Museu da Pessoa

Uma vida em trânsito

autoria: Museu da Pessoa personagem: Tomás Lakatos

Ponto de Cultura
Depoimento de Thomaz Lakatos
Entrevistado por Nádia Lopes e Isaac Patrese
São Paulo, 01/11/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV081
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho

P/1 – Pra começar, eu gostaria que o senhor dissesse seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Thomaz Jorge Lakatos Louringer. Nasci na cidade de Budapeste, Hungria, no dia nove de novembro de 1928.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais e dos seus avós?
R - Meu pai se chamava Miguel Lakatos, o meu avô se chamava... Eu não me lembro do nome. A minha avó, a esposa dele que não cheguei a conhecer, faleceu antes. Chamava-se Fany, é só o que sei dela. Os nomes dos meus outros avós também, porque nunca se chamava por nome os meus avós quando eu era criança. Eram duas pessoas de muita distância entre crianças e avós, existia muito respeito, então era avô só.
P/1 – Qual era a origem da sua família?
R – A minha família? Nasceram todos na Hungria. A origem religiosa?
P/1 – Não, a origem mesmo, onde eles nasceram? Qual era a atividade profissional que eles exerciam?
R – Bom, a parte materna eram todos metalúrgicos, toda a família era metalúrgica. O meu avô, os filhos de meu avô, os tios de meu pai, alguns foram grandes industriais metalúrgicos antes da Segunda Guerra Mundial. E meu pai, que nasceu em Arad, Transilvânia - que era Hungria quando nasceu e depois, em 1919, ao perder a guerra, a Hungria... Os romenos se apropriaram de Transilvânia, então ele já foi pra Budapeste. O meu avô era de Arad, era dono de um cassino de jogo. Ele era um boêmio, que perdeu o cassino em uma noite.

Desde então, era uma pessoa muito inconsequente e nunca mais trabalhou na vida. Aí meu pai começou a trabalhar e sustentou a família. Foi à Hungria trabalhar com os tios metalúrgicos, se fez metalúrgico e um grande metalúrgico.
P/1 – E quantos irmãos o senhor tinha?
R – De meus pais?
P/1 – Não, do senhor, seus irmãos?
R – Eu tinha uma irmã. Éramos dois, minha irmã Eva, a mãe de minha sobrinha. Ela era mais velha cinco anos e tínhamos, como todos os irmãos, nossa convivência tumultuada, que se baseava em chantagem. De quem a quem eu asseguro que situação: eu chantageava a minha irmã com o macarrão da sopa, porque ela adorava e eu também. Como ela terminava antes, eu mantinha o macarrão pra vender depois a ela. Ela me chantageava porque eu morria de medo de noite, então ela saía do quarto e eu estava sozinho e ficava esperando que voltasse, não? Mas era uma relação muito boa.
P/1 – A infância do senhor, o senhor passou na Hungria mesmo? Ou como foi a saída?
R – Foi na Hungria até os 11 anos, até a Segunda Guerra Mundial.
P/1 – E como foi essa vivência do senhor, até os 11 anos lá? Como foi a sua infância na Hungria?
R – Bom, aí já é uma questão para entrar e contar, posso? Se me permite, eu vou por em caminho. Me pediram que fizesse uma pequena sinopse de minha vida, pois aprontem-se que aqui vai: a princípio foi o verbo - em meu caso, meu pai e minha mãe, que me deram uma vida de príncipe. As locações de verão nós passávamos ao lado do Lago Balaton e nos fins de semana de inverno, ou estava deslizando em Mitrineu, nas montanhas de Buda, ou patinando na pista de gelo do Parque Liget, com música de alto-falante e refletores na noite. Na hora de dormir, meu pai recitava os versos de Alhaianos, que tratava de “trechitos” de pessoas que queriam abandonar seus pais e eu, comovido, chorava até dormir. Será por isso que hoje, quando há a falta dos versos de meu pai, eu sofro de insônia? Meu pai começou a me viciar em leitura ao dar meu primeiro livro aos sete anos, que foi O Mundo de Amit e Coração, que me fez chorar, porém depois me deu Julio Verne, Alexandre Dumas, Vitor Hugo, (Atighevés?), Bernachon, Anatole France e muitos outros húngaros. Eu cresci aprendendo alemão e inglês em casa e Latim; no ginásio, as demais e húngaro, minha língua natal. Mais tarde, pelas circunstâncias, aprendi espanhol e português para ler a obra de Cervantes e Camões, respectivamente. Entretanto, tempos turbulentos se faziam na Europa. Os ventos do nazifascismo chegavam cada vez mais perto e, numa noite de março de 1938, em Budapeste, estávamos ceando sentados à mesa quando meu pai, minha mãe, minha irmã e eu, escutando a rádio que fazia uma transmissão direta de Viena... O presidente da Áustria, Schuschnigg, estava discursando, pedindo o auxílio de Deus para salvar a Áustria da invasão alemã, porém os nazi-fascistas já estavam marchando para Viena. Escutávamos em silêncio. Quando Schuschnigg terminou de falar, meu pai puxou o tenedor [garfo] e o cutillo [faca] na mesa e, dirigindo-se a minha mãe, disse: “nós vamos”. Em um ano emigramos, porém não era tão simples emigrar da Hungria no ano de 1939. Precisava de passaporte, porém não davam passaporte aos judeus, só aos cristãos. Meu pai se pôs a averiguar qual era a religião que batizava mais barato e ele viu a evangélica, aí ele teve de convencer-nos de que nós nos deixássemos batizar. Eu, apesar de que não era religioso, na realidade acabava de saber que era judeu. Eu não queria abandonar a religião em que nasci. Porém meu pai me convenceu e me explicou que teria que ir ao ginásio e estar na classe de cristãos, para não dar lugar a problemas. Quando no pátio do ginásio estávamos todos misturados, o diretor explicou que os cristãos teriam que estar à direita e os judeus à esquerda. Houve uma debandada à direita e à esquerda; quem ficou no meio era eu. O diretor repetiu o aviso e alguns trocaram de lugar. Quando ele repetiu outra vez, eu fui pra esquerda e subi na classe dos judeus. Na classe, o professor repetiu outra vez que se por acaso algum cristão estudasse ali, que saísse. Eu creio que um se levantou e se foi. Eu não me levantei, porém fui pra casa com 39 graus de febre, por ter sido obrigado aos 11 anos a decidir entre conveniência e dignidade, ou que isso é a mesma coisa que identidade. Desde então, sei quem eu sou e onde pertenço. E assim chegou o momento de viajar e sair da Hungria em novembro de 1939.
P/1 – Só um minuto, depois a gente retoma. Antes disso o senhor se lembra da sua casa na Hungria? A casa em que o senhor morava?
R – Tudo, pode perguntar o que você quer.
P/1 – Como era a casa?
R – Não era casa, era apartamento. Era apartamento dos meus pais em Budapeste, estava mirando para a Avenida Circular principal de Budapeste, que se chamava e se chama Oikörút. Kör é circulo e ut é caminho - um caminho circular. A sala tinha uma protuberância que servia como balcão fechado e mirava para a avenida -

que me servia de lugar de caça, porque eu era um caçador nato de pombas, havia ninhos de pombas. Eu as matava, pobrezinhas. Hoje eu sou ecológico, antes não era. Era um apartamento muito cômodo, como todo apartamento na Europa, especialmente a central. Tinha uma lareira embutida de construção forte para esquentar o apartamento, as janelas todas eram duplas, porque o frio é muito forte; em cima das duas dava lugar pra por isolamento, para que não entrasse frio. Esse ponto estratégico do apartamento me permitia que a cidade... Eu pude conhecer toda Budapeste, porque eu tinha bastante autonomia pra andar...
P/2 – Senhor Thomaz, o senhor brincava na infância?
R – Brincava, sim.
P/1 – O senhor pode descrever alguma brincadeira que o senhor fazia? O senhor brincava com a irmã?
R – Não, com a irmã não, eu tinha meus amigos de escola. Desde criança eu era amante do atletismo, de ginástica. Tínhamos professor particular de ginástica na casa e a minha irmã também era grande ginasta. Minha irmã, isso depois, veio a ser atleta. E não sei por que razão eu gostava mais da luta greco-romana. Se podia agarrar alguma vítima era lógico que agarrava. Era isso.
P/1 – Como ficou a educação do senhor - porque pegou exatamente o momento que saiu de Budapeste. Como foi isso?
R – Bom, eu cheguei da Hungria já no ginásio e nessa época, com toda a turbulência, era bastante difícil. Quando eu fui, o ensino era truncado, tinha que seguir no novo país aonde chegasse... Bom, aqui não conto tudo, porque nós saímos... Queres que eu leia mais ou menos um pouquinho?
P/1 – Se o senhor lembrar, o senhor pode falar.
R – É porque saímos da Hungria ainda em plena guerra. A guerra começou em setembro de 1939, com a invasão da Polônia. Meu pai já saiu antes, pra Bolívia, e nós estávamos por segui-lo. Tínhamos as passagens pagas para o Barco Pátria, que iria sair de Hamburgo, na Alemanha. Acontece que estava na guerra... E por sorte não pudemos ir a Hamburgo, porque os alemães nos teriam colocado no campo de concentração com finalidade bastante clara, mas se tivéssemos tido sorte de pegar Pátria... Os ingleses afundaram o barco Pátria no Atlântico e meu pai, que não sabia que não podíamos ir, pensou que tinha perdido toda a família e queria suicidar-se. Até que chegou telegrama de minha mãe, [avisando]

que iríamos no barco Augustus, de Gênova, na Itália. Então foi o percalço: nós fomos de Gênova e atravessamos - se é que sei bem a geografia do Mediterrâneo - Gibraltar, Atlântico, Panamá, Pacífico, porque íamos à Bolívia e chegamos ao porto que não é porto, pelo menos não... Era Arica, no Chile, norte do deserto do Atacama. Um porto que não era porto, porque não havia como sair se não descesse de uma escada e pegasse um bonde. Casas que não tinham nem teto, porque não chove.

Se não chove, pra que fazer teto?
P/1 – Mas qual foi a impressão? Porque o senhor saiu de um país completamente diferente, né? Qual foi a primeira impressão que o senhor teve quando chegou nesse local? O senhor se lembra?
R – Em Arica? Uma impressão bem infantil e até freudiana se você quer. É que eu já conhecia o lugar e não me conformava que eu não conhecesse e não recordava, depois de anos. Me diz então: como eu conhecia o lugar? Meu pai me mandou um cartão com a fotografia dele na praça sentado, eu conhecia o lugar, mas esse era o único vínculo com Arica. Depois se tomava o trem para ir à Bolívia, em La Paz. Eu gostaria de ler essa parte, é possível? Nesse ponto, tomamos o trem para La Paz, numa viagem que não chegou de verde mar ao passo do condor, com 5500 metros de altura nos Andes, onde a falta de oxigênio fazia que a maioria dos passageiros estivessem acostados [deitados], compreende? Porque não se podia mover e onde os pássaros desistiram de voar, porque não dava. E a vegetação sem crescer, oferecendo um panorama desértico de montanhas atrás de montanhas, porém o mais surpreendente eram os índios, onde parava o trem. As índias estavam sentadas no solo com suas comidas que vendiam comendo na mão os (ovos chocos?), porém o que mais surpreendia eram os índios que estavam atrás delas, quase todos com os olhos roxos. Só mais tarde eu soube que a maioria sofria de tracoma. Quando chegamos a La Paz, meu pai nos esperou junto com a colônia húngara e organizou uma recepção em nosso apartamento, com direito a comida e frutos tropicais e flores e amigos. Nós ficamos muito aliviados, porque pensávamos que tínhamos saído do mapa do mundo civilizado.
P/1 – Aí o senhor passou a morar lá? Na Bolívia?
R – Em La Paz, a três mil e seiscentos metros de altura.
P/1 – E como é que foi morar lá? A casa? A escola?
R – Aqui escrevo tudo isso: que em La Paz, a três mil e seiscentos metros de altura teríamos que nos adaptar à falta de oxigênio, porém o homem se adapta a tudo. Meu pai tinha... Ah, eu já saltava aqui, vou contestar [responder] o que eu lhe disse. Eu tive que entrar numa escola para poder prosseguir nos estudos, porém eu não sabia espanhol, então meus pais me inscreveram no Instituto Americano, porque eu falava quase perfeitamente o inglês, alemão e todos esses idiomas. E aí pude cursar as classes que me faltavam, porque o sistema europeu era diferente do americano. Na Hungria, eram quatro anos de primário e oito anos de ginásio; na América do Sul, eram seis anos de primário e seis anos de ginásio, depois mudou outra vez. No Uruguai, eram seis anos de primário, quatro anos de secundário e dois anos de preparatório. Em cada lado é diferente. Na Bolívia, o inglês me serviu para poder estudar e aprender espanhol. Então terminei o primário; depois, pra glória da minha biografia, me expulsaram do Colégio Americano porque eu bati num professor. Não gosto que me batam - me parece bastante desagradável -

, então ele queria me bater e foi um pouco diferente. Então me expulsaram.
P/1 – Quantos anos o senhor tinha?
R – Quantos anos? 13 anos, mas não se preocupe, que depois quiseram me expulsar de outro também. Acontece que, nessa época, o Colégio Americano era o único colégio leigo democrata, por isso me receberam lá. E meus pais tiveram que decidir onde me inserir. No colégio alemão era um pouco difícil, porque era um medo do nazismo e no colégio de cadetes, de militarismo, não é comigo. Restavam os colégios católicos: estava La Salle e estava o São Calisto, pra mim era a mesma coisa. Inscrevi-me no Las Salle, um colégio católico. E lá estudei e passei muitas coisas também: por duas vezes quiseram me expulsar, um padre me veio em cima, mas saiu rolando também e, como eu fui agredido, meu pai alegou que... Não me expulsaram até que... Eu era castigado todo dia, nunca saía com meus companheiros porque estava de castigo. Quando eu saía, todo mundo me felicitava. Mas quando fui ao diretor, um padre normando… Em contraposição dos outros, que eram falangistas espanhóis ou fascistas ou nazistas, esse era democrata. E era ele que mais me castigava, mas quando fui [embora] da Bolívia, fui me despedir. Ele me abraçou e me desejou muito boa sorte; me falou pra ler bastante livros e “trate de moderar-se em Caracas”, que para mim significava: “trate de abaixar a cabeça.” E isso eu não aceitei nessa hora, porém eu tive a grandeza... Apesar de que me castigaram todo o tempo...
P/1 – O senhor falou que foi se despedir por quê? O senhor saiu da Bolívia quando?
R – 27 de julho de 1945.
P/1 – Então vocês migraram novamente?
R – Esse termo depende. Em maio de 45 terminou a Guerra Mundial na Europa. Seguiu na Ásia; terminando a Guerra Mundial na Europa, para nós estava liquidado o problema, esse pesadelo nazi-fascista se foi. Estar vivendo a três mil e seiscentos metros de altura - apesar de que eu fui atleta aí a três mil e seiscentos metros realmente - não era um sonho de um homem que pretendia participar da civilização. E meu pai montou uma fábrica metalúrgica e vendeu. Adeus e nós fomos a...
P/1 – Só um minuto, ele montou a fábrica metalúrgica em La Paz?
R – A primeira fábrica metalúrgica da Bolívia.
P/1 – Como foi isso?
R – Como foi isso? Quando ele chegou, nós nem estávamos. Teria que começar alguma coisa. Meu pai era menos poliglota, não sabia nada. Então ele queria abrir uma oficina de conserto de máquina de escrever. Alugou um local e quando foi na segunda-feira, querendo abrir:

“que queres fazer”? Era o dono.

“Como o que quero, eu aluguei.” “Você não alugou nada, não foi comigo, você alugou com alguém, aqui não foi.” Começou assim, mas depois teve uma oficina e depois pôs a fábrica, porque ele sabia fabricar, mas pra isso teria que ter primeiro um capital, comprar maquinário e encarar. E foi e instalou a primeira fábrica metalúrgica na Bolívia em La Paz, na Avenida Montes e teve bastante êxito, bastante êxito.
P/1 – O senhor começou a aprender o ofício na fábrica?
R – Não, eu era estudante. Eu fui à Bolívia como estudante, pra seguir uma carreira que pretendia, de Engenharia. Então nessa época onde eu podia ajudar eu ajudava, porém não era grande coisa.
P/1 – Então depois dessa fábrica ele saiu de La Paz e foi pra outro local, não é?
R – Aí ele vendeu a fábrica e, como eu disse, em 27 de julho fomos a Altiplano, que está a quatro mil metros de altura no deserto, de onde saem os aviões - porque La Paz é um vale, não havia como nem sair e nem entrar de avião. Nós saímos e fomos a Santa Cruz de La Sierra e nessa época não havia caminho, nada. Pegamos um táxi e atravessamos a selva para vir a Corumbá, no Brasil. E em Corumbá tomamos um barco, que não aceitou porque era inseguro, já naquela época. Nós tivemos que tomar, porque não havia condução no Rio Paraguai, cheio de piranhas. Estava olhando sempre onde estavam as piranhas, mas não via. E fomos a Porto Soares, se não me engano, de onde tomamos o trem para São Paulo, três dias. Aí aprendi uma lição sobre cortesia: pelo menos naquela época, era ano de secura e toda a terra era vermelha, roxa; o pó penetrava por todos os lados e todos nós éramos ruivos e sardentos de tanto calor e pó. Estava com meus pais e subiu uma moça grávida. Subiu e estava parada. Eu me levantei e dei a ela o assento. Eu não sabia de onde ia pra onde ia e ficamos oito horas parados, nunca mais eu ia fazer a mesma coisa. Bom, aí chegamos a São Paulo, chegamos em agosto...
P/1 – De que ano mesmo?
R – 45. Tivemos a oportunidade de ver a volta dos pracinhas da Itália, que desfilaram na Avenida São João. Eu tomei parte de todos os acontecimentos históricos por onde eu passava.
P/1 – Só uma perguntinha, o senhor já era jovenzinho nessa época, né?
R – Bastante.
P/1 – Muita informação, muita leitura. O senhor teve alguma militância política?
R – Sim.
P/1 – Como foi isso?
R – Bom, em La Paz, na Bolívia, era sempre um regime militar ditatorial. Nos últimos tempos, estava no poder o General Villaroel, porém quem estava atrás dele era Paz Estenssoro; era intelectual, não militar. E naquela época... Você sabe a piada que boliviano, quando via um político americano, perguntava: “Como era a situação, que partidos havia?” “Fascistas, nazistas.” “E democrata, não há nenhum”? “Ah não, democrata somos todos.” Então essa era a piada: as pessoas eram fascistas, mas diziam que eram democratas e ele era a eminência gris, cinza, que estava mexendo. Eu nunca simpatizei com ditaduras militares. Isso parece herança paterna e na Bolívia havia serviço militar obrigatório para colégios. Era todo sábado, eu mesmo passei quatro anos fechado, porque já no primeiro tempo, eu mandei os instrutores pastarem. E formei um partido ilegal, porque todos os partidos eram ilegais, desde antes, o que podíamos fazer? Propagandas de boca nos colégios. Numa oportunidade, levaram um pessoal; um amigo meu, o Borranic, e fui reclamar na delegacia onde estava meu amigo. Como era um regime democrático, o delegado me disse: “se perguntar outra vez, você também quer ir”? Não perguntei por que? Porque levava mesmo. Então as atividades políticas na Bolívia, a essa idade... Era pretensa a propagação de ideias, mas não podia. Eu tomei parte em desfiles; em vez de sermos uma huelga [greve], em vez de atirar-nos bombons, nos atiraram gás lacrimogêneo, causando um pânico que pisoteavam uns aos outros por estupidez, porque não era nada e aproveitávamos para quebrar tudo. Agora isso também era algo, mas enfim...
P/1 – E quando o senhor chegou ao Brasil, o senhor continuou com a atividade?
R – Eu estava ainda no Uruguai nessa época, eu não estava no Brasil.
P/1 – Porque o senhor tinha falado em São Paulo.
R – De São Paulo, eu cheguei... E tive uma vida bastante boa. Nesse momento se inaugurou o Hotel Excelsior na Avenida Ipiranga, com o Cine Excelsior, que tinha um show antes de cada filme, era uma época bonita. Bom, estivemos um mês aqui e seguimos para Montevidéu, no Uruguai... Mas se não sigo o roteiro, vou me perder e não sei onde estou.
P/1 – Aí o senhor foi pro Uruguai depois de um mês.
R – Mas eu me esqueci dos episódios da Bolívia, que são fundamentais, porque sem isso a infância não existe e eu gostaria de contar da Bolívia, não? Meu pai tinha um amigo, que era húngaro. Era um homem muito pitoresco, tinha um metro e noventa de altura, um tremendo homem e, por casualidade e raridade, campesino. São poucos, mas ele era e tinha uma fazenda em Altiplano. Uma fazenda no deserto de Altiplano e era pioneiro na produção leiteira e “canadeira” e a fazenda... Estou falando em português? A estância se chamava Guaíra Condor e tem um papel interessante na minha juventude, na formação da minha juventude. Um dos primeiros episódios foi quando Bleier - era assim que se chamava o amigo de meu pai - me levou ao campo pra ver o plantio da papa [batata]. Os índios estavam trabalhando na terra, quando um deles se volta, nos viu e se levantou, vindo junto a nós. Ele parou e se ajoelhou diante de mim. Eu fiquei atônito, sem entender nada. Eu perguntei a Bleier o que queria o índio. Ele me disse: “ele quer que lhe diga algo“. Eu perguntei: “e que algo”? “Põe uma mão na cabeça dele e murmura alguma coisa”. Fiz isso e ele se levantou, se inclinou agradecendo e se foi. E assim foi que bendisse pela primeira vez a alguém e isso deixa marca. Outro episódio anos mais tarde - eu teria 14 anos - em Guaíra Condor, que me deixou profunda impressão, era meu costume de ir passear pelos “banhados”. Você sabe o que são “banhados”? E tentar caçar qualquer coisa com pedras, bastões ou o que tinha na mão? Eu cheguei a um pequeno banhado, quando vi um grande pássaro voar em círculos ao redor do banhado. Olhando melhor, vi que era uma águia que voava em círculos cada vez menores e mais baixo ao redor do banhado, devia estar se aprontando para pegar alguma presa. Eu me pus a procurar uma pedra não muito grande e nem muito pequena para ver se podia pegar a águia. Eu nunca fui um exímio atirador, porém eu tinha bastante pontaria. Eu fui cercando o perímetro do banhado e calculando quando ia dar a volta para passar em frente a mim e poder lançar a pedra. Era uma questão de sorte: se desse, era fantástico, se não, aqui não passou nada. Chegou um momento que lancei a pedra que lhe pegou na cabeça, fazendo-lhe cair no chão. Surpreendido com minha própria proeza, me atirei em cima dela, segurei as asas e lhe dei a volta, para que não me pisoteasse e nem me agarrasse com suas garras. E comecei a correr pela fazenda, porém a águia foi debatendo e fazia uma tremenda força para abrir suas asas e dar a volta com seu bico para picar-me. Quando cheguei por fim à fazenda não havia nada, só a senhora Bleier na cozinha. Pedi por socorro, mas ela não entendia e cada vez perguntava: “o que é? O que queres?” Eu me descuidei e a águia deu a volta e me bicou e me cortou o lábio superior esquerdo. Quando chegou a senhora Bleier, me perguntou outra vez: “o que queria”? Eu lhe disse: “cordas para a águia”. “Que águia”?

“Aquela que está voando aí.” E essa história eu não costumo contar, porque é difícil de acreditar que derrubei uma águia com uma pedrada, por isso agora digo para mim: “águia querida de minha juventude, guardo-me contigo em minhas recordações.” E os anos foram passando e a Guerra Mundial terminou, sepultando os idealismos dos nazi-fascistas. Era hora de procurar novos horizontes e é história já contada.
P/1 – Então agora a gente pode ir pro Uruguai. Vocês se mudaram pro Uruguai e o seu pai continuou o negócio dele de metalurgia?
R – Bom, aqui... Chegamos ao Uruguai, que era um novo país, com gente e culturas diferentes. Um novo capítulo em nossas vidas, cada um tratando de procurar a dar continuidade à sua vida, eu em meus [capítulos], meu pai no trabalho e minha mãe a procurar um novo lar e como toda história que se conta depois que passou... Nós fomos estabelecendo, meu pai abriu uma indústria metalúrgica, eu cursei o secundário e preparatório de Engenharia e comecei a trabalhar: de manhã com meu pai, de tarde com meu cunhado e de noite estudando Engenharia, depois só trabalhei com meu pai. E depois, quando abri outra fábrica de geladeiras, abandonei meus estudos e, como em todos os contos chega a parte romântica, eu namorei, casei e tive filhos. Estas coisas costumam acontecer nas melhores famílias. E com a força de trabalho progredimos e construímos uma fábrica de mil e quinhentos metros quadrados, casas em Punta Del Este e que enraizamos na sociedade que nos acolheu.
P/1 – Só um minuto, depois o senhor pode até continuar. Antes disso o senhor falou que estava estudando Engenharia e que depois o senhor namorou, mas o senhor teve um grupo de amigos? O que o senhor fazia pra se divertir nessa época da sua juventude?
R – Tive a sorte de formar o... As coisas não são tão propositais como casuais, de ter a possibilidade de ter um círculo de amigos afins e eram, logicamente, todos da Engenharia. Eram figuras bem características para a época e nós formávamos uma barra que aqui se dizia turma e saíamos aos fins de semana juntos. Nós gostávamos de ir todos de bicicleta juntos a passear, isso nos levava... Íamos à praia juntos, jogávamos algum jogo de distração. A parte de romance era individual, era cada um pra seu lado, porém eram pessoas realmente de grande valor entre eles. Um deles é o meu amigo Mayo, que tinha um humor excelente e que cada vez que tínhamos um problema dizia: “bom, decidimos e vamos”, ele mandava, e outra, esse Mayo chegou a ser professor em Matemática. O outro, o Jones, era doutor pela faculdade de Matemática, chegou a lecionar aqui na USP depois. Enfim, vários... A partir disso eu tenho um amigo que nossa amizade durou até dezembro do ano passado. Uma amizade de 64 anos em que ele, Henrique Vanderluz, foi decano por quatro períodos da faculdade de Medicina de Buenos Aires. Ele morreu em dezembro e vai perdendo por aí, no caminho.
P/1 – Como o senhor conheceu a sua esposa? Como foi isso? O namoro?
R – Qual esposa? São duas.
P/1 – Então conta essa história. A primeira no caso, porque o senhor tem dois filhos, né? Conta um pouco desse episódio?
R – São lugares que você não conhece, que não dizem nada pra você, mas para um uruguaio diz. Eu era um moço solteiro e numa noite, não sei por que, entrei numa espécie de bar de uma firma famosa, no Uruguai. Conaprole, de leiteria, produtos lácteos, mas não é para criança mamar, mas sim para mamar maiorzinho. E lá de noite estava uma amiga, conhecida minha, com uma moça que eu não conhecia e me apresentou. Essa foi a minha primeira esposa, aí conheci. Demorou um namoro rápido, de quatro anos para decidir e nos decidimos, nos casamos.
P/1 – No Uruguai mesmo?
R – No Uruguai.
P/1 – E aí o senhor teve dois filhos?
R – Sim.
P/1 – O senhor lembra como foi o nascimento dos filhos? O que o senhor se lembra disso?
R – Lembro. O nascimento de meu filho e posteriormente, em cinco anos, da minha filha foi muito feliz... Eu não vou entrar muito em algumas coisas que também aconteceram. O propósito disso é que me coloca a conhecer o lado mais ou menos ameno das coisas.
P/1 – Tudo bem, mas qual a atividade que seus filhos exercem hoje?
R – Meus filhos? Bom, meu filho está no quarto ponto cardeal do mundo, não estão nenhum comigo. Meu filho é escultor ceramista, tem exposto obras na praça da cidade de Ourinhos, ele mora em Ourinhos. Também é professor e é um homem de talento. Minha filha é... Trabalha no BID - Banco Internacional de Desarrollo [Banco Internacional de Desenvolvimento]. Tem um posto bastante importante e aos 47 anos querem promovê-la, mas lhe disseram que ela volte à faculdade e está cursando faculdade, porque querem elevá-la de posição, lhe premiaram de todo, como se chama... Ela é presidente do BID. E minha filha temporona [temporã], do segundo casamento, está casada em Nova York; graças a Deus, muito bem. Trabalha, o esposo também trabalha e se defendem lutando e de vez em quando - vai ser agora, no fim do ano - nos visitam todos. Como dizia a emigração do Uruguai: “o último que sair, que apague a luz” para ver o pai antes que tudo isso...
P/1 – Então só retomando o Uruguai, como é que o senhor veio parar em São Paulo depois?
R – Como vim parar em São Paulo? Está aqui (no papel) senão, não dá...é bravo isso. Bom, eu disse que... Vou lendo em espanhol, as histórias têm os altos e baixos e o Uruguai começou a entrar em sérias crises econômicas e políticas. Em 1962 as crises econômicas começaram a pipocar, com quebras fraudulentas que nos afetaram diretamente. Fomos vítimas de três quebras fraudulentas, porque cassinos quebraram, meu pai deu infarto e não trabalhou nunca mais. O meu cunhado também quebrou e teve que emigrar ao Brasil; eu fiquei só, à frente da indústria que pude levantar depois de dois anos, porém aí começou o problema político. Aí começou a subversão dos Tupamaros, que eram de extrema esquerda e que

apoiavam o sindicato dos metalúrgicos, que era comunista. Nessa época, os sindicatos não perseguiam melhoras nos interesses econômicos dos obreiros [operários]; exerciam um sindicalismo político, cuja finalidade era a destruição do sistema capitalista e a imposição de uma ditadura de proletariado.

Para essa finalidade, sabotavam a produção industrial e chantageavam os industriais, que não tinham a consciência limpa de enfrentar o Estado em frente aos obreiros. Como eu estava em pleno progresso e não fazia caso das pressões sindicais, optaram por organizar clandestinamente em minha fábrica em sindicato interno comunista. Começaram a nos sabotar a produção e depois as provocações físicas: quebraram o nariz e três costelas de meu capataz e mandaram um homem que conseguiu emprego em pouco tempo a entrar no escritório e, sem mais, começar a golpear-me. Tiraram-me de cima quando eu estava quebrando a cabeça. Depois começaram as huelgas [greves]. Depois de várias huelgas, exigiam que se fizesse outra huelga e selavam a fábrica por três meses. Aí a comissão diretiva do sindicato, que eram três pessoas dirigidas pelo secretário general [geral], que era Luz Dias - a quem eu, como era um bom operário, lhe dei carona na motoneta Vespa -, chegaram pisando forte no piso de cimento e anunciaram que iam ocupar a fábrica. Era costume que, nessas circunstâncias, o proprietário chamasse a polícia, que desalojava os operários, porém eu já estava cansado de tantas provocações. Nunca antes houve huelga, porque sempre aumentávamos o “saldo” [salário] antes dos outros, por minha formação socialista e de meu pai. Sempre fizemos reuniões e tratávamos bem a todos, por isso quando me implantaram essa decisão eu lhes disse: “lhes dou dez minutos para deixar a fábrica, depois de dez minutos vou entrar e começo a disparar e o primeiro que mato és tu, Júlio Dias, Luz Dias, assim saiam já.” E nessa época eu sempre estava armado e eles me conheciam, me conheciam porque eu me pegava na casa com piqueteiros, que vinham me provocar com garrotes envoltos em papel periódico [de jornal] e que cumpria o que prometia. Por isso algo que é difícil de crer: aos dez minutos, quando entrei, não havia nada na fábrica, de mais ou menos 80 funcionários; porém depois, ao tranquilizar-me, considerei a possibilidade de realmente haver podido matar e me transformar em um assassino. Dei-me conta de que não valia a pena e decidi vender a fábrica. É por isso que estou aqui no Brasil, esse é o contexto da sua pergunta.
P/1 – E a sua chegada ao Brasil, como vocês fizeram pra estabelecer a vida aqui? Pra viver aqui?
R – Eu vim pra São Paulo em março de 69 e em três meses instalei uma fábrica de lustres. Em 70 já expus na UD [Utilidades Domésticas] do Ibirapuera, a família que deu lucro no Uruguai e eu ia e vendia, porém de repente eu vi que eram todos... Me vi atado a novas circunstâncias. Em 1973 me divorciei e isso produziu uma nova crise em minha vida; entretanto, meu pai e minha mãe vieram e se estabeleceram em Guarujá, a praia e o mar prolongaram a vida do meu pai, que morreu em 1975. Eu tinha um relacionamento difícil com meu pai, porque tínhamos características muito parecidas, porém havia 100% de confiança e de solidariedade entre nós. Por isso, com todos esses sentimentos contraditórios, eu não sabia na realidade o que significava meu pai pra mim. Quando meu pai estava morrendo em meus braços e eu queria reanimá-lo chamando-o, num determinado momento abriu os olhos e me disse: “não vês que estou morrendo”? E morreu e eu que sofri aquele golpe a ponto de ter que me tratar, por isso algo que expressa como eu me sentia é a primeira estrofe de um verso que lhe dediquei: “não sendo bela, eu me esmero ante tua tumba, te recordo e guardo”. Porém, tudo que passei na vida, à procura da felicidade, é o que norteia consciente ou inconscientemente os nossos atos. E logo que cheguei vim a encontrar um novo amor, Ana, e constituir com ela uma nova família, com uma filha, a Sandra. Há tantas coisas a contar, sucessos e fracassos, calmarias. E nessa época eu construía casas. Em geral, eu construía duas casas, que vendia pra depois construir outras duas, até que me procuraram do Banco Real, me oferecendo financiamento para construir mais casas. Eu não queria a princípio, porém depois venceu a sedução. Eu comprei terreno para oito casas,mandei fazer o plano e comecei a construir em agosto de 77. Em novembro de 77, o Ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen firmou um decreto encerrando o financiamento de venda de imóveis. Eu fui falar com o banco pra perguntar o que fazer, não podia parar a construção e o gerente me disse que não me preocupasse e que seguisse a construção, que “o banco me conhece e não é problema”. Eu segui e a cada mês o banco me mandava uma carta, com a conta de juros e correção monetária. Terminei a construção em novembro de 78. Abriram de novo o financiamento e em um mês eu vendi todas as casas. Ao pagar ao banco o financiamento, os juros e a correção monetária, chegou ao solo a pretendida ganância; sumiu todo o meu capital, deixando-me praticamente sem um centavo. Tive que vender lojas, os quadros e as alianças de casamento com Ana, que desde então não temos. Isso aconteceu comigo aos 50 anos, em que me vi ante a necessidade de reconstruir urgentemente a minha vida. Consegui representação no ramo têxtil, no qual tinha um profundo conhecimento, ao ponto de não distinguir um tecido de outro, porém eu aprendi e fui me estabilizando. Minha mãe seguia vivendo em Guarujá, apesar de eu insistir pra ela vir viver conosco, porém ela queria sua independência. Assim que a visitávamos em Guarujá era uma festa, quando desfilava com sua neta Sandra na Costaneira e no almoço servia sua famosa sopa húngara. Porém, uma noite, me chamou uma amiga de minha mãe de Guarujá, dizendo que minha mãe não se sentia bem Parecia-lhe que eu devia ir buscá-la imediatamente e trazê-la a São Paulo pra atendimento médico. Voltei a Guarujá e trouxe minha mãe a São Paulo, onde imediatamente chamamos o médico do coração. Minha mãe não se queixou nem uma vez e quando o médico examinou e mandou interná-la imediatamente, minha mãe se levantou e foi despedir-se da Ana. Mais tarde, Ana me contou que ela pediu-lhe que cuidasse de mim, depois beijou e abraçou a Sandrinha e, saindo, começou a cantar uma música húngara que dizia mais ou menos: “querido, se me for, não te olvides (esqueças) de mim.” Quando chegamos ao hospital em seguida, a puseram numa cama e eu só tive tempo de dar-lhe um beijo de lado, nunca mais a vi com vida. Depois de 27 anos de sua morte… Eu sinto a sua falta, senti tolhido o meu coração e depois de alguns anos lhe dediquei este verso: “Mãe, onde está a casa de vidro que prometi construir debaixo do mar, onde estão aquelas tardes de verão quando me deitava em teus braços a descansar. Onde estão tuas brancas e finas mãos que me partia em carícias e velozes sopapos. Onde está a sua doce cara sorridente, de seus cálidos beijos, que falta eu sinto. Onde está teu amor que tudo suaviza e a harmonia que de ti se expande, o vazio que deixaste me estrangula, onde estás, mãe?” (emocionado) Bom, agora temos que ter uma pausa pra refrescar.
P/1 – O senhor quer tomar uma água, o senhor retoma... O senhor lembra onde parou?
R – Claro. Apesar de tudo, não estou totalmente...
P/1 – Então retomando, o senhor tinha falado da sua mãe, né? Pode continuar.
R – Bom, para continuar, só através da enorme sabedoria do tempo, porque o tempo cicatriza as feridas e o tormento da vida segue, se alastrando numa luta. Quando lhe dão uma pausa para olhar a dor, constata que os filhos, que no meu caso são Pablo, Marion e Sandra, construíram novas famílias, que me deram netos e que estavam nos quatros pontos cardeais do mundo. Porém, no meio do caminho, o meu coração quis chamar minha atenção para com ele e tive três infartos, com três internações na UTI. Depois de estar internado há mais de um mês e chegado de um exame a outro, quando o médico responsável por meu atendimento estava me acompanhando - outro exame, levando-me em uma cama rodante - eu lhe chamei e lhe disse: “doutor, isso não é vida”. Ele concordou e no dia seguinte me operaram: me puseram duas safenas e uma mamária e, na confabulação da tecnologia com a mais bendita desilusão, me prolongou a vida. Estava próxima a intervenção de uma angioplastia, que me permite viver esse tempo suplementar. Por esses acontecimentos escrevi esta poesia: “Cada vez que me ponho a escrever, me pergunto se valeu a pena, se cada linha escrita não soa como uma despedida. ‘Vive teu dia-a-dia’, eu me disse, nada conheces do tempo, se morre em todas as idades, porém eles não conhecem o cálculo da probabilidade. E os anos passam e de repente não se dá conta que envelheceu, que as horas do calendário vão caindo inexoravelmente e que estou por celebrar um novo aniversário: 79 anos, quase 80... Quem? Deus não brinca, pois sim e por isso estou fazendo agora um retrospecto. Trabalhei, batalhei, iludi, não tive tempo de viver. Ao lado de roseiras passei, porém só espinhos pude perceber e agora com a cabeça encarecida, com três infartos e três pontes de safena, contemplo com outra ótica a vida e me pergunto se isso é sabedoria. Sábia ou não, é mais uma etapa em que desejo paz e calma, em que anseio por suaves perfumes, músicas harmoniosas e lindas cores, sentir no rosto a suave brisa, escutar das moças sua alegre vida, sentir-se parte desse universo e poder contá-lo nesse verso.” Bom, me pediram que incluísse uma fotografia minha, aí está resumida a minha biografia.
P/1 – Quantos anos o senhor tinha aqui?
R – Essa fotografia minha é aos 23 anos. É como que eu gostaria que se recordassem de mim, de uma época quando a vida sorria com todas as suas promessas para mim. E também me pediram e aqui vai uma fotografia da época em que tentava cobrar as promessas. Obrigado, estou a tua inteira disposição.
P/1 – Quais as principais lições que o senhor tira dessa sua trajetória de vida?
R – Há um grande literato, um poeta húngaro, que se chamava Madách. É o maior dramaturgo e poeta húngaro, que escreveu a imitação de Goethe, “O Fausto”. Escreveu “A Tragédia Humana”, a tragédia do homem e nele escreve através de todas as épocas, vê todas as coisas para achar a felicidade e passa por tudo, desde a construção de pirâmides, milhas e milhas morrem por colocar uma pedra imóvel. E depois de ver toda essa luta, a pergunta é: onde há Mefisto? Qual é a lógica? Qual é o destino? E Mefisto disse: “homem luta e confiando, confia”. Acabou, não tem explicação, não tem consequência. Põe teu grão de areia, deixa herança e já cumpriste, não és um indivíduo que faz destino, é a lei numérica: se em 20 gerações há um que aporta algo, realmente está cumprido o destino. E a nossa função é dar continuidade a esse destino.
P/1 – Como o senhor se sentiu ao ter dado esse depoimento pra gente?
R – Bom, depois da bateria de exames que sofri essa semana e que não me deram o veredicto final, estou tentando levar a vida o melhor possível, o que é bastante difícil. E recebi que vou ver meus filhos esse fim de ano pra essa casualidade de datas que está por aí, de participar até que se possa fazer o melhor possível para eles, que é minha única função. Muito obrigado.
P/1 – Eu que agradeço.