P - Dona Darcy, vamos começar a entrevista. Vou pedir para você falar o seu nome, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome é Darcy, inicialmente Darcy Moreira Prates. Depois que eu me casei passei a me chamar Darcy Moreira Prates dos Santos Prado Marcondes. Eu me chamo Darcy porque eu nasci no dia 10 de novembro de 1937, às 10 e 15 da manhã. Neste horário, Getúlio Vargas, que era então Presidente da República, estava dando um Golpe de Estado, ele tava fazendo a Nova Constituição, e tava sendo ditador. Como meu pai era delegado de polícia e eu morava numa cidade, eu estava em Marília, mas nós morávamos numa cidade chamada Cafelândia. Ele me deu o nome de Darcy porque na verdade ele esperava um homem, e em homenagem a Darcy Vargas, a esposa do Getúlio, que foi a fundadora do Voluntariado Brasileiro. Então meu nome é em homenagem a Darcy Vargas, e eu me orgulho muito disso porque eu sei que Getúlio foi um grande estadista.
P - Tá bem. Agora você falou nos seus pais, eu vou pedir para você falar também o nome dos seus pais. Do seu pai e da sua mãe, por favor.
R - Meu pai é Apio Moreira Prates e minha mãe é Ida Maniscalco Prates.
P - E que atividade seus pais faziam? O que eles faziam?
R - Meu pai era delegado de polícia, de carreira, e minha mãe era dona de casa.
P - Tá ok. A senhora disse então que nasceu em...
R - Marília.
P - Perdão, Marília. Só que vocês não viviam em Marília, certo?
R - Não, não.
P - Então eu vou pedir para você falar um pouco sobre o lugar onde vocês viviam, descrever a casa de vocês, como era a cidade.
R - Eu descrever a casa fica meio complicado porque que eu me recordo, eu morei em oito, nove cidades. Porque naquela época o delegado de polícia era transferido muito facilmente, então tinha cidades que ele ficava um ano, outra duas, outra três, dependia muito da política, porque havia muita política em relação aos cargos públicos: delegado de polícia, juiz, promotor... Então eu me recordo de algumas cidades, não todas. Eu me recordo de Cachoeira Paulista, que é aqui no Vale do Paraíba; eu devia ter quatro, cinco anos, eu me lembro bem da casa, me lembro bem do local, porque a gente alugava a casa, então era uma casa muito grande, muito gostosa, que tinha um bosque, tinha muitas árvores, talvez daí seja a minha ligação com a natureza, essa coisa da infância. Depois eu me lembro de uma outra cidade, chamada Cafelândia, uma cidade muito interessante, que é dividida em duas, ela tem uma ponte no meio: de um lado ela é Cafelândia, do outro lado é Pena. (risos) Então, em Cafelândia ficava a escola, colégio de freiras, a delegacia, a Prefeitura, e Pena era a parte do comércio, onde eu vivi uma infância muito gostosa, que eu andava descalça pela rua, pegava rabeira de carroça... eu era muito moleca (risos). Eu não tinha irmão homem, eu tinha só irmã, na época uma irmã mais velha, mas eu era o homem da casa, acho que talvez por isso meu nome é Darcy, que é para os dois sexos, e essa coisa de eu ser moleca. Me lembro de uma outra cidade chamada Assis, que é no caminho do Paraná, uma cidade de terra vermelha, onde eu fiz o... na época chamava curso preparatório para o ginásio, que eu ia à pé pra escola, também é uma fase muito gostosa da minha infância. Depois eu fui pra uma cidade chamada Piracicaba, onde eu fiz uma parte mais do preparatório e onde eu ingressei no ginásio em colégio de freira. De lá eu fui para Rio Claro, uma cidade pequenininha, (risos) onde eu estudei num colégio alemão, chamado ginásio Koelle, muito difícil para mim porque eu sempre vim de colégio de freira e entrei naquele regime rígido, alemão, me lembro do diretor da escola que era o professor de Geografia, e dava aula, metade em alemão, e eu não entendia nada, fui aprender alemão... Tive muita dificuldade porque era declinação, isso eu me lembro bem. De Rio Claro eu fui pra Bauru, onde eu passei minha adolescência, dos 12, 13 anos, até os meus 15anos. Foi muito bom porque foi onde eu comecei a ficar mocinha (risos), freqüentava clube, tive o primeiro namorado, foi uma fase muito boa. Moramos em outras cidades que eu não me lembro agora: Joanópolis, Monte Azul Paulista, umas outras que eu não me lembro. Mas a mudança de Bauru para São Paulo foi um choque cultural, de vida porque eu que sempre estudei em colégio de freira, de repente me vi estudando no Colégio Rio Branco, num ambiente completamente diferente do meu. No interior eu era filha do delegado, uma das autoridades da cidade. Aqui em São Paulo eu era mais uma no meio da multidão. Foi uma fase difícil. E aí continuei minha vida aqui em São Paulo, terminei o colegial. Daí meu pai faleceu. Daí eu fui trabalhar e é uma outra etapa da minha vida, também diferente.
P - Então vamos retomar um pouquinho, você falou da sua irmã, eu vou pedir para você falar o nome dela. E quando ela nasce?
R - A minha irmã chama, chamava-se, ela já faleceu, Gilka Moreira Prates. Depois se casou, ficou Moreira Prates da Silva Matos. Ela era advogada; ela faleceu em 1980, com 45 anos, muito moça, de um câncer. Era uma pessoa muito inteligente. Como meu pai também morreu muito cedo, ele morreu em 1957, com 48 anos, ela praticamente assumiu a casa. Eu na época tinha 18 para 19. E foi uma advogada brilhante. E eu tenho uma outra irmã, caçula, quer dizer, caçula com dez anos menos do que eu, que hoje está com 60 anos (risos). Ela nasceu em Assis, e está viva até hoje; ela estudou Sociologia na USP, mas optou por ser professora, ela foi professora a vida toda. Hoje está aposentada.
P - Você falou um pouco das suas brincadeiras de criança, da questão do nome Darcy. Eu vou te perguntar: como é que foi essa infância, com todas essas mudanças? Que brincadeiras, porque os amigos, você não acabou ficando em uma cidade só, mas isso também trouxe um aprendizado muito grande, trouxe uma diversidade, né?
R - Eu sempre fui moleca de subir em árvore, eu jogava bolinha de gude. Tinha uma brincadeira que era um aro de bicicleta, que você empurrava com um araminho, eu brinquei com todos os brinquedos que um menino brinca. Porque eu tinha dois primos e eu brincava muito com eles. Eles moravam em Marília e eu passava todas as minhas férias lá. Mas na verdade, eu pulei corda, peteca, tive muitas bonecas também, eu tive acho que os dois lados, o masculino e o feminino bem vivos na minha infância. Agora, eu tive um problema que vim a descobrir mais tarde, eu fiz muitas terapias, e eu descobri que eu tinha dificuldade com vínculo. Isso decorrente do fato de eu estar mudando sempre, e naquela época os pais, talvez por falta de psicologia porque era, ou era outro tempo mesmo, eles não explicavam para a criança: “Olha, nós vamos mudar porque papai foi transferido de cidade...” Não De repente eu via a minha casa desmontada. E às vezes, as mudanças como eram de cidade do interior, eram feitas de trem. Então eu viajei muito de trem, e tive outra vivência, né? Que não é que foi mais difícil, porque aqui em São Paulo você viajava de avião. Quando eu ia de São Paulo pra Marília, meus avós moravam lá, eu ia de avião, e no interior, nessas mudanças todas, era tudo de trem. Então viajei muito de trem. Eu gostava, era uma novidade. Mas mais tarde eu vim a perceber que eu tinha dificuldade com vínculo. Que eu deixava os amigos, então, foi difícil.
P - E você falou agora dessa questão da viagem do trem, e é uma coisa marcante, muitos depoentes falam sobre isso. Fala um pouco pra gente sobre a viagem do trem, qual é a experiência.
R - Olha, as viagens de trem eram muito interessantes. Eu me lembro bem que naquele tempo os trens não eram tão modernos, então, os bancos eram de madeira, o trem era uma parte dele de madeira também, e ele ia pingando nas estações. E havia pessoas que passavam dentro do trem vendendo biscoito, refresco, e tinha muito viajante, naquela época tinha muito viajante que levava mercadorias para vender no interior. Ah, e de vez em quando havia os acidentes, caía alguma ponte, então a gente fazia uma coisa que chamava baldeação: todo mundo descia do trem (risos), atravessava às vezes por debaixo da ponte, que era uma ponte mesmo, e andava até pegar outro trem do outro lado. Então isso é uma coisa que me marcou muito, que eu me lembro bem, da gente, sabe, aquela coisa das malas, da gente andando à pé para pegar o trem em outro lugar. E havia também a baldeação própria, que às vezes, numa determinada cidade, você descia de um trem e pegava outro. É, são coisas interessantes mas que criam uma certa insegurança, eu acho, que pra criança, que não sabe o que está acontecendo, porque ela vai descobrindo com o tempo, né?
P - E pelo que eu entendi então, em Marília você tem um repouso, é onde você tem os seus avós e tem seus primos, é onde você tem uma raiz forte, em Marília.
R - É, exatamente, eu acho que Marília foi o que realmente marcou a minha infância nessa parte, porque eu passava todo Natal, Carnaval. Eu sempre gostei muito de Carnaval, minha mãe levava a gente fantasiada, naquele tempo as crianças se fantasiavam nos bailes de carnaval. E o Carnaval era com confete, serpentina, sabe, não tinha mais corso. O corso era do tempo da minha mãe, eu ouvia falar e via fotos. Mas tinha um Carnaval bem ativo pra criançada. Eu me fantasiei muito em de baiana, de havaiana (risos), e Marília realmente foi aonde eu finquei meus pés, porque foi onde eu nasci e foi onde meus avôs viveram. E meus tios, padrinhos, primos...
P - E você conviveu bastante com os seus avós, então?
R - Bastante, bastante. Depois a minha avó faleceu, depois de muitos anos, bem velhinha. Meu avô veio morar com a gente em Bauru. Ele morou um tempo com a gente até ele falecer.
P - Está bem. Eu vou entrar agora um pouco na fase das escolas. Você falou pra gente que desde pequena ingressa em escolas de freira?
R - Colégio de freira.
P - E como é isso, a experiência? O colégio de freira, como é o colégio de freira?
R - Eu não gostava muito. Por dois motivos: primeiro porque eu sempre fui meio rebelde. E segundo, porque quando meu pai era delegado de polícia, e as freiras tinham uma ligação, porque tinham carta de motorista, isso e aquilo, não sei o quê, elas me protegiam um pouco. E como eu era muito arteira, eu fazia muita arte com algumas amigas minhas, as minhas amigas eram castigadas e eu não Isso me criava uma coisa que eu não gostava, porque eu não queria ser diferente de ninguém. Mas, por força das circunstâncias eu era, entendeu? Então, eu me lembro muito bem em Bauru, a cidade que talvez tenha me marcado mais porque eu era adolescente. Uma vez nós pegamos uma tinta e pintamos toda a porta (risos). O colégio era grande, pintamos toda porta do colégio, escrevemos coisa, tipo, vamos dizer assim, como a molecada faz hoje...
P - Pichação?
R - Pichação Tipo pichação. Só que naquela época era outra coisa. Mas era um tipo pichação. As outras três, nós éramos quatro, as três foram suspensas, eu só fui chamada atenção. Em compensação eu me lembro doutra coisa: quando eu tinha meus 14, 15 anos, em Bauru ainda, eu fumava, e a gente fumava no toalete de uma confeitaria, de uniforme, a gente saía do colégio, que era de tarde, e ia para essa confeitaria tomar lanche, e a gente fumava no toalete. E a dona da confeitaria ligou pro meu pai, na delegacia, contando para ele que eu estava com mais algumas amigas fumando no banheiro, de uniforme. Esse dia eu apanhei de régua (risos) Uma régua que devia ter um metro.
P - E esse convívio com seu pai? Porque apesar de seu pai ser delegado, como é que vocês conviviam? Bem?
R - Não. Meu pai era muito fechado, muito rígido. Eu era, como é, como é que a gente... Eu era a ovelha negra da família porque eu aprontava muita arte. E acabava tudo chegando nele. Eu ia ao cinema quase todo dia. Eu fui criada dentro do cinema. Eu adoro cinema. Eu não pagava cinema, então eu ia ao cinema quase todo dia, menos segunda-feira, porque segunda-feira repetia o filme de domingo. Em Bauru na época tinham dois cinemas, um que era o melhor, e o outro que era um pouco inferior. Mas eu ia todo dia. Então eu era muito conhecida, e a gente fazia folia dentro do cinema, e meu pai acabava... E o delegado tinha duas cadeiras reservadas para ele. O prefeito tinha duas, o delegado, o promotor e o juiz. Me lembro bem que elas eram, eram de madeira, e eram cobertas com uma fronha, vamos dizer, branca. Mas eu não sentava lá Podia sentar, mas não sentava. E eu fazia arte dentro do cinema e ele era avisado. Ele era muito bravo. Mas eu sempre fui muito arteira.
P - Agora, eu fiquei curioso em relação ao cinema. Você se recorda a primeira vez que você foi ao cinema, ou qual foi a experiência mais marcante?
R - Não, a primeira vez eu não me recordo, mas eu recordo de várias outras. Por exemplo, eu me recordo de um filme chamado Flash Gordon, que era um filme de ficção, e eu gosto muito de ficção até hoje. Eu sou muito ligada em disco voador. Esse filme, até ele tem tudo a ver com uma história que aconteceu comigo, mas muito mais tarde. Era ficção científica, né, era um cidadão de outro planeta, e esse filme marcou muito a minha infância. Eu sou muito romântica, talvez ainda em função do cinema, porque passavam muitos filmes românticos, como O Morro dos Ventos Uivantes, vários filmes que até hoje passam como clássicos, e eu assistia todos eles.
P - Então, você começa na escola de freira até a mudança para Bauru.
R - É.
P - Certo? E em Bauru já é uma primeira...
R - Mas ainda foi colégio de freira.
P - Ainda foi...
R - ...não, antes de Bauru, em Piracicaba, eu estudei num colégio protestante. Porque eu estava fazendo o preparatório pro ginásio e eu fiz nesse colégio protestante. Então, em Piracicaba eu não estudei em colégio de freira. Em Rio Claro eu estudei em colégio alemão, porque era pertinho da minha casa, na mesma rua, foi seis meses só. Nós só moramos em Rio Claro seis meses.
P - Entendi.
R - Então, foi acho um ano. Deve ter sido um ano em Piracicaba e uns seis meses em Rio Claro, até ir para Bauru. E depois de Bauru foi o colégio de freira também. Depois eu vim pro colégio Rio Branco, que não é um... É um colégio particular, né?
P - Mas, você se dava bem com os estudos?
R - Mais ou menos. Eu era aluna média, muito boa em Matemática, muito boa em exatas, mas eu não estudava, eu, por exemplo, na parte de Matemática, que valia 10, eu tirava a questão prática, que seria seis, a teórica, que era quatro, eu não tirava. (risos)
P - Ta bem. Então você muda para Bauru e é quando começa a sua mocidade, seu primeiro...
R - Exato.
P - ...namorado, adolescência.
R - Minha adolescência, primeiro namorado, meu primeiro baile.
P - E conta um pouco pra gente sobre esse começo dessa fase nova da vida em Bauru.
R - É, eu me descobri uma mocinha, vaidosa, sonhadora, por conta eu acho que do cinema, e a minha mãe incentivava muito essa parte da mocinha bonitinha. Minha mãe costurava, ela era dona de casa, então ela fazia muitos vestidos bonitos. Ah, eu comecei a ficar loira Porque eu sempre fui clara de pele, mas com o tempo, de pele e de cabelo. Meu pai era filho de baiano, era moreno, e minha mãe filha de italiano. Então minha mãe era clara de olho azul. A minha outra irmã era bem morena, a Gilca, na época a Miriam era pequena, e eu era loirinha. Então, quando meu cabelo começou a escurecer, minha mãe começou a tingir meu cabelo. Então eu sempre fui loira, oxigenada, sabe, então eu sempre fui meio diferente. (risos)
R - Mais, foi uma fase muito boa, que eu me lembro bastante, porque é realmente quando você se descobre mulher, primeiro namorado, e, sabe essas coisas, vestidos, eu me lembro bem dos vestidos de baile, dos amigos. Então, foi uma fase importante essa de Bauru, que foi de 50 e, acho que de 51 a 54, foi mais ou menos três anos.
P - Um dos lugares onde você vive mais tempo, Bauru.
R - É. Mais tempo talvez, os outros acho que foram dois anos, um ano e meio. E nessa época meu pai foi transferido para uma cidade chamada Botucatu. Mas nós não fomos pra lá porque era provisório. De Botucatu ele foi transferido para Santos, onde nós também não fomos. Depois ele foi transferido para São Paulo, para onde nós viemos e onde fiquei até hoje.
P - Entendi. E aí em Bauru, você tem mais alguma coisa para contar, algum episódio sobre essa... Porque eu percebo que quando você fala dessa mocidade é uma coisa muito bonita, é um momento em que você sai dessa fase de molecagem e você descobre uma outra Darcy, você...
R - Exato, é.
P - ...se encontra com...
R - É. Realmente Bauru marcou a minha vida, e em Bauru começou a ser construída a cidade universitária nessa época. No interior não tinha faculdades quase. Que eu me lembro, não. Então, em Bauru começou a ser construída a cidade universitária. Talvez isso aí tenha me despertado a coisa de fazer faculdade. E a gente ia visitar, meu pai pegava à noite a gente e levava para conhecer o campus, lá, que estava sendo construído. Tanto que quando eu saí de Bauru ele não tava pronto ainda, não tinha nenhuma faculdade. E alguns amigos meus e da minha irmã, que na época era mais velha, foram até lecionar nessa escola, na faculdade, mais tarde. E eu me lembro, de alguns, assim, eu era muito amiga da filha do dono do jornal de Bauru. E de alguns políticos. Eu me lembro de alguns políticos que saíram de Bauru, e se projetaram: deputado estadual, deputado federal, porque foi uma fase realmente que eu passei a participar mais de uma série de coisas, né? Eu saí de Bauru, na época era quarto ano do ginásio, então eu já comecei a participar em algumas coisas de política, de conhecer, de saber.
P - E é a última cidade em que você vai ser então a “Filha do Delegado” realmente.
R - É a última, porque aqui em São Paulo eu era mais uma só.
P - Eu percebo que em diversos momentos essa questão da cadeira do cinema, e alguns outros...
R - Ah, isso marcou muito, lógico. Eu estou contando isso aqui porque é... Eu mais tarde eu fui fazer, eu faço muito trabalho alternativo, e eu fui fazer uns trabalhos de psicologia, e um deles, eu não me lembro o nome do trabalho, mas você desenhava passagens da sua vida. Então eu me lembro que eu fiz um desenho de uma tigresa, que no caso seria eu, vindo para São Paulo, enfrentando os prédios, a vida. Foi como eu acho que eu me senti quando eu vim para São Paulo com 15 anos, tendo que estudar num colégio diferente, inclusive de hábitos totalmente diferentes, porque de um colégio de freira, para um colégio particular, onde a maioria era israelita E de um nível financeiro muito alto, porque eu era de uma classe média, porque um delegado de polícia é um funcionário público categorizado, vamos dizer assim, mas que ganha relativamente. No interior a gente vivia muito bem em casas muito grandes, alugadas. Chegamos aqui, fomos morar em um apartamento, coisa que eu nunca tinha morado. E no interior cada um tinha seu quarto, aqui eu e minha irmã fomos ter um quarto só, então tudo mudou, e eu me lembro quando eu fiz esse trabalho psicológico, eu fiz esse desenho, de uma tigresa enfrentando um mundo novo, que era dos prédios, que eu era... Eu ia a pé pra escola, essa coisa toda.
P - Ta. Então essa mudança é muito significativa nesse sentido, coisas diferentes, como morar em prédio. Essa mudança da escola, deixar de ser a filha do delegado e ingressar nessa escola nova, e essas mudanças todas. Seu pai agora passa a ficar em São Paulo definitivamente. Daqui pra frente vocês passam a morar em São Paulo.
R - A morar em São Paulo.
P - E quais essas experiências novas? Você veio com quantos anos para São Paulo?
R - Quinze.
P - E o ingresso na nova escola, deixar Bauru, como é?
R - Foi tão difícil que eu fui reprovada no primeiro ano da escola. Eu me lembro que eu fui reprovada, e que eu não contei pro meu pai. E o colégio Rio Branco tinha uma coisa, eles mandavam uma cartinha comunicando que você tinha sido reprovada. Eu morava num prédio que tinha umas caixinhas de correio com uma chavinha. Eu fui lá, abri a chavinha, peguei a cartinha e segurei a cartinha. Fiquei com a cartinha até janeiro, quando tava começando. Meu pai era desligado em algumas coisas, quando tava chegando em fevereiro, ele falava todo dia pra mim: “ Você não tem que fazer matrícula na escola? Você, com 15 anos, não tem que fazer matrícula na escola? Porque enquanto eu tava no interior, eu nunca soube quanto era a matrícula da escola, eu nunca participei dessas coisas, daí ele falava para mim: “Você não tem que fazer matrícula na escola? Você não vai lá pegar os papéis para eu assinar, fazer o cheque, não sei o que, não sei o quê?” E eu tinha repetido de ano e a carta tava comigo. Daí eu tive que falar para ele. Eu me lembro que ele achou ruim, mas deixou passar, me deu o cheque e eu fui lá, fiz a minha matrícula, coisa que eu realmente não estava acostumada. Daí eu fui fazer novamente, na época o primeiro clássico, porque como ele era advogado, ele... Eu muito falante, muito assim, ele achava que eu tinha que fazer Direito. Só que não era o que eu queria, porque eu comecei a ver, no clássico, que eu tinha mais pendência para as exatas. Daí eu fiz até o terceiro clássico, colegial que era o clássico, e quando eu terminei o terceiro colegial meu pai faleceu de repente.
P - Aqui em São Paulo também tem uma coisa diferente do interior, que é esse convívio com as pessoas, né?
R - Exato.
P - Você sempre convivia. Apesar de você ter essa mudança, o interior tem aquela coisa aconchegante, as pessoas são mais unidas, e a cidade também, ela é muito intimidadora. Então qual é essa primeira impressão, de ver a cidade, essa diferença pro interior?
R - Foi muito difícil para mim aceitar tudo isso. Porque havia uma diferença social, eu me vestia diferente das pessoas de São Paulo, porque no interior só fazia calor, e aqui fazia frio. Então minha roupa era diferente, eu era diferente, eu me sentia meio perdida nesse mundo aqui. Tanto que eu levei mais de um ano para me adaptar. E até o fato de eu ter repetido de ano, tudo teve a ver, porque... Eu fiz amizade com somente duas meninas, que eram bem diferentes até, de mim, mas foram as duas únicas com quem eu fiz amizade. E no interior, eu tinha muita amizade, eu conhecia muita gente, né? Aos poucos é que eu fui me adaptando à vida de São Paulo. Mas não foi fácil, não. Foi muito difícil.
P - E você disse para mim que se encontra nos estudos na área de exatas, você começa a perceber...
R - É, eu começo a perceber que a minha tendência era pras exatas. Nessa época eu tive um professor de História Natural, que falava muito de OVNI, ele era bem... Eu me lembro bem dele, ele chamava Flávio, depois ele foi até presidente da Associação de Ufologia. Eu comecei a me interessar por História Natural. Por conta dele, por conta dessa coisa toda do professor Flávio. Acho que era Flávio Guimarães, ou Flávio qualquer coisa, eu me lembro dele, a fisionomia dele eu me lembro na influência que ele teve em mim. Mas, foi um outro lado meu. Daí, eu comecei a querer estudar História Natural. Daí meu pai disse que não. Que não, que não, que era bobagem, que isso e aquilo. Daí eu resolvi estudar Química Industrial no Mackenzie. (risos). Mas aí eu acho que essa história de estudar Química Industrial foi a fascinação do Mackenzie, porque o Rio Branco era um coleginho pequeno. Famoso, mas pequeno. Ele era na Rua Doutor Vila Nova, perto do Mackenzie, e eu quis estudar... Havia a MackRio, a MackMed, que eram umas competições esportivas, que eu ia em tudo. Que eu sempre fui muito ativa. E eu resolvi estudar Química Industrial porque era no Mackenzie. Eu não sei se é porque lá tinha muito homem, se é porque tinha participante, eu não sei por que era. Coisa de meio adolescente. Meu pai também não deixou eu estudar Química Industrial, mesmo porque ele disse que ia ter que trabalhar numa fábrica: “Onde já se viu uma mulher trabalhar numa fábrica?” Apesar dele ser bem culto, ele era bem inteligente, ele dizia que mulher não precisava casar. Casamento era segunda opção de mulher. Que mulher tinha que estudar, tinha que se formar, e tudo mais. Mas aí ele faleceu e eu fiquei meio perdida. Fui trabalhar. E fui trabalhar na Secretaria de Segurança Pública onde era o último lugar no mundo que ele queria que as filhas dele fossem. Daí foi outra mudança complicada.
P - Deixa eu só te fazer uma pergunta: esse apartamento onde vocês viviam, onde ele era localizado?
R - Na Bela Vista, numa rua chamada Barata Ribeiro.
P - E vocês sempre viveram na Barata Ribeiro?
R - Não. Enquanto meu pai era vivo, a gente morava na Barata Ribeiro. Cerca de três anos e meio, por aí. Depois de lá eu continuei morando na Bela Vista, mas na Rua Rocha, que era do outro lado da Barata Ribeiro. Tem só a Nove de Julho no meio. Daí era um apartamento menor ainda, mas aí nós éramos só mulheres, nós éramos em cinco mulheres. Minha mãe, nós éramos três filhas, e tinha uma moça que veio do interior conosco, veio de Joanópolis. Então ela entrou quando eu tinha nove meses. Ela tinha 14 anos. E ela morreu com a gente.
P - Então, agora continuando... Quando você ingressa na Secretaria, você ingressa em que circunstâncias? Como você...
R - Seguinte: quando meu pai faleceu, não havia aposentadoria no Governo do Estado. A pessoa falecia, a família recebia, como é que eu vou dizer, um pecúlio. E não tinha mais nada. Meu pai nunca foi um homem de ter muito dinheiro, nós não tínhamos nem uma casa, porque como no interior a gente morava de aluguel, aqui em São Paulo também a gente morava de aluguel. Então quando ele faleceu, como ele deixou pecúlio, com o dinheiro que a gente recebeu, o que é que nós pensamos? Vamos ter um teto. Então compramos esse apartamento na Rua Rocha que tinha dois dormitórios, uma sala, cozinha e dependência de empregada, era um apartamento simples. E tinha o dia-a-dia, nós não tínhamos como viver, o dinheiro que ele tinha deixado a gente comprou o apartamento e sobrou alguma coisa. Minha irmã, na época, estava no terceiro ano da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Eu, tava fazendo cursinho, pra faculdade que eu não sabia qual era. Que eu tava entre Química Industrial, História Natural, e não sei o que, menos Direito. Que eu não queria mesmo o Direito. Daí então, tinha uma praxe no Governo do Estado. Eles ofereciam emprego pra esposa do falecido. Na época, minha mãe tava com 50 anos, eu e minha irmã não íamos deixar ela trabalhar. A minha irmã, que estava no terceiro ano da faculdade, estudava de manhã, tinha que ser transferida pra noite. Então, quem sobrou pra trabalhar: eu, eu tinha 18 anos e meio. Daí eu fui trabalhar como escrituraria na Secretaria de Segurança. Só que eu tinha uma condição melhor porque eu era filha de delegado, então os próprios delegados me tratavam de uma certa maneira. Mas foi muito difícil. Porque era um ambiente que eu não estava acostumada, eu era uma filhinha de papai. Apesar de aqui em São Paulo eu ser mais uma, eu era uma filhinha... Eu freqüentava Clube Paulistano, Clube Harmonia, estudava no Rio Branco, aquela coisa toda, e eu caí num outro mundo. Aconteceram coisas assim, difíceis comigo, o pessoal me discriminava, era muito complicado. Mas, eu tive essa coisa dos amigos do meu pai, que de uma certa forma me protegiam.
P - Dentro da Secretaria...
R - Daí eu fiquei como escrituraria um tempo, vamos dizer assim, como eu tava fazendo cursinho, eu tive um nível um pouco melhor do que... Tinha pessoas que tinham um nível bom, mas a maioria era um nível de ginásio, a maioria. Eu me destaquei um pouco, até que eu comecei a ser promovida, e tive uma carreira muito bonita.
P - Legal. Então você acaba dando prosseguimento a essa coisa da carreira do Direito, não por espontânea vontade, mas...
R - Mais tarde, mais tarde, depois de casada, eu fui estudar Direito.
P - Ah, ta.
R - Porque daí, com essa interrupção de eu ir trabalhar, eu não prestei vestibular. Porque na época, eu tinha resolvido História Natural. A USP tava terminando, tava ficando pronta, então da Maria Antonia, essa parte da Filosofia, Historia Natural etc e tal, passou tudo pra USP. Eu morava na Bela Vista. Eu trabalhava seis horas na Secretaria de Segurança, que era na Brigadeiro Tobias, ficava muito difícil eu ir pra Cidade Universitária. E tava começando, era mato Era mato mesmo a Cidade Universitária. Só tinha dois ou três prédios (risos). Isso foi 1950 e, meu pai morreu em 1957. Eu não sei a fundação lá, a USP de quando é, mas deve ser por aí, né, vocês devem até saber. Então eu não entrei na faculdade, fiquei trabalhando na Secretaria de Segurança. E a minha irmã tava no terceiro ano, daí ela conseguiu passar pra noite, mas ela foi trabalhar como estagiária com um advogado. E depois, mais tarde eu consegui através dos delegados amigos do meu pai também que ela fosse trabalhar na Secretaria de Segurança, ela tava já no quarto ou quinto ano da faculdade. E eu não estudei. Daí eu fiquei trabalhando na Segurança. Eu fui tendo uma carreira relativamente boa.
P - E o convívio de vocês, só as mulheres na casa, como...
R - Ah, era ótimo Era ótimo, ótimo, ótimo. Porque nós três, eu e minha irmã temos a diferença de dois anos, né? A minha irmã caçulinha, 10 anos de diferença, a minha mãe, e a moça que ajudou a nos criar, né, que era moça. Então a gente tinha uma convivência muito gostosa, muita folia, a gente era muito alegre, foi uma coisa. Apesar de o dinheiro ser curto. Daí, a minha mãe começou a entrar com umas ações. Não, daí o Jânio Quadros era o Governador, e o Secretário da Fazenda era o Carvalho Pinto. O Carvalho Pinto criou uma delegacia que era a Delegacia de Crimes Contra a Fazenda, que era uma delegacia que ia investigar os fiscais de Imposto de Renda, os fiscais em geral. E meu pai era muito bem cotado, que ele era honesto, ele era bem inteligente, ele foi ser o primeiro delegado-chefe dessa Delegacia de Crimes contra a Fazenda do Carvalho Pinto. Foi mais ou menos nessa época que ele ficou doente e faleceu. Então, quando o Jânio foi ser Governador, o Carvalho Pinto era o Secretário da Fazenda. Através dele a minha mãe conseguiu uma audiência com o Jânio Quadros. Mas chegou lá não conseguiu falar com o Jânio Quadros, porque tinha uma greve, e não falou com ele. Mas o Carvalho Pinto depois foi, não sei se, acho que ele foi Governador... Eu sei que minha mãe conseguiu uma nova audiência, daí entraram... Ah, não Daí já foi com o Laudo Natel. Fizeram um projeto, que os funcionários públicos teriam um salário mínimo de aposentadoria. Não importa quanto você ganhasse. E a minha mãe conseguiu ganhar um salário mínimo, e eu ganhava na época mais que um salário mínimo, como escrituraria era um salário bom Daí eu consegui pra minha irmã também ser funcionária pública, e então a nossa vida começou a meio que engrenar novamente. Minha irmã caçula conseguiu estudar em colégio particular, e a coisa foi caminhando.
P - E você não chega a ingressar numa faculdade?
R - Só depois que eu me casei.
P - E quando você conhece o seu marido?
R - Então, eu morava na Rua Rocha, num prédio de apartamento que era no meio do quarteirão. O meu marido morava numa esquina. E a minha irmã, quando vinha da faculdade, conheceu um rapaz que também morava na Rua Rocha, e que vinha no mesmo ônibus que ela. E eles começaram a namorar, e aos sábados a gente jogava buraco. Minha irmã, o namorado, eu e um amigo. Daí, o meu ex-marido, meu não, vou falar marido, (risos) depois eu conto a história dele. Meu marido resolveu vir jogar buraco, ser meu parceiro no jogo. Daí a gente começou a namorar. Na verdade, ele namorou primeiro a minha mãe, porque eu tinha outro namorado. Eu saía para namorar e ele ficava com a minha mãe conversando. Quando eu chegava em casa, minha mãe dizia: “Olha, esse rapaz tão bonzinho, tão educado, (risos) tão isso tão aquilo”. Acabei namorando e casando com ele.
P - E, do seu casamento, o que você lembra?
R - Olha, meu casamento foi meio complicado, meio difícil, porque na verdade é o que eu falei pra você, acho que meu marido casou primeiro com a minha mãe depois comigo. Como eu sempre fui, como eu te falei, muito passeadeira, muito baileira, muito namoradeira, ela achou que ele seria um porto seguro. Então ela começou a fazer um pouco a minha cabeça, e houve alguma coisa entre nós, lógico, uma atração, isso tem que haver. Mas, realmente foi meio complicado.
P - Ta. E agora, a gente já tinha tocado nesse assunto, você disse que, aqui em São Paulo era muito movimentada...
R - Bastante.
P - ...como é esse convívio da noite, aqui em São Paulo?
R - Bom, hoje em dia estou mais calma, pois estou com 70 anos. Então eu tive que acalmar um pouco. Mas eu sempre saí muito, sempre fui a muita festa, muito baile, eu tenho muitos amigos, eu pratico biodança há 20 anos. E a biodança, para quem não conhece, é um uma “terapia”. Como diz, biodança é a dança da vida, nos ensina a viver, a conviver. É uma coisa muito afetiva porque a biodança trabalha o toque, o abraço, a aproximação. Ela trabalha cinco linhas da vida: sexualidade, afetividade, criatividade, transcendência e, me fugiu, são cinco. (risos). Então, é um trabalho todo muito especial, que ajuda a gente muito a saber viver. Quer dizer, eu que sempre muito comunicativa, muito expansiva, eu me encontrei na biodança, e através dela eu faço muita coisa.
P - Entendi. Agora, da noite em São Paulo mesmo, você tem alguma lembrança?
R - Muita lembrança Me lembro bem das boates. Quando eu mudei para São Paulo, até meu pai vivo, eu tinha... Ele morreu eu tinha 18, quer dizer, 16, eu não saía muito à noite. Mas depois que meu pai faleceu, eu já tava com 18 para 19 anos, eu comecei a sair à noite, e eu lembro, tinha uma boate famosa na Rua Sete de Abril, quase esquina com a Praça da República. Tinha uma boate, chamava Boate Oásis, aonde vinham os grandes cantores, era boate mesmo, coisa que eu acho que hoje em dia quase nem tem mais. É, havia muitos shows, tinha, sabe esses shows tipo tem agora nas grandes danceterias, mas não era bem desse tipo. Eram shows, tinha um lugar na Avenida Santo Amaro, chamava Urso Branco, era uma casa grande de shows, foi uma das primeiras, e tinha boates em hotéis. Ali na Nove de Julho tinha um hotel, acho que era Claridge, tinha uma boate famosa, onde o Dick Farney... Era um outro tempo, parecia coisa do cinema, que eu gostava.
P - Então quer dizer que depois daquele momento de choque com São Paulo, você acaba se encontrando aqui de alguma forma?
R - É. Eu acho que me encontrei depois que meu pai faleceu.
P - Depois que seu pai faleceu?
R - Porque a coisa da imagem do delegado, da importância, eu acho que aquilo já tinha passado na minha vida. E eu fui trabalhar, eu na verdade fui trabalhar para sustentar a minha mãe e minha irmã. Então aquilo para mim me fez sentir muito importante, muito forte, daí eu comecei a viver a minha vida realmente.
P - E você passa a ter um círculo de amigos com o qual você joga buraco...
R - Bastante. Até na Secretaria, onde eu tinha um pouco de dificuldade por ser um outro ambiente, eu conseguia alguns amigos. Mas eu tinha amigos ainda do tempo do Rio Branco, muitos amigos. Eu sempre fiz muita amizade.
P - E dessas amizades, você tem alguma lembrança especial?
R - Ah, tenho. Muitos passeios que a gente fez, muitos lugares. Casamentos de alguns, tem pessoas que eu me relaciono até hoje, que os filhos são amigos dos meus filhos. Só que quando eu me casei, meu marido era uma pessoa muito fechada, então daí ficou um pouco difícil também, eu fiquei casada 30 anos até que a gente se... Relacionamento separado, é separado, ele mora numa chácara e eu moro em São Paulo. (risos) Que a gente teve uma chácara, eu tive uma casa na praia também, onde eu fiz muitos amigos, em Ubatuba, uma praia chamada Lagoinha, muito gostosa, que eu tenho muita saudade. Onde eu passava todas as minhas férias de janeiro com as crianças, sem televisão, só com a natureza e a praia.
P - Ok.
R - Isso foi muito bom também.
P - Ta. Então eu vou retomar: então depois que você casa, você consegue ingressar, tem uma melhora na sua carreira...
R - Aconteceu o seguinte: eu ainda casada continuei trabalhando na Secretaria de Segurança. Daí a minha mãe já tinha conseguido receber a aposentadoria do meu pai, recebeu todo o dinheiro que ela tinha, no Governo, ficou numa situação financeira muito, muito fácil, muito gostosa. Então eu passei a viver a minha vida com meu marido. E eu, trabalhando na Secretaria de Segurança, eu fui subindo de cargos, até que eu consegui chegar no Gabinete de Secretário, onde eu fui assistente de Relações Públicas. Fui ser Chefe de Seção, fui ser Diretora. Quando eu estava na Secretaria de Segurança Pública, nessa época eu era assistente de Relações Públicas, houve a Revolução, 63, 64, 65 até, sei lá... houve uma época de secretários de segurança pública militares. Então, essa época foi uma época meio difícil. Os secretários de segurança eram generais do exército, aquela linha complicada. Mas eu consegui ter livre trânsito ali no gabinete etc e tal, até que veio um secretário de segurança que era um professor famoso de Direito, chamado Hely Lopes Meirelles. Como eu trabalhava com relações públicas, e o chefe de relações públicas era um jornalista, então a outra parte toda quem fazia era eu mesma. Então eu comecei a ter muito relacionamento com ele, quando terminou a... O governador era o Roberto Costa de Abreu Sodré, quando o Sodré saiu... Não, o Sodré ainda estava lá, o Hely foi transferido para outra secretaria, que na época foi a Secretaria do Interior. E ele me convidou pra ir junto. Daí eu fui junto pra Secretaria do Interior. Ele era uma espécie de curinga, qualquer secretaria que vagasse, o professor Hely Lopes Meirelles é que ia ser o secretário.
P - Então, Darcy a pergunta formalmente é: que atividade você desenvolvia na Secretaria de Segurança Pública, que compreendia relações públicas nesse sentido?
R - Na verdade eu era uma chefe de seção. Seção burocrática. Só que eu tava comissionada no Gabinete do Secretário de Segurança Pública, no setor de Relações Públicas, cujo chefe era um jornalista, da Folha de São Paulo, e eu posso dizer o nome dele, chamava-se René Marinho Sierra, e ele me convidou para ser assistente dele. Porque ele fazia a ponte entre o Gabinete do Secretário e os jornalistas. Eu faria parte dentro da burocracia, dentro do funcionalismo da Secretaria de Segurança Pública. E eu fui para esse gabinete do secretário, nesse setor de Relações Públicas, mais ou menos em 61, não, não, 64, por aí, mais ou menos 64. Quando estava começando o movimento da Revolução, e já estava havendo uns manifestos contra o Governo, foi mais ou menos nessa época.
P - Essa questão da revolução era história, como é isso, como é que você vê isso?
R - Olha, na época é interessante. Hoje em dia eu acho que eu vejo de outra forma. Na época eu tava tão embutida naquela coisa de ser funcionária pública, de trabalhar no Gabinete do Secretário, que eu não fazia um juízo entre o que estava acontecendo e a minha relação com essa parte política. Eu me atinha ao meu cargo. Eu tinha que fazer ponte entre os jornalistas. Tinha muita coisa que eu sabia e eles não podiam saber. Então eu tinha que fazer um social com eles, porque na verdade o que eles queriam era tirar informações, e as informações eram muito fechadas na época. Havia o Dops, que centralizava tudo. Logicamente passava tudo pelo gabinete, tinha coisa que eu sabia, tinha coisa que eu não sabia, mas mesmo que eu soubesse eu não podia dizer nada. Então eu ficava meio, eu digo que eu ficava meio alienada, vamos dizer assim. Sabe, hoje em dia eu vejo dessa maneira, que eu era meio apolítica, acho que eu me vesti de uma funcionária pública, que tinha um cargo, e que não podia se envolver. Depois na época também eu tinha tido uma filha, minha segunda... Eu tenho um filho e uma filha, minha filha já tinha nascido, eu tava envolvida com negócios de questão de família. Eu me lembro que eu ia para casa de carro oficial. E os carros oficiais eram de chapa branca. E havia uma moça, que trabalhava comigo que se chamava Heloisa, que de vez em quando ela dizia: “Você não vá para casa hoje de carro chapa branca, porque vai estourar uma bomba não sei aonde”. Eu achava que ela tava brincando, eu dizia “Ah, a Heloísa ta fazendo graça“. E era verdade. Depois, no dia seguinte, saía no jornal: “Bomba no Estado de São Paulo” que era na esquina da Major Quedinho, ali perto da Consolação, ali da Praça Bráulio Gomes, onde tinha a biblioteca. Então por várias vezes aconteciam essas coisas. “Você toma cuidado a hora que você sair daqui, porque vai ter uma manifestação estudantil em tal lugar.” Então, eu sabia dessas coisas, mas eu não... Hoje em dia eu vejo que não me afetava muito. Às vezes acontecia, eu tinha livre trânsito dentro do Gabinete de Secretário, tanto do Secretário, quanto do Chefe de Gabinete, quanto em qualquer local. Eu às vezes entrava em alguma sala e ouvia alguma coisa. Mas aquilo entrava realmente por um ouvido e saía pelo outro, eu não registrava. Que era cômodo pra mim não registrar. Porque no que eu registrasse, eu estaria participando. Tanto que essa minha colega, que foi totalmente envolvida nessas questões estudantis políticas, ela era uma espécie de espiã do Dops. Eu não sabia. Ela trabalhava diretamente comigo, só que ela não tinha subordinação a mim. Ela trabalhava comigo, e eu achava estranho, porque ela não assinava ponto, ela não tinha horário, nem nada. Mais tarde saiu reportagem em todos os jornais, ela era namorada do José Dirceu, esse que foi Ministro do Lula, que era um dos cabeças do Movimento Estudantil em São Paulo, ele estudava na Filosofia da Maria Antônia. Ela foi ser namorada dele para poder levar informações do grupo da Maria Antônia para o Dops. Ontem, por coincidência ele contou na televisão como é que ele descobriu que essa Heloísa, que tinha o codinome de Maçã Dourada era espiã, porque ele deixou um revólver em cima de uma mesa, eu não sabia desse fato, e ela começou a mexer no revólver, e ele viu que ela entendia de arma, que ela conhecia arma, e ela começou a perguntar coisas da arma. Daí que ele descobriu que ela era a... Descobriu alguma coisa dela, e deve ter feito ela contar, eu não sei detalhes. Mas eu me lembro que saiu em todos os jornais a história dela, porque daí ele propôs trocá-la por uma pessoa que tava presa no Dops. Só que na época o Dops não aceitou essa troca. Foi até uma situação meio complicada porque a menina foi... Tava a serviço deles. Eu sei que hoje ela mora em Ubatuba, que ela tem uma boutique lá, e eu nunca mais a vi. Mas foi uma coisa muito interessante que aconteceu na minha vida. Foi meu relacionamento com a “Maçã Dourada”. E nada é por acaso, ontem, na televisão, o José Dirceu contou essa história. (risos) E eu me senti muito viva naquele tempo, entendeu?
P - Entendi. Dona Darcy, então você disse que dentro da Secretaria você de alguma forma vestia a funcionária pública de fato. Fora da Secretaria, nesse mundo social, com a família, como era essa sensação da Revolução e de tudo isso que estava acontecendo?
R - Olha, a minha família na verdade acho que não participava muito disso. Minha irmã na época já era Procuradora do Estado, era advogada, prestou um concurso de Procuradora do Estado. Meu cunhado trabalhava na Mercedes Benz, era um executivo, diretor lá na Mercedes. Meu ex-marido tinha ingressado como investigador de polícia, ele trabalhava no Instituto de Resseguros do Brasil, que é um órgão, acho que não existe mais, federal, que cuidava dos seguros em geral, mas ele prestou um concurso para investigador de polícia, ele tava trabalhando em Campinas. Mas ele trabalhava numa área criminal, não tinha nada a ver com política nem com nada. A minha irmã mais nova estudava Sociologia na USP. A USP, a Sociologia fechou. Porque eu tenho uma prima casada com o Florestan Fernandes, já faleceu, o deputado federal. Eu conheço o Fernando Henrique também por conta da minha prima ter sido casada com o Florestan, o Fernando Henrique era vizinho de casa e assistente do Florestan Fernandes. A Sociologia foi fechada. Minha irmã foi colega do Mantega, esse que hoje em dia está no governo do Lula. Então a minha irmã saiu da Sociologia. Ela fez até o terceiro ano, fechou, e hoje em dia ela é professora primária. Ela era a única política da história, mas ela tinha 21 anos, e 21 anos todo mundo é meio político, (risos) porque você estando na faculdade você se envolve mesmo. Centro Acadêmico, com aquelas idéias, natural da idade ser meio revolucionário. Então a minha irmã era a única, mas eu não tinha assim muito a ver com a história dela, entendeu? É o que eu te digo, eu vesti o uniforme de funcionária pública e fiquei na minha.
P - Você disse pra gente que teve dois filhos, e quando vem o seu primeiro? Primeiro nasce a sua filha...
R - Não, primeiro o meu filho.
P - Isso, e quando vem o seu filho...
R - Meu filho nasceu dia sete de setembro de 1963.
P - Sessenta e três, antes de...
R - Interessante que eu nasci no dia 10 de novembro, quando Getúlio fez a Constituição. Meu filho nasceu no dia 7 de setembro às 15 horas. Segundo consta na história, e a gente não sabe se é estória, ou história, com H, (risos), o Grito foi às três horas da tarde, e ele nasceu às três horas da tarde.
P - Que legal.
R - Eu tenho um telegrama que eu recebi dos jornalistas, mais ou menos uns 15, que trabalhavam comigo nas Relações Públicas. Eles mandaram um telegrama para mim: “Parabéns pelo nascimento do príncipe herdeiro, viva a imperatriz” (risos). Até hoje eu tenho esse telegrama.
P - E que mudanças trazem na sua vida o nascimento do seu filho?
R - Logicamente um filho sempre é uma mudança de vida. Mas eu justamente quando ele nasceu, nessa época de 63, eu já estava no Gabinete do Secretário, eu já estava numa atividade bastante intensa, e logicamente fiquei o tempo necessário de licença, quatro meses. Cuidei dele e depois voltei às minhas atividades normais. Chegava em casa muito tarde, 10 horas da noite, 11 horas da noite. Eu nunca gostei de trabalhar de manhã, eu sou notívaga. (risos). Então, eu não gosto de trabalhar cedo, eu sempre chegava dez e meia, dez horas. Mas à noite eu ficava às vezes trabalhando até 10 horas, 11 horas... E nessa época, em 64 para frente, era comum eu chegar meia-noite, chegar mais tarde. Depois de três anos e meio nasceu minha filha Roberta. Meu filho, Marcelo.
P - Sua filha nasce que dia?
R - Trinta de outubro de 67
P - Outubro de 67. E aí você disse que você e seu marido saem de São Paulo...
R - Não, não, nós sempre moramos em São Paulo.
P - Ah, ta. Mesmo com a mudança do Gabinete?
R - Sempre em São Paulo. Só que eu morava na Bela Vista com ele, eu me mudei pro Alto de Pinheiros, a gente comprou uma casa pela Caixa, financiada pela Caixa Econômica, claro, como todo funcionário público (risos). E eu me mudei pro Alto de Pinheiros, numa casa muito boa, onde eu criei meus filhos.
P - Ta. E desse convívio com os filhos, qual é a diferença, porque você tem uma fase morando com seus pais, uma fase morando só as mulheres da casa, e agora você tem a sua casa, você, de certa forma é a...
R - Na verdade eu nunca cuidei muito da minha casa. Eu tinha ótimas empregadas e eu sempre me dediquei mais ao trabalho.
P - Ta.
R - Convivi com eles, naturalmente. Sábados e domingos eram deles, mas de segunda a sexta eu era uma profissional mesmo.
P - Mas a relação com seus filhos? Você dava-se bem com seus filhos...
R - Bem, me dei super bem com eles. Sempre.
P - Ta bem. E do trabalho, você tem algum outro episódio de destaque, assim, que você queira dividir?
R - É. Depois da Segurança, quando o professor Hely Lopes Meirelles saiu, andamos por algumas Secretarias da Educação, Planejamento, e fomos pra Secretaria da Justiça. Daí eu fui nomeada primeira Auxiliar de Gabinete, que tinha só uma mulher no Estado de São Paulo, era dentro do Governo do Estado de São Paulo, eu fui a segunda mulher. Porque era cargo de homem. (risos). Cargo de confiança, cargo de homem. A minha amiga da Segurança ficou sendo Oficial de Gabinete do Secretário da Segurança, que era um militar, chamava-se Viana Mug, irmão de um escritor famoso que chama-se Viana Mug também, eu não me lembro o pré-nome dos dois. Ela ficou oficial de gabinete dele e eu fui ser oficial de gabinete do professor Hely Lopes Meirelles. Ainda numa época difícil, 69, 70, que tinha o AI-5, aquela coisa toda. Daí que eu fui fazer Faculdade de Direito, sendo que eu não gostava, porque eu não terminei. Na Secretaria de Justiça eu fiquei com o Professor Hely Lopes Meirelles dois anos, dois anos e pouco, normal, de carreira, foi tudo muito bem, até que ele saiu, motivos políticos, o governador Abreu Sodré saiu, ele saiu também, eu fui pra Secretaria da Promoção Social. Daí eu fui trabalhar numa área social. Com finanças. Porque eu tinha feito um curso na Getúlio Vargas, que era de administração pública, que era destinado a funcionários públicos efetivos com mais de 15 anos de carreira. Então eu fiz um curso que era a nível de pós-graduação, mas você não saía com o diploma. Você saía com o certificado.
P - E você tem essa mudança para outra Secretaria...
R - Daí é outra vida. Quero dizer, trabalhando em Gabinete você tem uma posição diferente. Eu fui ser uma funcionária pública normal, de carreira, burocrata, (risos), mas num serviço muito gostoso, que era de assistência social, eu lidava com finanças, mas no serviço social, de assistente social, onde eu me dei muito bem. Porque eu trabalhava com creche, hospitais, centro espírita, tudo numa parte social onde o governo ajudava. E ajuda, até hoje.
P - E é mais ou menos nesse período que você vai perder a sua irmã mais velha?
R - É. A minha irmã faleceu em 80. A perda da minha irmã foi muito traumática, e eu já vinha num processo de estafa, de stress, meu casamento tava muito mal, eu tive um stress muito forte, eu perdi a consciência, eu estive num sanatório. Eu fui na verdade fazer tipo uma recuperação, uma sonoterapia num sanatório, chama-se Sanatório Espírita Américo Bairral, em Itapira. Um lugar muito bom onde eu fiz um tratamento por uma semana, dez dias, mas eu achei que eu deveria ficar um pouquinho mais, eu acabei ficando 20 dias lá, porque na verdade meu casamento já tava falido, e com o choque dela, essas coisas vem todas à tona. Daí a minha vida mudou. Eu passei, eu que era uma pessoa que eu acho que era mais, vamos dizer assim, pé no chão, passei a ter um pouco a cabeça no céu. Daí que eu comecei a trabalhar com coisas alternativas, comecei a fazer biodança, comecei a fazer... Primeiro comecei a fazer análise, fiz psicodrama, depois fiz biodança, daí comecei a ser meio exotérica, (risos), sou mestre em Reiki, mestre não, tenho o curso de Reike, terceiro ano, faço constelação familiar, participo de várias coisas alternativas.
P - Então, de alguma forma esse momento traumático acaba trazendo...
R - Benefícios.
P - Uma descoberta?
R - Descobertas. Foi.
P - Pela primeira vez que você falou de... Apesar de ter trabalhado, gostado de sua carreira profissional, não foi uma opção. A força dos fatos acabou agindo para que você seguisse aquele caminho, mas naquele momento, apesar de toda essa dor, você descobre uma nova pessoa.
R - Descobri tanto que quando eu completei 30 anos de serviço eu tinha 48 anos. Eu me aposentei. Porque o serviço público já não preenchia mais nada para mim. Me aposentei com 48 anos. Daí eu continuei trabalhando, trabalhei numa creche como administradora. Trabalhei na Prefeitura, numa parte social, fui ser gerente financeira num órgão da Prefeitura que se chamava Casa: Centro de Apoio Social do Município do Estado de São Paulo. Trabalhei dois anos lá; depois trabalhei cinco anos dentro de um hospital; trabalhei como gerente de uma boutique...
P - Eu acho incríveis essas mudanças.
R - Eu tive muitas mudanças.
P - Você descreve essa mudança de trabalhar num Gabinete para trabalhar no social. Eu queria que você descrevesse pra gente, para registrar, que mudanças factualmente isso traz, como é, ou passa a ser...
R - Sabe, eu acho que essa mudança entre o Gabinete e a parte social me deu outros valores. Eu acho que quando eu trabalhava no Gabinete eu era uma funcionária pública bem sucedida, com status de Gabinete de Secretário, e de repente eu fui para uma área social onde eu ajudava não ferramentas do governo, mas era eu que tava ali agindo... E você começa a lidar com pessoas que dão muito de si, porque você lida com o interior de São Paulo todo e mais a capital toda, com pessoas que atuam voluntariamente na grande maioria, em serviço social. Logicamente tem os aproveitadores e você percebe claramente que tem. Isso não tem a menor dúvida. De vez em quando estoura aí na mídia um asilo que explora os velhinhos, uma creche que não dá comida, coisas desse tipo. Mas você se sente atuante numa área emocionalmente melhor, você se sente, você não é aquela funcionária pública, entendeu? Você é uma pessoa que está atuando e vendo fruto de seu trabalho. Que quando você é uma funcionária burocrática, e graças a Deus fui muito pouco tempo, quando eu entrei, em 1957, e já fui pro Gabinete logo em 61, mesmo na área de relações públicas, é uma área mais humana. Não é aquela coisa, sabe, muito tacanha, muito pequena... Mas e depois nessa vivência toda, você se sente melhor, se sente útil. Coisa que muito funcionário público aposenta e não consegue dizer “Fui útil”. (risos), sabe?
P - E o mais engraçado ainda, para concluir esse pensamento, é que você além de tudo vai trabalhar com o interior agora. Você passa a trabalhar com ONGs do interior.
R - Ah, sim, e veja bem a facilidade que eu tive: porque eu conhecia muitas cidades do interior, muito. Então, dava para entender até os problemas das cidades. Por eu ter vivido a vida do interior, e ser do interior. Por ter minha raízes no interior. E sempre voltei pro interior muito, né? Porque mesmo depois que eu casei, apesar de meu marido ser de São Paulo, eu sempre voltei pras minhas origens, várias vezes a Marília, fui para Assis depois de muitos anos, uns amigos meus compraram uma fazenda lá, e eu quis ir lá. Sabe, e eu gosto até hoje de ir pro interior.
P - Entendi.
R - Eu tenho minhas raízes no interior.
P - Legal. E os seus filhos, com a separação do seu marido, como é que ficam...
R - Ah, meus filhos já eram adultos, né?
P - Já...
R - Porque eu fiquei 30 anos...
P - ...casada.
R - Vivendo junto como casada. Eu ainda sou casada, só que ele mora numa chácara no interior e eu moro na capital. Meu filho é engenheiro e administrador de empresas. Ele está com 44 anos. Minha filha é administradora de empresas e ela está com 40. Então os dois tem a vida deles, e quando eu me separei ela tava com, foi em 90, ela nasceu em 67, ela tava com 23 anos, e ele já tava com seus 27. Já estavam os dois formados. Eu tenho dois netos, um de 19 e um de 11. O de 11 faz aniversário amanhã. (risos).
P - E a experiência agora, de virar avó, além de tudo?
R - Ah, é deliciosa porque esse de 19 anos morou sete anos comigo. Muito gostoso. Hoje em dia ele entrou na faculdade, inclusive ele entrou sem cursinho, entrou na PUC. Sem cursinho, sem nada. Porque ele é de Parati, porque meu filho se casou com uma caiçara, então viveu com ela três, quatro anos, teve um filho. No fim o garoto veio morar comigo, ficou sete anos morando comigo, daí voltou para Parati. Só que depois de morar sete anos em São Paulo, você vai morar em Parati? Meio complicado, ele ficou lá um tempo e depois ele foi estudar. Lá em Parati tem o curso Objetivo. Lá tem faculdade e tudo. Mas ele quis vir para São Paulo. Ele mora com o pai agora, e está muito bem. E tem o pequenininho de 11 anos que é a minha paixão.
P - E desse universo alternativo todo que você falou, queria que você falasse um pouco como você descobriu, por exemplo, a biodança, qual o primeiro contato com a...
R - Bom, na verdade, quando a minha irmã faleceu, eu já tava num processo de redescobrimento interno, meus valores já eram outros, e com a morte da minha irmã, que foi... A minha vida tem muitos altos e baixos, pelo que você está vendo que eu to contando. A morte dela foi traumática porque ela morreu... Meu pai morreu de repente, quando eu tinha 18 para 19 anos. De repente a minha irmã tem um câncer fulminante. Então, também foi outro choque. Então, quando eu fui lá pro sanatório, porque eu tava muito mal, lá no próprio sanatório eu comecei a descobrir coisas, inclusive uma coisa interessante, eu falei do Flash Gordon aqui. Lá eles tem um trabalho todo psicológico, e eles levavam os pacientes para assistir filmes, e um dos filmes que passou foi esse do Flash Gordon. Porque ele vem dum planeta pra Terra, então tem toda uma adaptação, uma coisa diferente. Aliás, o filme é muito interessante, viu? Escrito há muitos anos atrás, mas tem toda uma história a ver com vários filmes.
P - Era um quadrinho também o Flash Gordon, né?
R - Foi feito um quadrinho também. É como Guerra nas Estrelas, tem toda uma coisa filosófica por trás. O pessoal não vê. A gente só vê muito mais tarde. Eu me lembro que quando eu levei esse meu neto, que agora ta com 19 anos para assistir Guerra nas Estrelas, porque algumas coisas que eles falavam, que eles falam,no filme, tem a ver com a gente e a pessoa não pega, né? Mas tem. Quer dizer, todo filme tem um fundo que afeta a gente de uma certa forma, né? Como eu sou muito ligada no cinema, tem essa coisa. E mesmo porque o meu ex-marido é sobrinho do Franco Zampari, que foi o criador da Vera Cruz e do TBC. Por isso que eu tava falando que na vida acontecem coisas pra gente, na minha vida principalmente, é muito interessante, eu vou me casar com uma pessoa que tem uma ligação direta com o cinema, com teatro, certo, então nada é por acaso na minha vida. Na vida das outras pessoas eu não sei, mas na minha tudo a ver, né? E então, nesse sanatório espírita, tem toda uma coisa espírita, religiosa, e de certa forma começou a vir essa coisa de eu querer me conhecer mais, eu fui fazer análise. Fiz análise, depois eu fiz psicodrama. Do psicodrama pra biodança é um pulo, porque o psicodrama é vivencial e a biodança também. Depois, aí eu fui fazendo outras coisas, né? Já fiz regressão... Hoje eu faço constelação familiar.
P - Que legal.
R - Que é uma terapia criada por um alemão, e que você estuda os seus antepassados, porque eu também tive um câncer. Há questão de quatro anos, meu filho foi seqüestrado, ficou no cativeiro. Durante a época que meu filho ficou no cativeiro eu comecei a passar muito mal, daí me levaram pro médico, eu fui fazer uma endoscopia, eu tava com câncer de estômago. Eu fumava muito. Daí eu me operei e sarei. E continuo a minha vida procurando, porque a minha vida é uma procura. É uma busca.
P - E hoje você tem feito o quê? No seu dia-a-dia, como é?
R - Meu dia-a-dia? Ah, agora eu fui síndica do meu prédio quatro anos, (risos) agora cansei. Agora eu sou consultora de beleza. Eu vendo produtos de beleza, e eu faço. Às quartas-feiras eu faço ginástica bioenergética na Água Branca. Às terças e quartas-feiras eu faço biodança. Às quintas-feiras eu faço constelação familiar e às sextas-feiras eu faço italiano.
P - Que Legal. Eu pensei numa coisa: o cinema na sua vida é brilhante, é fundamental...
R - ...muito.
P - E fora o filme do Flash Gordon, tem algum filme assim, que você se identifique muito, que se você tivesse que falar, esse filme é muito parecido, é o que eu quero registrar,
R - Tem vários filmes que eu gosto muito. Na parte romântica eu gosto muito de um filme que chama As Pontes de Madison. Que é um romance que eu acho que toda mulher gostaria de ter, de passar, na vida. Eu acho que até já passei. Mas, já passou também. (risos) Eu até hoje assisto muito filme. Por exemplo, Cinema Paradiso é um filme que eu gosto muito. Como eu to estudando... Eu já fui pra Itália, já fui pra Europa, como eu estou agora estudando italiano, eu até falei pro... Porque eu estudo italiano com os adolescentes, eu estudo numa escola pública aqui na Vila Madalena, que chama Olavo Pezzotti. Um professor de Matemática se prontificou a dar aula de italiano pros alunos. E a comunidade pode ir e eu estou indo com uma amiga minha. Tem a meninada dos seus 13, 14 anos e duas senhoras. Sou eu e uma amiga. E eu até sugeri a ele que passasse esse filme Cinema Paradiso, que é um filme italiano, que fala de cinema e de adolescente. Porque é um menino que se apaixona por cinema.
P - Sim.
R - Esse é um filme que me marcou muito. Ah, fora isso tem vários filmes que eu até assisto de novo, porque eu tenho aquele canal, NET, e tem acho que o Cine Cult que é no 65, que só passa filme antigo. E eu assisto vários filmes, com a Bette Davis, assisto vários filmes antigos, assisto filmes novos também, gosto muito dos filmes novos. Gosto muito do Almodóvar, assisto todos os filmes dele, assisto as Guerra nas Estrelas, (risos) assisto... Televisão para mim é o cinema. E assisto, logicamente, você tem que assistir à Cultura, esse tipo de coisas, né?
P - A gente ta indo para uma fase analítica, e acho que você tem uma análise muito boa da sua vida, e eu queria saber se você tem mais alguma coisa, de algum fato que você queira deixar registrado, alguma coisa que nós não tenhamos perguntado, se você quer dizer alguma coisa.
R - Olha, a única coisa que eu acho que eu tenho que dizer, e que eu acho que é muito importante na minha vida, são os amigos. E eu acho que você tem que viver plenamente o aqui e agora. Porque se você viver no passado, apesar de muita coisa ter acontecido comigo no passado, que influenciaram a minha vida de hoje, hoje eu sei como eu sou, mas eu acho que tem que viver o aqui e agora e eu acho que isso é que é importante. As experiências passadas nos ajudam a viver melhor. E é isso que eu sinto, eu sinto que eu tive um câncer, eu estou viva, minha vida teve altos e baixos, ocupei cargos importantes, ocupei outros não menos importantes, tenho os meus filhos, tenho os meus netos, mas acho que viver é isso: é saber aproveitar os bons momentos da vida, e deixar os ruins pra trás, porque eles não voltam mais, e a gente tem que viver a vida.
P - Que ótimo. Quer perguntar mais alguma coisa?
P - Eu posso fazer uma pergunta?
P - Fica à vontade.
P - É sobre as suas viagens. Darcy, sobre o que você conta delas, quando que você foi, em que situação você foi viajar para fora do país,
R - Olha, eu viajei muito. O tempo que eu fiquei casada, 30 anos, a gente tinha uma casa na praia. Deliciosa, uma praia maravilhosa chamada Lagoinha, em Ubatuba que eu gosto muito, uma casa muito gostosa, eu passava todo mês de janeiro lá e alguns feriados. A gente ia com um grupo de amigos. Mas eu queria conhecer outras coisas, mas era muito difícil por conta que tinha a casa. Eu consegui uma ou duas vezes. Uma vez eu consegui ir para Cabo Frio, porque meus filhos queriam ir para lá, fui uma vez para Poços de Caldas, e uma vez para Campos de Jordão. Quando eu praticamente me separei, que meu marido foi morar na chácara, e eu fiquei morando em São Paulo, eu comecei a querer voar. Então primeiro eu comecei a fazer algumas viagens pelo Brasil. Fui para Ouro Preto, fui pra Bahia, fui para Porto Seguro, fui para muitas cidades, aqui por São Paulo. Como eu estava na biodança e na biodança tem no mundo inteiro, havia um congresso na Itália. Daí, todo mundo ia pro congresso. Eu tava muito animada, um amigo meu tinha uma agência de turismo, e ele falou: “Darcy, você quer ir?” Eu falei: “Mas eu não falo... nunca saí do Brasil, eu falo inglês mal e mal etc e tal” Ele falou: “Eu te faço uma viagem, pro congresso, depois uma pequena excursão”. Daí, ele falou: “Como você vai sozinha, eu vou fazer uma excursão com o pessoal da América Latina”. E eu fui pro congresso, sozinha. Olha, para quem ficou 30 anos casada, eu só saía com o meu marido, só ia pra praia, eu... Ah, antes de eu ir para esse congresso, eu fui para Cancun, sozinha. Mas Cancun é fácil. Só que eu fiquei sozinha no hotel, porque todo mundo vai com marido, com amiga, eu fui sozinha, então me botaram num hotel seis estrelas, que era um hotel maravilhoso. Mas eu logo fiquei conhecendo gente lá, foi muito gostoso, passei um réveillon lá. Então foi minha primeira experiência fora mesmo do Brasil. Foi Cancun. Bom, fui pra Europa. Ele fez a excursão, ele fez tudo de avião, porque ele falou “Não vou fazer de trem porque é perigoso, até você sozinha, com mala etc e tal.” Me dei super bem, o congresso foi no norte da Itália, uma região de castelos maravilhosos, tinha 600 pessoas, fiz amizade com um monte de gente, passeei muito. Saí de lá, fui encontrar uma excursão em Roma. Era uma excursão onde tinha o guia, falava português, tinha espanhol argentino, mexicano. Eu acho que eu sempre tive muita sorte na minha vida, você entendeu? Porque correu tudo bem, teve muita gente que foi roubada. Comigo não aconteceu nada. Fui pra Itália, fui pra Espanha, não vou dizer para você que eu conheço a Itália, que eu conheço a Espanha, que eu conheço a França, não. Fui aonde? Paris, Lion, não sei o quê. Fui na Espanha, fui para Madri, fui para Barcelona, que eu adorei por sinal, fui pra Itália, conheci Roma, e uma cidade, Capri, Nice, quer dizer, foi uma viagem turística. Mas eu me senti assim, poderosa de estar sozinha, de poder viajar e de não me acontecer nada de mal. Voltei felicíssima, isso foi na Copa do Mundo, eu tava lá na Espanha quando o Brasil foi campeão de 94. Ele foi campeão, o Brasil. Ele jogou com a Itália e ele ganhou da Itália. Então foi tudo maravilhoso. Depois disso eu continuei viajando, mas mais pelo Brasil. Agora eu estou pensando seriamente em viajar novamente (risos), mas ta meio difícil. (risos).
P - Quer falar mais alguma coisa?
R - Gente, que horas são?
P - Então, a gente ta terminando. E, só para finalizar, Dona Darcy, a gente queria perguntar como é que foi para você dar a entrevista, como você se sentiu?
R - Sabe, na realidade foi gostoso porque eu estou contando algumas coisas, que eu acho interessante, que são algumas coisas da minha vida, e analisando tudo um pouco o que aconteceu comigo, e sabe, logicamente aconteceram algumas coisas ruins, mas no resto foi tudo muito bom, e o mais importante é que eu estou viva, né, passei por um câncer, passei por um casamento desfeito, passei pelo seqüestro do meu filho, que foi uma coisa traumática, e estou aqui, tô inteira, tô fazendo esse depoimento, muito bom.
P - Então a gente queria te agradecer, Dona Darcy.