Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Antônio Carlos da Silva Sales
Entrevistado por Maiara Moreira e Isabela de Arruda
São Paulo, 8 de Abril de 2010
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV264_Antônio Carlos da Silva Sales
Transcrito por
Revisado por Erick Vinicius de Araujo Borges
P - Antônio queria começar agradecendo por você ter vindo aqui conversar com a gente e queria que você falasse para gente o nome completo, data e local de nascimento.
R - Meu nome é Antônio Carlos da Silva Sales, nasci em São Paulo, capital, no dia 8 de julho de 1960, no Hospital Leonor de Barros. E, apesar dos meus pais serem de fora de São Paulo – minha mãe ser da região do Nordeste, do Piauí, e o meu pai ser do Ceará -, me considero um paulistano, porque vivi uma época de São Paulo, bem quando estava começando, onde todos os imigrantes e migrantes tinha bom convívio e era uma cidade mais humana.
P - Queria que falasse o nome dos seus pais e se você sabe como eles se conheceram, a história deles um pouquinho.
R - O nome do pai é Evangelista Ferra de Sales e o da minha mãe Maria das Neves Silva. Eles se conheceram no bairro da Vila Mariana. Minha mãe já vinha de um segundo casamento, um pouco mais velha que meu pai. Meu pai foi o primeiro casamento. Meu pai trabalhava no comércio, na época, vendia pano, roupa, essas coisas, trabalhava na parte de tecido; vendia tecido para alfaiataria, na época na região do Brás. Nós moramos na Vila Mariana. Conheceu minha mãe que, na época, trabalhava num restaurante de cozinheira. Eles se conheceram e desde o casamento, nasceu a minha irmã mais velha, Ilda da Silva Sales, e depois foi quando nasci. Eles se conheceram em 57 e nasci em 60.
P/1 - Quais as lembranças que você tem deles? O jeito que eles eram...
R - A lembrança que tenho da minha mãe... Era uma pessoa com todo aquele sistema: acordava muito cedo, já era fã de rádio, eu lembro que era o único aparelho que a gente tinha em casa, era um rádio. Nós não tínhamos televisão nessa época; fui só ter televisão em 1970, por causa da Copa. Mas antes era o rádio. Minha mãe era uma pessoa que acordava muito cedo para preparar as coisas e a gente ouvia muito rádio. A gente tem isso. Era uma pessoa que cantava, gostava de cantar, de brincar. Era uma pessoa alegre. Meu pai já era um pouco mais sério, mas eles tinham uma boa relação com os vizinhos. Com a vizinhança. Minha mãe era daquelas que fazia alguns pratos e levava para vizinha. A vizinha também, quando fazia. Tinha até uma brincadeira de que não podia devolver a vasilha vazia. Sempre com alguma coisa. Você ganhava e entregava. Lembro de que quando era muito garoto morei na Vila Mariana e eram as vilas, aquelas vilinhas fechadas, onde as pessoas ficavam no final da tarde todo mundo na porta da sua casa e conversando, punha-se cadeira para fora e falava. Isso foi muito importante na minha infância. Cheguei a fazer piquenique no Bosque da Saúde, porque tinha uma família italiana próxima à nossa e muito amiga da minha mãe, essa família tinha o hábito de fazer piquenique, era levar todos os alimentos, estender uma toalha na grama, e a gente chegou a fazer isso no Bosque da Saúde, na época. Só tinha a igreja Santa Tereza, que era onde parava o bonde e lá a gente ia fazer esse piquenique. Nessa época a Praça da Árvore tinha árvore; tinha coreto, aos domingos a prefeitura pagava alguns músicos que iam lá tocar, fazer serenata... Era muito legal. Eu consegui ver a cidade assim. Era uma cidade mais humana, por exemplo: minha mãe, se alguém estava doente, preparava-se chá, remédio. Foi uma coisa muito bonita que vi de São Paulo, são os tempos que a gente vê que sumiu, acabou.
P - Como era a sua casa, a casa onde você morava?
R - A nossa casa sempre foi simples. Foi aquela casinha simples, com quartos, cozinha, não tinha sala, mas essa cozinha era um pouco maior, fazia de sala. Fui criado assim, onde todos se sentavam à mesa. Não tinha o sofá, o artigo sofá. Tudo o que se discutia, tudo, quando se recebia alguém, era na mesa da cozinha. Era uma casa pequena e que a gente tinha esse jeito de viver.
P - Você lembra de algum costume que tinha na sua família, alguma tradição?
R - Ah, sim. Semana santa, por exemplo, minha mãe fazia paçoca. Que é pegar o amendoim, a farinha e fazer assim igual a essa paçoquinha industrializada. Então tinha paçoca, canjica. Época de São João fazia-se fogueira mesmo, porque o nosso quintal era de terra, tinha quintal de terra. Uma das coisas que não esqueço quando criança é que quando chovia – até hoje isso me lembra -, quando chove e eu olho para uma janela, muitas vezes ficava olhando a chuva pela janela, com vontade de brincar. Mas como o quintal era de terra e por causa da chuva a gente não podia brincar, então você ficava preso dentro de casa. Sempre foram casas com quintal. A gente nunca morou, na época não se morava em apartamento, essas coisas assim. Não era habitação da época, muito poucos que tinham.
P - E quais eram as suas brincadeiras preferidas?
R - Brincadeiras preferidas sempre foi assim, peão, bolinha de gude, empinar pipa, jogar bola – isso era o mais fácil, sempre estava acontecendo -, uma coisa que gostava muito e hoje vejo, na época, a gente jogava o taco. O taco era fazer umas casinhas, nas quais a gente punha uma madeirinha e com uma bolinha de borracha, tipo de camurça – a gente falava -, que era de camurça, a gente batia com um pedaço de madeira, a bola ia longe e as pessoas que estavam com o taco, cruzava-se o taco e fazia-se ponto. O ponto maior era quando derrubava a casinha; trocava-se o taco quando derrubava a casinha, porque a pessoa com o taco não fez uma boa tacada e deixou bater na casinha e derrubar. Isso eu lembro muito bem, era muito gostoso. Jogar botão também, uma das coisas que gostava muito era jogar botão. Jogo de futebol de botão. Tinha campeonatos, tudo. Isso foi até os meus 10, 11 anos de idade. Já em outro bairro, na Vila Moraes. Começo de infância, Vila Mariana; depois, Vila Moraes.
P - Por que vocês mudaram?
R - Porque quando a gente morava na Vila Mariana, o meu pai pagava aluguel. O sonho do meu pai era comprar imóvel próprio. Na época, estava tendo loteamento muito grande na região do Jardim da Saúde, Vila Moraes e ainda estava começando no Parque Bristol. Meu pai, na época, meu pai e meu tio, eram duas pessoas que pagavam aluguel na Vila Mariana, foram e compraram terreno e com muito custo construíram a casinha. Na época era muito difícil mesmo porque não tinha ônibus. Os ônibus chegavam até o Jardim da Saúde, na Avenida do Cursino, na Igreja Sagrada Família. O restante, que era mais adentro da Avenida do Cursino, sentido de quem vai para o Zoológico, tinha que se fazer a pé. Ou seja, andava 15 a 20 minutos para chegar no local de ônibus para poder acessar o bairro, Praça da Árvore, já era desenvolvido, Santa Cruz, Vila Mariana, e assim sucessivamente até chegar Paulista, Centro, Bela Vista, que eram os bairros mais desenvolvidos.
P - Tinha muita diferença Vila Mariana para Vila Moraes?
R - Tinha. Primeiro porque na Vila Mariana todas as ruas eram pavimentadas, já existia água encanada, tinha luz e tinha muito mais acesso a transporte. Tinha mais colégios, tal.
P - E a Vila Moraes, como é que era, quando vocês chegaram lá?
R - A Vila Moraes era assim: a avenida principal, Cursino, era cascalhada. Sabe o que quer dizer isso? Cascalhada é com cascalho, com borras de carvão. A primeira viação de ônibus a chegar ao local do bairro era a CMTC. Era a companhia do governo, na época não tinha companhia privada. Era pública e tinha até o bairro da Vila Moraes. As demais ruas, onde a gente morava, onde morei, por exemplo, na rua Professor Francisco Giuliani, era de terra. A Rua dos Operários era de terra, a Rua Marquês de Laje, de terra... Todas as vicinais eram de terra. A primeira a ser asfaltada foi a Cursino. A primeira a vir água encanada foi a Avenida do Cursino, e assim sucessivamente. Então, fui criado assim, desse jeito.
P - Você tem alguma história que marcou a sua infância?
R - A história que marcou muito a minha infância, lembro até hoje, até pela minha profissão, por ser contador e advogado, mexer com a parte economia, ser obrigado a estar sempre atualizado com índice de economia, foi uma passagem que lembro muito bem. Era um dia típico de frio de São Paulo – deveria ser Maio, Junho – e a minha tia me arrumou, minha tia que era viúva, tinha acabado de ficar viúva – isso deveria ser pelo ano de 1965 ou 66 – ela me arrumou, colocou uma roupa para sair, porque antigamente, quando criança ficava de calção, camiseta, nessa época não se usava cueca, não tinha zorbinha – todos os meninos usavam só um calção – ela colocou uma roupa que a gente sempre tinha uma roupinha para sair, mais adequada. Ela colocou, e já sabíamos que íamos sair, porque via já preparando aquela roupa. Saí com ela, pegamos o ônibus na Vila Moraes que ia até a estação Liberdade, não existia metrô, vinha cruzando, subia a Miguel Stefano, acessava a Avenida Jabaquara, assim ao longo da Jabaquara e Vergueiro até chegar à Liberdade e na Liberdade era onde ele fazia o ponto final. Dali, nós caminhamos toda a parte do Centro, região central e chegamos na Praça da Bandeira. Tinha lá um posto de exército, com os rapazes do exército recendo, onde ela foi lá doar, doou as duas alianças, na época, para o exército e recebeu uma aliança que vinha o dizer agradecendo que a pessoa tinha doado o ouro para o bem do Brasil. Depois mais tarde fiquei sabendo que isso era para pagar uma dívida externa, nunca soube direito o desenrolar dessa história. Mas nunca vou esquecer de estar saindo ali, pequeno, ainda colocava-se um chapeuzinho na gente, um casaquinho. Era bem assim, o paulistano se vestia muito bem na época, com muitos acessórios, porque era frio, um dia de frio, nublado e estava uma garoa muito fina e fui com a minha tia ao Centro de São Paulo fazer essa doação, que até hoje, de adulto, passo naquele local e não esqueço mais dessa passagem.
P - Tem mais alguma história da Vila Mariana?
R - Tem. Na época da Vila Mariana, quando morei na rua França Pinto, rua do Madre Cabrini, lembro muito, da Capitão Cavalcante, da Major Maragliano, onde tem um hospício, e não me esqueço, de garoto – são coisas que a gente marca –, quando uma pessoa que tinha doença mental fugiu desse hospício e subiu num poste, onde estavam enfermeiros, pessoas do hospício, polícia, bombeiro, tudo tentando...E o pessoa, na época, da Light estava desligando a energia porque essa pessoa subiu no poste, próximo aos fios de alta tensão, e onde ela podia morrer eletrocutada. Essa pessoa gritava, dizia que não ia descer. Tiveram que tomar essa medida com muito cuidado. O bombeiro foi lá e conseguiu tirar essa pessoa do poste, onde foi aplaudido por todos os vizinhos. Foi uma coisa que nunca esqueci. Nesse trajeto também tinha uma pessoa que, para os mais antigos dessa região, dessa época, eles vão lembrar muito bem. Tinha uma pessoa que na época o chamava de Rubão. Era um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, ele era um dos pracinhas e estava internado nesse hospício. Toda vez que ele ficava ali durante o dia, o deixavam transitar normal – o próprio hospício o soltava -, ficava ali, frequentava a região e à noite ele ia dormir no hospício. Só que quando passava algum avião, fazia barulho, ele tinha crises. Ele dava gritos, deitava no chão. Ou se tivesse passando ônibus, ou tivesse passando o bonde, ele chutava a lataria do bonde e gritava. No bonde ninguém estranhava isso, porque ele tinha isso. Toda vez que passava avião ou barulho de avião ele tinha essas crises. Coisas também da infância que você não esquece, da Vila Mariana. Outra coisa da Vila Mariana que lembro bem é que não existia a 23 de Maio, a avenida, nesse período e a gente descia a própria França Pinto, ou a Joaquim Távora, qualquer uma dessas ruas e ia sentido ao Ibirapuera fazer piquenique, andar. A gente atravessava, eram chácaras, passava o rio e não existia 23 de Maio. Não existia o DETRAN também.
P - Você nadava nesse rio?
R - Era um córrego de água limpa, mas não. Primeiro porque era muito garoto, e era um córrego que ainda hoje está dentro do Ibirapuera – a gente sabe que era um córrego de água limpa, mas tinha pequenas pontes de madeira feita acho que pela prefeitura, ou pelo pessoal local que dava acesso para gente ao Ibirapuera, mas não se praticava nenhum nado.
P - Como eram essas idas ao Ibirapuera? Vocês brincavam...?
R - Isso, a gente brincava, levava bola... Quem tinha pequenas bicicletas, levava bicicletas. E piquenique, lembro que as mães levavam as tortas, esse tipo de comida que não era perecível, porque a gente ia passar a tarde inteira. Então lembro que os adultos levavam assim jogos como cartas, baralho, essas coisas. Tinha uma época que eles improvisaram uma pistinha de malha, principalmente os mais velhos, que eram da Itália, levavam as malhas para depois brincar de jogar a malha que eles mesmos improvisavam o local, o terreno e sempre reclamavam que não era tão lisinha como deveria ser porque eles mesmos que preparavam. Isso lembro bem. Outra coisa que me marcou, vindo para o lado da Vila Moraes, é que a gente era garoto e era uma das coisas que as mães tinham medo era que a gente fosse nadar ali onde passa hoje a Imigrantes. Tinha a represa da siderúrgica ali perto. Tinha muito garoto ou muito adulto que foi nadar naquela represa, diziam que existia uma draga e muitas pessoas morriam lá. Era o medo das mães. Assim, de ter nadado onde era o Shopping Plaza Sul. Na minha época eram chácaras. Tinha o córrego, que até hoje passa ali. Ali eram chácaras, chacareiros que moravam. Aonde era o Plaza Sul era um lugar assim muito acidentado, quando chovia, tanto do lado da Saúde, Praça da Árvore, as águas desciam para aquele rio e também da Avenida do Cursino, Largo Jardim da Saúde para onde é hoje o Plaza Sul. Ali faziam várias bacias de água, várias lagoas e a gente nadava. Aonde era o Plaza Sul hoje, a gente nadava. E, onde hoje é um posto de gasolina entre a Miguel Estefano e próximo à Nossa Senhora da Saúde, naquele lugar, tinha uma estribaria muito grande onde o pessoal que tinha cavalos, carroças, vendiam verduras, fazia as coisas, iam lá ferrar, pôr ferradura nos cavalos. E hoje a gente passa, tem os posto de gasolina, tem as coisas, é muito interessante ver que teve essa mudança. Isso estou falando tudo coisa que aconteceu há 40, 40 e poucos anos atrás. São Paulo era bem diferente. Uma das coisas boas: estudei no Júlio Ribeiro, na Vila Moraes, fica na Avenida do Cursino, próximo à Avenida Dom Villares, famosa 3 Tombos, uma avenida que mostra bem como era acidentados os terrenos daquela região. Hoje estão cobertas por construções, mas na época que eu era garoto, eram grandes barrancos. Até acessar onde hoje é a Anchieta. Por isso que tem aquelas elevações até acessar as 3 Tombos. Estudei no Júlio Ribeiro, era uma coisa interessante, que apesar de ser um colégio estadual, tinham professores muito bons. Tínhamos ali como professor, em 67, 68, a técnica da seleção brasileira de basquete, que dava aula de educação física para minha irmã, que é três anos mais velha que eu. Nós tivemos professores de música que pertencia à Orquestra Sinfônica de São Paulo, que era a Laís, morava na Luis Góes e dava aula para gente lá na Vila Moraes. Eram pessoas que a gente via com um poder aquisitivo maior que a nossa região e davam aulas com todo prazer. Eram professoras de carreira, professores que vieram tanto com uma educação pessoal, cultural com mais valores até do que a gente tinha adquirido dos pais da gente. Eram professores que ajudavam a levar para vacinar, no posto. Punha no carro e levava, fazia a parte social. Também sempre inscreviam a gente no Festival da Canção. Interagíamos com os colégios do Bosque da Saúde. O Júlio Ribeiro também interagia com esses colégios, com jogos, handball e futebol de salão, com pequenas coisas de atletismo, como corridas de curta distância. Até o ponto que a gente participava dos Jogos da Primavera, lá no Ipiranga – não sei se existe ainda – na rua do Fico, no Clube Atlético Ipiranga. Professores, por exemplo, como essa professora, que pegavam, conseguiam arrecadar entre os pais e levar uma sala de aula para assistir um jogo de basquete no Ginásio do Ibirapuera. Então me sinto muito feliz de ter estudado numa escola estadual. Fiz admissão, porque para você sair do primário para ir para o ginásio, na minha época, fazia-se exame de admissão. Se você não passasse, ia ficar estudando mais um ano fora de continuar o curso. E fiz no último ano, depois não tinha mais admissão. Tinha essa sorte e azar ao mesmo tempo, que depois do meu ano não teve mais. Eram professores que víamos eram totalmente dedicados aos alunos. Sinto-me muito valorizado na minha educação primária. Tive inglês, francês, aula de música, mesmo sem ter instrumento – eram feitos com garrafas, improvisado, para gente conhecer as notas musicais. Era muita dedicação. Tanto que deste colégio saíram algumas pessoas que fizeram teatro com professores de literatura, também era envolvida com teatro e hoje são atores da Globo. Como Giuseppe – eu não sei falar todo o nome dele, mas o sobrenome é Giuseppe -, que estudou com a minha irmã, na época, era uma pessoal que tinha condição e foi fazer teatro, essa professora levou um grupo de pessoas para fazer teatro. O Márcio, que foi jogar no basquete, jogou muitos anos no time da Telefonica, e era um rapaz alto. Teve oportunidades. Meu colégio dava oportunidades, tinham coisas assim, a gente estava vivendo uma ditadura. Mesmo assim, a gente tinha ainda essas coisas. Aquele colégio tem uma coisa interessante para quem estudou lá: quem estudava no primário era Julio Ribeiro; quem estudava no ginásio, era Charles de Gaulle, vim saber que era presidente da França na época Segunda Guerra Mundial. Era gostoso estudar ali, gostei muito de estudar. Bessa época o máximo que você via era um aluno ou outro escondendo que estava fumando um cigarro do pai. Mas a gente não tinha nem conhecimento de droga nessa época. De vez em quando vou visitar, passo por ali, entro... Tinha Festival da Canção dentro do colégio. Minha irmã chegou a ganhar. Nunca ganhei, nunca fui um bom cantor. Mas minha irmã ia e eu acompanhava. Essa minha irmã mais nova chegou a ganhar. Era gostoso estudar. Ficava triste quando tinha férias, porque na escola você interagia, na escola você aumentava seu número de amizades. Hoje, na minha área, atendo ainda amigos meus que são de outras áreas, me procuram como profissional e daquela época. Então vivi muito aquela época. Comecei a trabalhar com 15 anos, com 15 anos presenciei, do Viaduto do Chá, como contínuo do Banco Noroeste, presenciei o incêndio do Joelma. Também foi uma das coisas que me marcaram. Na época olhei, vi um incêndio, continuei a trabalhar e depois mais tarde fui ver pela televisão que foi um dos maiores incêndios que teve em São Paulo, talvez no Brasil. São essas coisas assim. Agora você me pergunta.
P - Na sua juventude, antes da gente entrar na parte do seu trabalho, que lugares você gostava de ir? Você tinha um grupo de amigos?
R - Ah, legal. Olha, na minha juventude a gente gostava de cinema e dançar. Bailinhos, que, a gente ia a clubes, que era mais difícil até pela nossa idade –acabava acontecendo de ter os bailinhos no bairro. Por exemplo, na sexta feira a gente já sabia, através dos colegas da escola. A escola, para nós, era onde tudo interagia do bairro. Ainda mais quando a gente foi passando a infância para pré-adolescência, a escola era a nossa internet de hoje, da comunicação. Você sabia na sexta-feira - tinha às vezes no mural, na lousa – onde ia ter o bailinho. Eram bailinhos assim: fundo de quintal, com lona, com luzes improvisadas. Se você queria ter uma luz mais escura, então pintava para imitar as luzes dos bailinhos que a gente ia, de salão. Então era ou baile na casa de família, dos amigos, ou a gente ia na Bosque da Saúde, no clube Aquários – não sei existe, deve existir ainda.
Ali era onde tinham os bailinhos mais próximos, a gente podia ir numa matinê. E ia também ao Cine Estrela, que lá na Praça da Árvores, onde hoje é um bingo, não sei o que virou lá. A gente ia ao Cine Cruzeiro. Cinema a gente tinha vários. Não na Vila Moraes. Sempre saindo da Vila Moraes. O Cine Cruzeiro era na Ana Rosa. Tinha o Cine Maracanã, no Ipiranga, já quase com a Nazaré, era mais próximo da Vila Moraes para ir. Saindo de lá, a gente vinha do Alê, que já era na Paulista; a gente ia para o Atlético do Ipiranga, que também tinha bailinho, formaturas, coisas assim. O que a gente gostava de fazer era isso. A turminha, ou estava dançando, ou estava no cinema. Porque aí se reunia com as meninas. A gente jogava bola. Tinha dificuldades às vezes para conseguir a quadra da escola. Mas começou a surgir várias pracinhas onde os prefeitos começaram a urbanizar as pracinhas. Principalmente no Jardim da Saúde, na Rubens do Amaral tinha uma pracinha que tinha quadra. Ia toda aquela molecada daquela região, às vezes não dava nem para jogar, porque você tinha que esperar muito para conseguir jogar e era só três gols: perdeu, saiu, já tinha o próximo. Tinha essas dificuldades no futebol. Ou a gente vinha até o Ibirapuera, tinha mais quadras também. O acesso era mais longe, mas a gente fazia isso também.
P - Agora sobre o seu primeiro emprego, como foi?
R - Hoje a meninada pede para o pai um computador, já começa digitando, fazendo as coisas. Na minha época, você fazia um curso de datilografia se queria entrar num escritório, trabalhar num escritório. Você tinha que fazer um curso de datilografia. Primeira coisa quando você ia procurar um emprego “Sabe datilografar?” Então se a pessoa não sabia... Eu lembro que tanto eu, quanto a minha irmã fomos para Cursino com Bosque da Saúde, era um sobrado que tinha uma senhora, acho que chamava Lia e ela que administrava os cursos de datilografia. Aquelas máquinas antigas. Fiz seis meses de datilografia e depois tinha a prova final, teste, quantos toques por segundo. Aquela coisa toda que deixava a gente com medo. Graças a Deus tanto a minha irmã, quanto eu tiramos o diploma, temos até hoje. Aí sim fui procurar um trabalho. O primeiro emprego que tive foi de office boy, era difícil quando você não tinha experiência. Andei muito. Foi bom, conheci bem São Paulo, já com 14, 15 anos, porque pegava o anúncio de jornal, olhava os empregos e ia atrás. Com isso fui a vários lugares, conheci bastante a cidade, o Centro e alguns bairros próximos, em ruas que não tinha ido. Comecei a trabalhar desta maneira. Mas o que me ajudou também a ter um bom acesso, ir trabalhar, é que desde garoto sempre procurei fazer alguma coisa para ter um dinheiro próprio, porque era muito importante na nossa época. Você via os adultos trabalhando, tendo dinheiro e você também queria ter o seu dinheiro, as suas coisas, não ficar só pedindo para o seu pai, ou só quando seu pai tivesse condição de te dar alguma coisa. Lembro que ajudava uma costureira, a senhora Rosinete, ela costurava muito para o pessoal da Vila Moraes, costurava para o pessoal da Avenida Angélica. Então o que fazia? Era o garoto que levava as roupas prontas. Ela fazia a sacola, eu pegava o ônibus da Vila Moraes, descia na Saúde, pegava um ônibus que ia para Lapa, passava pela Paulista, da Paulista passava pela Angélica, entregava essas encomendas e voltava, assim ganhava um dinheiro. Além dela fazer algumas roupas para mim também, na cortesia. As calças boca de sino, era muito legal na minha época, era importante, o meu pai não gostava muito. A minha irmã tinha dificuldade com minissaias, na minha época, na criação, do jeito que meu pai era, uma mulher tinha que usar a saia pelo menos 3 dedos abaixo do joelho. A minha irmã, a gente tinha uns pactos. Quando a gente ia para escola, enrolava a saia para ficar minissaia, ficar uma saia menor. Quando fazia alguma coisa que ela falava que ia falar para o meu pai ou para minha mãe, eu tinha sempre “Bom, então vou falar que você, quando vai para escola, você enrola a saia”. São coisas da época que ficaram. Então curti muito a boca de sino, tive Black Power. Não dava para ser o Ronnie Von, tentava pelo menos ser o Simonal, outros caras que tinham o cabelo diferente. Tenho fotos e curti muito. Nessa parte sempre fui eclético, sempre gostei tanto de ouvir dos rocks como também a parte Black. Os rocks da minha época era Black Sabbath, Led Zeppelin, Deep Purple, esses caras. Na minha época era James Brown, Michael Jackson, na época eram os Jackson Five, e outros caras... Ray Charles, outro cara que fazia bastante sucesso nos bailes que eu ia. A gente era assim.
P - Depois da escola, você fez faculdade?
R - Então,
depois da escola fui fazer o colégio técnico. Foi quando fui me distanciando do meu grupo dos bailes. Terminei o ginásio no Júlio Ribeiro,
eu podia fazer ou um colegial normal, que era só estudar e depois prestar o vestibular, ou fazer um colégio técnico. Na época preferi o colégio técnico. Trabalhava no Banco Noroeste como contínuo, como tinha te falado, tinha um amigo em contabilidade e sempre gostei. Trabalhava num banco no setor financeiro, de aplicação, onde a contabilidade era muito exaltada. Falei “Vou fazer Contabilidade”. Esse amigo meu falou “Tem um colégio de graça”. Eu tinha uma opção: ou eu pagava um colégio, que era na Praça da Árvore, ou outro que era na Avenida do Cursino, mais próximo da Avenida Nazaré; ou tentava um colégio público, que tinha no Brás, na rua Piratininga, é o Camargo Aranha, existe até hoje, agora na Mooca. E fui estudar nesse. Fiz, prestei vestibulinho, na época, você prestava. Passei. Uma colega minha, amiga da minha namorada da época, chamava Eunice – que brincava muito com ela, ela era carioca, morava na Praça da Árvore, na rua Dias de Toledo, estudava na Vila Moraes porque não conseguiu vaga na Praça da Árvore; ela tinha vindo do interior do Rio, na verdade a gente chamava de carioca, mas era de Valência, interior do Rio -, ela estudava lá e eu falei com pessoalzinho da Vila Moraes “Olha, tem um colégio técnico. Quem quiser fazer Contabilidade. Eu vou prestar”. Dei as referências. Ela e a minha namorada – na época era a Suely -, a Eunice e a Soraya, que eram as três amigas, resolveram também fazer lá. Minha namorada não passou, a Soraya não passou e só passou eu e a Eunice, que saímos da Vila Moraes, fomos estudar lá na rua Piratininga. Para mim foi o que queria, mas foi um choque. Toda a minha infância era vinculada à Vila Moraes. Saindo do colégio, que comecei desde os 7 anos até os meus 16, 17, quase 18 anos.
P - Vamos continuar, a gente está falando da escola técnica.
R - Quando estudava na escola técnica, na rua Piratininga, na época. Desse vestibulinho, a gente falava que era um vestibular, porque não tinha vaga para muitas pessoas, eu consegui entrar e a Maria Eunice também conseguiu, a Soraya e a Suely, que era a minha namorada, na época, não conseguiram entrar. Eu saí do bairro, fiquei muitos anos estudando na escola. Aquele convívio foi um choque. Pessoas estranhas de outros bairros. Mas, o que foi legal, é que todos estavam também meio perdidos porque todos vieram de escolas de outros bairros. Mesmo assim a gente conseguiu e foi uma escola muito boa, na parte técnica. Tinha sala laboratório. Aprendi muito, cresci muito na minha profissão. O mais legal também é que ficou eu e a Eunice, que era da mesma escola. O meu namoro com a Suely acabou porque não dava. O namoro era legal porque a gente se via todo dia à noite, final de semana era meio ruim de ver porque o pai dela não permitia que ela namorasse. O namoro era praticamente na escola. Como mudei de escola isso acabou não dando certo. A gente acabou se separando. Eu acabei namorando a Eunice; depois de um 1 anos vivendo junto, acompanhando, fazendo trabalho... Não estudávamos na mesma classe, mas trocávamos experiência. Ela fazia Contabilidade e eu também, aí começamos a namorar. Deste namoro, dos meus 18 para 19 anos casei com a Eunice. Já casei meio predestinado porque já tinha o Carlos Henrique, o meu filho mais velho já para nascer, tinha que casar meio rápido. Nasceu meu filho e a gente seguiu na profissão. Depois fui fazer faculdade de Ciências Contábeis na FAI, na Avenida Nazaré. Ela ficava com o meu filho, como a gente ainda não tinha muita habilidade no casamento, naquela época não tinha os programas de natalidade, ela já ficou grávida da minha filha Karine um ano depois, porque falaram para mim que quando amamentava a mulher não ficava grávida. Então ela acabou ficando grávida. Isso é a maior desculpa que dou até hoje. Me via numa dificuldade de pagar aluguel, de pagar a faculdade e de ter 2 filhos. Mas com uma boa habilidade, um mês pagava faculdade, no outro pagava aluguel e assim sucessivamente ia dando um jeito na situação. Primeiro fui estudar, na verdade ela me ajudou muito nisso, nós dois trabalhávamos na área. Tivemos dificuldade com creche, mas conseguimos colocar as crianças na creche. Conseguimos colocar próximo à Avenida dos Bandeirantes, entre a estação Conceição e a estação São Judas. Descobri que tinha uma creche municipal, consegui fazer inscrição. Na época consegui uma vaga para os meus filhos lá. A gente trabalhava, deixava os filhos e pegava. Ela aprendeu logo a dirigir também, me ajudou muito. A gente comprou as nossas primeiras Brasílias. Inclusive tenho até uma foto do meu filho lavando a Brasília. Foi assim que a gente foi crescendo como pessoa. Ela ficou com as crianças porque as crianças eram menores, depois ela foi fazer a faculdade e eu fiquei tomando conta das crianças até ela terminar também. Foi um pacto que nós fizemos. Fomos trabalhar, até hoje e fomos criando os nossos filhos. Trabalhei no grupo Votorantim, depois trabalhei na Sharp. Ela trabalhou na Gradiente, trabalhou no SBT, na época. Assim a gente foi trabalhando e chegou um ponto que resolvemos montar o nosso próprio escritório. As crianças estavam até maiores. Fomos comprando o nosso primeiro imóvel, saiu do aluguel...
P - A gente pode só voltar um pouquinho? A gente tá indo muito rápido. Então, quando vocês se casaram, você falou que teve o seu primeiro filho, depois teve o segundo. Como foi ser pai? Essas mudanças?
R - A grande verdade foi assim: me assustei muito nessa época que a gente teve que casar e teve o primeiro filho. Na época tive muita ajuda do meu pai, me ajudou muito. Minha mãe sempre falava que quando eu tivesse os meus filhos, ela gostaria de cuidar, mas perdi minha mãe aos 15 anos, então tive que me virar sozinho muito rápido. Tanto eu quanto minha irmã. Ficou eu, minha irmã e meu pai, tive que me virar muito rápido. Meu pai, na época, me ajudou muito. Ele me ajudava no sentido assim: como meu pai já era aposentado, do aeroporto, se a gente não tinha ninguém para deixar as crianças, meu pai sempre dava um jeitinho e ficava com os netos.
No sentido, às vezes, financeiro mesmo; meu pai me ajudou muito nessa época. Mas fiquei muito preocupado, uma época de crise no país. Era uma época que tinha muito desemprego. Mas Deus sempre me ajudou profissionalmente. Lógico que corri atrás, mas Deus ajudou a gente. A gente quase nunca ficou desempregado, mesmo nessa época de crise. Trabalhei em empresas sólidas. Quando nasceu o meu filho, eu trabalhava no grupo Votorantim. O grupo Votorantim, na parte de cimento, nunca teve crise para mandar embora. A primeira crise que ouvi falar do grupo Votorantim foi agora, que foi para os bancos, para o segmento de bancos e com a quebra de alguns bancos. Mas o grupo Votorantim sempre foi estável. Era uma família muito grande; eram muitos funcionários que a gente chamava de família. Família Votorantim. Isso me ajudou muito até quando o mercado começou a crescer de novo, vi que já tinha mais capacidade profissional, já estava como auditor, já trabalhava mais tempo na minha área, meus filhos já estavam maiores. Foi quando teve o primeiro Plano Cruzado, aí abriram mais vagas, mais trabalho e na minha área teve muita chance. Que precisava de economista, de auditor, as empresas estavam precisando. Muito contrário, quando abriu tive ainda um passo maior, pude ganhar melhor e resolver meus problemas de família. Mas foi um susto, foi uma experiência diferente; muito jovem, a mãe dela longe, eu sem mãe e a gente teve que aprender muita coisa sozinho, meio no tato. A gente sempre foi responsável, tanto que ela veio para São Paulo para trabalhar também. Largou a região do Rio de Janeiro, próximo à Resende. A gente era lutador. Vejo assim, que a gente era lutador, tinha um objetivo. Éramos já maduros, sérios, porque não tinha mãe, ela estava longe. Ajudávamo-nos mutuamente, não aquela coisa de jovem muito paparicado pelo pai e pela mãe. Não, a gente era muito centrado, sabia que as coisas eram difíceis. Isso ajudou muito, mas foi um susto e, com o segundo filho, foi mais um susto. Muitas vezes a gente ficou pensando que não ia conseguir. Essa insegurança era grande, mas ela também que impulsiona a gente a fazer mais coisas; a trabalhar mais, a procurar outras atividades. A fazer rifa. Eu era aquela cara que fazia muita rifa no trabalho. O pessoal fugia de mim. Hoje compro rifa com o maior prazer, porque quando vejo alguém vendendo rifa lembro das minhas dificuldades.
P - Tem alguma história dessas de rifa, que tenha acontecido que você lembre?
R - Era época assim que estava com uma dificuldade muito grande de saldar o aluguel. Aí lembro “O que eu vou rifar?”, compramos um secador. Esse secador que comprei, o que acontece? Coloquei um preço do valor unitário da rifa bem grande. Então quando a pessoa recebeu o prêmio “Pô, mas só esse secador?” Tive que justificar que – não lembro o valor da época, o dinheiro da época -, mesmo sendo um secador pequeno e tal, mas que pelo o que ele pagou pela unidade do número de sorte dele, ainda compensava. Mas foi meio quase empatando. Então isso teve sim.
P - Antônio, conta um pouquinho para gente, você não falou muito da sua faculdade.
R - Ah, tá, isso. Quando fui fazer faculdade foi legal porque fiz na Avenida Nazaré, na FAI, a minha primeira faculdade e era uma época meio complicada porque às vezes ficava devendo a faculdade. Na minha época, o professor, quando tinha prova, a gente estava devendo a faculdade, vinha alguém da secretaria e chamava para conversar antes de fazer a prova. Aí lembro que quando a gente saía assim 3,4,5 alunos, que graças a Deus não era só eu, o pessoal brincava “Caloteiro”. Mas brincadeira entre amigos. Que doía, mas... Lembro que na faculdade tinha essa dificuldade, mas tinham grandes professores. Aprendi muito com professores que me ajudaram na minha área. Se você trazia alguma dificuldade do trabalho. E era uma época, da faculdade, que nós estávamos saindo dos grandes computadores pros pequenos computadores. Então me lembro que o professor de informática foi um cara muito importante na minha vida naquela época porque, não é que nem hoje, que tem os S.O.S da vida para o que você imaginar. Na época, não. Nós estávamos saindo de computadores de grande porte, que rodava listagem... Para os PCs, os pequenos computadores. Lembro que na faculdade tive muito apoio para aprender, para fazer, para usar bem um Excel... Ali davam umas dicas para gente. Lembro-me que consegui até fazer horas a mais, fora do horário de faculdade e pessoas me ajudaram. Foi muito importante para mim. Mas foi gostoso. Na época também tinha muito de fechar a Avenida Nazaré. A gente, como estudante, fechava a Avenida Nazaré. Tinha que ir mesmo, já estava devendo a faculdade e o cara queria aumentar ainda. Tinha os aumentos da faculdade e quando tinha os aumentos não tinha jeito de eu não encabeçar esses movimentos até porque estava devendo. Fechavam-se as avenidas. Era uma coisa assim meio triste porque atrapalhava o trânsito, hoje quando me sinto prejudicado com isso, lembro da minha época também. Fechava a Avenida Nazaré para fazer manifestação para não ter aumento da faculdade. A gente subia em palanques formados dentro da faculdade, da FAI, falava, fazia reunião com diretor, com reitor, com não sei quem, que não ia receber a gente. Toda aquela história de estudante. O fritar dos ovos aumentava e a gente pagava e tal. Alguns ficavam na lembrança de que tomou empurrão de polícia. Isso aí a gente sabe que era meio complicado. Foi na época da faculdade também que conheci... Bom você ter perguntado sobre faculdade. Foi na época da faculdade que conheci a Pastoral da Terra, era feita na Igreja Santa Ângela. Naquela época se incentivava a ocupação de terrenos vazios. Isso urbano. Muitas vezes eu ajudei. Como? Ajudava os meus amigos que eram mais ligados ao movimento, na época, com o caminhão do meu pai, sem meu pai saber. Meu pai tinha um caminhãozinho de aluguel e muitas vezes usei o caminhão do meu pai dizendo que ia fazer a mudança de um amigo que estava sem condição. A gente estava levando barracos montados para o Jardim da Saúde, onde tem uma área ali, entre a Tancredo Neves e o Jardim da Saúde, tem uma área do governo que era justamente voltado pros funcionários da previdência. Aquilo ficou muito tempo ali, na rua do Boqueirão, Nossa Senhora da Saúde...muito tempo vazio. Na época a Pastoral queria pegar para obrigar o governo a fazer casas populares. Eu ajudava. Levava os barracos montados em cima do caminhão do meu pai. E meu pai, onde estiver, morreu sem saber disso. A única coisa que participava era ir lá, os caras descarregavam, tirava meu caminhão e ia embora. Mas isso fiz, conheci esse pessoal na faculdade, que era o pessoal dali. O PT começou ali e foi muito marcante. Se fosse falar de partido, tem muita história. Ali era o berço, era o dormitório de quem trabalhava nas grandes montadoras. Se for falar disso aí, tem muita história.
P - Você quer falar?
R - Mexe muito com política, mas tudo bem. Ali vi, na minha infância também, que não coloquei, a primeira pessoa sendo presa na época dos militares. Que encontraram na cozinha... Cavaram a residência da pessoa, encontraram armas, essa pessoa participava do movimento revolucionário da época. Que hoje, essa pessoa também já foi vereador. Tem outros que não lembro agora, que é daquela região. Quando surgiu, em 1980, estava na faculdade e eu também participei do início – do início mesmo, quando estava pegando assinatura – para o PT virar partido. Que o PT não era partido. Existia o movimento sindical, com o Lula, outras pessoas, mas não era partido. Foi nessa época que a gente se juntou com o grupo do Lasar Segall, a família, a gente se reunia no Bosque da Saúde. Tudo isso foi acontecendo, fui amadurecendo, tendo filho, questionando porque as coisas eram mais difíceis. Hoje sou totalmente diferente.
P - Mas como que você se envolveu mesmo, como que se deu a sua participação, como foi esse projeto?
R - O movimento estudantil da faculdade, na minha época, tinha muito isso. A gente tinha assim... O mundo estava bem delimitado. O que quero dizer? Os Estados Unidos tinha uma posição, a União Soviética tinha uma posição e o mundo estava dividido mesmo entre comunistas/socialistas e capitalista. A gente que já estudava como a na área econômica, do mesmo tempo que você lia Ford é esse capitalismo que está aqui e que você existia atrás, você lia também Karl Marx. Também li o outro lado, o lado da divisão das coisas. E aí, o que acontece? Estava muito forte naquela região. Tão forte que o PT se tornou um partido, desse partido, hoje nós temos um presidente de 8 anos. Existia uma maneira de suprimir, de não querer. Aquilo era um câncer para alguns, mas ali estava acontecendo. E na faculdade... Quem estudou na FAI, uma faculdade da Igreja Católica, mas com muitas pessoas da igreja católica com ideias socialistas. Como muitas pessoas da época que eram contra o governo, se refugiavam na igreja católica. Dom Evaristo protegeu muitas pessoas que na época eram perseguidas pelos militares. Essas coisas assim. Isso fomentava muito na região e na faculdade que estudava. Já tinha a Pastoral da Moradia, era uma maneira de forçar o governo a pensar em ocupar aquelas áreas desocupadas que as pessoas iam e ficavam em grandes favelas em volta. A questão mesmo política de liberar para ter eleição, para ter as coisas que a gente não tinha na época que fazia faculdade. Quer dizer, era um mundo novo e mexeu muito comigo. Porque eu já era pai então via que tinha uma dificuldade muito grande. Se a gente teria ao mesmo tempo em que vislumbrar um país melhor, mas com medo também. Sabíamos também como era a repressão de um lado, a não confiança de quem lê e quem vê, dos países socialistas de virar outra ditadura de esquerda. Mas, para idade – quando você tem uma idade de 22, 23,24 anos, você não pode se negar isso, de mudança. É idade realmente que você está querendo que as coisas mudem, que as coisas possam ser diferentes; por que tem que ser aquele padrão? Então isso é muito do jovem e graças a Deus existe isso para impulsionar as coisas. E na época era muito marcante isso. Hoje não, hoje vejo meu filho e minha filha – apesar de hoje minha filha trabalhar na área de educação física, voltada a idosos, porque ela trabalha no CEU, fazer um trabalho social -, mas ela não tem uma cabeça do que eu e minha esposa tínhamos lá atrás de que era proibido isso, aquilo. Hoje não, hoje a coisa está muito mais ampla. Hoje você já não tem mais referência de que existe o socialismo e o capitalismo porque a União Soviética está no mercado, hoje é globalização... A China já virou capitalista. Quer dizer, mudou aqueles chavões que a gente tinha de mudança. Cuba, daqui alguns dias, já está aí também. Que era legal ver o Che Guevara. Che Guevara é um cara que admirava muito. Um argentino, médico que saiu andando toda a América Latina, vendo os problemas e não só centralizado no país dele, era um homem global. Isso chamava a atenção. Quando a gente põe uma camiseta do Che Guevara – da minha época, que conhece – sabe o que está pondo. Agora, um jovem coloca por achar legal. Ele era bonitão. Nós não, sabemos que tem uma luta. O cara largou a faculdade de medicina, foi ver como eram tratados os leprosos. Dali viu tanta miséria e resolveu mudar alguma coisa e mudou. Essas são mudanças.
P - A sua esposa participava com você?
R - Participava menos porque tinha as crianças, sempre a gente leva vantagem de ser homem nessa história, porque ela ficava mais com as crianças. Mas participava, a gente ia para movimentos, essas coisas todas.
P - Antônio Carlos, várias vezes você falou sobre a ditadura, que era um reflexo de quase todas as esferas da sua vida. Você lembra de limitações que você tinha por conta desse regime e que se refletiam na sua vida de alguma forma?
R - Eu lembro de coisas que me marcaram muito. Por exemplo, na minha escola querida, tive um diretor uma vez, que um amigo meu estava com uma blusa numa época de frio – São Paulo fazia muito frio -, e estava com uma blusa que não era azul. Era um garoto pobre. Um garoto que precisava também da Associação de Pais e Mestres. A gente brincando no corredor, o diretor parou e chamou ele. A gente parou para ver “Chamou nosso amigo”. Falou “Amanhã você não entra mais com essa blusa. Fala com seu pai e com sua mãe que tem que ser azul”. Isso era uma forma de oprimir. Por que isso? Você vai falar “Por que você ligou esse cara à ditadura?” Porque ele vivia falando, ele ia às salas e era um representante da ditadura para nós. Porque ele falava que nós tínhamos que obedecer; exaltava as forças militares, exaltava esse tipo de coisa. Uma pessoa que me ajudou muito nessa coisa era meu pai, que ele falava “Na minha época tinha o presidente tal; Juscelino fazia isso, fulano fazia... Entrou os militares e acabou tudo”. Para mim a palavra “militar” era “acabar, fechar, trancar”. Por isso que talvez na minha fala você perceba esse contexto de não ser bom. Não ser bom porque você não tinha liberdade. Eu podia ser feliz dentro desses quadrados onde estava; nos bailinhos... Mas se fizesse qualquer protesto para falar que qualquer pessoa não tinha condição... Se participasse, na minha empresa, de quaisquer mudanças contra injustiça, estava na rua. Quantas vezes assisti isso. Eu sempre trabalhando em cargo de confiança, via as injustiças e ajudava o máximo que podia, mas não podia ser interlocutor, não podia falar nada, porque mexi com contabilidade. É o dinheiro da empresa. Você não pode estar do outro lado. Mas eu via. A gente sabia da jogada das coisas. Produzir mais para quando tiver greve ter produto estocado. Participava dessas reuniões, eu vi, só que ninguém nunca fez uma leitura que vi de um pai que era operário, que trabalhou. Só que quando você começa a trabalhar para uma elite, só porque você tem um cargo de contador e você é bom naquilo, eles esquecem a sua origem. Você está matando a sua origem. Então, isso vi muito na minha época. Essas coisas que falo da ditadura militar por isso comento. Agora, em parte posso falar que foi bom, porque vocês tiveram greve de professor, nunca tive greve de professor. Você faltava por problema seu na escola. Mas greve de professor... A gente ia embora para casa mais cedo quando acaba a água, era legal. Mas não tinha esse negócio das professoras estar a tantos dias de greve. Fui ver isso já aonde? Ou na faculdade. Como pagava, não tinha. Mas já meu curso técnico, no finalzinho, indo para faculdade, os professores começaram as primeiras greves. Em diante foi. Até pedir Diretas Já, foi tendo. Mas na minha infância até o final do colégio técnico, nunca tive problema de greve, porque não tinha, não existia, não podia ter. Então era isso, esse tipo de coisa via que era difícil nessa época.
P - Bom você continuava trabalhando no banco nessa época?
R - No Banco Noroeste. Trabalhei no Banco Noroeste. Depois saí e fui trabalhar no grupo Votorantim, quando comecei a fazer Contabilidade. Fui mais apurado. Porque se você fica no banco, ia ficar com contabilidade totalmente voltada para área bancária e é uma área restrita. Quando tive oportunidade de ir para Votorantim, era uma área comercial e industrial, o meu leque era bem maior, a minha experiência ia ser bem maior. Isso me ajudou muito mesmo.
P - Mas você já tinha se formado?
R - Já era técnico de contabilidade.
P - Ah, tá. Você fazia faculdade junto com...
R - Eu fazia junto. Aí fui fazer faculdade trabalhando na Votorantim.
P - E como era na Votorantim?
R - O grupo Votorantim era assim: um lugar onde não se falava muito em política nem nada, onde dava uma estabilidade, onde a gente tinha vários benefícios... Lembro uma coisa legal: até me arrependi porque quando casei não estava no Votorantim e quando a pessoa casava, ganhava dois salários a mais, chamava “salário de gala”. Era o maior barato. Assim, festas de final do ano em grandes lugares, contratando a Kibon, as crianças ganhavam presentes. Essas coisas sempre foram numa época de uma crise, tinha muitos amigos que me procuravam para pedir emprego. Quando podia, encaixava alguns amigos, que são meus amigos até hoje. Porque era difícil. Foi uma época, de 1978 a 1986, horrível de arrumar emprego. Pessoas não arrumavam emprego mesmo. Foi um índice de desemprego maior da história do país. Até vim o Plano Cruzado, que em 1986 já teve a abertura. Ou seja, foram os últimos anos do regime militar. Foi complicado em relação à economia do país. Pessoas acabavam pedindo comida mesmo, sabe? A gente tinha que ajudar amigos com alimentos de primeira necessidade.
P - Tem alguma história de amigo que precisou?
R - Não cheguei a dar alimento de primeira necessidade. Mas na época ganhava passes para ir trabalhar, cheguei a dar para pessoa ir procurar emprego. Isso fiz. A pessoa não tinha condições de ir procurar emprego. Então arrumei passes para o pessoal procurar emprego. Isso sim.
P - Depois da Votorantim? Por que você saiu de lá?
R - Depois, então: a economia melhorou e já estava lá como auditor, já achava que para chegar a outros cargos tinha que ficar mais um tempo, aí já tinha histórico de pessoas que estavam lá há tantos anos, sempre na mesma função. Como o mercado abriu, fui trabalhar na Sharp, na época tinha mandado uns currículos e fui ser auditor da Sharp. Viajei bastante para região Norte do país, para Manaus, essas coisas.
P - Como que eram essas viagens?
R - Eram viagens a trabalho, mas boas. Por exemplo, você conhecia o local, igual conheci, na época, comidas diferentes. Nunca tinha comida, costela de tambaqui, fui lá e comi. Na região era o que tinha mais. Cupuaçu, na época não tinha com tanta facilidade para cá. Essas coisas assim típicas da região. Trabalhar, conhecer pessoas de outro lugar, ver que tudo não está só focado em São Paulo. Isso foi muito bom, essas viagens, porque mostrava que outros lugares estavam crescendo. A gente, paulistano, tem uma impressão muito grande de achar que o país só roda aqui. Hoje então, se você sair vê que faz tempo já que não só roda aqui. Graças a Deus até. A gente vê que as coisas estão crescendo, outras pessoas estão bem, que se tá aprendendo com as pessoas lá fora. As pessoas daqui do entorno, de outros Estados do entorno. Na época para mim foi isso. Uma coisa legal que nunca passei aquela do paulistano muito fechado, porque às vezes as pessoa “Pô, você nem parece paulistano”. Porque na verdade não chamava nem de paulistano, era paulista “Pô, você nem parece paulista. Você fala, você brinca. Os caras vem aqui e são fechados, fazem o trabalho e vão embora.” E eu queria conhecer a região, conhecer pessoas.
P - Você lembra uma pessoa, ou um lugar que tenha conhecido, te marcou, foi bem importante?
R - Tem uma pessoa que, por exemplo, esse amigo que recebia, era o chefe da seção, o Nivaldo. Ia até a casa dele, não ficava no hotel. Apesar de a firma pagar hotel, ficava na casa dele. A gente saía para conhecer alguns lugares de Manaus. Lembro que a gente foi num pedaço do Rio Negro, a gente pegava justamente aqueles barcos – que tem um nome daqueles barcos, rede e o pessoal vai. Andamos ali a noite. Um barco onde você tinha música, forró, dançante, na água. A gente ia e ali servindo peixe, o cara preparava. Isso para mim marcou bastante. A pessoa que marcou bastante era o chefe do departamento pessoal, o Nivaldo, onde conheci as coisas até mais fora do informal. Não era aquela coisa que chegava como executivo da Sharp, ficava no hotel e não saía. Não, interagia com outras pessoas. Conheci pessoas da família dele.
P - Você era auditor também, na Sharp?
R - Auditor.
P - Quais eram as dificuldades dessa profissão?
R - Nem sei se pode colocar isso. Na Sharp, à vezes a dificuldade era... Que às vezes auditor tem que apontar falhas de processos, de procedimento, etc. Você nunca é muito bem visto quando você chega. Ainda mais você chegando de São Paulo, o pessoal já te acha metido e tem que quebrar essa postura. Auditor tem até por ética - quando a gente tem aula para praticar auditoria - tem que ser assim muito imparcial, não ter muita amizade, nada. Eu quebrava isso pelo meu jeito de ser. Até por estar lá, sozinho no trabalho, representando aqui. Sozinho, porque lá era fábrica, teve incentivo por causa da Zona Franca de Manaus. Então os eletrodomésticos estavam lá, saía mais barato trabalhar. Ia daqui. Muitas vezes você chega e tinha dificuldades até de obter informações. Você sendo uma pessoa que participava mais, abria mais e mostrava que não foi para punir ninguém, nem para mandar ninguém embora, só fazer seu trabalho. Então procurava fazer isso da melhor forma, mas era difícil. Era difícil se você não usasse essa tática. Você, com o queixo duro, ia vir com o seu trabalho incompleto ou ia ter dificuldade de passar informação.
P - Você continuou estudando?
R - Então, depois o que fiz? Parei depois, resolvi montar o meu escritório de contabilidade, onde não precisava viajar, ficava mais aqui em São Paulo. Tinha esse sonho de montar o meu próprio escritório. Depois resolvi, depois que os meus filhos terminaram a faculdade resolvi fazer Direito. Fui fazer na Uninove (Universidade Nove de Julho).
P - Como foi voltar para universidade?
R - Voltar para universidade depois dos 40 era legal, era o tiozinho da classe. Com essa moçada hoje, outra história, outro aspecto. Foi legal. Tinha um interesse muito grande na área de Direito, principalmente a parte tributária que vinha da minha área. E aí foquei muito nisso. Mas a gente ia para os bailinhos, tinham os bailes universitários. Lembro que era a época que o Falamansa estava no auge, a gente com a rapaziada, dançava o forró universitário. Muitas vezes via que eles estavam bebendo muito, fumando muito e outras coisas mais, mas só me envolvi na parte boa, só tomava uma cervejinha com eles. Mas foi legal, uma turma legal. Formei-me, tenho fotos da formatura, já mais velho que eles. Ajudei muito eles também no sentido de já ter uma profissão, no sentido de eles pedirem uma ajuda. Alguns deles até estagiaram, trabalharam comigo, na minha área, dei força e hoje estão com escritório. Hoje a gente faz uma equipe. Hoje, por exemplo, se preciso da área criminal, se alguém me procura, passo para alguns deles que se especializaram nessa área. Tem um associado de advogados, mesmo isso, não sem juridicamente, mas do conhecimento. A gente procura passar um para o outro.
P - Conta para gente, para gente chegar mais para o final da entrevista agora, como é a sua rotina hoje, o que você faz hoje.
R - Legal. Hoje o que faço? Estou fazendo mais um curso, um curso de Psicanálise, estou quase terminando, falta mais esse semestre e o outro para terminar. Fica ali no Pacaembu, uma instituição chamada CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos). Com pessoas assim, renomadas no mercado, na área de Psicanálise. Resolvi entrar nessa área porque cada vez vou ficar com mais idade, é uma área que me dou bem, mesmo sem estar nela, porque hoje como contador e advogado, tenho que ter uma boa escuta. Porque, por exemplo, agora época de imposto de renda, escuto todos os meus clientes, as suas dificuldades, o que ele quer fazer... Tenho que ter uma boa escuta até para aplicar uma boa saída para algumas dificuldades na área tributária. Quando você se envolve com seu cliente, não é só seu cliente, o seu trabalho, acaba também sendo seu amigo. Por isso que ele te procura, por essa confiança e acaba te passando assuntos até além do trabalho: familiar, com filho, com esposa, com próprio negócio, com o próprio sócio... Temos que estar ali como mediador, falar e ouvir.
Também porque sempre gostei dessa área. Comecei a fazer análise, até para mim mesmo, de algumas dificuldades que tive em termo do meu próprio casamento, dos meus filhos, da criação dos meus filhos. A
gente tem problemas também. Nas minhas análises que faço, com meu psicanalista, vi ali que descobri muita coisa na minha vida que podia mudar e só dependia de mim mesmo. Percebi que tive muitas mudanças positivas na minha vida que não conseguia enxergar, mesmo como profissional, que estava no meu inconsciente, fui despertar fazendo análise, descobri que só dependia de mim mesmo para melhorar isso. Isso também fez eu entrar em um trabalho social, faço um trabalho social hoje, na área de dependência química, um dos fatores que talvez a sociedade não está percebendo, mas é muito grave, aonde cada dia mais nós temos um número de dependentes químicos maior, já foi provado estatisticamente que de 10 pessoas que se envolvem com dependência química, seja elas do produtos lícitos, como cigarro e álcool, seja elas ilícitas, que são as outras drogas, de 10, 7 morrem e 3 entram em recuperação com direito à recaída. É um fator que quando faço um trabalho de previdência social, pedir auxílio doença para as pessoas, tenho notado que o doente de AIDS muitas vezes não consegue auxílio porque está com uma carga viral melhor, então volta para o trabalho, é normal. O dependente químico não. É reconhecida pela Organização Mundial de Saúde, uma coisa que tem afetado muito as pessoas. Como disse é um número muito grande. De 10, 7 vem a falecer mesmo, ou pelo uso, ou pelas consequências que ela traz, seja pela violência a outros desastres e 3 ainda entram em recuperação com direito à recaída, ou seja, a voltar ao uso. Quando dá entrada no pedido de doença do INSS, ele tem concedido porque sabe que as coisas cada dia estão mais graves. O fato da gente ver essa droga, que já se previa que quando ela se alastrasse ia dar um problema, é o crack, agora é que está tendo algumas campanhas do governo dizendo “Não use crack”, mas que está alastrado, é uma droga barata, está atendendo a todos os níveis, desde o miserável ao bem mais sucedido na vida, que dá o prazer aos dois igual. Estamos vendo número de pessoa que, com pesquisas que diz que o maior número pessoas está abandonada, jogadas nas ruas, principalmente São Paulo e nas grandes cidades. Nem sempre são pessoa de problemas mentais ou sociais, financeiramente falando, mas são pessoas de classe média, A, B e C, pessoa com formação, mas entraram com dependência química e estão sendo jogadas na rua, aumentando o número de pessoas que hoje vivem como moradores de rua. Esse trabalho que faço, voluntário, é justamente dentro de uma clínica, com um terapeuta chamado Carlos Henrique, com a doutora Angélica, uma psicanalista também, a gente faz esse trabalho e hoje temos uma instituição chamada Caminho de Luz,, em Parelheiros, onde a gente tem atendido as pessoas que tem procurado, pedido de ajuda dentro dessa doença, desse perfil, é um trabalho voluntário.
P - Como começou? Como você conheceu?
R - Começou porque a gente já tinha pessoas em volta da gente, pessoas da família, parentes, amigos, que já estavam com esse envolvimento. A gente estava vendo que essas pessoas estavam morrendo. Essas pessoas não pedem ajuda voluntariamente. Às vezes tem que até ser involuntariamente. Tem uma lei, muitas pessoas são leigas, falam “Não, as pessoas só devem se tratar quando ele quer”, mas quando a pessoa estiver causando risco de vida para ela mesmo ou para outras, existe a lei 10.216, do Ministério Público, é só consultar lá que qualquer um é obrigado a fazer essa intervenção, intervir na doença e internar essa pessoa para que ela tenha cuidados, se desintoxique e volte a pensar em entrar em recuperação. Se não ela entra numa compulsão muito grande e só se direciona a morte. Tem essa lei que está e dá essa obrigação de cada cidadão a fazer isso. Infelizmente, 90% da população das famílias não têm condição de pagar uma clínica, a lei não é aplicada, você vê seu vizinho se matando, destruindo a família dele e todo mundo só vai dizer “É um drogado”, vai criticar, falar, mas ninguém oferece ajuda nenhuma para uma doença compulsiva, leva a pessoa a morte e leva mais pessoas junto com ela, porque para cada 1 pessoa dependente química, 4 pessoas da família dele vai junto, com outra doenças, por sofrer aquela doença dentro de casa. Estamos fazendo esse trabalho, é uma coisa que está se alastrando e a população não está percebendo. O poder público ainda não encarou isso com mais seriedade, mas a gente que vê aí, sofre isso, familiares e vê, tem feito um trabalho e graças a Deus muitas pessoas estão, pelo menos, se tratando. Pessoas que estavam se destruindo, hoje passa a se tratar.
P/1 - Você tinha comentado um pouco com a gente o trabalho que você teve na Rodovia Anhanguera. Conta um pouco para gente como começou esse trabalho.
R - Esse trabalho começou assim: por muito tempo trabalhava numa empresa e fiquei sem condições de comprar moradia. Porque pagava o aluguel, faculdade e fazia todas essas coisas. Na empresa que trabalhei, próximo à Anhanguera, uma indústria plástica, um amigo passou para mim, um amigo que era da produção, falou “Toninho, tá tendo um movimento de moradia na Lapa, na igreja da Lapa”. Isso foi legal. Eu conversando com o pessoal da faculdade que também já fazia parte, o pessoal “Existe sim e lá o pessoal é diferente, lá eles compram...”, isso me interessou. Que comprar é legal, é legítimo, passa a ser legítimo. Fui conhecer esse programa, tinha de tentar comprar moradia, de associação de moradores sem terra. Aí fui lá. Que o nome é Associação de Moradores sem Terra de São Paulo. Fui lá, conheci Marcos Zerbini, conheci a Creuza, já fazia parte da Pastoral da Moradia da Zona Leste e que estavam na Zona Oeste fazendo isso. Fui, acompanhei e achei legal porque era um grande número de pessoas que se reuniam e iam comprar. Achei legal. A primeira área que eles compraram foi uma área na Raposo Tavares. Eles compraram, tinham dividido e as pessoas já estavam lá. Tinha tido sorteio. Como era divisão? Primeiro comprava, depois loteava, fazia as ruas principais, a área que ia ser comercial, ia ser estritamente comercial, as áreas exclusivamente institucionais, eram as piores áreas, não dava para pessoa construir uma casa, mas todos unidos iam conseguir fazer uma creche... Sempre almejando no futuro a uma ajuda do governo. O que era legal é que não estava ligado à partido político nenhum, o partido que fosse era aquele que ajudasse. Para quê? Para ter uma negociação boa com prefeito de São Paulo, com governador de São Paulo que ia precisar de luz, de água, ia estar sempre precisando dessas esferas. Achei legal a união. O pessoal ia, fazia reunião, falava das dificuldades, das coisas. Como fui, me dei bem, já tinha uma participação em movimentos populares, me dei muito bem com ele e eles falaram “Queria que você participasse também para organizar. Por ser contador, conhecer dessa parte. Nós começamos a fazer lista de moradores, pessoas que frequentavam as reuniões. Fomos fazendo entrevista, falando “Se nós conseguirmos comprar vai ser tanto para cada, você vai ter condições? Você está vindo às reuniões, mas você tem condições?“. Se a pessoa já ficava meio pesado para ele – mas o pesado, até dois salário mínimos a pessoa conseguia parcelar e comprar. Começamos a comprar outras áreas. Acompanhava as compras, era em cartório. Comprava em nome da associação, sempre com a promessa de passar a escritura quando tivesse as áreas que eram rurais, passada para urbana, ou seja, já legalizada. As pessoas que comprava sabiam disso. Tinha um contrato de compra, venda e a escritura da associação com o dono original daquela chácara, daquele terreno. Depois faziam-se vários pequenos contratos, nos quais ajudava a redigir, com as pessoas que iam ficar com os lotes, participavam da associação. Isso deu certo. E, na época, entrei, até porque almejava ter um terreno. E isso tudo aconteceu na região do Pico do Jaraguá, atrás, na Anhanguera, do quilômetro 16, 17 até 21, 22, ondfe hoje passa o Rodoanel. Essas áreas existem, estão lá. Tem o Morro Doce, a Sol Nascente, a Área do Rincão e tem outras que até já perdi a referência. Por que perdi a referência? Porque certo tempo participei, cheguei a adquirir lote e tudo, só que graças a Deus também, concomitantemente, a minha vida profissional foi melhorando, não cabia mais eu estar junto daquele movimento, era para pessoas com menos condições. Repassei o meu lote para associação; foi passado para alguém, que já frequentava reuniões. ui comprando o meu primeiro imóvel, no Jabaquara, que isso já vai fazer agora 15 anos, foi em 95. A minha vida, graças a Deus, foi melhorando. Rm termos de imóveis, hoje tenho alguns, mas era uma ideia boa. Também era um movimento legal. Parei de ajudar e saí quando começou a envolver política. Porque aí já tive conflitos de interesse com Marco Zerbini, porque ele achava que eu queria sair como político e a minha ideia não era. Hoje ele é vereador e essas coisas todas...Aí me afastei do movimento. Mas tenho ligação, tenho amizade. Hoje eles estão junto com uma pessoa que ajudou muito eles, está até na capa da Veja essa semana, o Walter Feldmann, que também conheci, estive próximo. Na época da Erundina também saiu com uma esperança de legalizar todas essas áreas. Participei, fui a reunião e ficou tudo engavetado quando ela saiu e não assinou: não sei quais foram os motivos. Eles cresceram politicamente e eu saí, continuei a minha vida particular com pequenos sonhos de moradia, mas tenho projetos até hoje comigo. Se um dia um prefeito de uma cidade pequena quiser uma ideia, tenho tudo comigo. Desde as plantas... Porque ajudei a formar toda a parte legal, a parte do documento. Sei como fazer, dá para fazer.
P - E Antônio Carlos, quem participava dessa associação?
R - Participavam as pessoas que participavam da igreja. Porque o que acontece: o padre dessas igrejas começou a perceber que era um período que tinha muitas pessoas com problemas de aluguel, poucos imóveis e a população crescendo. Diferente de hoje, desse boom imobiliário que está hoje. O que acontece? O cara começava a perder os caras na igreja. Uma pessoa que ia há muitos anos na igreja “Olha, estou sendo despejado porque a dona da minha casa vai querer a casa para filha que está casando”. Os caras que locavam também tinham filhos que cresceram, estavam casando e precisavam de imóvel. Quem era alugado tinha que sair. Muitas vezes ele não conseguia mais naquele bairro, porque era uma locação de 10, 15 anos e não teve tanto exigência para alugar, ainda estava com aluguéis em valores defasados, porque vinha de épocas antigas. Essas pessoas foram tendo dificuldades e também foram ficando desempregadas, com dificuldade de pagar os aluguéis, aí foram saindo. As igrejas que já tinham aquele fiel que ia lá de tantos anos começaram a discutir isso na própria pastoral. Começou a dar-se um jeito. Um dos jeitos que eles viram que era legal, a invasão não dava. Por quê? Porque as invasões – eu assisti muito isso, quando eu falei que ajudava com o caminhão do meu pai, ele nunca soube que pegava o caminhão, levava os barracos prontos, chegava lá e era só bater os preguinhos e estava pronto – tinha um problema porque depois de uns meses o dono do imóvel entrava na justiça e você sai. Aí o cara que largou a favela, largou o barraquinho dele na favela, não tinha mais espaço, porque ele saiu, entra outro. Vi famílias e famílias na rua. Foi onde resolvi nunca mais ajudar, porque resolvia uma coisa de meses, mas a tragédia depois disso era muito grande. Ver aquelas famílias, a polícia pondo para fora e ele tendo que montar outra favelinha em outro lugar. E aí, o que acontece? Simpatizei por esse movimento que deu certo, dá até hoje porque era uma união de pessoas, onde comprava áreas rurais e com a esperança de tornar área urbana. E no início, eles tinham que pegar um ponto de água e distribuir em mangueira para cada casa no loteamento. No início, uma fiação puxava de um poste para ligar para várias casas, onde todo mundo quando ligava o chuveiro caía a energia, tinha que ser controlado. Por que a gente conseguiu aprovar esse projeto? O número de pessoas que precisava de moradia era muito grande e com a baixa renda o cara conseguia comprar. Já automaticamente conseguia construir porque as prestações eram baratas, a pessoa dava um jeitinho de fazer o seu quarto e cozinha. Uma das coisas bonitas desse movimento, é que as pessoas eram orientadas voluntariamente por arquitetos para fazer obras que fossem aprovadas pela prefeitura depois. Porque se fizesse de qualquer jeito, viraria uma grande favela e jamais seria aprovado pela prefeitura. Isso foi uma coisa. Então tinha mestre de obra, se pagava mestre de obra para ir fiscalizando durante as semanas as construções. Saíam grandes brigas porque o cara quando chamava o primo dele que era pedreiro e punha lá, só que o cara queria construir de qualquer jeito e o mestre de obra não “Você tem que respeitar tanto de limite disso, daquilo”, tem que seguir a planta que foi te dada, não pode seguir diferente. Dava uma planta, o cara chegava em casa, falava com a mulher e ela já queria mudar os quartos. Tiveram grandes brigas de início. Mas tudo que foi se moldando, foi se ajeitando.
P - Como que eram construídas? Eram em esquema de mutirão?
R - Não, não. Cada um por si. Não tinha mutirão. Depois é que fomos várias vezes em Brasília para pedir um auxílio material para quem tivesse organizado. Depois de muito tempo conseguiu. Aí entrou o Feldmann, na época já era um representante do movimento em Brasília. Tivemos com o prefeito Pitta. Andou muito mais do que a Erundina, por incrível que pareça. Os chavões de partido tem hora que quando você está na política, você tem que falar amém. O governo Pitta andou mais nesse sentido do que a prefeita Erundina na época, que, pelo histórico, a gente achava que isso ia andar muito mais rápido na mão dela. Mas cada administração é uma administração. O governador que de muita força também para pauta da Eletropaulo foi o Fleury, que fazia os relógio populares nas casinhas. Foram feitos. Porque para você pagar para Eletropaulo, pagar um relógio, fazer tudo... Um sonho que ficou que nós estávamos aprendendo com o Uruguai. Lá já existe esse tipo de moradia. Mas o sonho que nós não conseguimos concluir são os fios e toda a parte de eletricidade por baixo, subterrâneo. Nós poderíamos fazer isso dentro do conjunto, porque a gente estava começando. Tínhamos esse sonho, mas o sonho mais barato foi a Eletropaulo colocar os fiozinhos por cima mesmo e aquele reloginho, todo mundo tirava sarro que era reloginho de favela, porque era o popular. Foi de graça. Para ela foi legal porque os caras já estavam roubando energia. Quando você não dá ou não dá fácil acesso, acontece isso. Começou a fazer a coisa mais legalizada. Aí já o governador já foi com os diretores da Eletropaulo, já fez a campanha. E por que abriu os olhos dele? Porque são vários conjuntos habitacionais e esses vários – se não me engano agora já deve estar na 22ª. ou 23ª. área – elegeu o Marcos Zerbini, que foi junto, mais voltado ao PT quando estava na igreja e já ficou mais PMDB ou PSDB, que é o caso do Feldmann. Isso chamou político porque viu um número de pessoas muito grande. Isso gera. Cada casa tem 4 a 5 pessoas. Casa de pobre tem mesmo.
P - Como é que eram escolhidas essas áreas? Era uma área que estava perto da rodovia...
R – Isso, então. Era mais fácil comprar lá porque era mais barata e tinha muito sitiante vendendo. Uma época que o cara estava precisando de dinheiro. O que acontecia? Como estava uma crise econômica, muito sitiante estava vendendo. Então o que se fazia? Fazia uma pesquisa, tinha um grupo de pesquisa que saía fazendo um levantamento da região. Não era nada de internet. Saía mesmo, pegava o carro e ia visitando chácara. Queria saber quantos metros tinha, se o cara tinha documentação, se queria vender. Muitas áreas boas à gente deixou de comprar porque era um problema de herança e muito complicado para resolver a documentação. A gente poderia ter complicação com os nossos associados, mas não com a compra de terceiros, porque senão prejudicava todos os associados.
P - Explica um pouco melhor para gente essa coisa da compra. Porque tinha a compra do terreno e o dinheiro para levantar a casa. Como que era isso?
R - Começamos a ter bolsa material depois de um tempo, depois de muita luta. Mas antes não, antes as próprias pessoas. Era assim: primeiro achava-se um terreno, levava-se numa reunião e falava. Marcava-se um domingo para todos. Como se fosse um comprador, a gente fazia isso com 20, 30 pessoas. Às vezes até mais porque o cara levava mulher, os filhos e ia até mais pessoas. Marcava-se um ponto para gente se encontrar e ver a área. Olhava “Todos gostaram?” “Gostou”. Teve aceitação. Fazia-se uma reunião, pegava-se o lugar mais alto, subia e falava “Pessoal, a área é essa, assim, assim, assim. São tantos metros quadrados” Tudo na boca, no verbal. “Vamos fazer uma votação. O valor que vai ser negociado é x, vai sair mais ou menos tanto para cada pessoa.” A gente alugava também uma sala da igreja, pagava o custo de água, luz que a gente usava; a igreja da Lapa ajudou bastante. Aí o pessoal ia lá durante o dia, na semana já tinha um pessoal que ficava lá para atender e cadastrar o pessoal. Depois o que fazia? Todo mundo depositava numa conta da associação e esse dinheiro da associação ia se negociar. Foi uma época que um dos terrenos da Anhanguera era da refinaria de Manguinhos, do Rio de Janeiro, tinha na Anhanguera uma área grande e que resolveu vender, até por causa da crise. Vendeu tanto para o movimento sem terra, como para outras pessoas, para outras empresas, para outras firmas. Porque ali também na beira da Anhanguera tem uma área industrial e pode se montar indústria. O que aconteceu? Pessoas, empresários não honraram a compra. Deixaram por causa da crise, teve mudança de moeda na época do Collor. Deixaram de pagar. O movimento sem terra, tem reportagem no jornal, o presidente dizendo que o pobre de São Paulo pagava bem melhor do que o que tinha mais dinheiro. Ele deixa bem claro isso na reportagem. Todo mundo foi lá e continuava pagando as prestações do jeito que tinha combinado, mesmo na crise, mesmo na tomada do Collor, todo mundo contribuiu. As pessoas que tinham mais condições, as indústrias que tinham , que compraram parte da terra, ficaram devendo. É isso. Era legal, porque você participava de tudo. Toda reunião você via uma área. Outra: algumas famílias, um ajudaram o outro, mas não era assim obrigatório. Algumas ajudaram – que não iam construir -, iam como amigo ajudar a que ia construir, bater laje, porque ficava a divida do outro também, quando ele fosse construir. Mas isso era entre eles.
P - Você disse que existia uma discussão dos espaços, o que ia ser feito em cada espaço. Como que era? Como que era a discussão e a divisão?
R - Era feito reunião, mostrava-se naquela área que foi comprada a área que teria mais dificuldade para qualquer pessoa construir. Essa área antes do sorteio já era separada. Era justamente as áreas mais acidentadas mesmo. Assim, para você fazer uma casa, você ia ter tanto que fazer muro de arrime, etc. E que para uma pessoa ficaria difícil. As áreas mais planas, mas fáceis é que ficava para parte residencial e comercial. Então era decidido sempre em reunião onde seriam as ruas comerciais. Geralmente começava “Para entrar na área a gente vai entrar por tal lado, porque do outro lado faz limite com tal propriedade de fulano, beltrano”, ou seja, das outras propriedades que tinha vizinhos. Aquela propriedade principal de entrar se torna a rua principal. Eu aprendi com isso que o plano diretor da cidade de São Paulo foi mais ou menos assim. Vou dar o exemplo da Avenida do Cursino. Quando meu pai foi comprar na Vila Moraes o lote dele, ele procurou e aí um corretor falava para ele “Olha, a área aqui de cima da avenida não tem mais, só tem aqui para baixo, Rua dos Operários, etc.” A da Cursino sempre já estava vendida. Por quê? Porque na verdade, o corretor naquela época, como em qualquer lugar, ele vê aonde vai passar a avenida principal do bairro, aonde vai ser a área comercial... Esses lotes são mais caros. Se você vai comprar, ele já vê que você não tem boa aquisição financeira, vai ter dificuldade, ele nunca vai disponibilizar aqueles lotes principais. Ele pegava o cara que já tinha comércio, que já estava bem estabelecido. Por que se decidiu ter tanto comércio na Avenida do Cursino? Porque ela já estava apropriada para isso, foi vendido para isso e fomentando quem comprou “Olha, aqui vai ser uma área comercial, aqui vai ter mercado”. Lógico, tudo para o futuro, mas vai. A gente percebeu isso também. Era a mesma coisa, só que lá nós decidíamos. Todos decidiam. Se vai já sabia onde ia ser a avenida principal e a mais larga era a avenida comercial. As ruas mais padrão normal, mais estreitas e com menos barulho, mais reservada, era residencial. Tudo isso. Lá, uma coisa legal também que foi feita: para cada rua, tinha um limite de número de bares. Mas isso era uma coisa de regulamento interno. Hoje já deve estar bem modificado, mas na época, por exemplo, numa rua tinha que ter farmácia... Porque senão, num bairro pobre, só vira boteco. Uma das coisas que a gente sentia dificuldade também, é que era assim: as áreas institucionais também cabiam uma igreja, só que a igreja era católica. Porque também a gente usava o espaço da Igreja Católica e era a Pastoral da Moradia, que é totalmente católica. As pessoas evangélicas lá tinha muita dificuldade. Muitas vezes não ficavam no movimento, iam embora, porque quem celebrava as missas eram os padres. Era muito ligado à igreja e tinha dificuldade com isso porque não sou muito ligado quem é quem na igreja “Dom não sei o que vem” e eu aí para ninguém. Tinha que me virar nos trinta porque o arcebispo da Lapa ia, o arcebispo da coisa ia. Estava totalmente vinculado à Igreja, porque o interesse de ter a Igreja lá e ser o monopólio. Tudo tinha um lado político. Eu era um cara junto com eles, com força de vontade, trabalhando fora, criando uma família, falando do meu trabalho. Muitas vezes viajando e me dedicando algumas horas que eu tinha para montar coisas boas, porque eles precisavam de um cara técnico também. Quando foi o fator de divisor de águas de política já não dava, eu não cabia, porque ia ser mais um.
P - Antônio Carlos, explica um pouco para gente quais eram as suas atividades, as suas funções no movimento.
R - As minha atividades era fazer reuniões, falar das condições financeiras, dar colaboração, tentar marcar mutirão para as obras que fossem para beneficiar a todos. Por exemplo, “Olha, compramos tantos canos e nós vamos puxar do relógio central para cada rua tantos metros de tubulação. Precisamos de gente para cavar, colocar, para quando entrar o cara para entregar o material aqui não passar por cima e quebrar os canos”. Aí pegava lá 20, 30 homens, domingo de manhã, todo mundo trazia suas ferramentas e fazia. Me sentia num país diferente ali. Era um pedacinho de São Paulo, sentia como se fizesse uma revolução, sem ter feito guerra, que é mais legal do que o Fidel Castro. Era legal. Por você ter um conhecimento a mais, ter um carisma, tratar as pessoas bem, elas te tratavam e eu me sentia como tal. Jovem sonhador me sentia como tal. E sei que dá. Se você se aproximar das pessoas que tem mais necessidade, ouvir as pessoas, ver as necessidades, você consegue muita coisa. Talvez seja o sucesso do governo Lula, apesar de ele estar um pouco afastado, mas teve mais prós que os outros. Mas qualquer coisa que se aproximar. Talvez o sucesso do exército brasileiro no Haiti, de estar mais junto ao povo, sentir as necessidades e ajudar, vai dizer assim. Fica mais fácil. Então, quanto mais você estiver junto daquela comunidade, você consegue realizar coisas boas, as pessoas se respeitam porque sabem que você está fazendo para um bem coletivo. Por mais que ela seja egoísta, ela sabe que diretamente vai ter o benefício e vai ver aquilo acontecer. Era muito gostoso. Essa experiência foi legal. Foi experiência sem ganhar nada, foi sem ter nada político sobre isso. Continuo a minha vida, vivo do que estudei, do que faço, mas foi gratificante de ver naquelas pessoas que quando a gente realizava um trabalho junto, ao final do dia, a gente comprava pão com mortadela, refrigerante, para comer todo mundo, irmanamente, era a coisa mais legal que tinha. A gente se respeitava, sem diferenças.
P - Quais que você acha que foram os maiores desafios desse processo todo?
R - O maior desafio foi, muitas vezes, a própria desconfiança do ser humano. A própria pessoa que estava lá muitas vezes achava “Eu nunca vou ver uma escritura”. Porque são processos demorados para você legalizar. Outra coisa também, maior desafio, eram pessoas que estavam, mas depois você descobria que essa pessoa já tinha patrimônios. A pessoa estava de uma maneira desonesta. De uma maneira para conseguir mais um patrimônio, de uma maneira fácil, com todo mundo. Depois a gente acabava descobrindo que aquela declaração que a pessoa deu, não tinha uma moradia, a pessoa tinha. Mas ela estava no movimento para adquirir mais uma. Então, essa era parte difícil: às vezes a desconfiança do ser humano e a desonestidade alguns que participavam. A ganância, vou dizer assim. Não é nem desonestidade, mas a ganância. Porque as pessoas que estavam lá no movimento e que se dava bem, muitos fizeram o que fiz “Legal, passa para outro”. A ideia era boa. Tudo o que você fizer organizadamente... Até fazer compras, material, cimento, a gente conseguia melhores preços, porque imagina 20 famílias comprando. Até quando a gente fazia cooperativa para comprar no SEASA. A gente saía de lá, vinha comprar no SEASA, com uma perua velhinha. Vinha comprar verdura, frutas, tudo, para o pessoal que já estava morando, para ajudar na renda. Até isso a gente conseguiu. Então a gente viu que organizado a gente era muito forte. Essa experiência ficou para mim. Enquanto for sozinho, egoísta, no meu Carrefour comprar, o preço é x. Mas se pegasse hoje uma associação de bairro para fazer compras juntos, teríamos benefícios.
P - Ainda permanece essa articulação das pessoas que moram lá?
R - Já me passaram, como não tenho ido lá, porque quando vou lá, às vezes até choro. Tem pessoas que estão lá que eu conheço desde o começo e que hoje já estão mais velhas também. Falam que não é mais assim, principalmente depois que algumas áreas foram regularizadas as documentações, se desprenderam um pouco do movimento. Mas ainda tem um pouco desse negócio de se unir. Mas os outros que já chegaram – que teve pessoas que venderam -, os que compraram e não viram a história... E daí? São aquelas pessoa que vão pros nossos bairros antigos hoje, assenta a família nos prédios, saem com seus carros e não olham mais ninguém. Não é assim? Jardim da Saúde, Vila Moraes, já ficou assim. O cara não sabe a história do bairro, o cara não viu o que aconteceu, as dificuldades daquele bairro. A mesma coisa acontece. Isso aí tem, mas a ideia é boa. Eu aprendi com isso: a ideia é boa, dá para fazer em qualquer lugar que você for. Viajei uma época, fui para o Maranhão, numa cidade chama Bacabal. Fiquei fascinado me fazer isso lá. Por quê? Porque lá nem banheiro tinha. Sabe o que é pessoas viverem sem banheiro? Vocês já pensaram? Pô, por mais pobre que eu fui aqui em São Paulo, na Vila Mariana, numa favela, quando meu pai começou... As pessoas tinham um sonho “Eu sou pobre, estou aqui nessa dificuldade, mas vou captar dinheiro, vou ter dinheiro e melhorar’. Hoje não, sinto que as pessoas não acreditam mais. Você vê duas, três gerações morando debaixo de um compensado. Você vê lá, passa, era um pai e um filhinho. Daqui a pouco o filhinho já cresceu e está todo mundo morando debaixo do compensado. No Maranhão vi isso, nessa cidade de Bacabal. Os caras não tem banheiro, usam o mato, é tão fácil fazer um banheiro. Você vê que tem muitas pessoas ainda nesse país que precisam de ajuda. Essa ajuda, essa experiência que muitos paulistanos tiveram aqui, tem, para depois poder passar isso. Eu, com essa experiência que tive, com minha dificuldade, ao casar com 18 anos, a passar por isso, não falo 10% disso com as pessoas que converso hoje no meu dia a dia porque ou eles vão acreditar, ou eles vão achar alguma coisa assim... Porque tenho contato com clientes meus que nunca viram o que é isso, nem sabem que isso aconteceu. E aconteceu, faz pouco tempo e me sinto feliz hoje, com 50 anos que vou fazer, de ter participado de muitas mudanças, de ter visto muitas mudanças, sei que é possível. Aprendi que é possível. Aprendi assim no sufoco, precisando,
Deus foi grande comigo, que dentro do meu trabalho consegui ter até outra condição, mas sei que é possível. Vi isso. Assisti isso. Dá para fazer moradias legais. O povo organizado pode fazer. Sai bem mais barato, tem um custo mais barato. Tem moradias mais organizadas, adequadas às pessoas. Respeitando algumas coisa que precisa. Você pode montar o seu próprio bairro, a sua própria sociedade, o seu conjunto residencial com posto de saúde, com escola, coisa que muitos não tem.
P - Antônio Carlos, só para gente fechar um pouco esse assunto, queria perguntar: qual é o nome do bairro que se formou?
R - O bairro que se formou foi a Morada do Sol, Sol Nascente, Morro Verde e Morro Doce. Esses são bairros que foram formados com o movimento da Associação do Movimento Sem Terra de São Paulo.
P - Você tem algum sonho, algo pessoal, nesse sentido do movimento de moradia, ou movimento geral?
R - Sim, tenho um sonho que era levar essa experiência para outras regiões do país, ou até para o nosso Estado mesmo. Com dirigentes, com prefeitos ou associações de bairro. Aonde tiver lugar onde possam ser compradas áreas maiores coletivamente, a própria iniciativa privada seriam essas pessoas que formassem essa associação que montassem seu bairro, a sua área comercial, residencial e institucional, que teria sua própria escola dentro do seu conjunto residencial. Ter seu próprio posto de saúde. Quem sabe até um posto policial. O próprio povo fazer as dependências onde o governo podia colocar só a parte de mão de obra, que seriam as enfermeiras, os médicos nos postos, policiais nas próprias cabines policiais que tivessem. Os professores nas escolas que eles mesmos construiriam. Isso é possível, é viável e dá para se fazer. Esse é um dos sonhos que gostaria, para não ficar muito dependente do poder público. A própria iniciativa privada, essas associações terem força para cobrar do governo, já ter aquilo e não só esperar do governo. Porque muitas vezes a gente fica esperando que um governo deficitário, com vários problemas políticos, não atende o que uma população precisa de imediato.
P - E os seus sonhos, sonhos para você?
R - Meu sonho é me tornar um velhinho psicanalista, renomado, e poder trabalhar socialmente. Fazer um trabalho voluntário, como já faço. Meu maior sonho é usar a minha experiência de vida para ajudar as pessoas que tem menos condições de se desenvolver, de ter as coisas a nível social, as pessoas mais carentes. O meu sonho é nunca perder a capacidade de aprender com a nova tecnologia, com a juventude, para junto com eles a gente juntar experiências, técnicas novas, vontades e estar sempre junto com essa impulsão que o jovem tem de querer sempre mudar o mundo, de querer mudar as coisas, estarmos juntos para adequar isso. Isso [ gostaria de até os meus últimos minutos de vida estar junto num trabalho assim. Nunca ser aquela pessoa que vai sentar numa cadeira de balanço, vá deitar na rede e falar “Agora o mundo acabou”. Não. Gostaria de fazer isso até o último minuto. Que é gostoso, é prazeroso, é participar. Vejo que tem muitas pessoas nesse país hoje que nem lê ou escrever sabem, ainda me cobro por que será que ainda não estou numa escola dessas a noite, possa estar alfabetizando. Pô, a gente sabe ler e escrever e não ensina alguém que não sabe. É isso que gostaria. Sem pegar o refrão da época dos militares de que você também é responsável. Sou responsável sim, mas sem o refrão.
P - Quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - Para mim hoje é ter uma qualidade de vida, melhorar a minha questão física para poder realizar esses sonhos, porque sinto às vezes que com a carga de trabalho que a gente faz, esquece a parte física, da parte pessoal de saúde. Para estar bem, para acompanhar isso, mesmo tendo 60, 70 anos, você também tem que estar bem com você. É uma dificuldade que tenho, mas também tenho um sonho de melhorar isso também, que é adequar melhor o meu tempo para mim e para as pessoas também. Se não, não tem graça.
P - Como foi contar a sua história aqui?
R - Foi legal resgatar um pouco. Foi muito bom resgatar esse meu passado, de ver as coisas que já realizei, poucas ou não, mas realizei. Também a maneira que foi apresentado, de poder contribuir com o Museu, deixar alguma informação daquilo que muitas pessoas que são mais jovens do que não viveram, de que a cidade de São Paulo aconteceu e tem muitas mais. Como eu também me identifiquei com uma história já contada no Museu, de uma boliviana, que ela contando a história de São Paulo, quando ela passeava em São Paulo, e vendo o guarda Luizinho, que também presenciei, porque o grupo Votorantim fica em frente ao Viaduto do Chá, onde esse guarda que não foi só um profissional da área de trânsito, foi um educador, foi um cara que participou da história de São Paulo, tanto que depois chegou até a ser vereador. Então ela quando lembrou isso, lembrei o meu passado, muitas vezes parei para ver o guarda Luizinho educando motoristas que passavam a faixa, pedestres que queira atravessar sem respeitar o farol e ele sempre com bom humor educando essa pessoa no dia a dia. Por isso que ele ficou famoso. Foi uma pessoa notada na sua profissão. O que eu levei dessa experiência é que tudo o que fizermos com amor, carinho, dedicação, respeitando o próximo, acho que a gente nunca vai perder isso, nunca vai esquecer. Fica para sempre.
P - Tem alguma coisa que a gente não perguntou que você queria falar? Ficou faltando?
R - Histórias tem muitas assim, de São Paulo, que a gente passa. Mas acho que assim no mais teria que pensar muito. Tem muita coisa, a gente levaria várias horas. Mas acho que o que retratei são coisas que já vai ajudar no material que vocês vão ter, se eu tiver outra oportunidade, outras coisas, gostaria, porque a vida da gente longa, não é só isso, tem outras coisas. Mas o que eu abordei foram esses fatos que talvez fossem marcar mais.
P - Muito obrigada, Antônio.
R - Obrigado vocês. Obrigado por ter me deixado participar.