Projeto Memorial do Trabalhador
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de José Melquiades Ursí
Entrevistado por Cláudia Fonseca
Foz do Iguaçu, 28 de agosto de 2002
Código: ITA_CB006
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
P – Bom, eu gostaria que você começasse nos dizendo s...Continuar leitura
Projeto Memorial do Trabalhador
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de José Melquiades Ursí
Entrevistado por Cláudia Fonseca
Foz do Iguaçu, 28 de agosto de 2002
Código: ITA_CB006
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
P – Bom, eu gostaria que você começasse nos dizendo seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Bom, meu nome é... Eu sou de uma família de descendentes de Italianos e meu nome é José (Melquiades Ursí?).
P – E você nasceu...
R – Eu nasci em Jaguapitã, no norte do Paraná em 1949. Eu sou aquariano.
P – Que dia que você nasceu?
R – A data de 24 de janeiro de 1949.
P – E o nome do seu pai.
R – Meu pai tem um sobrenome diferente do meu. O nome dele é Francisco Orsoli, que quando meu avô foi registrar meu pai e em vez dele escrever Ursí ele escreveu Orsoli. Esse é o nome do meu pai. E minha mãe Maria Ventura Orsoli.
P – E o seu pai fazia o que?
R – Meu pai trabalhou na lavoura, depois ele trabalhou num mercado, numa venda que chamava na época, no norte do Paraná, com meu avô. Aí eles tiveram alfaiataria com fábrica de camisa. E depois ele acabou se mudando pra Londrina e se aposentou trabalhando numa empresa de transportes.
P – E sua mãe?
R – Minha mãe sempre em casa.
P – E você chegou quando Melquiades em Foz do Iguaçu? Como é que você veio pra cá e quando você chegou?
R – Oh, a história foi a seguinte. Eu tava muito cansado do magistério e fui num médico que era um nordestino. Eu tava meio estressado. Aí conversando e tal no final ele disse assim: “Ursí vai embora, esta cidade é muito pequena pra você.” Eu falei: “porque você está falando isto?” Seu Alcides era o nome do médico. Ele falou: “Não, você tem uma ebulição na cabeça.” Não sei porque ele disse aquilo também. Aí eu fui pra casa e fiquei pensando e falei: “ah, eu vou considerar o que o Alcides tá falando.” E vim sozinho pra cá. E um peão pegou e me introduziu aqui dentro da obra. Até usou um... Vou contar a história, depois se você achar que deve publicar ou não você decide. Ele falou assim: “Pô, como é que nós vamos fazer pra você entrar? Você tinha que apresentar o crachá. Tem um crachá velho, me dá uma fotografia tua.” Aí botou a fotografia ali e entramos pra dentro, sabe?
P – Em que ano isso?
R – Isso em 70 e... 78? Acho que é em 78. Esta questão de data eu me confundo.
P – Aí você pôs a foto no crachá?
R – Pus, entramos, ele falou: “ah, e pra começo você mostra também e lá também eu tenho um vale refeição.” Era hora do almoço. “Depois nós vamos ver. Nós vamos falar com o engenheiro aí e tal.” E ele era um peão de obra, só que ele me conhecia lá do norte do Paraná. Aí quando a gente tava voltando, perto do escritório da Unicom ele falou: “Cara, aqui vai sair um jornal aqui. Pêra aí. Vamos falar com... Deixa ele chegar aí, vamos fazer um... vamos falar com o chefe do setor”. Aí ele chegou e tal. Era da área social. O jornal tava integrado à área social da Unicom. A Unicom é a empresa que construiu a barragem, que fez a parte civil da barragem. Era a maior das empresas que tinha. Tinham sido contratados pela Itaipu. Aí na hora, _______, perguntou do meu currículo, “vamos fazer um teste.” Até me lembro. Problemas de uma binacional. Era pra escrever uma redação sobre isto. Tinha o lado paraguaio e o lado brasileiro. Eu peguei, fiz a redação. O encarregado falou: “Há, vai lá pra fichar.” Aí eu saí dali e fui até o recrutamento que era na entrada ali da obra antes da portaria e fiquei.
P – Quer dizer que você fez o jornal da Unicom né Melquiades. Você tava me dizendo
R - Eu fiz do primeiro ao último número.
P – A tiragem era alta, né?
R – Era alta. Chegou a ter 20 mil exemplares. Pro Paraná acho que era uma tiragem, acho que nem a Gazeta do Povo não tinha isto.
P – Como é que era esse jornal, assim...
R – Ele era um jornal bilíngue. A diagramação era assim. Na face da direita você sempre tinha a mesma língua. Ou português ou espanhol. Então você pegava a página da direita e ia virando e na direita você sempre tinha em português. Você virava o jornal de ponta cabeça você tinha o espanhol. Com a mesma diagramação, com a mesma matéria, as mesmas fotos.
P – Você trabalhava sozinho neste jornal? Como é que era a equipe?
R – Não, nós chegamos a ter nove pessoas ali. No final éramos os dois só, eu e um outro.
P – E o que você priorizava de matérias neste jornal? Você me disse que era da área social.
R – Ah, então veja. Era um jornal muito técnico, né, que cuidava da barragem. E naquele dia que o Dr. Fábio pediu que eu fosse fazer o recrutamento, eles estavam fichando em torno de 200 a 300 pessoas. E eu aí me explicaram como é que ia ser este jornal, eu falei: “Puxa, eu preciso humanizar um pouco este jornal.” E aí eu fiquei com aquela preocupação, que eu tinha uma formação humanística. E aconteceu o seguinte. Tinha um entre estas 250, 300 pessoas que estavam ali na fila pra recrutar, um nordestino estava sem dinheiro. Aí tinha uma caixa de papelão no chão, ele foi lá, arrancou a tampa da caixa de papelão, escreveu uns números ali. Tinha um crucifixo, um santo no pescoço. E saiu rifando o santo dele na fila do recrutamento pra arrumar dinheiro. Aí eu fiz minha primeira crônica que era o peão que rifou seu santo na fila do recrutamento. E o pessoal gostou e pegou e toda semana daí ou a cada 15 dias, não lembro a periodicidade no começo qual que era, eu fazia uma crônica, um conto ou um poema que tratava do lado humano, do lado das pessoas, das preocupações delas, dos êxitos delas, das frustrações delas, das dificuldades, das alegrias. Além. Mas o jornal era eminentemente técnico. Falava da obra, mas também falava das pessoas que trabalhava aqui, que cuidava de recreação, como que tava indo o futebol, como que tava indo à luta de Box. Eles traziam gente de fora pra lutar box de São Paulo. Enfim, todas as atividades humanas eram cobertas. O carnaval. Não era só também concreto.
P – E que impressão você teve quando você chegou em Itaipu aí com o seu amigo. Foi procurar este amigo.
R – Ah, eu fiquei meio perdido porque a coisa era muito grande, né. E a gente diante dos avanços tecnológicos do mundo de hoje é uma migalha, uma coisa pequena. E aí você tem que começar a tatear, a pisar no chão pra se descobrir, e sentir em que mundo você ta.
P – Você lidava muito então com esse pessoal barrageiro, você escreveu um livro, né, sobre isso.
R – É. ______ aí a gente reuniu aquelas crônicas. Alguns foram até antes. Tinha poemas que não tinham ligação com a obra, mas a maioria sim. E eu cheguei a levantar 200 e poucas gírias de barrageiros.
P – Isso que eu queria que você falasse pra mim. Isso é legal. Me conta aí como é que eram essas gírias.
R – Inclusive a Gazeta do Povo que era o maior jornal...
(pausa)
P – Então você estava me contando que chegou a levantar 200 gírias de barrageiros. Me conta algumas dessas aí.
R – É. Por exemplo, eles chamavam a carne moída de brita. Bife era solado de coturno. Ovo, relógio de pulso. Frango era boi de bico. Gelatina era bailarina. Tinha uns ônibus aqui que eles vinham de pé pendurados. Então eles chamavam aquilo de disco teque porque balançava. Motorista que dirigia de forma lentamente era roda presa. O motorista que ia muito devagar, “Ô roda presa.”
P – E isso começava e ficava todo mundo e acabava...
R – Ficava, mas tudo isso, isso não era uma linguagem que nasceu aqui. Porque o Brasil construiu muitas barragens, então tinha barrageiro que você nem imagina. Tinha de várias barragens feitas pelo Brasil afora.
O Brasil tem uma tecnologia em construção de barragens extraordinário. Exporta esta tecnologia. Então eles vinham acompanhando barragens pelo Brasil inteiro e aí as gírias iam sendo trazidas pra cá. Tinha gente de todo lado. Então era o lugar ideal pra você...
P – Você lembra de alguma que surgiu especificamente em Itaipu?
R – Marrom glacê. Tinha uma novela na Rede Globo chamada Marron Glacê e eles pintaram o ônibus de marrom e bege, e então eles apelidaram aquele ônibus de Marron Glacê.
P – Então esta já é uma gíria...
R – Esta já é uma gíria típica daqui. Eu não me preparei muito assim. Provavelmente havia outras. Esta da disco teque também deve ter nascido aqui, que era a época de disco teque, era um papa_____ mesmo que trazia gente e vinha pendurado. Era muita gente que tinha aqui, né. E aí balançava nas curvas e as pessoas vinham dançando e eles chamavam aquilo de disco teque.
P - E como é que era o teu cotidiano de trabalho? Você tinha um horário fixo, todo dia você fazia. Como é que funcionava?
R – É engraçado, né. As pessoas têm a impressão assim de que se trabalhava demais, até exageradamente. A gente levantava muito cedo. Eu lembro disso porque eu dava aula a noite também. Então cinco e meia eu levantava. Eu dormia muito pouco neste período. E a gente ficava o dia inteiro, até as seis, as vezes até mais.
As vezes tinha que fazer hora extra. Cobrir atividades que tinham a noite. E a gente fazia. E eu ia pra escola depois. Mas quando a gente ia rodar, naquela época não tinha os recursos que tem agora pra fazer o jornal. Aí você tinha que acompanhar, fazer a revisão, cortar aquelas tirinhas, colar a letrinha com durex, prega ali. Acompanhar se as _____tinham feito a diagramação certinha, se eles tinham acompanhado a diagramação. Então era essa a rotina.
P – Vocês faziam só o texto, ou também acompanhavam a foto, tudo isto?
R – Não, eu fazia a fotografia também. Diagramava o jornal e fazia a redação também. E traduzia do espanhol pro português. Fazia de tudo. Era um curinga. E foi bom porque eu aprendi muita coisa. Foi ótimo.
P – O que você fazia assim nos horários de lazer?
R – Eu as vezes jogava futebol. Gostava de jogar.
P – Você foi jogador de futebol...
R – Eu fui jogador de futebol
P – Foi seminarista.
R – Fui seminarista. Dez anos. Eu entrei criança e hoje se aceita mais, porque na época que você quer a mãe...
P – Então você jogava futebol nos seus momentos de lazer.
R – Jogava.
P – Nessas coberturas que você fez pro jornal, conta alguma que tenha sido mais marcante
R – Eu vou contar da visita do Sabin porque ele foi um gênio da humanidade, um cara de uma estrema solidariedade.
P – Dentre as entrevistas que você fez, as visitas que você acompanhou, conta uma de destaque pra nós.
R – Olha, eu entrevistei vários operários que tinham várias histórias interessantes, mas agora no momento eu me lembro a história do Dr. Alberto Sabin que inventou a vacina contra a gotinha contra a paralisia infantil. E ele era casado e a última mulher dele era brasileira, e ele foi convidado pra visitar a obra e fizeram um roteiro pra ele visitar, ver o gigantismo da obra, e ele chegou muito simplesinho na entrada da barragem, na recepção com uma blusa branca de golinha olímpica. E aí em vez dele seguir o roteiro que tinha preparado, que era em direção à grandeza da obra, ele pediu pra ver os alojamentos dos peões.
E foi, visitou, olhou. Era muito limpo os alojamentos. Muito bem tratados, cuidados, tinha gente que cuidava de tudo. E aí quando ele saiu a gente perguntou porque ele tinha pedido pra visitar os alojamentos. Ele disse: “Olha, em qualquer empresa a educação começa pelo banheiro e o respeito as pessoas começam também por aí. E é muito limpinho. E agora vamos ver a obra.” E aí ele seguiu pra ver a obra. Outra entrevista assim mais pelo lado sentimental, que eu gostava muito de futebol com gente que era de fora, foi com o Garrincha. Já em final de carreira ele jogava pelo Milionários que era um time de ex-craques e ex-jogadores, e saiu pelo Brasil dando espetáculos. E eles vieram aqui dentro do canteiro, aqui do lado e jogaram contra o time da (Unicom?). Então eu entrevistei. Ele já tava doente, já tava alcoolizado, mas mesmo assim dava as gingas dele.
P – E Melquiades, pra gente encerrar, o que você achou de ter dado esta entrevista pro Memorial do Trabalhador?
R – Olha, Claudia, foi uma coisa gratificante pra mim. Eu não esperava, né. Eu acho que esta história de operário padrão quando vem de cima pra baixo é uma coisa meio artificial e nunca me agradou. Mas eu tava tantos anos fora daqui, Curitiba, eu não tinha contato com mais ninguém. E o fato de algumas pessoas lembrarem deve ter ficado algum rastro, alguma coisa significativa. E a gente vai aprendendo na vida a respeitar a individualidade das pessoas, a entender os caminhos de cada um. E eu imagino então que alguma coisa assim tocou a sensibilidade das pessoas. Deve ter ficado. Eu me lembro algumas vezes a gente ter escrito algumas destas crônicas ______ encontrar alguém e dizer assim: “Eu chorei lendo aquela crônica” E aí a gente diz assim: “poxa, que bom. Você está fazendo o maior elogio que alguém que escreve pode receber.”
Eu me lembro de uma outra oportunidade, um engenheiro, eu cheguei, eu era bem mais novo, não sei, trinta e poucos anos, e ele falou assim: “Você que é o Melquiade?” E arregalou os olhos. Eu falei: “sou.” Porque eu sou baixinho e feio, e ele falou: “Não, eu pensei que você tivesse uns 50, 60 anos pela forma como você escreve. Você toca as pessoas.” Então a lição que ficou, e isso é bom e aí não vai nenhuma vaidade, nenhum _______ nisso é de que talvez alguma coisa boa ficou. ___ as pessoas, e algum carinho, algum afeto. Eu acho que é isso que o mundo precisa. Uma obra como Itaipu é resultado dessa gente. Da integração. Era interessante a integração que os brasileiros e paraguaios tinham com as diferenças políticas, com uma visão mais rigorosa do lado de lá. A gente tinha saído de uma ditadura também, né. A capacidade das pessoas se entenderem e se integrarem pra construir uma obra monumental. Operários que subiam no caminhão __________ sem fazer curso e saia dirigindo aquilo e surpreendiam os produtores daqueles caminhões. Ô, mas na Europa e nos Estados Unidos tem que fazer curso para dirigir estes caminhões, então como é que um peão desses sobe aí e vai dirigindo esse caminhão. Quer dizer, então a improvisação, a capacidade do brasileiro de se adaptar. A palavra impossível pra ele não existia. E é isso, né. A única lembrança assim de como é que eu aguentei ficar aqui era que eu tinha medo de altura, e quando tinha que subir naquilo lá eu ficava____, me dava um frio na barriga, ficava com medo de cair, né. E então a única coisa. Mas eu fiquei muito feliz, claro, de ter recebido este convite. Não esperava mesmo.
P – Então tá bom, obrigada.
R – De nada.Recolher