Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Wagner dos Santos Veillard
Entrevistado por Gustavo Sanchez e Isabela Ribeiro de Arruda
São Paulo, 30/01/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV231
Revisado por Gustavo Kazuo
P - Wagner, pra começar, eu queria que você dissesse o seu...Continuar leitura
Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Wagner dos Santos Veillard
Entrevistado por Gustavo Sanchez e Isabela Ribeiro de Arruda
São Paulo, 30/01/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV231
Revisado por Gustavo Kazuo
P - Wagner, pra começar, eu queria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Tá legal. É Wagner dos Santos Veillard, nasci em 10 de abril de 1965 em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, lá no Rio de Janeiro.
P - E você morava com quem no Rio?
R - Com meu pai e minhas duas irmãs. Minha mãe ainda mora lá na mesma casinha em Caxias. As minhas irmãs, não. Uma mora em Irajá, a outra mora em Vila Isabel, e eu estou em São Paulo agora (risos).
P - E você conheceu os seus avós?
R - Conheci todos os quatro, parte de pai, parte de mãe. Eu e minhas irmãs passávamos férias em Mauá, que é perto de Magé, lá no Rio de Janeiro. Passei várias férias lá, pra gente é como se fosse o Sítio do Pica-Pau Amarelo, né? Minha avó contava aquelas histórias todas de folclore, ensinava a gente a fazer paçoca em casa. E meu avô meio que tentava ensinar, pra mim, no caso, a ser homem, tinha que capinar terreno, botar mourão, catar marisco na praia. Uma praia de lama, suja, mas pra gente era o maior barato. Levava aqueles pneus de boia, tal. Passei várias férias escolares lá com eles assim.
P - Você falou que parecia um pouco o Sítio do Pica-Pau, como você lembra da casa? Como era a casa?
R - Era literalmente assim. Na época eu assistia ao Sítio do Pica-Pau Amarelo mesmo, eu to com 44 anos, era aquela primeira versão mesmo e tal. Era um terreno enorme com uma casa pequena, tinha plantação de aipim, de couve. A minha avó ensinava a gente essas coisas, e o meu avô ensinava a gente a subir em escada, pintar casa, tinha uma cerca de arame farpado. E aquelas coisas que a gente não tinha contato em Caxias, apesar de não ser uma cidade grande, de sair pra pegar maracujá na casa do vizinho pra fazer suco ou catar marisco na praia pra minha avó fazer fritada. Tinha um vizinho que sabia fazer balão, então, dia de festa junina a gente fazia balão de papel, ainda podia soltar esses negócios todos, né? Então, fazia aquele balão de papel colorido e soltava, fazia fogueira. Era um grande barato, via passarinho, essas coisas todas (risos).
P - E esses avós eram por parte de pai ou de mãe?
R - Esses eram por parte de mãe.
P - E os seus avós por parte de pai?
R - O meu avô por parte de pai faleceu muito cedo. Ele era muito calado, era alcóolatra, aliás, os dois eram e a única lembrança que eu tenho dele era sempre muito sentado no cantinho, quieto. Ele tinha uma garrafa de pinga do lado da cama, ele tinha que beber assim que acordasse, antes de beber, qualquer coisa. E ele ficava sentadinho lá, ninguém dava muita atenção pra ele, não. Então, infelizmente não tenho muita lembrança dele, não. A minha avó, a esposa dele, não. É aquela tipo “mãe coragem”, que comprava briga com qualquer um, invadia hospital quando tinha alguém doente, não queria nem saber, bate no médico se for preciso. E ela realmente tinha uma personalidade muito forte. Tanto que quando ela se foi, a família meio que se debandou um pouquinho. Mas era assim, Natal tinha que ser na casa dela, aquela coisa de matar porco no fundo do quintal e mandar assar na padaria. Ela teve 11 filhos, meu pai brincava que meu avô queria muito uma menina, ele continuou tentando, e acabou com um time de futebol em casa (risos). Foram 11 garotos, meu pai tinha dez irmãos homens. Natal era isso, aquela casa cheia de gente, muita confusão, briga, tudo. Um monte de crianças, tinha poço, fazer casinha no fundo do quintal. Tinha um tio meu que ensinou a gente a fazer uma casinha de ripa, essas brincadeiras que não sei se são possíveis hoje em dia, não sei onde. Meu sobrinho, por exemplo, que tem dez anos, não tem esse tipo de experiência (risos).
P - E além do Natal havia outras ocasiões que vocês juntavam todo mundo, como era isso?
R - De juntar todo mundo, não. Era aquela coisa assim, aniversário você não precisava convidar porque eles já apareciam na sua casa, não tinha como não fazer festa, tinha que fazer porque aparecia todo mundo. E pra comer mesmo, aquela coisa de farofa com maionese, frango, não podia ser só um bolinho, não. E todo mundo enchendo a cara, enfim, chegava a até você dormir no sofá lá e eles continuavam lá, não queriam nem saber (risos).
P - E você falou que você tem duas irmãs. Elas são mais velhas, mais novas?
R - São mais novas. Na verdade, a minha mãe engravidou de cinco crianças, perdeu duas no meio do caminho. Mas eu sou mais velho, teve um antes de mim. Aliás, ela perdeu ele no parto, teve algum problema lá na hora. Minha mãe nunca foi de reclamar muito de dor, então, a gente acha que ela sentiu muita dor e ficou quieta enquanto eles tiraram o neném, ele já estava morto. Foi o primeiro filho. O nome desse garoto seria Wagner. Eu fiquei com o mesmo nome. Eu sou o mais velho, tem a Cátia, do meio, entre a Cátia e a Patrícia tem uma que ela perdeu, mas foi uma coisa com não sei quantos meses, pouquinho, e tem a Patrícia, que é a mais nova.
P - E a sua relação com a sua mãe? Você falou um pouco da sua mãe, de ela não reclamar de dor, como era a relação com a sua mãe? Que lembranças você tem da sua mãe?
R - Ah, não sei. Ainda sou muito ligado, por exemplo, eu ligo pra minha mãe todo dia. Ela está lá em Caxias e tal. Mas de criança, não sei.
P - Coisas que vocês faziam...
R - Então, a minha mãe tinha um lado muito... Quer dizer, estou lembrando mais do jeito que eu entendo agora, obviamente. Tinha uma revista Recreio, que minha mãe comprava, vinha uns negocinhos pra você recortar, de papel, então, você montava carrinho. E muito de brincar dentro de casa, de inventar coisa pra gente fazer dentro de casa. No começo da minha vida eu tive muita dificuldade financeira, eu lembro da minha mãe falando assim: “Atravessa a rua, vai no vizinho, pede um tomate, um ovo”, literalmente. De não ter meios de fazer as coisas, derramar álcool em cima da pia pra poder fritar alguma coisa porque não tinha gás. Ou então, vai na venda e pede fiado, aquela coisa do caderninho pra pagar depois. A gente não tinha água, eu tinha que carregar água. A gente ia na vizinha eu e minha irmã, a Cátia, a Patrícia, não. Essa vizinha tinha um poço com uma bomba manual, então, a gente ia e vinha com dois baldes pela rua pra poder trazer água pra casa. Esse comecinho foi bem difícil. Mas a minha mãe estava sempre lá. Eles concordaram não sei como, ela com o meu pai, dela não trabalhar fora quando eles casassem, então, ela ficou basicamente cuidando da gente. Eu tinha a minha mãe disponível o dia inteiro e tal. Pra brigar, pra bater, pra fazer o que fosse, entendeu? (risos). Mas estava lá.
P - Você falou um pouquinho de Duque de Caxias e essa relação com a comunidade que a gente já não tem tanto hoje. Como era isso? Era normal pedir coisa pro vizinho, a relação do fiado?
R - Era o universo que eu sabia, que conhecia. Pra gente, acho que pra minha mãe ainda hoje em dia, essa ideia de, sei lá, Copacabana, Ipanema, era outro planeta. Embora seja do Rio, eu não lembro nem com qual idade eu fui conhecer Copacabana. Já depois de adolescente pra adulto, quando eu consegui ir sozinho. Minha mãe ainda hoje tem medo de ir pra Copacabana, essas áreas, porque tem medo de se perder, essas coisas assim. Mas Caxias, era o colégio, Instituto de Educação onde eu estudei do jardim da infância, fiz quatro anos já lá dentro até sair pro Ensino Médio. Quer dizer, ia pra escola, na época também ia pra igreja no domingo, era minha diversão. Hoje eu entendo que era uma coisa social, grupo de jovens, encontro social, Encontro de Shalom, esse barato todo. Não sei, Caxias era aquilo, era escola, ficar em casa, a gente não ia a cinema, não ia a teatro, circo. Não tinha muita grana, então, era meio o que dava pra fazer dentro de casa. Era fantasia dentro de casa. E tinha essa casa dos meus avós lá em Mauá, que era tipo, sei lá, a gente aguardava por aquilo com grande expectativa, mas fora disso... Eu lembro que a gente foi visitar o Cristo Redentor, por exemplo, quando a minha irmã, a Cátia, fez 15 anos. Mas foi uma viagem programada, foi tipo aquele passeio, como sei lá, hoje em dia você ir pra Índia, não sei, uma coisa assim. A gente foi, foi um grande passeio, tal (risos). Muita dificuldade no comecinho, mas todo mundo sobreviveu e está aí, ninguém virou ladrão (risos).
P - Você falou um pouco que só seu pai trabalhava, que a sua mãe não trabalhava, como era a relação com o seu pai?
R - Meu pai era aquela coisa, tanto o meu pai como a minha mãe, pararam de estudar muito cedo pra trabalhar e ajudar na família. Então, a minha mãe fez até a quarta série primária só. Quando eu estava no Ensino Médio o meu pai decidiu fazer o Supletivo pra voltar, pegar o diploma de Primeiro Grau, tarãrã. Aí, fez o outro supletivo. Eu lembro que durante o meu Ensino Médio o meu pai entrou na faculdade (risos). Foi fazer Administração de Empresas, estudava à noite. Então, meu pai eu via muito pouco, sempre trabalhou muito. Foi feirante no começo, ele conheceu a minha mãe no comércio, eles trabalhavam em uma loja que vendia roupas. Minha mãe nunca deu pro comércio, não durou lá muito tempo, mas enfim, foi lá que eles se conheceram. E a dona da loja que decidiu que eles iam se casar, ela que armou. Depois da minha mãe ter saído, convidou pra tomar café na casa dela um dia, ligou pro marido, que era o dono da loja e falou: “Manda o Edson”, nome do meu pai, “trazer uma coisa aqui em casa que eu to precisando”. E armou, literalmente, para eles se reencontrarem, eles namoraram, casaram e tarãrã. Meu pai trabalhou muito, sempre na área de comércio, depois trabalhou na área de laticínios, no finalzinho da carreira dele que ele teve uma folguinha e trabalhava na Parmalat, era tipo supervisor de vendas. Mas a maior parte do trabalho dele, ele literalmente visitava supermercado pra ver se queriam comprar mais queijo, iogurte, leite, essa coisa, né? Final de semana ele era feirante. Assim, sempre trabalhou muito, a única coisa que ele entendeu muito cedo, que eu sou muito agradecido, é que escola é bom, né, aí (choro), ele deu um jeito de todo mundo estudar. Ele era muito: “Tem que estudar, não pode trabalhar”. Lembro quando eu arrumei o meu primeiro emprego, foi primeira grande briga com ele, porque eu arrumei sem ele saber. Eu estudei em escola pública a vida inteira e eu decidi... Eu tinha um professor de inglês na sexta série do antigo Primeiro Grau, que ele disse: “Ah, acho que você tem jeito pra esse negócio aí. Pede a teu pai pra ele te botar em um curso”. A gente procurou, naquela época era Cultura Inglesa, ainda é lá em Caxias, tem competidores, mas enfim. E meu pai falou: “Olha, a gente vai pagar com sacrifício”. Embora não fosse dito verbalmente eu sabia, reprovou, tá fora. Não tem como ficar gastando dinheiro com esse negócio, era caro pra gente. Comecei a estudar lá, e nem sei por que fui parar nisso agora, mas acho que não importa. Ah, do meu primeiro emprego. Com o inglês, antes de terminar a Cultura Inglesa, eu fiquei sabendo na escola, quando eu estava fazendo Ensino Médio, que eles estavam precisando de professor de Inglês. Eu fui, me candidatei sem estar formado na Cultura ainda, sem ter formado no Ensino Médio, fiz entrevista. Cheguei em casa todo bobo: “Ganhei o emprego”. Aí, o meu pai: “Não vai, porque aí você vai pegar gosto pelo dinheiro, vai largar a escola”. Eu falei: “Não vou” e tal. E realmente eu não larguei, eu só dava aula sábado de manhã, sempre gostava de ser professor, aquela coisa com cinco, seis anos de idade: “O que você quer ser quando crescer?” “Ah, quero ser professor”. Comecei a dar aula, tomei gosto, não larguei o estudo mesmo e ele se convenceu depois que eu tava cumprindo a minha palavra.
P - Você falou um pouquinho que seu pai era feirante, falou das profissões dele. E você participava, por exemplo, ia na feira com ele?
R - Não, porque isso... É aquela coisa, acho que ele tinha esse negócio de proteger a gente do trabalho, não sei se por ele ter tido necessidade de trabalhar muito cedo sem ter muita escolha, família grande e tal, ele era o segundo da linhagem dos 11. Ele trabalha pra sustentar o resto, o meu avô, o tal do alcóolatra lá, Valdir é o nome dele, ele perdeu muito dinheiro em jogo de cavalo. Assim, ele ganhou muito dinheiro, mas perdeu muito, eles viviam na pindaíba lá também. Então, não, nunca fui na feira com ele. Ajudei um tio meu no comércio depois, mas meu pai meio que tentou... Mas eu só entendo isso hoje também. A minha mãe: “Ah, seu pai está trabalhando”, mas a gente não saía com ele. É viver pra estudar, sabe? (risos).
P - Você falou que sempre estudou na mesma escola. Você lembra de quando você entrou, esse primeiro contato com a escola?
R - O comecinho, sim. Na verdade é uma das minhas primeiras memórias de vida. Eu entrei em março na escola, eu sou de abril, eu lembro, quando eu fiz quatro anos, na minha carteira tinha um cartãozinho e um saquinho de confetes de chocolate. A minha primeira professora era Heloísa, encontrei com ela muitos anos depois. Ela está lá no Rio ainda, dando aula. Conhece bem a minha irmã, que também é professora lá no Rio, tem contato com ela. Mas eu sempre gostei de participar de negócio de escola, tanto de escrever como de atuar, esse negócio de teatro. Sempre fui muito gordo, então, com seis anos era o Papai Noel da turma e tal, naquelas pecinhas de escola, fiz várias vezes porque já tinha o tipo físico e tal e eles achavam que eu era desembaraçado, aí, enfim.
P - E você tomou gosto pela escola porque tinha uma expectativa do seu pai em relação à escola?
R - Tinha. E depois eu mesmo já gostava. E aquela coisa, com um pouco de humildade, mas nunca tive muito esforço pra tirar nota boa, estudava pouco, me dava bem, então, ficava tranquilo. Assim, era aquele aluno bom, talvez hoje eu até me chamasse de nerd, alguma coisa assim, o tipo de aluno que eu não gosto de ter na minha turma. Até que com 13, 14 anos eu decidi que ia fazer tudo errado de como tinha feito, aí, comecei a procurar jeito de arrumar problema pra vida, né? Achar o maior problema pra vida era, tipo assim, acender o barbantinho cheiroso dentro da sala, entendeu? Eu lembro que quando eu fiz isso em uma aula de Geografia, meu professor falou: “Quem foi que fez?”, eu falei: “Fica quieto”. Ele falou, “Se ninguém se acusar eu vou punir a turma toda”. E aí, eu falei: “Fui eu”. E primeiro ele não acreditava que tivesse sido eu, falou: “Fica pra depois da aula pra falar comigo”. E nem que eu tivesse me acusado. Porque se eu tivesse que fazer o negócio direitinho eu tinha que deixar todo mundo se ferrar, e não. Ele me chamou: “Mas por que você tá fazendo isso, cara?”. Aí, perdeu a graça, pensei, não sei fazer esse negócio direito, tive que esperar mais um tempo pra fazer tudo errado. Hoje em dia eu sou a ovelha negra da família, eu fui do menino bonzinho pra “porra-louca”. Eu não paro muito no mesmo lugar, no máximo que eu fico em cada emprego ou cidade é quatro anos. Estou tentando quebrar esse recorde aí com a USP [Universidade de São Paulo]. Entrei pra USP pra me prender, eu falei: “Se eu entrar pra USP eu fico quieto aqui”. Porque eu já estou há três anos aqui em São Paulo e já dá vontade de ir, sei lá, pra Rondônia, pra África do Sul, onde me deixarem, onde me derem um pedaço de pão e uma cerveja eu vou (risos).
P - Mas de menino pequeno você gostava de Duque de Caxias, você tinha vontade de ir embora, como é que é? Surgiu com esses 13, 14 anos?
R - Não. Assim, na época de fazer Ensino Médio era aquela coisa, tinha que estudar, mas pensar que um dia ia ter que trabalhar, não dá pra ficar fazendo Filosofia. Na época eu prestei aquela provinha pra Ensino Médio já no técnico, eu prestei pra Edificações porque eu tinha tios que tinham feito e tinha aquela mesa verde em casa, com aquele papel manteiga que desenhava. Olha que bonito, aquelas reguinhas com tipo vaso sanitário, sei lá. Eu falei: “Quero desenhar, então, vou fazer Edificações”. E também prestei pra Química porque era a escola do lado, em São Cristóvão, lá perto do Maracanã. Na época, três irmãos do meu pai que tinham feito Edificações estavam desempregados. Eu passei nas duas, e eu escolhi Química porque eu achei que tinha mais chance de emprego. Na época eu já sabia que estava fazendo a vontade do meu pai, eu sabia que se eu fizesse Edificações ele não iria gostar, tanto é que na época eu escrevi uma carta: “Ó pai, eu estou escolhendo, sou eu que quero, não se sinta culpado”. Dei a carta pra ele. Mas detestava Química, fui até o final, arrumei um emprego, na época você fazia três anos e meio na aula, na escola, e um semestre de estágio, pra poder tirar diploma de técnico. E na época de eu arrumar o estágio na Bayer do Brasil, em Belford Roxo, eu acabei arrumando um emprego. Eu falei: “Tá, eu vou trabalhar pra contar o estágio, assim que terminar os seis meses e assim que terminar eu largo”, porque nesse semestre você faz o curso noturno, só, pra você poder trabalhar durante o dia. Mas como eu ia largar? Depois de seis meses eu estava ganhando mais que o meu pai. Eu era operador de produção, trabalhava de turno, então, ganhava por periculosidade, insalubridade, tinha um montão de adicional. Aí, eu não tinha peito. Isso, sei lá, era 84, não tinha feito 20 anos ainda. Como eu vou largar o emprego? Morava com os meus pais. Dei uma máquina de lavar pra minha mãe, eu decidi que ia dar dinheiro pra minha mãe. Então, na época o que era um salário mínimo, que eu não lembro hoje, eu pagava a minha mãe: “Olha, a senhora não trabalha, mas trabalha pra gente. Então, eu vou dar um salário mínimo pra senhora todo mês”. E aí assim, eu tinha um dinheiro pra ajudar e fiquei lá na Bayer por quatro anos, detestando, detestando, Continuava dando aula de inglês no sábado de manhã. Faltava quando tinha turno, eu tinha que estar lá e faltava naquele dia, mas era uma vida... Nessa época comprei o meu primeiro carro, vi realmente o que o dinheiro podia trazer. E o dinheiro não me traz nenhuma felicidade. Tá, eu posso ter essas coisas todas aí, mas o que eu quero é outra coisa. Continuava usando roupa barata, comprando pechincha, essas coisas todas. Aí, fiquei lá. Nessa época surgiu realmente o desejo de sair e fazer o que era o meu grande sonho. E aí, eu lembro, isso eu até falei pra você, né? Eu tive um turno, acho que foi de 85 pra 86, acho que foi esse. Eu tava no turno de dez às seis, trocava de três em três dias, aí, eu entrava dez horas da noite no dia 31 de dezembro e saía seis horas da manhã no dia primeiro de janeiro. E eu perguntei: “O que acontece se eu faltar?” porque eu não queria passar o ano novo dentro da fábrica. “Ah, não precisa nem voltar, você está demitido”. Eu falei: “Tudo bem, eu vou”. Eu fui, aí, lá dentro da fábrica eu prometi: “Nunca mais eu passo o ano novo trabalhando dentro dessa fábrica”. Aí, em janeiro daquele ano de 86 eu fui no consulado dos Estados Unidos e, como eu liguei aqui pra vocês e falei: “Eu quero saber o que eu preciso pra estudar fora do país. Eu quero sair daqui”. Ela falou: “Você precisa de duas coisas: de inglês e de grana”. Eu falei: “Inglês, se você falar o que eu tenho que fazer eu estudo, agora grana eu não tenho”. Na época eu tirei férias para estudar, fiquei trancado em casa um mês estudando. Ela falou, “Então, vai no IBEU” [Instituto Brasil Estados Unidos], que é um prédio que ainda existe lá no Rio, “todo ano eles mandam 18 brasileiros para os Estados Unidos, basicamente com universidade paga. No que você não tem eles deixam você trabalhar lá”. Aí eu fui, me inscrevi em março de 86. Demorou um ano e meio para eu poder viajar, mas em agosto de 87 eu consegui a tal da bolsa lá entre os 18 e fui. Hoje em dia eu me vejo realmente como uma coisa, um Jeca Tatu realmente. Eu nunca tinha entrado em um avião, eu nunca tinha saído do Rio de Janeiro, ido para um outro estado, e fui pros Estados Unidos com uma bolsa sem saber. Na época você ganhava a passagem da Pan Am, que ainda existia, você não sabia quanto você ia ficar naquelas listas de stand-by, tal, então, eu fui todo arrumadinho, ganhei a passagem. Eu cheguei lá em Sacramento. A minha passagem foi Rio – Miami, Miami – São Francisco. Quando eu cheguei em São Francisco eu falei: “Tá, mas eu vou pra Oregon”, eu tinha o mapinha dos Estados Unidos, a cidade que eu ia nem aparecia no mapa. Pessoal ainda falava: “E se você chegar lá e o pessoal mandar você plantar batata? Como é que é esse negócio aí?” “Eu não sei, eu vou acreditando”. Fui, eu lembro quando eu entrei no avião, eu menti pro imposto de renda na época, dizendo que eu tinha dinheiro pra fazer o curso inteiro, eu não tinha. Os meus pais venderiam a casa deles se precisasse, essas coisas todas. E eu fui com aquela merrequinha, tudo contato, duas malinhas. E eu lembro que eu começava a perguntar tudo: “Quanto custa? Tem que pagar?”. Eu lembro que foi alguma coisa que eles serviram antes de o avião sair, que tinha que pagar. Não sei se era bebida alcóolica, não lembro o quê. Depois eu vi o pessoal pegando o cobertorzinho, né? Eu falei: “Ah, deve ter que pagar, nem vou perguntar”. Fui com um frio [danado] porque eu não sabia que o travesseirinho e aquele cobertor eram gratuitos, né? Você podia pedir pra usar. Quando eu cheguei em Miami, porque a passagem era dada, falaram que pra embarcar pra São Francisco tem que estar de terno e gravata. Eu não sabia disso, eu tinha ido de jeans e uma camisa de manga comprida, eu tive que abrir as malas todas lá, só tinha uma gravata e um paletó, e estava um em cada mala. Minha irmã tinha me ajudado a arrumar. Aí, botei aquilo lá, devia realmente parecer um Jeca Tatu, de jeans, uma gravata, paletó, enfim, embarquei, cheguei em São Francisco e perguntei: “Como é que eu faço pra ir pra Oregon?”. Aí, vi preço de ônibus, de avião e de trem. O mais barato era o ônibus. Peguei o ônibus, fui pra rodoviária lá, cheguei lá e liguei pra escola: “Estou aqui” “Não se preocupe que a gente vai mandar uma van pegar os alunos estrangeiros no aeroporto”. Eu falei: “Mas eu não estou no aeroporto” “Você está onde?” “Estou na rodoviária” “Você tá fazendo o que na rodoviária?” “Eu acabei de chegar de ônibus de São Francisco” “Menino, o que você está fazendo aí? Fica aí que eu ligo de volta”. Porque ela viu que... E eu fiquei assim. “Imagina, vou ficar sentado do lado desse orelhão e ela vai ligar de volta pra mim?”. Falei: “Tudo bem”. Sentei lá. Você acredita, né? Porque você não tem outra opção. Ela ligou, falou: “Olha, você tem duas opções: um carro vai daí a meia hora te pegar ou você espera a tal da van que vai passar daí depois de pegar todo mundo. Você vai esperar umas três horas aí”. Eu falei: “Claro que eu vou esperar três horas, você acha que eu vou pagar?”. Aí, fui numa lanchonete, peguei um guardanapo, escrevi o meu nome, botei na mala, sentei em cima e fiquei esperando alguém aparecer pra me pegar. Foi um comecinho difícil na faculdade, tal. Eles davam 80% do curso pago e permitiam que eu trabalhasse no campus para ganhar os outros 20%. E como eu falei pra você, eu estava desesperado de grana, eu catava lata. Eu comecei catando lata. A gente estava na sala de aula, quando terminava a aula eu ia na latinha e pegava lata de Coca-Cola, tal, até que alguém viu e falou: “O que você está fazendo aqui, cara?”. Eu falei: “Eu não tenho grana”. Aí, os meus colegas começaram a juntar lata pra mim também, um dos meus roommates me levava de carro no supermercado pra trocar essas latinhas, aí, eu emagreci rapidamente. Eu logo consegui um trabalho no refeitório, então, trabalhava lá sete dias por semana no horário da janta, fazendo o que eles precisassem: lavando pratos, fritando hambúrguer, tãrãrã. Aí, eu chegava lá com uma fome. Eu geralmente trabalhava de quatro e meia às sete, depois de ter tido as aulas do dia. Eu chegava lá, comia que nem um desesperado, trabalhava, e antes de sair eu comia e roubava. Fazia um sanduíche, pegava uma maçã, que era o meu almoço do dia seguinte. E assim eu fiquei. Fiquei dois anos lá sem poder voltar porque eu não tinha dinheiro pra voltar, aí, consegui uma passagem com as Linhas Aéreas Paraguaias e vim passar umas férias no Brasil. Quase matei o meu pai do coração porque eu cheguei de surpresa, eu arrumei um amigo da escola técnica pra me pegar no aeroporto e liguei, como se eu estivesse aqui no metrô e falei: “Estou indo almoçar com vocês”. Nossa, foi aquela choradeira, aquele negócio, aí eu voltei. Eu já sabia o esquema todo, que eu ia trabalhar. Tomei conta de criança, fiz faxina, fiz mudança, o que você imaginar, e assim eu paguei a minha vida lá. Fiquei os quatro anos, falei: “Não, não vou voltar sem o diploma, né?” Larguei a Bayer, um puta emprego na época. Pra minha família eu era completamente louco. “Você vai largar um emprego que você já pode casar, tãrãrã, pra ir pros Estados Unidos pra fazer o quê? Por que essa vontade?”. O passaporte eu tirei sem o meu pai saber, eu fui na Polícia Federal, tinha que assinar um documento. Eu tirei o passaporte com 16 anos de idade, eu levei o papel pra casa e falei: “Pai, papel da escola, assina”. Ele assinou. Cheguei em casa com o passaporte: “Olha, estou com o passaporte” todo feliz, o primeiro da família a ter. Falou: “Esse passaporte é pra quê? Pra ir pra Nova Iguaçu? Pra ir pra onde?”. Então, o passaporte ficou lá não sei quantos anos sem ser usado, mas quando foi usado também, foi lá pra puta que pariu, porque assim... Aí, eu fui embora, foi uma choradeira danada, a minha família fez festa, o meu pai teve que explicar pros meus tios, irmãos deles, “não, a gente não está brigado, não está abandonando a família”. Imagina, foi todo mundo pro aeroporto, aquela caravana. Só tinha ido ao aeroporto uma vez para ver avião pousar e sair. Tipo: “Vamos fazer passeio no aeroporto?” “Vamos”. Ficar naquele vidro lá vendo avião, mas pra gente era um passeio. Então, fui, entrei e não sabia nada. Eu tinha o inglês, a língua, mas o resto, de experiência de vida, eu tinha bem pouca. Mas eu digo que eu realizei um grande sonho, aquela coisa do filme mesmo, de Hollywood, tal. Nossa, hoje em dia parece até que eu conto uma história que não fui eu que vivi. Eu fui ajudado por muitas pessoas também, as quais eu não conhecia e tal. Não sei, eu tava muito aberto também pra generosidade e maldade alheia, mas eu me dei bem. As pessoas me deram roupa usada na faculdade. E aí, eu estudava pra caramba, só tinha notão, tanto é que no final da faculdade lá, eles botam aquelas plaquinhas lá. Os Estados Unidos gostam disso, né? De competição, não sei o quê lá, todo mundo pode ser bom em alguma coisa. Então, deixei o meu nome gravado lá. Na área de Administração, todos os anos os professores elegem um aluno que eles acham que tenha um futuro promissor nessa carreira, tãrãrã. E aí, tem lá, cada ano eles põem uma plaquinha com um ano e quando eu me formei tá lá o meu nome gravado nessa porra dessa placa lá, lá em Oregon, tá lá. Mas só tirava notão, estudava que nem um louco e trabalhava que nem um louco. Só fazia isso, estudar e trabalhar. Não tinha tempo nem pra trepar, literalmente (risos).
P - Você falou um pouco dos amigos, das pessoas que te ajudaram. Como isso aconteceu, foi natural? Você falou do pessoal que estava lá, te levava no mercado. Que outras situações?
R - Tinha mais esse cara, o John, que foi meu segundo roommate lá, a gente dividiu o quarto. Ele era filho único sem pai, e ele com a mãe dele me adotaram. Então, ele foi uma grande ajuda. O resto foram outras pessoas da faculdade, a maioria professores. Por exemplo, esse negócio da faxina, eu vi um anúncio na faculdade que precisava de alguém pra limpar casa. Então, peguei o telefone, liguei e fui lá. Quando eu cheguei lá a moça me falou: “Olha, está aqui a casa, vou te mostrar. Você já fez faxina antes?” “Já”. Você acha que eu vou falar que não? Ela me mostrou os produtos de limpeza, uma vez por semana. “Então tá bom. Você vem quarta-feira que vem, vou te pagar tanto por hora” “Beleza”. Quando chegou no final de ela mostrar, ela falou: “Você estuda?” “É, na faculdade” “Ah, meu marido é professor lá”. Falei, fudeu, porque eles vão descobrir. Porque é trabalho ilegal, eu não poderia estar trabalhando fora da faculdade. Eu tinha muito medo de tudo porque eu não conhecia as regras e como quebrar as regras. Eu falei: “Putz, ela vai falar com o marido, que é professor, eles vão me chamar, agora que se foda, vou continuar, ficar quieto”. Aí, voltei lá na semana seguinte, ela falou: “Antes de você começar eu quero conversar com você. Eu gostei muito do serviço que você fez na semana passada, embora tenha sido a primeira vez e tal, eu vou aumentar um pouquinho “ “Ai, que bom”. Fiquei quieto. Uma família judia, depois eu tomava conta dos filhos deles e fazia faxina uma vez por semana. Graças a Deus ninguém me denunciou. Eles já sabiam, desde o princípio, quando eu falei que era brasileiro e tal, que eu estava fazendo tudo ilegalmente. Mas é aquela coisa, cidade pequena, o que eles ganhariam em me denunciar, deportar? Não estava em Nova Iorque, tirando vaga de ninguém. Morei de favor. Eu consegui depois uma casa de uma senhora, um casal de velhinhos que não tinha filhos, o marido tinha tido derrame, então, ele ficava impossibilitado na cama o tempo inteiro. E ela era pianista do órgão da igreja, então, ela ofereceu pra morar de graça na casa dela, tinha um quarto na casa dela e eu pagaria por esse quarto tomando conta desse senhor, quando eu não estivesse em aula, nem trabalhando no refeitório. Que era basicamente o final de semana. Eu tinha que ficar em casa pra ela poder fazer as coisas dela na igreja, supermercado, tãrãrã, e eu ficava lá, dava remédios, levava ele no banheiro, coisas assim. Tinha uma enfermeira que vinha durante a semana, mas no final de semana eu ficava meio preso. Mas valeu. Depois eu morei em outra casa de favor e foi. Você vai descobrindo aqui, ali, tal, e assim eu consegui me formar lá na faculdade, fiz o meu cursinho, voltei com diplominha, tal. Pra calar a boca de todo mundo, né? O que eu passei lá ninguém precisa saber. Contei depois pra minha família, coisa e tal, mas não enquanto estava lá, só depois que eu voltei. Falei, agora tem que engolir esse sapo inteiro e sozinho, fui eu que escolhi (risos).
P - Vou voltar um pouquinho pra Duque de Caxias, bastante até. Você falou que entre o técnico e a escola teve um grande intervalo aí.
R - Entre o técnico e a?
P - Entre o técnico e quando você ingressou na escola, esse período do Ensino Médio, quando você falou que começou a mudar muito as ideias na sua cabeça. Mesmo a coisa do passaporte, você lembra o que te motivou a romper as regras, querer mudar?
R - Não sei, cara. Eu posso até tentar encontrar uma explicação agora, pra fazer uma história bonita, mas na época, acho que era só vontade de bater perna no mundo, de viajar. Não sei por que, minha mãe e meu pai, ninguém tem esse tipo de interesse, ninguém da minha família, esses 11 irmãos, e da parte da minha também, que eram cinco, ninguém tinha morado fora, não tinha nenhum histórico na família de tipo: “Vai pro exterior, vá aprender outra língua”, não tinha esse barato. Até hoje, as minhas irmãs estudaram, mas não tem nenhum interesse pela língua, não sei. Agora, se eu quisesse arrumar uma explicação bonita (risos), Caxias é muito perto da Ilha do Governador, que é onde fica o Aeroporto Internacional, então, assim, tem avião passando em cima da minha casa o tempo todo, até hoje, na casa da minha mãe. Lembro da época do Concorde, lembra? Fazia um puta barulhão, a gente ia pra rua pra poder ver a janela balançar, dava tchau pro avião. A gente ia pra rua pra dar tchau porque o Concorde passava domingo tipo quatro horas da tarde, era o dia do Concorde. Então, “Putz, o avião vai passar”. Era um avião diferente e a gente ia pra rua pra dar tchau pro avião, porque quando passa por cima da casa da minha mãe a rodinha já está abaixando, você consegue ver as janelinhas do avião, é um puta de um barulho. Sei lá, eu fui criado com avião na minha cabeça, agora isso é coisa pra contar agora, na época não era “ah, quero estar lá dentro”. Eu queria viajar, eu lembro que na época, não lembro se foi antes ou depois do passaporte, eu falei: “Quero viajar, como faço? Ah, vou ser comissário de bordo. Porque eles vão me botar dentro de um avião e vão me mandar pra onde eu não fui”. Aí, tentei na Varig, comprei um terno pra fazer entrevista da Varig, fui reprovado no psicotécnico, falei: “Poxa, não é dessa vez”. Tentei marinha mercante, tentei esses cruzeiros que você vai pra descascar batata. Eu queria bater perna, cara. Mas alguém tinha que me pagar porque eu não tinha grana. Então, falei, eu faço qualquer coisa, se alguém me botar dentro de um navio, um avião, para eu ir. Demorou muito, mas eu consegui. Dei uma volta longa, mas eu consegui conhecer vários cantos do mundo assim.
P - E nessa adolescência mais conturbada, qual era a sua rotina de passeios, festas, namoros? Você era tranquilo, como era?
R - Ah, eu acho que eu era meio chatinho, não tinha... É como eu estava te falando, tive uma infância muito difícil, então, ficava dentro de casa, só saía de casa pra escola, igreja ou pra casa dos meus parentes. A gente não tinha essa coisa de ir a um bailinho, clubinho. Eu acho, hoje em dia não sei, talvez eu esteja arrumando uma desculpa que não encontra, mas acho que na época era falta de grana.
P - Você falou da igreja. Vocês tinham uma rotina na igreja, qual era a igreja que vocês frequentavam?
R - Igreja Católica. Ah, essa aí tem uma história interessante. Minha mãe não ia à igreja, nem meu pai, mas ela achou que a gente tinha que fazer Primeira Comunhão. A história foi a seguinte, ela falou: “Vai na missa, vai na missa”, fui eu, minha irmã Cátia, sozinhos, na missa. Ela levou a gente, largou a gente lá e foi pra casa. Até hoje eu não entendo por que. Mas enfim, a gente tá lá na missa, daqui a pouco tem uma fila, todo mundo comendo. “Opa, vou comer”, sempre gordinho. Entrei na fila, minha irmã atrás de mim. O padre me deu a primeira comunhão, não sabia o que era, o que tava comendo, comi. Quando veio a minha irmã atrás ele perguntou: “Você já fez Primeira Comunhão?”, ela: “O quê?” “Sai da fila”. Aqueles padres assim... Eu cheguei em casa e falei: “Alguma coisa lá, ele me deu, não deu pra ela” (risos). Minha mãe ficou fula da vida, levou a gente na casa da Madre lá, pra inscrever a gente pra fazer a Primeira Comunhão. Aí, obrigava a gente a ir, eu gostava da igreja porque virou social, grupo jovem, não sei o quê lá. Hoje em dia não, hoje em dia a minha mãe é a única que vai na igreja (risos). Todo mundo abandonou e ela vai lá, tem um grupo de senhoras às terças-feiras que fazem enxovaizinhos pra mães solteiras, contam as fofocas dos filhos, dos netos. Ela vai lá, vai à missa, tal. Mas minha irmã, tocava violão, ia à missa, eu fui coroinha, fiz tudo. Fui do grupo de jovens, fazia aqueles retiros espirituais. Mas pra mim era tudo diversão gratuita (risos). Eu vejo assim hoje, mas na época não tinha essa consciência, não.
P - Depois você vai pros Estados Unidos e mesmo assim você continua essa rotina, talvez por causa da falta de dinheiro, de trabalhar e...
R - Eu tinha um caderninho, que eu tenho até hoje, eu lembro quando eu cheguei lá, eu anotava diariamente quanto eu tinha gasto, se fosse 0,25 centavos, eu anotava, fechava o dia, o mês, o ano. Nos dois primeiros anos eu estava bem mirradinho de grana, foi bem difícil. Depois ficou mais tranquilo um pouquinho porque eu já sabia da onde eu podia tirar dinheiro e tal. Eu podia ganhar 20% do valor total do curso, e eu tinha um ano pra ganhar aquela quantia. Só que eu comecei a trabalhar na biblioteca, não sei aonde, não sei aonde, e em seis meses eu ganhei isso. Fui lá bater na porta do Financial Aid lá, falei: “Olha, acabei” “Como assim?” “Estava trabalhando quase 40 horas por semana” “Menino, mas isso era pro ano inteiro” “Agora já acabou, preciso de mais grana”. O que eles fizeram? Tinham pessoas iguais a mim, tipo o meu próprio roommate lá, o John, que tinha dificuldade nos estudos, tal, e não podia trabalhar muitas horas. Então, acabava sobrando, tipo, cem dólares de um, o pessoal ia chegar no final do ano e não ia ter trabalhado o que era alocado praquela pessoa. Ele falou: “Vou tirar cem daqui, cem dali”, aí deixou eu trabalhar mais seis meses pra ganhar um pouco mais. Depois que eles fizeram isso no primeiro ano, eu fiz isso nos três anos seguintes: eu pegava a grana, trabalhava em seis meses, “tá aqui, pápápá”, ela já sabia, “Lá vem você de novo” “Deixa eu trabalhar”. E já estava trabalhando fora também no final de semana, mas enfim, aí fiz tudo lá.
P - Além do dinheiro, qual foi a coisa mais difícil de sair do Brasil, do contato com as diferenças, nos Estados Unidos?
R - Ah, eu não sei. Pra mim era tudo festa, era tudo um grande sonho. Assim, embora eu conte hoje todas as dificuldades, pra mim eu estava feliz que só. Nossa, eu estava em outro país, eu era o único brasileiro, uma universidade muito pequena. Eu pintava e bordava, pra mim tudo era possível, tudo era novo, desconhecido. Eu ganhei bolsa pra fazer Matemática, queria ser professor de Matemática, que era o que eu fazia na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] na época. E aí, enfim, eu descobri que você podia trocar de curso durante, sem fazer outro vestibular. Então, eu fiz um ano de alemão, um ano de piano, eu fiz Public Speaking, ih... Eu descobri que tinha um congresso em uma cidade vizinha, em um colégio de estudantes, tal, e a minha universidade ia ajudar com a parte do entertainment lá, da diversão do negócio, e eu queria muito ir. Eu fui lá, “Como é que é pra ir?” “Se você for participar do congresso é essa taxa, tãrãrã, mas se você se dispor a participar do showzinho lá, a escola paga pra você”. Eu falei: “Opa, pode botar o meu nome”. Aí, chamei duas amigas, uma da Costa Rica, uma do Panamá, eu falei: “A gente vai dançar samba lá”. Ensinei uns passinhos bem bobos pra elas e falei: “Vocês botam uma roupinha curta porque eles vão olhar pra vocês e não pra mim”. E dançamos os três lá, fui de graça, e fiz um monte de coisa assim. Eu me divertia muito, era uma vida difícil, olhando hoje, mas pra mim, eu estava no céu, pinto no lixo.
P - E você conheceu outros lugares além de Oregon?
R - Ah, pouco. Porque tinha que ter alguém conhecido morando naquele lugar. Eu lembro que uma vez eu fiz uma viagem de ônibus, cruzei sete estados, era como se fosse daqui para o Acre de ônibus. Fui. Às vezes a escola levava a gente pra São Francisco, às vezes levava pra Seattle, fui até o Canadá. Nas viagens da escola. Fui à Chicago. Tinha uma conferência em Nova Orleans, eu também me inscrevi e consegui, era só pra estudante latino-americano, aqueles papos de americanos, “vocês vão voltar e ser o futuro do país, os grandes líderes”, não sei o quê lá. Aí, me inscrevi, que essa era tudo pago por eles, era pra formar os líderes das Américas, aquela coisa de Estados Unidos botarem na sua cabeça, né? Eu pensei: “Eu não vou ser líder de porra nenhuma, mas, de graça, pra conhecer uma cidade que eu não conheço, eu vou”. Eles demoraram a dar respostas e eu escrevi pra eles: “Por favor, me digam logo porque eu tenho outros planos”. Não tinha plano nenhum, era Natal e Ano Novo, não tinha lugar pra ir. Aí, eles falaram: “Não, você está selecionado”. Eu falei: “Opa”. Aí fui, foi o maior barato. Conheci um montão de brasileiros lá.
(TROCA DE FITA)
P - Wagner, você estava falando do Congresso Latino-Americano, que vocês vão ser o futuro e você falou que conheceu muitos brasileiros lá.
R - Inclusive o Manuel, que foi o primeiro cara que eu fui pra cama. Ele já sabia o que ele queria há muito tempo e eu não. E quando eu saí do Brasil eu tinha a Cecília, que era uma amiga da minha irmã. Eu conheci a Cecília antes de ir pros Estados Unidos, a gente namorou tipo, um ano. Aí, eu ganhei a bolsa e falei: “Olha, é melhor a gente terminar porque não sei quando eu vou voltar”. Tãrãrã. “Ah não, a gente fica assim”. Eu fui e naquela época era carta, carta de papel mesmo, que demorava pra chegar. Eu lá estudando, trabalhando que nem um louco e ela escolhendo pano de prato, curtindo, tudo assim, “quando você voltar a gente casa”. Aí, eu fiquei dois anos sem vir, quando eu vim a gente não tinha terminado, eu não tinha arrumado ninguém lá, nem homem, nem mulher, nada, não tinha tempo pra isso. Não sou orgulhoso disso, dois anos de juventude perdidos (risos). Mas enfim, não tinha tempo para essa coisa lá. Quando eu voltei, naquele um mês eu falei, “Bem, eu não estou com ninguém lá, você não tá com ninguém aqui”, o que eu fiz? Comprei a aliança, noivei, teve uma festinha, ela filha de português. Noivamos e eu fui embora. Seis meses depois eu conheço o Manuel, dormimos juntos. Ele já queria ir para a Europa, não sei pra onde, eu falei: “Cara”. Ele já tinha se definido há muito tempo, enfim. E eu falei: “Pô, aí não dá”. Aí, eu escrevi uma carta de quatro páginas para a Cecília dizendo que eu ia terminar, não falei o porquê, obviamente, porque eu não tinha coragem ainda, e terminei. E recebi quatro páginas em branco com uma aliança de volta. Aí nunca mais falei com ela, enfim. E esse congresso foi importante por causa disso, né? Depois eu fiquei lá, não tive namorado, nem namorada, fiquei com um grande sentimento de culpa por um longo tempo.
P - E você não tinha contato com brasileiros, você era o único brasileiro lá?
R - É, foi só nesse congresso lá, foi muito pouca coisa. O meu contato era as cartas da minha família, escrevia muito.
P - Não falava português?
R - Não, não falava mesmo. Eu ligava uma vez a cada 15 dias ou um mês, ligava tipo uma hora da manhã que era o horário mais barato para eu pagar, porque não achava justo ligar a cobrar. Eu acordava todo mundo às três, quatro horas da manhã pra falar por 20 minutos a cada quinze dias ou um mês. Mas era esse contato. E a minha irmã mandava recortes de jornal, mandava fita de carnaval, para eu saber o samba enredo das escolas, não tinha internet. Quer dizer, hoje em dia seria muito mais fácil. Eu fiz isso na época do Mestrado, eu continuava lendo a Folha de São Paulo lá e tal. Mas naquela época, porque pra mim eu nasci de novo, literalmente. No avião, quando eu tava indo, eu falei: “Caraca, eu vou ser uma outra pessoa”. E pensei várias coisas: “Ah, vou perder peso, vou mudar o cabelo, estou nascendo de novo, ninguém me conhece e eu posso ser o que eu quiser”. Não foi tão diferente assim, eu continuei a mesma pessoa (risos), mas enfim, eu achava que tudo era possível, que estava me sendo dada uma grande nova chance assim (risos).
P - E quando você se forma e vê que conseguiu tudo isso, como é pensar em voltar?
R - Ah... Foi uma emoção danada. Eu sempre fui a aparência de uma pessoa calma e centrada e por dentro um vulcão em erupção, só esperando a oportunidade. Eu fui orador da minha turma, eu me inscrevi. Foi assim, na formatura eles decidiram fazer um jogral, seriam cinco pessoas. Eu, claro, me inscrevi, eu quero falar lá, quero estar lá. Eles mandaram uma pesquisa pra classe inteira pra contar coisas que foram importantes durante seus anos de faculdade. E aí o time montou um texto, que era um jogralzinho, e esse mesmo time selecionou pessoas. Eu era uma dessas cinco pessoas e a gente leu um jogral na formatura. Meu pai foi na formatura, meu pai nunca tinha andado de avião, não falava uma palavra em inglês. Minha mãe não queria ir porque tinha medo de avião, também acho que tinha a parte da grana. Mas enfim, ele foi, e eu lembro que eu mandei pra minha irmã o que ela tinha que fazer para ele poder chegar lá, eu ia esperar ele no aeroporto. Então, eu mandei em uma folha uma frase em português e outra em inglês, português e inglês, assim: “To indo pra formatura do meu filho”. E ela fez isso, naqueles cartõezinhos de três por cinco, ele foi assim, com uns 40 cartões daquele. Tipo: “Preciso fumar, onde compro o cigarro?”. Ele sabia o que estava falando porque atrás estava escrito em português. Então, ele mostrava. No avião, a aeromoça tentou servir um negócio pra ele, ele não tinha como, ele só tinha cartão. Então, ele pegou aquele cartão: “Estou indo pra formatura do meu filho em Oregon”. Nossa, ela ficou super feliz, aí, sabe, falou com a menina do lado, quiseram dar uma garrafa de champanhe pra ele, ele não queria porque achou que tinha que pagar. Enfim, ele saiu do avião e falou: “Olha, me deram essa garrafa de champanhe no avião, eu acho que é por causa da sua formatura. E tem uma moça que vem aí, fala com ela pra mim?”. Eu esperei, a gente agradeceu a moça, porque ela tomou conta dele no avião, negócio de comida, tal, assim como eu, só que ele não tinha a língua, né? Eu menti, eu comprei metade da passagem dele, eu menti que ele era hipertenso, diabético. Ele era diabético mesmo, mas eu aumentei a doença dele pra eles pegarem ele no avião em Miami e botarem no outro avião para ele poder chegar em Oregon. Ele foi paparicado literalmente. No Rio, antes dele sair: “Seu Edson, por favor se identifique”. Tinha uma pessoa da companhia esperando ele, levou ele pelo aeroporto até ele entrar no outro avião e tal. Quando ele chegou: “Ai, chegou”. E ele ficou lá comigo acho que umas duas semanas, foi na minha formatura, acho que deve ter sido uma emoção muito boa pra ele, eu acho. Apesar de no início ele não ter concordado. Aí, eu e esse meu roommate alugamos um carro e levamos ele em Las Vegas, no casino, foi uma viagem legal, a gente andou um pouquinho pelos Estados Unidos de carro, fazendo tudo com o dinheiro contado. Em Las Vegas é fácil porque eles querem que você gaste, então, o hotel é barato, eles te enchem de comida, não sei se vocês já foram lá, mas enfim. A gente ficou em um hotel do casino mesmo, era muita barata a hospedagem, a comida era super farta, porque eles queriam que você gastasse nas maquininhas. A gente não jogava, só olhava, então, foi uma viagem barata de fazer. Meu pai voltou maravilhado: “Ai, é bonito”, voltou antes de mim, depois de uns dois meses eu voltei. Tinha que ficar lá pra trabalhar mais um pouco e poder voltar.
P - E o seu pai que sempre trabalhava, que sempre tinha toda aquela rotina mais complicada teve essas férias, né? Parar e estar lá com você.
R - Ficou não sei quantos anos sem tirar férias e foi. Acho que foi um bom presente pra ele, na época eu não tinha consciência que estava fazendo isso, mas foi (risos).
P - E voltando à formatura. Você fez o discurso e o que mais? Como foi sua formatura?
R - Ah, é isso que eu lembro. Fiz o discurso, aquelas coisas que a gente vê no filme mesmo, o chapeuzinho preto com aquela coisinha pendurada. Pra mim eu estava vivendo em um lugar de filme. Eu curti, tal, aproveitei. Aí, voltei. Voltei sem trabalho, aquela coisa toda. Mas falei: “Não, mas eu vou dar aula de inglês”. Aí, fiquei em Caxias mais um ano, trabalhei na Cultura Inglesa, onde eu tinha sido aluno, fui colega de ex-professores meus, tal. Mas é aquela coisa, sempre com aquela vontade já de dar outro pinote. E aí, eu vi um anúncio no jornal que estavam precisando de professor de inglês na Escola Americana aqui em São Paulo, Maria Imaculada lá na Chácara Flora. Aí, a mesma coisa, me candidatei para a vaga, vim, eles me botaram em um hotel por duas semanas e depois eu tinha que me virar pra achar um lugar. Fiquei quatros anos em São Paulo dando aula de inglês nessa escola. De lá eu arrumei uma bolsa pra fazer o mestrado, aí fui pros Estados Unidos de novo. Já fui pros Estados Unidos três vezes: pra fazer a graduação, depois pro mestrado, depois eu arrumei um visto de trabalho mesmo e fui pra trabalhar com formação de professores americanos que querem ser professores de inglês lá mesmo ou em outros países. E aí fui, tinha aquela coisa, eram três anos e tal, depois daquilo você tem que fazer a application pro Greencard, e tal. Quando eu fui dessa vez eu achava que nunca mais voltava pro Brasil, eu vendi tudo. Nunca tive muita coisa, nunca fui de acumular, mas vendi meu carro, tal.
P - Deixa eu voltar: Quando você veio pra Duque de Caxias você veio sem dinheiro nenhum? Começou tudo de novo?
R - Exatamente, pra voltar a morar na casa dos meus pais e procurar emprego no CCAA [Centro de Cultura Anglo Americana], na Cultura Inglesa e tãrãrã. Não tinha carro.
P - Como foi voltar a morar na casa dos pais?
R - Eu acho que o fato de eu ter ficado lá só um ano já diz alguma coisa (risos), mas assim, pra mim era legal, eu curtia muito. Eu achei que eu tinha mudado muito e que eles não tinham mudado, que é incorreto. Mas enfim, na minha cabeça eles continuavam vivendo a mesma vida de antes, no mesmo local, as minhas irmãs estudando e trabalhando, meu pai no mesmo emprego. Mas aí eu voltei com aquela fome de Brasil que eu não tinha antes, coisas que eu gostaria de ter feito aqui e que eu só descobri quando estava lá. Tipo, eu nunca tinha desfilado em uma escola de samba, então, assim que eu voltei, eu voltei em 91, no Carnaval de 92 eu ia pra Sapucaí todo dia, ficava naquele viaduto daquele pessoal que não paga. E ainda fico, faço isso até hoje, eu adoro estar no meio de multidão onde eu sei que não sou ninguém. Eu já fui em vários shows e concertos só pra ficar no meio do povão. Mesmo que eu não goste, tipo Marisa Monte, mas na praia de Ipanema fui, só pra estar no meio daquela multidão, sentir cheiro de maconha que nem fumo, mas ficar aqui, eu sou um grão de areia nessa multidão. Então, ia lá pro viaduto, conheci um cara lá em cima do viaduto, nessa época ainda tinha o tal do arrastão. No segundo dia do desfile, depois da última escola, antes dos portões fecharem, quem conseguisse entrava e desfilava com aquela última escola depois da última aula. Eu fui e desfilei na Sapucaí sem fantasia, sem nada. Era a Portela nesse ano, eu lembro disso muito bem. E foi bem legal porque eu falei: “Cara, isso aqui é muito bom, quero fazer isso o ano que vem”. Aí, fui procurar para no ano seguinte desfilar pela Mangueira, com fantasia. Detestei. Porque aí é trabalho, você fica não sei quantas horas com aquele peso todo esperando, é coisa de competição, aí o pessoal te empurra, fala: “Vai”, não sei o quê lá. Tem briga pra quem vai ficar do lado da arquibancada e quem vai ficar do lado do camarote, porque sai na televisão. Ah, isso aqui não é pra mim, não. Fiz um ano, depois desfilei em escola do segundo grupo só pra brincar, mas, enfim. Aí, voltei com aquela sede de Brasil, mesmo. As primeiras férias que eu tive eu peguei um ônibus com meu pai e minha irmã pra Natal, a gente veio descendo pelas capitais do Nordeste, aquela fome mesmo de conhecer. Sei lá, aí fiquei apaixonado, por tudo que eu já gostava antes, mas eu não tinha provado nada diferente. Suco de maracujá, vitamina de abacate, sempre gostei de feijão com farinha, essas coisas todas que quando você está longe: “Puta, eu gostava mesmo daquilo”. E aí, minha família meio não entendeu muito isso, porque aí, tinha aquele tipo de cobrança: “Pô, quatro anos nos Estados Unidos, com diploma universitário, como é que você gosta de ir no Maracanã de trem, quando você poderia ter um carro?”. Aí, fica meio estranho, tipo: “Você gosta de ser pobre agora? Agora que você tem chance de fazer algo diferente?”. Teve tio meu: “Você não conseguiu ficar lá, se virar? Por que você não ficou lá? Veio para aqui pra fazer o quê?”. Então, tinha meio que explicar porque eu tinha voltado, foi engraçado isso. Mas eu falei, “Não, eu queria voltar” (risos). Sempre fui muito na intuição, o que dá vontade eu faço e depois pago o preço, mesmo que o pessoal fale que não era legal. Aí, tive que explicar, “vai dar aula de inglês com um diploma de Administração?”. Porque entre o terceiro e o quarto ano eu consegui um estágio na área de Administração, foi a primeira vez que eu vim a São Paulo, pela Goodyear, na área de marketing. Eles pagaram a minha passagem, eu fiquei dois meses na Avenida Paulista, naquele prédio do lado da Gazeta, me botaram em um flat, tal, eu achei o maior barato. Sabia que não iria pra trabalhar pra eles nunca, mas pagaram. Era ano da Copa, vi os jogos daqui, tal, isso foi entre 91 e 92. Mas é isso.
P - E a primeira vez em São Paulo...
R - Foi dessa vez, com tudo pago pela Goodyear. E ali naquele centrinho da Paulista, foi outro mundo: “Ah, São Paulo é legal” (risos).
P - Depois você vem de novo pra dar aula de fato?
R - Aí, vim em 92 pra dar aula, fiquei até 96. Em 96 fui fazer o mestrado, se eu fosse fazer uma linha: em 96 fui fazer o mestrado e voltei em 98. Fiquei 98, 99, aí, em 2000 fui de novo pros Estados Unidos, já pra trabalhar. Fui em janeiro, meu pai faleceu em julho. Aí, minha cabeça pirou. Eu falei: “não, tenho que voltar”. Abri mão do meu emprego, “estou indo de volta pro Brasil”. Eu tinha assinado um contrato com eles de três anos e eu tinha achado justo ficar com eles pelo menos um ano e meio até eles poderem arrumar outra pessoa pra minha vaga. Eu falei, fico até julho de 2001. Voltei em 2001, fiquei no Rio até 2003, voltei pra São Paulo em 2003 e fiquei aqui até 2005 na Cultura de São Paulo, voltei pro Rio, fiquei um ano e meio, 2005-2006, voltei pra São Paulo em 2007 e estou aqui até agora. Estou tentando quebrar esse recorde de quatro anos, eu acho que a USP vai me ajudar, se bem que a minha vontade já foi de transferir pra UERJ, UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], mas enfim. Minha irmã está me segurando, a Cátia. As duas são minhas amigas, mas a Cátia é mais ligada, ela que é mais pé no chão. Então, é legal que quando converso com ela já sei o que ela vai falar, ela já sabe o que eu vou falar. Estou tentando ficar uma pessoa mais centrada, uma coisa mais madura, experiente. Mas a vontade é de bater asas a todo o momento, eu acho que se me pagassem pra eu ir lá pra dentro da África, não a África do Sul, mas a África onde você carrega água, tem aqueles escorpiões do barro, aquela coisa toda assim: “Ó, você vai dar aula de inglês e a gente te dá uma casinha e uma subsistência necessária pra você comer”, acho que eu ficaria numa boa, não pra sempre, mas um ano ou dois. Foi assim que eu fui parar no Marrocos. Eu dei aula lá, fiquei lá três meses, eles me davam um quarto em uma casa e uma graninha que eu basicamente comprava pão, azeitona e cerveja que não era fácil de encontrar. Dei aula lá três meses, conheci um grande amigo, o Michel, um francês que estava lá e tal. Enfim, adoro viajar, adoro (risos).
P - E os quatro anos no Cel.Lep aqui em São Paulo o que trouxe de diferente?
R - Da Chapel, você fala?
P - Isso, da Chapel, perdão.
R - Ah, foi difícil. Porque aí vim pra morar e no primeiro ano eu lembro que eu detestei essa cidade, não gostava mesmo, o que eu vim fazer aqui? Esse chute aí, não fez gol com isso aí. Mas enfim, aos domingos eu lembro que eu ia para o aeroporto de Congonhas, eu comprava o jornal O Globo pra procurar emprego de volta pro Rio. Não conseguia, não conseguia, falei, vou ficar aqui mesmo. Comprei um guia da cidade de São Paulo e falei, todo final de semana vou fazer uma coisa diferente. E pegava o ônibus, ia até o ponto final, tomava uma cerveja e voltava. Aí foi, Instituto Butantan, Parque do Ibirapuera, Liberdade, aí, descobri a cidade mesmo. Adoro aquele pedacinho da Sé, da República, o Arouche. Fui mesmo, fui descobrindo São Paulo devagarzinho. Em termos profissionais foi uma época difícil porque foi a primeira vez que eu fui dar aula pra gente com muita grana, gente rica mesmo, e eu achava assim, a minha revolta era: “Pô, vocês tem tanto recurso aqui e não querem aproveitar?”. Indisciplina, esse negócio, pra mim esse negócio demorou muito, demorou um ano para eu digerir isso. Eles não tinham culpa, eles não conheciam outra realidade, né? Mas eu que tinha tido muita dificuldade, falei: “Pô, vocês tem uma biblioteca enorme, tem quadra de esportes, vocês não estão nem aí com a hora do Brasil?”. Queria matar todo mundo, as turmas maiores de 25 alunos também, dava aula de inglês, enfim. Mas eu aprendi, aprendi como disciplinar adolescente, é o que eu mais gosto. Não gosto de dar aula pra criança nem pra adulto, eu gosto a partir de 14 a 19. E eu adoro estar com esse pessoal, mas isso eu aprendi lá, foi duro, mas é um aprendizado legal. Ganhei um dinheirinho bom também lá, lá era legal de grana (risos).
P - E essa rotina agora volta a mudar porque agora você passa a ter fim de semana, sair, ir pra lugares.
R - Isso, mas aí eu já tinha me descoberto como homem que faz sexo com homem, então, também fui descobrindo esse baixo mundo, meretrício de São Paulo. Eu ia ali pra aquela área da República e ficava pegando no flagra, fui em tudo quanto é boate que tem por aqui, sauna. Porque eu estava longe do Rio, longe da minha família, foi a primeira vez que eu caí na noite assim. Mas isso cara, você tem que pensar que foi em 92. Pô, 65, 75, 85, eu já tava mais perto de 30 anos que... E é assim, é engraçado também porque você comete alguns erros que eu deveria ter cometido na juventude, né? Porque assim, ninguém acredita que um cara de sei lá, 25 pra 26 anos nunca fez isso, tal. Aí, com muito cuidado, sempre com muito medo, a porra da Aids, tal, mas fui descobrindo a noite de São Paulo assim, foi legal. Mas essa noite já, essa parte da noite assim. Mas não cheguei a namorar ninguém, foi só. Comecei a ir muito em cinema, que é uma paixão pra mim, até hoje eu vou toda semana. E fazer essas coisas que tem aqui em São Paulo pra fazer, teatro, experimentar comida nova, esses negócios.
P - E quando você voltou pro Rio de Janeiro como você conseguiu emprego? Você tinha dificuldade, né?
R - Quando eu voltei dos Estados Unidos a primeira vez?
P - Ah, você foi pros Estados Unidos, perdão, pro mestrado.
R - É, mas aí já foi mais fácil porque eu já tinha conhecido um professor que veio dar aula aqui em São Paulo, eu fiz um curso com eles aqui e no final ele me convidou se eu queria ir pro mestrado lá, que ele tentaria uma bolsa pra mim. E eu lembro que na época eu falei: “Eu não. Você já veio aqui, vou fazer o que lá com você, o mesmo curso?”, ele falou: “Wagner, é diferente”, não sei o quê lá, tãrãrã. Aí, ele ficou me azucrinando. Enfim, na época do mestrado eu tentei pra três universidades e eu ganhei uma resposta antes de uma outra e eu falei pra ele: “Olha, a outra já respondeu”. Ele falou: “Não, vou garantir a sua bolsa”, mas eu não fiz essa vez de aparência, não, eu estava sendo honesto. Ele falou: “Não, eu garanto a sua bolsa se você vier”. E eu fui fazer o mestrado de um ano lá, em uma faculdade super de vanguarda, não tem nota, eles só trabalham com formação de professores de língua estrangeira, então, todo mundo que está lá quer dar aula de francês, ou inglês, ou espanhol, ou o que seja, pra outras pessoas que não tenham aquela língua como primeira e foi legal. Aí, eu já sabia exatamente o que eu queria, eu já tinha experiência dando aula, então, eu já tinha a bagagem e eu falei: “Eu quero fazer essa matéria, eu quero fazer com esse professor”. Aí foi legal, eu fiquei um ano, quando terminou teoricamente eu teria de voltar e me inscrevi para uma bolsa de estágio, fiquei mais um ano estagiando, já trabalhava com professores meus, tal. Aí, realmente o mundo se abriu pra mim porque nesse um ano de estágio estavam montando um curso de formação de professores que demora um mês só. Você quer ser professor, você estuda um mês e eles dão diplominha e você pode se candidatar à vaga em qualquer país do mundo que aceite aquilo. Como estava começando eu me engajei naquilo ali. Eles acharam que eu tinha jeito pro negócio, foi aí que eu comecei a treinar professores e depois eles me deram uma vaga assim, eu ia pra vários lugares do mundo e ficava sempre um mês. Por exemplo, eu fui pra Austrália e fiquei um mês lá trabalhando em uma universidade com australianos que queriam dar aula de inglês pra estrangeiros. E assim, sei lá, nos primeiros 20 anos da minha vida não tinha saído do Rio de Janeiro, de Caxias basicamente. E em um período de dois anos, cara, eu pipoquei. Eu passei um mês no Japão, passei um mês na Austrália. Depois eu fui pra Romênia, eu fui pro Quirquistão, pra Tailândia, sabe? E aí, cara. Eu fui pra Recife. Eles me pagavam. Sempre dando o mesmo curso. Aí, eu falei: “Agora está cansando”. Porque o curso era o preço que eu pagava pra viajar. E eles sabiam que era barato também, depois eu fui cair nessa real, porque eu sempre fui uma pessoa de gosto simples. Então, eu falava mesmo: “Me bota em qualquer lugar lá, me dá um dinheiro para eu comer que eu dou esse curso aí”. E fui, conheci muita gente, fiz muita amizade assim. Isso me fascina muito, chegar a um lugar que eu não sei a língua, que eu não conheço e tal, eu me sinto uma criança. Aquela coisa, “estou nascendo de novo, como é que faz?”. Eu não levo guia, não pergunto antes. Eu gosto de chegar lá, adoro fazer assim. Em janeiro agora mesmo eu fiz, comprei uma passagem pra Porto Alegre, chega na rodoviária, onde é que é a coisa da informação turística? Ah, tá. Onde é que tem um albergue? Aí, acha um albergue. Assim, descobri isso quando estou lá. Já fiz isso em outros países, algumas vezes me dei mal. Fui pra Londres assim, comprei uma passagem, cheguei lá e boom. E agora, no aeroporto? Onde é que tem lugar pra ficar? Literalmente. Já fiz isso em Natal, com o meu pai e a minha irmã, imagina. “Ah, senta aí que eu vou ligar para esses lugares”. Arrumei um albergue lá porque o meu pai era doente, né? Aí, eles deram um quarto só pra gente, eu, meu pai e minha irmã (risos). Mas adoro esse negócio de chegar assim e não ter, não saber.
P - Tem algum lugar marcante que você pensa e fala: “Não, esse lugar...”.
R - Ah, tem. Tem os lugares aos quais eu nunca voltaria, tipo Tailândia. Não gostei, não tem nada a ver comigo. Mas eu acho que talvez a Romênia. Pelas pessoas, acho que sempre o que marca mais são as pessoas. As pessoas com quem eu trabalhei lá, nossa, eu chorei tanto quando eu saí. Eu fiquei só um mês, mas eu me debulhei mesmo. Eles se auto intitulam lá, são os latinos daquele leste lá. E realmente, a música deles, tem uma coisa do ritmo, tal, e como eles tratam as pessoas, Nossa Senhora, foi um lugar que me marcou. Na Austrália também foi legal, pra mim australiano é brasileiro que fala em inglês. Onde eu fiquei, eles adoram esporte, fazer churrasco, tomar cerveja e tal. Eles têm uma praia artificial que eu nunca tinha ido. “Ah, vou nessa praia artificial e tal”. Eles têm mania de botar beterraba no hambúrguer. Eu falei: “Da onde vem isso?”. Enfim, descobri um montão de coisas lá, enfim, esses dois lugares foram... Mas eu sempre estava dando esse curso, com pessoas que querem ser professoras de inglês. Esses lugares me marcaram mais pelas pessoas, eu acho.
P - Você tinha facilidade porque eles também sabiam falar em inglês.
R - Isso, é um requisito do curso, você tem que ter um TOEFL [Test of English as a Foreign Language - Teste de Inglês como uma Língua Estrangeira] de não sei quanto, tem que ter um diplomasinho da Cultura, Michigan, o que for, porque o curso não é ensinar a língua, mas ensinar a metodologia. As técnicas, como é que você começa uma aula, como é que termina, como é que planeja, como é que pensa sobre a sua aula, refletir, blá-blá-blá. Então, é um curso bem legal, só que eu cansei do curso, né? Eles me chamaram pra dar um em Campinas agora em julho, foi o meu segundo não, estou tentando me desvincular disso porque não tenho mais o prazer da descoberta que tinha antes, virou rotina. Eu só sei fazer quando eu me entrego, era um sacerdócio, eu chegava inteiro, eu me dava pra aquelas pessoas e também pegava, sim. Eu quero de vocês também, de sugar, de ter de volta. Quando eu perdi isso um pouquinho, foi aí que eu fui procurar a USP. A USP veio assim: Eu estava visitando uma exposição na Faap sobre o Marrocos, porque eu tinha morado lá e foi um lugar bem impactante, porque lá foi o primeiro lugar que eu fui e que não sabia a língua. Só que, com essa minha corzinha e esse meu cabelo, eles achavam que eu era de lá, então, se eu estivesse sozinho, eu andava por tudo quanto era lugar e ninguém me importunava, ninguém me parava. Quando me paravam na rua e perguntavam alguma coisa, eu fazia assim. Teve uma fez que o cara começou a fazer língua de sinais, ele achou que eu era mudo. Eu falei, então, eles realmente acham que eu sou daqui. E aí, eu entrei em um mosque sozinho, que não podia. Eu entrei, fiquei sentadinho lá no canto, quietinho. Fiquei só uns cinco minutos e saí. Porque se eles me pegam aqui, você não sabe as regras do país. Mas enfim, eu estava na Faap vendo essa exposição do Marrocos, eu falei: “Nossa, o que eu mais gosto é ir para esses lugares e estudar essas pessoas”. Porque pra mim é um estudo das pessoas, como elas vivem, o que fazem, o que comem, como é. Tá, eu vou estudar Antropologia. Aí, fui pra casa, entrei no site da USP, não tem curso de Antropologia, tem Ciências Sociais, falei, acho que vou fazer Filosofia, que eu também gosto de ficar rodando a máquina, mas Filosofia achei muito aberto, muito etéreo. Falei, não, deixa eu fazer Sociais, vi a grade curricular, os dois últimos anos são os que realmente me interessam, as cadeiras todas de Antropologia, tipo Antropologia do Estádio de Futebol. Imaginou, ir pra torcida do Corinthians, mas ir lá com o prazer de estar lá e... Eu espero que a teoria acadêmica não me tire o prazer de estar no meio dessa multidão, porque também se tiver, eu largo a faculdade, mas não largo o povo (risos). Querer levar isso um pouquinho além, tipo, chegar em casa e escrever um poema, um conto sobre isso, que isso eu também faço, gosto pra caramba. Falei, não, deixa eu estudar isso aí. Aí, fui pro Etapa, fiz Etapa em 2008, só segundo semestre, curso de sábado, aí passei, tal, com notão. Porque também assim, pra estudar, sem falsa modéstia, se me falar o que eu tenho que fazer eu faço direitinho. Aí, passei lá, comecei. Detestei o primeiro semestre da USP, detestei. Porque assim, eu sou professor, e os caras não sabem dar aula. Então, o meu primeiro semestre foi uma revolta, tentei arrumar briga com um professor ou outro, mas não... Uma amiga minha falou: “Ah Wagner, deixa isso de lado, aqui é assim mesmo”. Muito diferente da minha experiência de Estados Unidos, faculdade pequena, conhecia todo mundo. Ali ninguém quer saber quem é você, onde foi, pra onde vai, mas tudo bem, já consegui uma paz com isso daí. No segundo semestre eu transformei esse meu curso da USP em semipresencial. Eu trabalho geralmente na parte da tarde, de uma até às sete, de manhã geralmente estou livre pra estudar, fazer feira, correr, que eu gosto, enfim. Com isso eu me mantenho, não ganho muito, mas o suficiente para o que eu preciso, então, não vou trabalhar o dia inteiro se eu não... Sabe? Paga o meu aluguel? Tá bom. Paga a minha cerveja? Então. Aí, chego na USP às sete e meia, fico lá até às nove, assino a presença e vou pra casa. Sento sempre no final, fico lendo qualquer coisa daquela matéria ou de outra durante a aula, aí vou pra casa e estudo pela internet, e só estou tirando notão. Teve até um incidente interessante esse semestre, porque numa prova de Política Primeira o pessoal tirou tipo três, quatro, a prova valia nove e eu tirei oito. E eu fico quieto. Aí vieram me perguntar, o cara: “Ah, a gente tá sabendo que você tirou oito, a gente quer ver a sua prova” “Tá bom, beleza, eu trago amanhã” “Como é que você está fazendo? Você sai na hora do intervalo, o quê?” “Estou estudando em casa”. A única coisa que eu não falei pra eles, porque aí eu tenho vergonha, eu estudo nos sites em inglês. Então, um dia eu achei que eu tava lendo do mesmo site que o professor estava dando, quando ele começou a ler o papelzinho dele, eu falei: “Puta, o cara tá usando o mesmo site que eu descobri”. Então, se eu consigo descobrir os sites que os professores estão acessando, e aí com o inglês realmente a janela é um pouco maior, eu falei, estudo tudo em inglês e faço só a prova em português. E também já saio de casa com a resposta pronta, se chegar lá: “Fale sobre a juventude de Aristóteles”. Eu falo da infância, da juventude e da morte, o que eu estudei, ele vai ter que estudar aquela porra que eu vou botar lá na prova, não quero nem saber”. Falo tudo o que eu sei, ele que se vire pra tirar o que ele quis perguntar, porque eu saio de casa com a resposta pronta. Vou encher aquela folhinha de almaço lá até o final. Tá dando certo, é assim que eu vou. Quando eles quiserem me ouvir tudo bem, quando a turma for menor, talvez no final do curso mude, mas por enquanto está assim, vou lá só pra constar presença. Eu estudo mesmo é dentro de casa, mas está beleza. Sinto falta porque eu queria aquela coisa de ter amizade, ter colegas, tipo aquela coisa assim, de garotinho que chega em casa e diz: “Ai mãe, eu tenho amiguinho”. Eu não tenho grandes amizades apesar de já ter passado mais de um ano, mas acho que a USP é um pouquinho disso, então também não estou aqui pra mudar o mundo, se eu conseguir me mudar um pouquinho já estou feliz (risos).
P - E você está trabalhando com o quê?
R - Eu continuo dando aula, eu trabalho na Alumni, um curso de inglês lá. Trabalho no Morumbi, eu era supervisor lá, mas quando entrei na USP pedi pra sair, pra reduzir a carga horária. Então, basicamente eu tenho cinco turmas por semestre e ajudo com a formação dos professores. Por exemplo, essa semana mesmo a gente está em processo de seleção, pessoal que trabalhar na Alumni tal, então, eu ajudo, vou lá, faço uma sessão de metodologia, vou lá, assisto uma aula, dou um feedbackzinho, tãrãrã. Os professores que já são da casa eu assisto durante o semestre, venho e assisto a aula, e depois: “E aí, do que você gostou da sua aula, o que você mudaria, como é a relação com esse aluno, tal?”. Adoro fazer isso, e faço esse acompanhamento lá. E tem as minhas turminhas de adolescentes lá, ricos também, mas não tenho problemas com isso (risos).
P - Você falou só uma parte de que você tinha comentado no início que você foi uma época nos Estados Unidos pra trabalhar e acabou voltando, com o falecimento do seu pai. E você volta pro Rio de Janeiro?
R - Voltei, mas aí, foi uma grande coincidência, porque assim, eu fui em janeiro, em julho o meu pai faleceu e eu avisei, “olha, eu vou voltar daqui um ano”. Aí, eu estava lá na Tailândia dando esse tal desse curso lá, o pessoal que me contratava ligou pra mim e falou: “A gente acabou de assinar um contrato que esse mesmo curso vai ser dado no Rio de Janeiro, dentro do Ibeu de Copacabana. Então, se você topar, você pode volta pro Rio de Janeiro, a gente vai pagar sua passagem, a moradia é com você, mas você não tem que quebrar o contrato porque o curso vai ser dado lá dentro. A gente vai mandar mais uma americana também”. Porque era um grupo grande de professores pra serem treinados, a gente iria treinar os 180 professores do Ibeu durante um ano e meio, 60 por semestre. Eu falei, “Tá perfeito”. Eu voltei pra Copacabana, que eu nunca tinha morado lá, não tive que quebrar o meu contrato. Nessa época eu estava morando no Rio de Janeiro mas ganhando em dólar, porque eles depositavam em uma conta que eu tinha lá. Então, meu filho, eu estava como o diabo gosta. Eu lembro que na primeira semana a gente ficou no hotel e eu falei, eu nunca vi a praia de Copacabana de uma janela, eu só conhecia a areia. Vinha de ônibus, eram dois ônibus de Caxias, é uma hora e meia que leva pra chegar na praia de Copacabana de ônibus. Eu falei, nossa, eu nunca vi a praia daqui de cima. Eu estava maravilhado, eu já gostava de dar o curso, aí, pra mim foi o Rio de Janeiro que eu nunca tinha conhecido, embora eu estivesse tão próximo, na verdade foram os Estados Unidos que me proporcionaram. É engraçado isso, aí, eu estava trabalhando pra eles. Então, primeiro um ano e meio foi tranquilo porque estava no meu contrato ainda, não tive que quebrar. Quando terminou o contrato, aí falei, ah, agora vou pra São Paulo e vim pra Cultura de São Paulo.
P - A gente está finalizando e eu fiquei com uma coisa na cabeça. Você sempre viajou muito, mas você tem um vínculo muito forte com a sua família também, né?
R - Ah, tenho.
P - E como é, apesar da distância, a relação com as irmãs, até mesmo com a sua mãe, agora?
R - Ah, não to aqui pra tomar o lugar do meu pai, mas eu acho que eu tenho uma função na família, sim. Basicamente, sem conversar muito a gente já se dividiu: A minha irmã do meio dá todo o apoio emocional, ela que segura a barra, que está perto. A minha parte é grana, se precisar de grana. Tanto que é assim, eu comprei um apartamento pra minha irmã mais nova, eu falei, você me paga quando você puder, e ela já terminou. Fui pagando em prestações a perder de vista. Agora eu comprei um apartamento pra minha outra irmã, no ano passado, em Vila Isabel. Então, também, ela vai começar a me pagar agora. Eu sou o único que não tem casa própria, mas eu não me incomodo com isso. Elas se incomodam muito com isso, então, a minha parte é mais essa: “Como é que está aí? Pegou de grana”. E essa coisa também, pra mim, a única coisa que não tem solução é a morte, o resto, tudo a gente dá jeito. Então, quando elas ligam pra mim, o que não é frequente, geralmente sou eu que ligo: “Como é que está?”, eu ligo todo dia pra minha mãe e pergunto, a minha mãe sabe de todo mundo. As minhas irmãs continuam almoçando na casa da minha mãe todo domingo, meu sobrinho vive lá dentro, aquela coisa. Como era com a minha vó lá, minha mãe tem esse papel, mas é um núcleo bem menor, a família também é menor. Então, assim: “Ah, que aconteceu isso, isso e isso” “Tá, então vamos lá. Número um, como é que tá, vamos dar o tamanho do incêndio aí. Pagou?”. Então, eu sou bom pra isso, eles me acham prático, e eu acho que eu sou. Tá, então vamos resolver. “Ah, mas isso” “Pera, isso não aconteceu ainda. Já perdeu a mão, vai perder o braço? Então, tá aí, ainda dá um jeito”. E aí, eu tenho essa função. Elas acham que eu sou calmo pra resolver problemas, então, eu tenho essa funçãozinha assim. E eu nunca levo problemas pra eles, os meus eu resolvo aqui sozinho, porque acho que os meus quem criou fui eu, né?. Os delas também, acho que muitos foram criados por elas, mas elas se acham incapazes de resolver, embora eu achasse. Por exemplo, minha mãe agora está morando sozinha em uma casa enorme, está cheia de dor no pé, precisa de alguém. Eu falei: “Quais são as opções? Muda para uma casa menor ou apartamento, ou, arruma uma pessoa que possa ficar com a senhora o tempo inteiro, ou vai morar com os filhos em rodízio”. Assim, pra mim: “Ah, não quero ficar morando com filho, não quero mudar porque essa casa foi o seu pai que comprou”, aquela coisa, “é daqui pro cemitério”, ela já falou. “E não quero ninguém aqui porque tira a privacidade” “Então, tá bom, vai cair um dia aí dentro, a gente vai achar a senhora morta aqui, é isso que a senhora quer?”. Então, ela aceitou agora, uma pessoa vai duas vezes por semana, mas não pode dormir lá. Tem que ir passo a passo, não vou tratar ela como criança, embora, às vezes aja como. Vamos lá, quais são as opções? Quer fazer o quê? Eu ajudo (risos). Não vou impor nada, não, pra mim tem solução, entendeu? Tem solução, porque tem.
P - E em São Paulo, quais são os vínculos que você tem? Você tem amigos?
R - Poucos. Até pela natureza do meu trabalho. Eu sinto falta de amizade aqui, eu tenho poucas, mas os que são, são bons. Acho que São Paulo é bom pra isso, o pessoal te leva mais pra dentro da casa, não tem essa coisa de encontrar no barzinho na beira da praia, embora eu não tenha feito isso no Rio. Então, acho que quando você pega amizade aqui em São Paulo é gente que dura pra vida inteira. A maior parte delas vem do trabalho, mas como a maior parte do meu trabalho é dentro da sala de aula com adolescente, realmente corta um pouquinho. Talvez se eu estivesse em um ambiente como esse, lidando com adultos na maior parte do tempo, acho que esse vínculo teria se espalhado mais e fosse maior. Mas a maioria do pessoal relacionado com Alumni e alguns da Chapel ainda. Tem o Eduardo que talvez seja a única amizade que seja nada a ver. Eu conheci o Eduardo em um comício do Lula no Vale do Anhangabaú, aquela coisa: “Ah, tem multidão? Eu vou pra lá”. Esbarrei nesse cara e a gente é amigo até hoje. Ele gosta muito de cinema, um cara que vive sozinho também, tal. Companhia de tipo, sei lá, aniversário da cidade, show gratuito do Cauby Peixoto no Memorial da América Latina. “Vamos lá ver esse cara antes dele morrer?” “Ah, vamos”. A gente foi, entendeu? Fui lá, peguei os ingressos. Uma pessoa que topa os programas mais... O pessoal do trabalho tem mais família, tem filhos e às vezes fica mais difícil. Mas é isso (risos).
P - Agora que você começou a falar de pessoas importantes na sua vida, não sei nem se você gostaria de falar sobre isso. Mas é que lá fora a gente estava comentando sobre o Javier e tudo o mais.
R - É mesmo, né? Ele nem apareceu. Mas eu quero falar dele porque ele é importante. Basicamente assim: O Javier foi a pessoa que me ensinou o que é se apaixonar. Eu acho que a Cecília se apaixonou por mim, mas eu não por ela, tanto é que acho que ela estava disposta a qualquer coisa pra ficar comigo, e eu sempre fui sempre muito assim: “Olha, eu estou passando nesse trem, se você quer estar comigo, você pula nele, porque eu não paro nessa estação”. E o Javier não, o Javier eu o conheci em uma danceteria, eu estava fazendo mestrado já e ele fazia doutorado em uma cidade vizinha, até em um estado vizinho. Uma vez eu arrumei carona, fui numa danceteria, conheci esse cara lá, um espanhol que mora em Madri, trabalha nessa área de Linguística no Instituto Cervantes até. E assim, esse cara eu me apaixonei por ele, era o corpo perfeito e papo até de madrugada, sabe? Eu não cansava nunca. Era muito difícil a gente estar perto por causa da distância, eu não tinha carro, mas enfim. E aí, eu aprendi o que é me apaixonar, tanto é que na época eu estava disposto a abrir mão de tudo aqui pra ir pra Espanha lavar prato, só pra ir morar com esse cara. É que eu fui e a minha primeira experiência na Espanha foi horrível porque foi o primeiro lugar onde eu sofri discriminação. Eu estava em uma pracinha, o policial me parou e falou: “Eu quero ver os seus documentos’. Eles achavam que eu era marroquino, aí eu fui ver uma coisa que tinha me beneficiado há muito tempo atrás voltou de uma forma completamente diferente. Eu fui barrado em danceteria, eles achavam que eu era marroquino, queriam ver o meu passaporte. Não acreditavam que eu era brasileiro, não queriam deixar entrar. Então, assim, foi horrível. Eu falei: “Ih Javier, na Espanha não dá”. E a gente achou que nos Estados Unidos talvez fosse o lugar. Então, eu me inscrevi pro estágio pensando em ficar lá mais um tempo. É que agora talvez eu confunda um pouquinho as datas, mas enfim, a gente acabou morando junto três meses, ele terminando o doutorado e eu já estava trabalhando. E nesses três meses a gente brigou como cão e gato, a gente não dava pra morar junto, foi horrível. Ele voltou pra Espanha, eu voltei pro Brasil e tãrãrã, mas a gente continuava, telefone, e-mail. Teve uma vez que ele veio aqui à trabalho, uma ou duas vezes. Uma vez eu fui lá passar umas férias com ele. Mas a gente sempre junto brigava, mas não conseguia largar. Sabe aquela coisa? Eu não me apaixonava por ninguém, nem ele por ninguém, e a gente ficou assim até julho do ano passado, olha. Eu conheci ele em 98, cara. Então, realmente é uma pessoa que levou um pedacinho do meu coração, esse está óbvio pra mim. E a gente marcou de se encontrar em Berlim, uma cidade que nenhum dos dois conhecia. Nas minhas férias eu adoro ir pra lugar que eu não conheço, só ter um amigo onde ficar na casa ou um albergue. Então fomos, ficamos lá uns dez dias e dessa vez a gente dormiu junto acho que só umas duas noites e nem brigar a gente tinha vontade. Eu conseguia ver as coisas que me irritavam nele assim, mas ele é assim mesmo, né, desse jeito, tal. Então, por quê? Embora a gente estivesse junto: “Ah, você quer visitar qual museu?” “Quero ir nesse” “Então, eu quero ir naquele” “Tá, você vai naquele, eu vou nesse, depois a gente se encontra pra jantar” “Tá”. Então, acabamos fazendo muita coisa separado e depois que ele voltou a gente não se comunicou mais, não teve aquele “vamos discutir a relação” pra terminar, não teve nada disso, simplesmente acabou o contato. Eu liguei pra ele uma semana antes do Natal porque eu tinha sonhado com ele, falei: “Cara, só quero saber se você está vivo, você está bem?” “Tô”. Aí, ficou nisso, só teve esse telefonema. Mas foi uma pessoa, é ainda, eu escrevi vários poemas para o Javier, sobre o Javier, nossa. Descobri paixão, amor, o que seja. Mas acho que estou pronto pra me apaixonar de novo, o que é bom (risos). Mas foi legal. Tem mais alguém? Você ficou quietinha na maior parte do tempo, você quer perguntar outra coisa, ou não?
P - Eu queria que você falasse um pouquinho da sua relação, quando você veio pra Recife, você falou que foi no Observatório, e da sua relação com a lua, que foi a sua superação e tal.
R - Então, eu amo a lua, olhar pra lua, procurar a lua. Acho que talvez por causa das viagens e tal, é uma coisa que eu sei que sempre vai estar lá. Eu lembro que na época que eu não podia ligar com frequência, no aniversário da minha irmã mais nova, da Patrícia, em setembro, eu falei assim: “Patrícia, meu presente pra você é o seguinte: Quando ficar de noite aí, você olha pra lua que eu também vou estar olhando”. Eu estava olhando lá, mas eu não sabia o que estava acontecendo em Caxias. Foi todo mundo pra cima da casa da minha mãe procurar, era um dia nublado e aquela, “Puta, vai dar merda”, e por alguns segundos o céu se abriu, aquela coisa que você acha, né? E eles conseguiram ver a lua. E eu lembro do meu pai, depois que eu voltei, ele ia pro terraço da casa e falava assim: “Wagner, os Estados Unidos fica pra onde? Se eu for pro terraço, pra onde que eu olho? É pra cima no mapa, mas como é que a gente sabe daqui?”. Eu também não sabia e falei: “Ah, olha pra lua” (risos). Porque a lua é um ponto de referência em qualquer lugar, e quando eu estive em Recife dando o curso eles me levaram no Observatório e lá tinha uma lua de plástico, uma bolinha, eu falei: “Ah, deixa eu pegar na lua, ter a lua inteira na minha mão, assim”. Aquilo pra mim foi um momento bem legal (risos).
P - E outra coisa que mexe bastante com você é a corrida, que você gosta muito. Você queria falar alguma coisa?
R - A corrida, eu sempre fui gordinho, sedentário, tal. Aí, em 2003 eu decidi que iria fazer alguma coisa, mas volta naquele negócio, eu sou uma pessoa muito individualista, talvez até egoísta. Quando eu penso em alguma coisa geralmente eu penso “eu”. Eu vou fazer, se alguém quiser ir junto, vai, se não quiser, eu já fui, entendeu? Cinema, eu quero ver tal filme em tal hora, não pode? Então, tchau. Não tem muito problema, estou tentando mudar, mas é que mudar com 44, dá pelo menos uns dez anos de prazo aí pra chegar em alguma mudança. Mas enfim, aí, comecei a correr. Correr que nem um louco, sem nenhum tipo de orientação, já me machuquei de todas as formas possíveis, do pé, do joelho, da coluna, já levei esporro de médico, enfim. E aí, botei na cabeça que iria correr uma maratona. Imagina. Primeiro eu ia correr a São Silvestre porque na casa da minha mãe a gente sempre para no dia 31, ela está lá fritando os bolinhos de bacalhau e tal, a gente para pra assistir a São Silvestre, e eu sempre falava: “Um dia eu vou estar correndo essa corrida” “hahahaha, você correndo, tá” “um dia eu vou estar aí dentro dessa televisão correndo”. Aquela coisa, ninguém acreditava. Tá, me aguarde. Enfim, me inscrevi em 2006, era ano bissexto, eu falei, tá um bom ano para eu correr. Aí, no dia 29 de fevereiro eu me inscrevi pela internet, falei: “Vou correr a São Silvestre”. E comecei a correr lá em Vila Isabel, estava morando no Rio essa época, corria em volta do Maracanã, e vim em São Paulo só pra correr, passei o ano novo aqui por causa disso. Corri, fiz lá uma hora e meia. Chovia que só, foi a corrida inteira debaixo de chuva. Acho que foi a última corrida onde um brasileiro e uma brasileira ganharam. Minha irmã veio comigo, a Cátia, a gente ficou no mesmo apartamento onde eu moro agora e logo depois eu voltei. E comecei, já tinha corrido 15, agora eu vou pra Maratona. Aí, me inscrevi, comecei a pensar seriamente, baixei uma tabela da internet que eu botei na geladeira assim, tipo, cinco meses antes o que você tem que fazer dia a dia. Eles dão a distância que você tem que correr, o dia que descansa a perna. Só não fala a rapidez, você pode demorar o tempo que você quiser. Então, tem uns treinos curtinhos durante a semana e no domingo tem sempre uma prova longa. Eu não sabia disso, mas pra você correr uma maratona você não corre uma antes pra saber se pode, você começa tipo seis meses antes pra no dia da prova você correr os 42 quilômetros pela primeira vez. Eu não sabia disso. Um dia você corre, sei lá, 18, aí vai pra 20 e pouco, 30 e pouco, até chegar. Então, eu tinha me inscrito pra correr no Rio, ia ser finalzinho de junho, começo de julho. E num domingo um mês antes acho que eu tinha que correr 35 pela primeira vez, treinando pra chegar nos 42. Nesse domingo era a maratona de São Paulo, pela primeira vez saindo da Ponte Estaiada, aquela lá perto de onde eu trabalho, lá no Morumbi. Eu falei: “Ah, vou fazer o treino lá. Vou lá, não vou me inscrever, saio com o pessoal correndo lá, quando chegar no 35 paro, pego um táxi e vou pra casa”. Só que estava aquela garoinha, eu saí sem a mínima pretensão, fui correndo devagarzinho, não parei, não tive que caminhar nada, não estava sentindo dor. Ah, 35, vou indo, vou indo, pum, acabei a prova em quatro horas e cinquenta e seis minutos, que eu achei até um número bonitinho, quatro, cinco, meia. Aí, quando eu acabei eu falei: “Puta que pariu, eu acabei a prova” Comecei a chorar, tal. Cheguei em casa, mandei e-mail pra Corpore: “Pô, deixa eu pagar a taxa pra ganhar a camisetinha, a medalha” “Ah, não pode fazer isso depois”. Comprei só uma foto da internet, fui procurar nos avulsos lá, eu sabia que eles tiravam essas fotos, eu comprei e é a única lembrança que eu tenho. Aí, eu tinha lido na internet também, que você, como amador, só pode correr uma maratona a cada seis meses senão você ferra o seu corpo, maratona não é um negócio legal pra você. Das muitas vezes que eu me machuquei, quando eu fui no médico ele falou assim: “Você vive disso” “Não” “Então, pra que você está querendo fazer isso? Vê se você conhece algum queniano com 60 anos de idade. É que eles não anunciam, mas esses caras morrem, é um esforço no coração muito grande”. Falei: “Tá, mas eu vou correr”, ele falou: “Tá, vai você lá”. Eu sabia que não podia correr, só que eu já tinha me inscrito pra do Rio, eu falei: “Eu quero a porra da medalhinha”. O que eu fiz? Em uma distância de 28 dias eu fui correr a do Rio. Aí, a do Rio foi tudo aquilo que eu teria imaginado, eu consegui chegar até o final porque o prazo que eles dão é de seis horas, você tem seis horas pra terminar. Depois daquilo eles abrem a pista, te tiram de ambulância, o que for. Eles abrem pro trânsito. Mas aí eu senti dor, eu parei, eu tive que caminhar. Eu tentava trotar, foi horrível, foi tudo o que eu imaginava que uma maratona pediria de uma pessoa. Terminei em cinco horas e meia, mas totalmente acabado, eu tenho uma medalha lá em casa que eu não gosto daquela. Estou pensando em fazer esse ano, até o dia 31 tem um desconto na inscrição, então, tenho que decidir até amanhã. Mas queria correr direitinho a do Rio porque é bonito, as praias e tal. Mas foi horrível correr aquilo tudo, não gostei mesmo. A de São Paulo veio como um presente inesperado um mês antes. Mas eu já corri uma maratona na minha vida e estou feliz (risos).
P - Você falou agora da maratona e de coisas que você tem vontade de fazer. Hoje, olhando pra frente, o que você tem vontade de fazer, sonhos?
R - Tenho vontade de mudar de profissão. Dar aula de inglês, eu já faço isso há 25 anos, pra mim já deu o que tinha que dar, não quero me aposentar nessa profissão. Quero continuar na Educação, quero continuar trabalhando com pessoas, não necessariamente dentro da sala de aula, mas, talvez sim. E eu quero abrir essa área da Antropologia aí, porque é o que eu gosto, de estudar pessoa, multidão. Ou algum trabalho que me permitisse talvez viajar, não tipo o que vocês estão fazendo aqui, mas, como é que essas pessoas vivem? Não entrevistar, mas, sei lá, coletar modos de vida. Acho que eu sou um bom observador, eu me dou bem nisso daí, então, acho que seria isso. Em termos de sonhos de viagens eu tenho três, mas não sei quando. Eu queria pegar aquele passeio de barco no Amazonas, ir tipo até Belém, pegar o barco das redes até Manaus, aquilo eu quero fazer. O outro é ver o Taj Mahal na Índia, e o outro é ver as pirâmides do Egito. Essas três viagens eu gostaria de fazer a viagem final. Agora, de trabalho, acho que é isso aí, talvez quando a minha irmã se estabilizar, comprar um apartamentozinho, aqui ou no Rio, dar minhas aulinhas aí, não muitas, ficar nisso aí, um trabalhinho que pague as minhas contas e o resto que eu ganho é pra viajar. Isso aí.
P - E agora é a última pergunta. Eu queria saber como você se sentiu contando a sua própria história? Como foi pra você, o que você esperava?
R - Ah, pra mim foi legal porque eu não queria ficar ensaiando muita coisa. Deixa eu chegar lá, o que aparecer é coisa. O negócio das fotos já me obrigou um pouquinho porque eu falei: “Ah, tem que escolher foto, tal”, fiz isso duas semanas atrás, não tenho muita foto, não tenho máquina fotográfica, não gosto. Então, eu tenho uma caixinha de sapato que tem todas as fotos que eu tenho, é o que tinha lá naquela caixa, falei, tem que tirar daqui no máximo dez. Tirei, acho que representam várias coisas, fui bem cuidadoso na escolha das fotos. Aí, não, eu quero falar disso quando eu estiver lá. Eu tinha curiosidade de saber como era estar sentado aqui, como era o processo todo. É aquela coisa, pra mim é como se estivesse entrando em um outro universo, então, assim como vocês tem perguntas pra mim, eu tenho milhares pra vocês, do tipo, como é que você acabou aqui, como é que você chegou a trabalhar aqui, como é que faz para estar desse lado. Mas eu não queria chegar e fazer essa pergunta antes de estar desse lado. Falei, deixa eu ver como é esse barato aí, mas eu tenho várias curiosidades porque eu sou faminto de pessoas. E acho que isso aqui é muito legal, acho que é um privilégio estar sentado aí ouvindo histórias, imagino que a maioria seja de corações abertos, as pessoas vem aqui propostas a contar. Não sei, acho que pro espírito deve ser uma alimentação bem interessante e saudável. Então, eu invejo vocês de uma maneira boa, não quero tirar o lugar de vocês, mas se tiver um serviço voluntário, essa coisa de capacitação, aí, eu já vou chegar. Eu tenho toda essa curiosidade também, não posso negar. Afinal estou estudando nessa área e tenho esse interesse, mas enfim.
P - Agora, a minha pergunta, sem analisar tudo isso, como é lembrar de tudo isso? Qual a sensação que você tem?
R - Ah, eu acho que é bom. Não pensei que eu fosse me emocionar, como teve umas duas vezes aí, tal, achei que eu fosse conseguir só falar assim e tal, mas, não sei. Eu acho que eu precisava disso pra mim, eu estou disposto a abrir um novo ciclo, então, quando eu soube disso aqui eu falei: Ah, tá bom, eu vou lá, falo pra esse pessoal coisas, fecho essa portinha e posso abrir, sei lá, um novo cômodo nessa casa. Então, pra mim, também tem uma outra razão. Eu tive um sonho, há muito tempo atrás, que eu ia falecer quando eu tivesse 44 anos, que é a idade que eu estou agora. Então, eu meio que fiz 44 e já estava esperando assim, eu meio que me preparei pra morrer de uma certa forma. E está acontecendo um montão de coisa na minha vida esse ano que acho que é um tipo de morte, não a física que eu esperava, mas assim, eu perdi o interesse pela minha profissão, eu to pensando mais em ficar em uma cidade, comprar um apartamento. Falei, ah, de repente, me apaixonei por um carinha no ano passado da USP, tal, o Javier fechou a porta. Então, falei, puta, isso é morte. Então já estou mais tranquilo, quando eu fizer 45, aeeee, legal. Eu achava que eu precisava disso aqui, acho que vocês vieram na hora certa. Nada é coincidência, foi um amigo do trabalho que já esteve aqui e falou: “Ah lá Wagner, fui lá, contei minha história, você não quer?”. Ele sabe que eu sou curioso, eu acho que eu usei o instrumento de forma que pudesse me ajudar, não sei se eu vou sentar pra assistir, mas eu vou dar pras minhas irmãs assistirem lá e tal, acho que vai ser interessante. Mas pra mim, eu acho que eu saí, sei lá, como quando você faz a faxina em casa e joga um montão de papel fora? Para eu ter jogado a história aqui me libera para eu começar uma outra. Acho que é isso que eu precisava, porque é menos peso, já está gravado em algum lugar aí, então, tá bom, deixa eu começar a construir uma outra para daqui uns 44, se eu tiver, contar outra história, tal, como se fosse outra pessoa diferente, tal. Lembrar disso aqui: “Meu Deus, na primeira vez que estive aqui não lembrava como foi, tal, Gustavo e Isabela”. E o teu eu esqueci o nome, desculpa.
P - Adilson.
R - Adilson, tá legal. É isso.
P - Está ótimo Wagner, a gente agradece.
R - Obrigado vocês.
P - Obrigado.Recolher