feliz”, pra outros muito mais complexos e sofisticados, que a nossa sociedade midiática de massa está nos colocando a cada momento, como sendo objetivos de vida que não são, são objetivos de uma lógica econômica que existe e que precisa existir pra tocar as coisas pra frente, mas que torna os cidadãos realmente, em grande parte, expectadores, ativos passivos, porque eles são ativos de uma intenção que não é deles, de uma lógica que não é deles. Eu acho que essa tensão entre a realidade e a reflexão crítica só existe se você olha a realidade e faz um diagnóstico profundo dela com bastante, digamos, isenção, bastante cuidado, senão é preconceito, não é análise crítica, então isso é uma questão difícil.
PRIMEIRO EMPREGO: PLANEJAMENTO PARA O GOVERNO
Na minha época, aqueles que se formavam em Engenharia de Produção na Politécnica tinham emprego absolutamente garantido, onde? No mercado financeiro, que tinha acabado de se estruturar, os bancos de investimento estavam surgindo, Roberto Campos adorava os engenheiros, achavam que a cabeça dos engenheiros, especialmente os engenheiros de produção, era ideal pro mercado financeiro. E então, um número muito grande de amigos meus saiu direto pra indústrias ou pro mercado financeiro, pra bancos, bancos de investimentos. Olavo Setúbal era politécnico, também adorava engenheiros. Esse mundo não me interessava naquele momento, eu queria ter algum tipo de coerência com aquilo que parecia ser o meu discurso de formatura, então eu fui na contramão e batalhei pra conseguir um emprego, não foi fácil naquela época, numa empresa, era uma das únicas do Brasil que tinha tido gente do governo e que fazia planejamento econômico pra governos. Naquela época os governos não tinham estruturas técnicas grandes, então tinham pessoas que vinham do governo, tipo Diogo Nunes Gaspar, Mario Laranjeira de Mendonça e tal, tinham participado de governos e que montaram uma empresa de planejamento pra prestar, digamos, assessoria pra governos, fazer planejamento e eu imaginei que era este o lugar que eu queria, e foi difícil. Batalhei até depois de seis meses e os empregos estavam dando sopa, e eram empregos bons, aí foi realmente a opção clara. E eu me lembro que o Sebastião, que era o diretor da empresa depois que me admitiu, depois de uns dois meses de trabalho disse assim: “Olha, eu vou lhe dizer o seguinte: Sabe porque eu lhe admiti? De tanto que você me torrou a paciência, eu não precisava de você na época ainda, mas você me encheu tanto que eu te admiti.”, dizia o Sebastião, que já morreu, uma grande figura. Foi aí então que eu comecei a fazer planejamento de governo. Depois de algum tempo surgiu oportunidade de um projeto de desenvolvimento regional lá no Sul, no vale Taquari—Antas, me convidaram pra ser diretor de planejamento do projeto, acharam que eu tinha qualificação, era muito jovem ainda, mas de qualquer forma fui, passei lá dois anos, quando então eu fui convidado pra ir pro Ipea, que era o órgão de planejamento do governo, do governo militar, em 1970, mas o Ipea tinha núcleos e naquela época o Ipea não era o Ipea de hoje que escreve teses, faz reuniões de conjuntura. O Ipea fazia planejamento de governo, chamava empresários e dizia: “Seu Fulano, nossa meta pro setor siderúrgico é tanto, a sua empresa vai se engajar nesse projeto ou não?”. Definia metas de natureza social, econômica etc. Era um governo autoritário, mas que tinha que ter técnicos e os técnicos em grande parte eram de esquerda, né? Então havia uma contradição curiosa nisso. O nosso grupo de planejamento era o Fishlow, Albert Fishlow, que tinha acabado de vir dos Estados Unidos, da universidade, era um intelectual famoso, foi contratado pra nos treinar, nem tinha a Conceição, tinha o Artur Candal, uma porção de gente de esquerda, eram seis ou sete pessoas e fazendo planejamento pro governo militar.
Estava se organizando o setor de siderurgia especializada em máquinas e equipamentos. O governo fazia política industrial, ele dizia: “Esse setor é importante para o Brasil, adiciona valor e vamos ajudá-los a se desenvolver.” , como foi assim na Coreia, como foi o grande sucesso da Coreia, com os riscos, evidentemente, de proteções e tal que existem, e o governo fazia isso. Algumas vezes era bem-sucedido; outras vezes, mal sucedido. Por exemplo, Vilares, Vibase, que era a grande siderurgia pra indústria de base e tal, o Vilares foi chamado: “O governo é esse, você quer entrar? Você tem ajuda, subsídio. Se não quiser entrar, outro vai entrar”. Isso a partir de uma consolidação de números de crescimento, de como é que o PIB [Produto Interno Bruto] ia crescer por setor, precisava adicionar valor, a produção local, tecnologia. Fazia-se ainda esse planejamento de governo, e isto pra nós que acreditávamos numa economia planejada por ter uma formação de esquerda e, de novo, a contradição aparece, era uma experiência maravilhosa. Embora discordássemos profundamente da orientação política do governo de então, especialmente em relação à ditadura, à repressão e tal, era uma oportunidade da gente participar, ter as vantagens de um governo autoritário e que a gente podia criticar. Não era um governo de esquerda autoritário, não era a União Soviética, em que as contradições já estavam aparecendo lá, depois do Stalin. Era uma situação curiosa, interessante e muito rica sob o ponto de vista profissional, né?
O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] existia como braço importante do governo, mas nós trabalhávamos fundamentalmente pra fazer a programação dos planos, PNDs, os Planos Nacionais de Desenvolvimento, que era uma visão global sobre a infraestrutura, sobre o desenvolvimento industrial, que foram razoavelmente bem-sucedidos naquela época e que puderam construir uma lógica de cadeia industrial. Era bastante razoável, bastante sólido, é que se perdeu a partir da abertura e de vários outros problemas que se teve, né? Foi uma oportunidade rara, eu vivi intensamente essa oportunidade e foi quando comecei a dar aulas em algumas universidades do Rio na área de planejamento, comecei também a minha ponte com o mundo acadêmico. Houve uma situação familiar que precipitou a minha vinda pra São Paulo, minha mulher estava grávida e a área de planejamento ia mudar pra Brasília. Por uma série de razões de natureza familiar e tal nós não estávamos afim de ir pra Brasília, então tivemos muita dúvida, ficamos até o final, escolhi apartamento funcional e não sei o que, mas aí resolvemos que não estávamos e comecei a procurar outra alternativa, mas as coisas estavam indo pra Brasília.
TRABALHO NO SETOR PRIVADO
Surgiu uma proposta pra eu ir pra um banco privado, porque alguém achava que eu seria capaz de ajudar esse banco a se organizar, a se reestruturar e montar um banco de investimentos e tal. Por curioso que pareça essa indicação veio através do Roberto Campos, que era conhecido de um conhecido de um conhecido, e que teve referência de mim e tal. Eu achei aquilo tudo muito esquisito, eu não entendia absolutamente nada de banco, não gostava, não entendia, mas a proposta era muito atraente. O mais atraente era a hipótese de eu conhecer o sistema por dentro, isso era uma coisa que naquele momento, depois de ter tido a experiência de Ipea e tal, me chamava a atenção. Eu vim pra um banco que me contratou pra ajudar a reestruturar, criar as áreas técnicas, fiz isso durante um ano e meio, aí fui convidado por um outro banco, que tinha comprado a carteira de um banco de investimentos pra ser diretor deste banco.
Era o Banco Andrade Arnaud, esse segundo. Eu aceitei e reestruturei o banco de investimento deles. Depois, acabei recebendo um proposta de ir pro Banco Brascan de Investimentos, pra ser diretor, depois vice-presidente. Imagino que fazia isso bem, relativamente bem, porque tive uma carreira profissional bem- sucedida, mas sempre com olhar no sistema e com olhar vesgo pra questão da universidade, procurava continuar dando aulas. Neste período de transição eu tinha feito um curso de pós-graduação na área de Economia, depois um outro mais voltado à Sociologia e, em suma, sempre olhando pra essas situações. Depois do Brascan, eu tive uma outra oferta pra organizar uma seguradora num outro grupo financeiro. Também não entendia absolutamente nada de seguros, mas achavam que eu tinha competência pra isso, achei interessante, fiz isso, até que finalmente foi esgotando em mim o interesse de conhecimento desse setor.
TRABALHO COMO SECRETÁRIO DO GOVERNO FRANCO MONTORO
Além de eu ter tido um período também que eu tive uma situação financeira bastante folgada, por conta de cargos bem remunerados, o que me permitiu juntar alguma coisa, pra ir aprimorando uma ideia futura de onde eu queria realmente me engajar mais profundamente. Já na transição pro processo democrático brasileiro o Franco Montoro começou a montar sua equipe pro governo. Eu conhecia algumas pessoas, entre as quais o João Yunes, que já faleceu, que era um sanitarista muito famoso, muito importante, e o Serra, que eu reencontrei, e acabei então indo pro governo mesmo, com uma bagagem de experiência de setor privado razoavelmente sólida. Eu era muito jovem nessa época, isso foi em 82, portanto, eu tinha menos de 40 anos, eu tinha 39 anos, e já tinha tido uma experiência profissional muito diversificada, muito ampla, meio estranha, quase surpreendente pela idade que eu tinha, circunstâncias várias levaram a isso. No governo Montoro eu fui primeiro vice-presidente do Banespa, na área financeira do Banespa, depois fui convidado pelo Montoro pra ser presidente da Caixa Econômica Estadual, que estava numa fase um pouco crítica, e no final do Governo, um desses convites muito surpreendentes, porque eu não entendia nada disso, mais uma vez não entendia nada disso, mas fosse aí uma das coisas que me tocou das experiências com meus tios e tal, o Montoro me convidou pra ser Secretário da Agricultura, que naquela época era Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente, era uma coisa só. Eu achei muito interessante, mas como eu estava acostumado a aceitar desafios de coisas que eu efetivamente eu não entendia e eu tinha dado conta do recado, eu achei que com o grupo de técnicos competentes que eu podia selecionar ali eu podia fazer a mesma coisa na Secretaria da Agricultura. Me recordo de um episódio, que é muito afetivo, muito delicado, muito importante porque o meu pai, que nessa altura já estava aposentado, acho, tinha um verdadeiro fascínio pelos secretários de agricultura do estado de São Paulo, eram cargos de figuras célebres, ilustres, da época em que Campinas era o centro da cafeicultura e os fazendeiros do interior de São Paulo eram figuras políticas sempre. Pro meu pai, então, Secretário da Agricultura do estado de São Paulo era uma coisa, eu sei que ele olhava a distância, e depois um amigo dele, o José Gomes da Silva, acabou sendo secretário do Montoro, um pouco antes de mim, e aí então eu fiquei observando o dia da posse, que foi um momento muito mais especial pra ele do que pra mim, sem dúvida alguma. Fiquei tentando imaginar o que ele sentia naquela situação, pra ele era uma coisa solene de um cargo solene, pra mim era uma rotina de umas coisas que tinham acontecido na minha vida e tal, mas eu imaginei que pra ele foi uma coisa realmente, extremamente importante. Os secretários de agricultura de São Paulo já não eram mais os secretários da agricultura da história de São Paulo, as ilustres figuras, veja eu por exemplo, em suma, qual era a minha origem, porque eu cheguei ali, era um caminho completamente distinto da história das figuras ilustres que formavam os governos paulistas, todas elas muito ligadas à lógica do poder econômico, à lógica do poder político e tal, mas ainda sim foi uma experiência interessante. Imagino que pro meu pai deve ter sido uma coisa muito tocante, muito especial. Foi assim que eu terminei o governo Montoro e tendo uma experiência de começo e de fim numa circunstância muito especial, porque era um privilégio trabalhar com o Montoro.
Eu comecei no setor bancário, Banespa e Caixa, no qual certamente a minha experiência privada me ajudou, mas também com essa minha capacidade de improvisação, com esse desejo, isso é muito do consultor de planejamento, né? Enfrentar projetos novos, o desafio de montar projetos novos, cada coisa dessa era um projeto novo, por exemplo, fazer uma primeira reunião com a diretoria da Secretaria da Agricultura e dizer pra eles: “Vamos contratar uma empresa de pesquisa de opinião e vamos pedir que ela vá às casas da lavoura”. As casas da lavoura eram os locais em que a Secretaria tinha, aonde o agricultor ia quando tinha um problema e, portanto, era local de referência do serviço que a Secretaria da Agricultura prestava pro indivíduo, pra sociedade, além do Agronômico de Campinas, então era isso, e o Agronômico de Campinas tinha que estar inclusive atento pra suprir tecnicamente essas pessoas. E eu disse: “Se essa é a face da Secretaria com o seu público, com a sociedade, eu quero saber como é que a sociedade julga isso, que serviço ela tá recebendo”. O pessoal muito surpreso, uma coisa meio estranha e tal, e eu falei: “Vamos fazer assim, vamos pegar uma empresa que faz pesquisa de opinião e eu quero soltá-la pra falar com o consumidor do produto da Secretaria da Agricultura”. Foi muito curioso, porque o dia logo depois que eu tomei posse, o velho Frias com quem eu me dava muito bem, nós nos gostávamos bastante e tal, conversávamos bastante, me convidou pra almoçar e me disse: “Gilberto, olha, eu vou te contar uma historinha que talvez te ajude”. Ele era muito duro, muito franco, ele me disse: “Eu tenho um sítiozinho lá em Monteiro Lobato, na subida ali pra Campos do Jordão, onde eu cultivo algumas coisas, passo o fim de semana lá e tal, e eu vou te contar um episódio interessante. Um dia eu cheguei lá e o meu administrador falou ‘Tal planta lá que a gente planta aqui, uma coisa qualquer, tá com um probleminha, um bichinho na folha e tal, nós precisamos tomar uma providência, o que a gente faz?’”. Eu disse: “Tem uma Casa da Lavoura aqui em Monteiro Lobato?” “Tem.”, “Então, vamos lá”. Era uma sexta-feira ao meio-dia, o gerente da Casa da Lavoura estava lendo um jornal com a sua bota em cima da mesa e: “Pois não?”. Muito calmo, muito indolente, disse o Frias: “Temos lá um probleminha.”, disse o Frias, que não se identificou: “Eu sou um agricultor da região, tenho um problema e tal e eu queria a sua ajuda.”, ele olhou e falou assim: “Sexta-feira, meio-dia.” “Não, eu preciso da sua ajuda”. Conversa foi, conversa vai, entrou um leitãozinho na história não sei como e não sei, foram. No caminho ele pegou e disse pro sujeito: “Escuta, o meu problema é o seguinte: eu estou aqui com um probleminha na folha, é assim, assim, assim.” “Olha, eu tive um negócio desse lá na plantaçãozinha que eu tenho aqui.”, ele falou “O que você fez?” “Falei com o fulaninho lá, que tem um negócio, funciona muito bem.”. Brecou o jipe na hora e disse: “Vou lhe levar de volta e vou buscar o fulaninho, que é quem entende desse assunto.” Então, na primeira reunião da diretoria da Secretaria da Agricultura eu contei essa história, pra escândalo geral, e aí encomendei a tal da pesquisa. Foi fantástico, descobriu-se entre outras coisas que havia uma porção de Casa da Lavoura em municípios que não tinham mais lavouras há muito tempo e que estavam lá porque tinha uma estrutura, o fulaninho ao mesmo tempo tinha lá um interesse na cidade, um postinho de gasolina, uma coisa qualquer. E então, esse olhar diferenciado pra coisa pública foi uma experiência interessante, poder fazer isso como um experimento de avaliação crítica e, eventualmente, uma ou outra remodelação e tal, foi uma experiência muito positiva.
MOTIVAÇÃO PARA A PRODUÇÃO INTELECTUAL E RESPONSABILIDADE SOCIAL
A minha motocicleta stricto sensu eram aquelas Harley Davidson, que os policias rodoviários daquela época, da região de Pirassununga tinham, que eram motos maravilhosas que tinha um selim de couro, e que o irmão ativo deste meu primo que era muito amigo dos policiais rodoviários lá de Pirassununga nos finais de semana as motos, esses policiais iam com as motos pra casa desse meu tio e lá ficavam falando de moto, e desmontando, e aquele cheiro do óleo e do couro do selim da bicicleta Harley Davidson, aquele couro polido porque os policiais se sentavam em cima com aquelas calças caqui, suarentas, então, ficava aquele couro tipo sela de cavalo mesmo, era isso, era a moto concreta. Agora a moto, o motor é curioso porque na realidade eu demorei muito tempo pra perceber que este impulso, muito claro no sentido de uma certa vocação social, vamos dizer assim, um gene, um pedaço do DNA que te diz assim: “De alguma forma você tem responsabilidade com o mundo.”, é um negócio complicadíssimo isso. Primeiro, que é expressão de potência, claro, segundo que pode expressar também um sentimento de culpa, no sentido de alguém que, por exemplo, como eu, apesar de ter todos esses valores tive uma fase profissional em que fui muito bem-sucedido e que, portanto, podia acumular condições financeiras pra poder depois na parte final da minha vida fazer o que eu faço hoje, me dedicando exclusivamente à questão intelectual. Mas por mais que eu analise essa questão, eu continuo achando que a única maneira que eu consigo conceber a vida é impregnando os gestos e as ações da gente de significados e os significados exigem valores. Tem uma discussão do [Norberto] Bobbio, naquele seu livro importante Destra e sinistra, esquerda e direita, que ele diz assim: “Afinal, neste mundo já global, o que define esquerda e direita? O que é essa caixa esquerda? É uma caixa vazia, o que tem aí?”. Ele conclui e diz o seguinte: “Eu acho que ainda há uma diferença nítida entre esquerda e direita. O homem de direita acha que a sociedade é como ela é, que as pessoas são como são porque nasceram assim e muito pouco há o que fazer. O homem de esquerda é aquele que olha pra sociedade e diz assim:”Ela poderia ser um pouco mais justa e eu acho que eu posso ter uma pequena contribuição a dar”. Este DNA, curioso, que eu evito permanentemente classificar como qualidade mas sim como característica, é o meu motor, quer dizer, quando eu resumo, digamos, a minha motivação que me leva à produção intelectual, livros, artigos, vem muito essa imagem do Bobbio, é quase uma necessidade imperiosa de se sentir alguém que pode ajudar a melhorar um pouco o mundo, mas é preciso transitar com muito cuidado sobre isso, porque eu acho que aí existe também uma questão egoica e de onipotência, por isso que eu faço o possível pra sempre me lembrar, isso não é qualidade, é característica, é o teu jeito de funcionar a partir da tua história e tal. De um lado é isso, do outro lado os afetos, as relações pessoais. Eu definitivamente não acredito na imortalidade, eu acho que imortalidade, vida eterna, no sentido que a sociedade encara pra mim não existe, mas por outro lado acredito profundamente na imortalidade no sentido de que quando você vai, ficam os teus gestos, as tuas relações, as tuas palavras, as pessoas com quem você conversou, a tua marca fica, isso é eterno, eterno e se transforma, se modifica, mas a tua inserção na história do mundo tá dada, tenha sido você o que você foi, um crápula, um santo, um heroi, um bandido, você teve relações, você teve ações que prejudicaram, ajudaram. Uma ação nunca é neutra, um pensamento nunca é neutro. Então, as marcas de cada um, de qualquer pessoa, são imortais, da pessoa mais simples, ela teve relações, ela interagiu, ela teve ações ou omissões e, portanto, ela marcou o mundo de alguma forma. Isto fica pra sempre como parte da história do mundo, da civilização, então a minha visão de imortalidade é essa. Talvez, por uma questão egoica eu gostaria de ser, de minhas marcas serem um pouco mais profundas do que de vários outros, e talvez por isso é que isso aparece como um peso do meu motor pessoal. Acho que impregnar de significado, porque nós estamos aqui conversando, trocando ideias sobre vida, impregnar de significado esta conversa, pra mim é uma característica, quer dizer, eu acho que esse é o motor que pra mim. Principalmente, a descoberta do pensamento novo, claramente há o exercício, é uma outra questão interessante que é um pouco a discussão da liberdade, alguém diz: “Pô, mas você tá falando de coisas teóricas, as pessoas têm liberdade pra isso, têm condições pra isso, têm tempo pra isso?”. O sujeito hoje de classe média baixa, classe média, chega em casa no fim do dia absolutamente exaurido, o que ele quer mesmo é ver uma novelinha da Globo, ver a Revista Caras, você não tá colocando exigências, eu acho que a gente perdeu a dimensão da liberdade. Liberdade não é poder comprar um novo celular, isso pra mim é ausência de liberdade, isso é armadilha. Quem discute isso muito bem é o velho Sartre, em A Idade da Razão, por exemplo, ele passa o livro todo discutindo com pequenos gestos os espaços de liberdade de cada um. Um dos heróis do livro tem um gato no apartamento dele, que ele enche a paciência, que ele herdou de não sei quem e ele não aguenta mais aquele gato, ele põe aquele gato numa gaiola de arame e passa o dia andando ao lado do Sena dizendo: “Jogo ou não jogo esse maldito gato no Sena?”, ele estava exercendo o seu espaço de liberdade, jogo ou não jogo. Uma amante dele, se eu me recordo bem, passa o livro todo discutindo: “Aborto ou não aborto?”. São dimensões de liberdade, todo indivíduo, na minha opinião, todo indivíduo tem a cada momento condições de pequenos atos de liberdade: “Faço assim ou faço assado? Escolho isso ou escolho aquilo?”. Às vezes, esses gestos são gestos muito simples, né, e que pra alguns significa a sua inserção, por exemplo, e Hélio conhece isso muito bem: “Compro este produto ou este? Porque eu gosto mais ou porque esse aqui, eventualmente, é feito de um produto não transgênico ou tem uma embalagem que é biodegradável?”. São pequenos gestos e eu acho que o ser humano pode ser ator o tempo todo, por mais que ele pense que ele possa ser escravo ou por mais que ele aja já como escravo, submetido, por exemplo, à uma mídia global que é absolutamente massacrante e condicionante da criação dos objetos de desejo, que é o que move um pouco a dinâmica da lógica do capitalismo. Se as pessoas pudessem perceber que os seus pequenos gestos podem ter significados e que pra isso ela precisa pensar e ter valores, ou construir valores, pra fazer do jeito A ou do jeito B, pra ir ao cinema ou ficar em casa conversando com seu filho, porque ele não tá bem hoje, gestos muito simples e tal, acho que as pessoas retomariam um pouco a sua inserção como cidadãos que constroem o mundo, sujeitos da história, então eu acho que isso é uma questão muito importante, ser sujeito da história não precisa ser Napoleão ou Obama, basta ser o indivíduo que reflete antes de fazer.
Penso muito como Freud, as religiões têm e sempre terão um papel fundamental na história humana, porque o viver é tão penoso, a existência é tão dura que os homens não aguentam fazer essa trajetória só, enfrentar a dureza da vida, do cotidiano, do sofrimento que esteve sempre presente na história humana, na minha opinião, que não é só minha, eu estou bem acompanhado, é a gênese das religiões. As religiões sempre tiveram uma função fundamental na civilização, que é dar suporte ao homem pra que ele aguente esta vida difícil, penosa, contraditória que é a vida humana. Pra mim um grau de liberdade que eu não sinto no direito de exigir de ninguém, porque esta é uma questão absolutamente pessoal, é conseguir enfrentar essas coisas da vida sem ter que inventar um Deus, aquele mesmo Deus que serve pra o indivíduo que não embarcou naquele avião que caiu agora pouco e dizia “Deus me salvou”, serve pra que se o filho dele tivesse morrido dizer “Foi porque Deus quis”. É o mesmo Deus, é o Deus que de alguma forma ampara o sofrimento profundo que é a vida de todos nós. Freud analisa isso pelo lado da loucura, quer dizer, pra maioria da humanidade este amparo é uma alternativa à loucura e, portanto, é precioso, é importantíssimo, é fundamental. Por outro lado, a religião pode ser uma prisão no momento em que você transfere o teu grau de liberdade pra uma crença que você não pode questionar e pra basicamente os deveres que esta crença lhe impõe, não porque você acredita nela, mas porque existe uma crença, isso quando esta crença não é usada pra manipulação, pra arrecadação financeira ou pra justificação de atos de extermínio, que a história está cheia, a começar das Cruzadas e vai aí pra frente. Nós conhecemos isso muito bem, quem estuda história. Na minha opinião, tira das religiões a suprema importância que elas têm pra sustentar a alma humana. Agora, não faz, na minha maneira de ver das religiões, vamos dizer, dogmas de fé que parem em pé, porque na minha maneira de ver, a maneira mais rica de enfrentar essa dor, esse sofrimento de viver e essa angústia de viver seria enfrentar sem necessariamente uma crença ou um deus nas costas. Exigir isso de alguém é muito, é muito, mas ter isso como uma colocação teórica e tentar isso, porque não? Agora meu maior, meu profundo respeito por aquelas pessoas que pra conseguir viver essa vida muito penosa, muito difícil, que é a vida de cada um de nós, as perdas, os sofrimentos, principalmente o acaso, o imprevisto. O Izuzquiza, que é um filósofo espanhol contemporâneo que eu gosto muito, diz o seguinte: “A gente pensa que a vida é construída sobre aquilo que a gente planeja. A vida é construída inteira sobre o acaso e sobre os imprevistos, de bom e de mal”. Nós estamos falando da minha família aqui. Eu conheci a minha mulher há 30 e tantos anos, 40 anos, e conheço há 40 e tantos anos porque naquela noite de sábado em Campinas, eu sozinho sem ter o que fazer, por causa disso não resisti a um apelo da minha mãe que me amolava, amolava, amolava porque tinha uma prima chata que se formava e ela queria a todo custo que eu fosse à formatura e eu não queria ir. Como eu não tinha absolutamente mais nada pra fazer aquela noite eu fui e conheci minha mulher, se eu não tivesse ido não a teria conhecido. Pronto, a minha história teria sido completamente diferente. A todo instante, estão acontecendo coisas que você não controla, que mudam sua vida inteira, só isso é um potencial de angústia e de sofrimento pra maioria das pessoas, que não podem controlar esses episódios que formam a vida, não é brincadeira. Então, meu maior respeito aqueles que acham que “Olha, eu preciso de um deus do lado porque ele me é fundamental e porque ele preenche na minha vida psíquica uma função primordial”. Mas eu tento operar justamente nesse interstício da liberdade, talvez por sadomasoquismo, porque permite que a gente sofra um pouco mais e tal, mas é um exercício que pra mim é fascinante e é estimulador.
FAMÍLIA
[Minha mulher e eu] somos dois campineiros, que de vez em quando se divertem de repente numa conversa do café da manhã ao soltarem uma frase qualquer muito acaipirada, na boa puxada dos erres do interior de São Paulo. Tem até aquela brincadeira do interior, interior, interior de São Paulo, em que o Chico vai ao barbeiro, não sei se vocês conhecem, ele termina a barba e diz assim: “Arco, tarco, verva”. Somos dois campineiros, nascemos em Campinas.
[A noite em que nos conhecemos] é negócio do acaso (risos), essa noite foi curiosa porque Margarida se aproximou de mim porque tinha um ex-namorado dela muito chato, que cismou de ir à formatura e que, portanto, ela achava interessante que ela pudesse ter alguém ali do lado que, digamos, a defendesse de tal forma daquele sujeito que queria tirá-la pra dançar a noite inteira. Mas ao mesmo tempo uma prima minha dava aula pra ela na escola normal e dizia pra ela que ela tinha um primo mais novo em São Paulo que estava em política universitária, que era um cara muito interessante, e as meninas da escola normal: “Ah, que cara interessante.”, então, no imaginário dela tinha também uma figura, que era eu, que de alguma forma naquele momento ela juntou, porque a tal dessa professora Maria Ermínia, minha prima, estava lá, que fez com que houvesse uma aproximação entre nós, de novo circunstâncias do acaso. Aí a gente começou o namoro, que como bom namoro teve imensas brigas durante todo ele, eu estudando em São Paulo, ela estudando em Campinas, né?
Ela fazia Pedagogia e eu estava terminando a minha faculdade. Me lembro que eu era um dos principais clientes da Aviação Cometa, que tinha o ônibus Campinas—São Paulo, que eu viajei tanto. Eu sempre muito cansado, porque era fim de semana, tinha estudado, feito política universitária, aquela confusão toda e eu me lembro que havia na entrada de Campinas uma pequena valeta e quando o ônibus passava nessa valeta eu acordava: “Já estamos chegando em Campinas”. E o ritual dos domingos à noite, as despedidas, pra voltar pra São Paulo e tal, e em suma, foi um período de namoro que se resolveu, quando eu recebi o convite pra ir pra aquele projeto lá no Sul e ela estava no último ano de faculdade. Ela nessa altura já tinha perdido os pais, havia uma experiência na família e a tia dela que morava com ela de alguma forma era o representante dessa experiência, uma das tias dela que não terminou a faculdade porque casou antes, isso era um trauma e eu disse pra ela: “Eu vou pra lá, mas eu vou pra lá se a gente se casar.”, e ela num ato de loucura disse: “Tá bem, eu vou, topo. Só que a condição é que você consiga uma transferência pra lá pro último ano de faculdade”. Ela se transferiu pra PUC [Pontifícia Universidade Católica], pro último ano, foi um período dificílimo, porque ela recém-casada tendo que cuidar da nossa casa, nosso pequeníssimo apartamento, mas ao mesmo tempo tendo que fazer as matérias do último ano de Pedagogia da PUC do Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, quatro ou cinco matérias de adaptação de currículo que foram exigidas. Então, ela tinha que fazer o dobro da carga pra poder se formar lá e se formou no Rio Grande do Sul em Pedagogia. Depois a gente veio pro Rio, onde ela ficou grávida do nosso primeiro filho. Aí ficou imaginando fazer um mestrado no Rio, que ela acabou não fazendo por conta da gravidez. Viemos pra São Paulo, tivemos três filhos e ela manteve sempre uma carreira semi-acadêmica, porque fez várias especializações em psicopedagogia, em psicodrama, até finalmente há uns dez anos atrás ela foi fazer formação de Psicanálise, que é o que hoje ela faz, terminou há uns dez anos. Hoje ela é psicanalista e, ao mesmo tempo, participa lá do Cedes [Centro de Estudos Educação e Sociedade, da Unicamp] em várias coisas institucionais.
Ela é Margarida Azevedo Dupas, família de um lado Azevedo Pinheiro, família brasileira. Segundo documentação histórica, alguns bandeirantes, segundo lendas, até alguns índios, e do outro lado família suíça, de onde ela pegou parte fundamental da cultura familiar que é a comunidade suíça lá perto de Campinas. A mãe dela era filha de imigrantes suíços que se estabeleceram lá e teve uma influência muito grande da cultura suíça, tanto que até hoje ela fala uma corruptela exótica do dialeto suíço alemão que se desenvolveu na região de Campinas e que hoje os suíços não entendem, que é fantástico a mistura de português com alemão, com o dialeto suíço da região da família dela.
Temos um filho mais velho de 38 anos. São todos uspianos, todos formados na USP [Universidade de São Paulo], portanto, tenho muito a dever a USP, que hoje eu tenho uma atividade já há 12 anos que me consome um tempo importante da minha vida e tal. Meu filho mais velho fez Biologia, quando era pequeno e estudava aqui no Vera Cruz chegou um dia em casa e disse: “Mãe, eu quero fazer inglês.”, era uma optativa que tinha começado a surgir, era muito pequeno, tinha sete anos. A Margarida falou: “Espera um pouquinho.” “Não, eu quero fazer inglês.”. Ela disse: “E por que você quer fazer inglês?” e ele disse: “Porque um dia eu quero ser astronauta (risos)”. História estranha, né? O mais próximo que ele conseguiu foi formar-se em Biologia pela USP e depois fazer mestrado na Holanda, em satélite de radar pra meio ambiente, que é uma aproximação com o espaço. Depois de ter passado um tempo no Sivam [Sistema de Vigilância da Amazônia] lá em Manaus e hoje está no Ibama, no laboratório de geoprocessamento. De alguma forma, ele conseguiu uma pequena carreira espacial, que é a interpretação dos satélites e tal. [Este é o] Claudio. A nossa filha do meio, a Mariana, é arquiteta, também formada pela USP, que se especializou em Design, hoje ela é designer. Todos os três adoram fotografia, são fotógrafos semi-profissionais, e ela gosta muito de arte, hoje ela produz coisas próprias, teve alguns objetos dela premiados em algumas exposições de fora e tal. Hoje ela trabalha numa galeria de arte que representa vários pintores nacionais. A mais nova, Ana Luísa, se formou na ECA [Escola de Comunicações e Artes] em Artes Plásticas, mas o que ela gosta mesmo de fazer é dança, ela participa de vários espetáculos de dança, é dançarina e também fotógrafa. Casou-se com o Pedro, que é o marido dela e se formou em Direção de Cinema na ECA também, então eles vivem esse mundo mais de teatro, dança. Como na realidade nós sempre valorizamos muito o lado da arte, de alguma forma isso talvez possa ter ajudado um pouco nesses caminhos, de todos serem excelentes fotógrafos, profissionais ou semi-profissionais. Eu me lembro de um amigo que morava em Nova Iorque, intelectual, fascinado por arte e tal, e ele teve um filho. Um dia eu estava visitando ele e depois nos desencontramos, um dia eu o encontrei num museu em Washington, e ele estava com o seu filho de poucos meses num carrinho na frente de um Renoir e contando pra ele sobre o quadro. O moleque estava, sei lá (risos), mordendo o dedo e ele disse: “Alguma coisa há de ficar”. Essas coisas funcionam um pouco assim, né?
TRABALHO NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Cada vez mais foi ficando claro pra mim que o que me interessava mesmo era tentar produzir uma reflexão mais organizada sobre esse mundo global, nas suas vertentes mais política, social, econômica, efeitos desse mundo global especialmente, os efeitos sobre as pessoas do chamado modelo único. Até a queda do Muro de Berlim nós vivíamos uma utopia curiosa, um estudioso disse isso num artigo que eu estava selecionando outro dia pra fazer os principais artigos dos 16 anos da Revista Política Externa, que eu sou editor. É um artigo de uns 15 anos atrás em que ele dizia que um pouco antes do muro tanto o capitalismo quanto o comunismo tinham a seguinte vantagem em dizer o seguinte: “Quando eu for o vencedor, implantarei a minha utopia”. Como não havia um vencedor ninguém tinha a responsabilidade de implantar a sua utopia, porque tinha um outro atrapalhando. No momento em que o Muro caiu acabou essa brincadeira, e o capitalismo global teria teoricamente que mostrar que a lógica do capital e dos mercados realmente causaria uma promoção geral da humanidade, do meio ambiente, do equilíbrio. Como tá longe disso, evidentemente, a lógica global e o impacto dela na civilização, nós caminhamos pra impasses muito sérios, a questão ambiental é tipicamente uma delas e talvez a mais grave de todas. Nós caminhamos pra impasses definitivos nessa área, porque a lógica do sistema econômico, a própria lógica dele que é a nossa vitalidade, porque é o único sistema disponível, e temos que ser práticos, né? É a própria lógica que gera fundamentalmente o impasse ambiental, o sucateamento contínuo dos produtos pra poder ser renovado por outros, a questão da incorporação da China dentro desse processo, a primazia ao lucro, tudo isso é que leva a isso. E então, na realidade, sobrou ao capitalismo global dizer: “Qual é a alternativa? Como não há alternativa, eu sou a alternativa”. Essa é uma questão perigosa porque, vamos dizer, elimina o espaço da reflexão critica e a utopia fundamental, a utopia fundamental existe em reflexões interessantes. Eu escrevi um artigo sobre utopia recentemente em que dizia, parafraseando um poeta importante eu dizia: “Pra que serve a utopia? Cada vez que você caminha um passo ela se afasta um passo. Caminha mais um passo, ela se afasta outro passo. Pra que serve a utopia? A utopia serve justamente pra caminhar, sem ela não se caminha”. Nós não temos mais utopia, bem ou mal, com todas as idiossincrasias e as tragédias do regime comunista que já existiam quando a gente ainda não sabia, ele fazia essa função tão preciosa, preciosíssima e serviu de barganha para muitas questões de equilíbrio também de poder, hoje nós não temos mais. Então a minha produção intelectual veio muito pra tentar preencher esse espaço, o intelectual como desconstrutor do discurso hegemônico e a tentativa de ver os efeitos desse discurso único, dessa civilização de um modelo só. Foi aí que eu voltei à universidade, fundei um grupo de reflexão sobre questões internacionais na USP há 12 anos, o Gacint, o Grupo de Conjuntura Internacional, que esteve primeiro no Instituto de Estudos Avançados, do qual eu fazia parte do conselho. Depois foi pra Reitoria e hoje está no Instituto de Relações Internacionais. Eu coordeno esse grupo já há 12 anos, e fundei um Instituto, o Instituto de Estudos Econômicos Internacionais, que o Hélio conhece muito bem, e que, também com o objetivo de fazer pesquisas, aí pesquisas de natureza política, social e econômica sobre o mundo global, sobre as questões internacionais e tal.
LITERATURA: EXPERIÊNCIAS COMO AUTOR
Os meus livros e mais esses dois projetos, entre palestras, conferências foi como eu organizei a minha vida nesses últimos 12 anos e é onde eu quero ficar, mas algumas aventuras aí na literatura, que são um romance que eu escrevi há um tempo atrás e um outro que está saindo agora, que aí exige um outro pedaço da cabeça, é uma experiência interessante. A literatura exige um outro pedaço, é completamente diferente, e é por isso que o processo de criação literária pra mim é uma coisa tão longa. Meu primeiro romance foi há 15 anos atrás, provavelmente, e o outro está saindo agora, porque sobre os ensaios, sobre essa reflexão e tal, aí eu me situo, nado de braçada e tal, mas a literatura é uma coisa complexa, porque na literatura ou você tem a competência e a profundidade psicológica pra criar personagens verossímeis, que é uma alternativa, ou você tem que olhar pra dentro, e olhar pra si próprio, que é outra alternativa, ambas difíceis, mas uma delas, ou de preferência a combinação das duas, você tem que fazer. Isso exige um outro pedaço da cabeça que pra mim é muito fascinante, muito emocionante, é um outro pedaço que eu de vez em quando tento cultivar.
REFLEXÕES SOBRE O SISTEMA CAPITALISTA E O FUTURO DA SOCIEDADE
Eu acredito que eu não me julgo pessimista, eu me julgo realista, eu acredito que, primeiro, houve claramente um “downgrade” civilizacional. A nossa geração entrega pra geração de nossos filhos, na minha opinião, um mundo pior do que recebeu. Eu acho que isto é uma questão pra mim muito grave, muito complexa, de certo modo a nossa geração fracassou. Veja o drama do emprego hoje, veja o que é a possibilidade de um jovem hoje, eu vejo pelos meus filhos, por todos, a possibilidade de um jovem hoje ter um emprego digno, o que significa um emprego com carteira assinada, com horário de descanso, com a internet ou o celular não atropelando seus fins de semana senão você pode perder o emprego, e um emprego que tenha alguma capacidade de ter uma produção criativa. O emprego no mundo hoje que mais, digamos, cresce pros jovens é o motoboy e operador de telemarketing, e os fritadores de batata no Mcdonald’s. Estes são os empregos que mais crescem no mundo hoje, e aí eu tenho as estatísticas todas, isso é algo que eu discuto. O emprego digno, a aposentadoria digna, tudo isso se foi, e eu acho isso uma questão muito complexa, e a gente discute muito isso no Instituto, um dos nossos projetos sobre a questão ambiental é quais são os cenários futuros possíveis desta clara progressão da degradação ambiental, que pode levar definitivamente, embora a lógica do capital a todo o momento queira desqualificar esse discurso. Há um impasse civilizacional que significa cortar do futuro da humanidade algumas gerações porque a terra se tornou inabitável, quais são os cenários? O primeiro cenário é o sistema único, que é a lógica do capital, ter suficiente autocrítica, pra fazer uma autorregulação, ela por si própria começar de fato a se preocupar em mudar a lógica da produção, liquidar a primazia do automóvel. Você vê hoje o discurso dos presidentes das empresas automobilísticas, eles dizem que só sobreviverá daqui a dez anos as empresas automobilísticas que forem capazes de produzir o carro de dois mil dólares, primazia absoluta do transporte individual, isso é o caminho pro caos. Terá o capitalismo global o suficiente pra fazer sua autorregulação e mudar sua própria lógica de produção? É uma primeira questão. Se não souber, terá o que sobrou de Estado e de instituições públicas autoridade pra regular o setor privado que hoje financia, basicamente, boa parte do setor público, da própria universidade, com seus projetos de pesquisa dentro das suas definições tecnológicas? Se não tiver, existe uma terceira alternativa que vários cientistas sérios hoje, por incrível que pareça, perseguem. E é justamente a chamada civilização pós-humana, o homem robô, pleno de próteses com nanotecnologia e próteses as mais variadas que lhe permitirão, entre outras coisas, fazer as viagens espaciais, e serão poucos que poderão fazer...
Acho que [as organizações da sociedade civil podem participar dessa regulação], mas justamente como o chamado setor público, e as instituições, na minha opinião, só terão legitimidade e força pra fazer uma regulação tão difícil se forem legitimadas justamente pela sociedade civil que elas representam. Portanto, na minha opinião, o segundo cenário inclui necessariamente pra ser viável que a sociedade civil ativa, crítica, reflexiva, esteja suportando processos políticos que gerem instituições e governos que tenham solidez o suficiente pra enfrentar uma lógica de poder que é muito complexa que precisa ser, digamos, ser enfrentada pra que a regulação, se tiver que ser uma regulação pública ocorra. E o terceiro cenário que, por incrível que pareça, alguns cientistas sérios e respeitáveis consideram, é justamente de caminharmos pra uma geração de homens robôs, a discussão das nanotecnologias são muito típicas disso, com próteses complexas que lhes permitam ter resistência suficiente pra poder empreender as viagens espaciais e buscar um outro planeta pra poluir, deixando aqui evidentemente, porque isso não será uma solução pra todos, provavelmente mais um processo de, digamos, seleção natural daqueles que não tiverem esta competência. Alguns desses cientistas dizem até que isto é um dever civilizatório, porque na realidade o homem tem o dever de se perenizar no mundo, se não puder ser na Terra que seja em outro planeta, enquanto isso nós matamos o nosso único planeta azul aqui pelo exercício de uma lógica de um sistema econômico único, que pra garantir a ascensão de chineses, por exemplo, que com toda a justiça diz: “Agora é chegada a minha vez de melhorar um pouco a minha vida.”, é obrigado com os métodos de produção que estão aí, que a China aderiu pra ser um sócio fundamental deste modelo, gerar uma exaustão dos recursos naturais, um aquecimento global e uma geração de resíduos químicos, que entre outras coisas geram epidemias clássicas de doenças pós-globais como, por exemplo, os cânceres. Os cânceres hoje são epidemias sistêmicas e, vejam só que coisa interessante, causadas muitas vezes por essas tecnologias poluentes, que estão aí nos pesticidas, nos alimentos contaminados, no ar que se respira, que daqui a pouco vai ter que ser vendido engarrafado, como a água já é. Essa mesma tecnologia que provoca uma boa parte dessas doenças ao mesmo tempo prolonga a vida das pessoas e diz: “Posso saber lidar com elas”. Há um custo extremamente elevado que é o custo não só de velhice de indivíduos, que tem a sua vida aumentada com o sofrimento perene de uma doença crônica que precisa ser tratada, ou com programas de aposentadoria cada vez mais restritos de um lado, ou com saídas tecnológicas pro prolongamento da vida, que significa custos absolutamente incompatíveis com os sistemas públicos universais de saúde. Um tratamento de câncer avançado custa dez, 12 mil reais por mês, é um impasse claro pros sistemas públicos em geral. Então eu diria que este terceiro cenário é um cenário extremamente complexo e eu acho que meu dever transformado em motivação é de, entre outras pessoas que pensam assim, não deixar que o discurso único fique, provocar algum distúrbio, alguma pequena reflexão crítica pra eventualmente, digamos, ajudar na direção que me parece uma direção mais propícia a um mundo que seja, senão mais justo, pelo menos perene no sentido reducionista dos princípios kantianos, que é o que diz o Hans Jonas, por exemplo, um filósofo alemão: “Já que não podemos ter objetivos maiores, pelo menos que a nossa obrigação seja manter o mundo habitável pra que as gerações futuras possam exercer a sua vida, o seu privilégio de vida e possa eventualmente mudar pra um mundo melhor”. É o chamado Princípio da Responsabilidade do Hans Jonas, já desejamos muito mais no passado, hoje desejamos apenas que consigamos manter o mundo habitável, digamos aqui entre nós, é um objetivo muito pequeno, muito modesto, não é algum objetivo do qual uma civilização industrial pós-global capaz de gerar produtos eletrônicos e tecnologias com esta, digamos, espantosa inovação, possa se orgulhar, é muito pouco. Eu acho que esta contracorrente do discurso hegemônico é hoje alguma coisa que me motiva bastante, é a minha motivação.
Eu prefiro dizer que sinto que é minha obrigação tentar, não sei, quer dizer, nós não estamos destinados, a civilização humana não está destinada a um patamar superior de liberdade, de autonomia, desenvolvimento individual. Ela não esta destinada a nada, na realidade os graus de liberdade são muito maiores do que se imagina, e a gente não percebe. Quer dizer, você pega os vetores tecnológicos hoje que geram os produtos de consumo que estão aí, em algum momento a sociedade foi consultada pra dizer: “É fundamental o celular, o telefone celular?” Há uma diferença qualitativa fundamental, qualitativa, entre esta fase em que todos se comunicam obsessivamente e que terminado o pouso de um avião ou a luz de um cinema acendendo todos obsessivamente abrem seus celulares pra dizer: “Quem no mundo quis falar comigo nestes últimos 30 minutos?”, tem alguma importância efetiva nisso? Isso muda de qualidade o ser humano e a relação dele com relação à situação anterior, bem mais anterior, em que você se comunicava magnificamente por cartas que precisavam ser escritas e que hoje são acervos de troca de pensamento, e que demoravam cinco dias pra chegar? Há uma dimensão qualitativa fundamental na qualidade do ser humano? Eu não acredito. Há recursos tecnológicos que mudaram a maneira pelas quais as pessoas operam, veja o computador e a escrita, Freud escreveu toda a sua obra à mão, todos os grandes escritores do século passado na maioria deles também. Computador ajuda? Claro que ajuda, ajuda, ajuda também a copiar mais, ajuda também a diminuir a qualidade do pensamento original, mas ele também ajuda, claro, eu também uso computador, até porque se não usasse seria inviável hoje em dia, o tempo necessário pra um produção intelectual, mas muda a qualidade do ser humano? Não. No entanto, a sociedade civil nunca é consultada pra dizer: “Escuta, o vetor tecnológico de produção deve ir por aí ou deve ir por aqui?”, hoje a tecnologia é absolutamente disponível pra ter transporte de massa de alta qualidade e pra ter transportes individuais moderados e com outros recursos que não o petróleo, não foi por aí por causa de lógicas de outra natureza, sistêmicas que são muito profundas, típico da TV de plasma, tela plana, essas coisas todas. Quer dizer, e a geração de detritos que contaminam brutamente o meio ambiente a partir daí é terrível, tem estatísticas inúmeras em nossas pesquisas, o cidadão europeu hoje descarta quilos de produtos eletrônicos por ano em uma quantidade imensa, crescente em produção geométrica, todos eles causando profunda poluição ambiental, aqui e na exaustão dos recursos naturais lá embaixo, na origem, recursos que são em grande parte produzidos nos países da periferia. O Brasil é hoje um dos maiores exportadores de água do mundo, porque o produto que ele exporta, que são commodities, exige uma quantidade imensa de água que a Europa não tem. Deveríamos reservar essa água pra nós, preservá-la pro futuro? É uma discussão que não se coloca, não se coloca. É preciso produzir mais, o PIB precisa crescer. Essa reflexão não se faz, então eu acho que é obrigação minha, por exemplo, insistir em fazê-las, isto é uma motivação, é uma motivação um pouco onipotente, razoavelmente onipotente, mas como isso simplesmente significa uma produção intelectual que tá aí, alguns livros, use quem quer, eu acho que faço a minha parte.
REFLEXÃO SOBRE A PRÓPRIA TRAJETÓRIA
Em cada momento você toma decisões, aqueles graus de liberdade sartrianos que eu estava colocando, por ação ou por omissão, essas decisões mudam a sua vida de uma forma em que a etapa seguinte da sua vida só é possível porque essas decisões ou omissões acabaram sendo tomadas. Isso constrói uma cadeia tão complexa que na minha maneira de ver, olhar pra trás e dizer assim “O que eu faria diferente?”, é uma pergunta pra mim sem resposta porque, por exemplo, eu poderia não ter ido aquele baile de formatura, era uma ação, a minha vida teria sido completamente diferente. Eu poderia ter continuado no Ipea em 1970 e não vir aqui pro setor privado em São Paulo, poderia, era uma possibilidade, e eu me pergunto “Teria sido melhor?”, e é essa a sua questão. Teria sido melhor, por exemplo, e eu digo: “Não sei responder”. Teria, eu sei que teria sido diferente, mas eu não tenho ideia de onde aquilo teria terminado. E então, olhando por esse prisma eu diria que de alguma forma, até porque não há outra maneira, eu olho pra aquilo que foi a minha vida e digo assim: “Tô satisfeito com ela.”. Ela podia ter sido de mil outras maneiras diferentes e ainda pode ser, mas eu acredito que a cadeia de situações, de acasos, de imprevistos e de ações e omissões minhas, que geraram a vida que eu tive, me permitiu uma maneira de ser hoje que eu gosto, quer dizer, o que eu faço hoje, e aí é um ponto importante, o que eu faço hoje me dá prazer, eu acho que isso é um imenso privilégio, poder fazer o que me dá prazer num mundo como esse é um enorme, massacrante privilégio. É muito estranho, é muito arrogante, talvez, dizer: “Não faria nada diferente.”, eu diria a você que poderia ter feito mil coisas diferentes, não fiz na maioria das vezes por acaso e em algumas vezes por convicção ou por valores, na maioria das vezes por circunstâncias. Cada uma dessas ações, dessas situações diferentes, dessas decisões diferentes teria conduzido a uma vida diferente. Não sei avaliar de que forma seria, muito menos se seria melhor ou pior, o que eu digo é que o resultado disso tudo gerou uma situação, que hoje me agrada. Me dá prazer e que imenso privilégio poder escrever sobre as coisas que eu considero que valham a pena, poder ter esse tipo de reflexão que a gente tá tendo aqui, não precisar depender de um emprego que me obriga a determinadas rotinas e, principalmente, me obriga a determinadas concessões, que imenso privilégio. Chega as concessões que a gente tem que fazer todo dia, em função de uma porção de coisas, então é uma forma um pouco indireta de te responder, mas é a forma que eu encontro.
A primeira questão é saber o que é ser fiel a si próprio. Eu diria que na minha maneira de pensar ser fiel a si próprio significa decidir de acordo com convicções que você conseguiu construir o suficiente pra que ela te iluminem, né? É, muitas vezes eu decidi com poucas convicções porque não as tinha, algumas vezes decidi contrário às minhas convicções, felizmente não foram tantas, não acho que foram muitas, mas decidi frequentemente. Até porque as convicções, os valores ou são flexíveis, mutáveis, incompletos ou se congelam em dogmas e deixam de ser valores. O valor, na minha maneira de ver, é uma coisa profundamente dinâmica, ele te dá um senso de direção com o qual você se sente mais ou menos satisfeito se agir nesse caminho, mas não dá convicção, eu acho que a convicção é parte da crença, e a crença é parte do dogma, enquanto que o valor é uma construção interior, dinâmica, que muda a cada momento e que no máximo ilumina regiões de direção. Se você conseguir ir por ali, você se sente bem naquele momento.
SOBRE A ENTREVISTA
Como eu estava lhe dizendo um pouco antes, não é fácil, eu não sou um contador de causos, pra usar a linguagem caipira. Especialmente, quando falo de mim, é muito difícil falar de si próprio pra mim, é uma zona de pudor, eu prefiro falar de mim através das coisas que eu produzo, dos meus livros, dos meus artigos, nas minhas palestras. O meu, digamos, espaço interior, a minha intimidade é uma coisa normalmente protegida, então, esse tipo de entrevista mais intimista é um campo em que eu caminho com cuidado, o que eu posso dizer é que no meu ponto de vista, apesar disso, eu acho que caminhei com um relativo prazer e foi uma experiência interessante.Recolher