Os homens, em sua grande maioria, haviam partido para a guerra, e para nós crianças era natural que assim fosse, e a própria guerra era um fato natural, para nós. Não nos perguntávamos quando acabaria, porque não tínhamos noção de que começara um dia. Era assim e pronto. E era como nas f...Continuar leitura
Os homens, em sua grande maioria, haviam partido para a guerra, e para nós crianças era natural que assim fosse, e a própria guerra era um fato natural, para nós. Não nos perguntávamos quando acabaria, porque não tínhamos noção de que começara um dia. Era assim e pronto. E era como nas fábulas, em que os heróis partiam para alguma grande aventura e as mulheres esperavam seu retorno.
A guerra era longe, para além dos montes e do mar, e para nós as muralhas de Fratterosa eram enormes e poderosos braços maternos, que nos protegeriam contra qualquer perigo e dentro delas nos sentíamos seguros, como num ninho. Talvez nem percebêssemos a ansiedade com que as mulheres esperavam cartas da África, da Grécia, da Albânia, da Iugoslávia, de onde quer que os homens estivessem lutando. E o pranto comum, quando chegava alguma notícia de morte, e os sinos a anunciavam com seu badalar que do alto campanário resvalava pelos campos ao redor até as aldeias vizinhas, nos reforçava na idéia de que a guerra era coisa de homens, e às mulheres cabia chorar. E quando muitos homens voltaram e se escondiam nos sótãos, nos porões, em buracos escavados na terra, isso também, creio, era natural para nós crianças. Mas quando vimos que as muralhas não nos protegeram, que o inimigo invadiu nossas ruas e casas, queimando e destruindo, e nós também tivemos de fugir pelos campos e nos esconder debaixo da terra, junto com os homens, que segurando a respiração nos faziam sinal de ficarmos quietos, então nós crianças também conhecemos o medo, e o conhecemos nos olhos daqueles homens.
Mas isso foi quase no fim da guerra. No início ela estava longe, e eu vivi os anos mais leves de minha vida, apesar da guerra, ali em Fratterosa, anos redondos, maternos, de mamãe, de Nonna Gemma. Anos com gosto de pão caseiro, de geléia de amoras silvestres, de caciottina. Anos com gosto de fábulas. São lembranças que me nutrem até hoje. E é delas que quero falar.
A CACIOTTINA
Gostávamos muito de queijo, mas queijo era coisa rara, como era raro quase tudo , naqueles anos de guerra. Contam que meu irmão mais velho, ao comer o pão, o dividia em dois pedaços, um grande e outro pequeno, e dava uma mordida ao grande, que segurava na mão direita e uma mordidinha ao pequeno, que apertava na esquerda, e se alguém perguntava: " O que está comendo, Lilio ? ", ele respondia: " Pão e queijo ", mostrando primeiro uma e depois outra mão.
O queijo era um luxo. Era coisa que só os contadini tinham. Os contadini, a quem uma sabedoria secular havia ensinado a cuidar da terra, tinham quase tudo: trigo, azeite, vinho, frutas, ovos, leite, queijo. As casas dos contadini tinham cheiro de queijo e eu gostava daquele cheiro, quando ia visitá-los, com Nonna Gemma.
No verão íamos catar espigas de trigo. À medida que a colheita avançava, os contadini liberavam os campos para que gente da aldeia, que não tinha terra, catasse as espigas que haviam escapado aos feixes, após terem sido ceifadas. E as mulheres da aldeia iam: tia Élvia, tia Bárbara, tia Ernesta, Nonna Gemma... Levantavam cedo, chegavam ao campo junto com o sol e ficavam lá horas, o corpo dobrado, à cata das espigas que tinham ficado no chão. Para mim era um divertimento, quando me levavam, uma brincadeira. Eu era pequena e não precisava me agachar muito para pegar as espigas : seguia Nonna pelos sulcos, cuidando de não me machucar nas hastes duras do trigo colhido, e quando os maços dourados não cabiam mais em minhas mãos eu os entregava à Nonna . E assim, no fim da colheita, nós também tínhamos nosso trigo, nossa farinha, nosso pão, que a fantasia transformava em queijo.
Eu sabia que não devia mostrar a ninguém, que devia comer às escondidas, pois se alguém descobrisse era bem capaz de eu não ter mais minha caciottina. Eu me escondia e comia num delírio, misturando o sabor do queijo ao sabor, único, daquela cumplicidade, daquele segredo que me fazia sentir a preferida de Nonna Gemma.
PANIS ANGELICUS
Naqueles tempos de minha infância o sal era coisa rara, talvez a mais rara. As mulheres iam a um lugar que chamavam Salino, onde da argila vertia uma água salobra, que elas carregavam em seus potes de barro e faziam evaporar numa panela em cima do fogão a lenha. Evaporada a água, a panela ficava com uma pátina branca, que elas raspavam cuidadosamente e era o sal. Eu ia buscar essa água com mamãe e Nonna e depois via a água evaporar e a panela ir ficando branca por dentro e pensava que quando chegasse minha hora de fazer o sal eu saberia. O sal era usado na comida, mas não no pão, e era tão gostoso aquele pão sem sal, de um sabor nunca esquecido .
Eu olhava sempre minha mãe fazer o pão, na caixa da mádia: a noite anterior ela colocara a farinha, em quantidade suficiente para uma semana, tinha aberto uma cavidade no meio, onde havia depositado, dissolvendo-a em água morna, uma bolota de massa crua, que tinha deixado do pão feito a semana antes, e a cobrira com uma leve nuvem de farinha, num gesto sempre igual, que sempre terminava num sinal da cruz em cima daquela nuvem.
Eu via minha mãe feliz, a manhã seguinte, quando ao abrir o tampo da mádia percebia que a bolota crescera, pois era sinal que o pão fermentaria e cresceria bonito ele também. Eu olhava fascinada e via minha mãe acrescentar água morna à farinha e imergir suas mãos fechadas em punho naquela delícia branca e começar a amassar, com movimentos ritmados, uma mão depois da outra, e todo seu corpo acompanhava aquele movimento e parecia uma dança. Aos poucos a farinha ia se misturando à água, tomava consistência e se transformava numa massa lisa, macia, morna, à qual não resistiam meus dedos, que nela afundavam delirantes.
- Não se pode tocar - dizia minha mãe, que afinal me dava um pouco de massa para eu fazer meu pequeno pão, que ela assaria junto com os demais.
Depois, daquela massa, ela retirava um pedaço, que também recobria com uma nuvem de farinha, e deixava de lado, num lugar dela, escondido. E debaixo de suas mãos hábeis iam nascendo lindos pães redondos, todos iguais, que ela colocava numa tábua longa, sobre um pano branco. Com uma faca, em seguida, fazia três cortes em cima de cada pão, como um grande N, e em cada um imprimia um sinal, um carimbo com as iniciais de meu pai, um L e um F entrelaçados, para que, no forno, não se confundisse nosso pão com o das outras mulheres da aldeia. Enfim, mamãe fazia outro sinal da cruz, sussurrando rápidas palavras que eu, por mais que me esforçasse, não conseguia entender.
Para mim, todos aqueles gestos tinham algo de misterioso e de sagrado: o mistério da bolota, guardada como uma relíquia num lugar escondido, que de uma semana a outra gerava novo pão; o mistério daquelas mãos que benziam e daquelas palavras incompreensíveis; a sacralidade daquela massa de pão que não se podia tocar.
Todas as mulheres faziam o pão em casa, naquele tempo, em Fratterosa e vinham assá-lo no forno de tia Annetta. Nós morávamos na pequena praça em frente ao forno e então eu podia me deliciar com o espetáculo das mulheres que chegavam com as longas tábuas na cabeça, caminhando com elegância, o dorso reto, as ancas que se moviam ritmicamente, de cá para lá, e os braços que de tanto em tanto se erguiam a segurar a tábua.
Poucos passos me separavam do forno, daquele lugar delicioso, quente e perfumado, com o cheiro do pão que se espalhava pelo ar. Talvez, àquela época, eu acreditava que assim era o paraíso. Era bom aquele pão sem sal: tinha gosto de amor, de dedicação e ternura. Parecia-se, talvez, à carícia de uma mãe, e era digno de um anjo.
MISSAS E SOPAS
- Bom dia , Nerina
- diziam todos.
- Bom dia - respondia mamãe.
Todos falavam baixinho e as vozes se misturavam aos últimos repiques dos sinos e aos passos no pedregulho branco e miúdo do calçamento. Era dia de festa e era lindo. Era sempre assim, a manhã de domingo. Lembro bem : eu procurava não me mexer para não amassar as pregas do meu vestido e me perguntava se todos já tinham visto como eram lindas, tão bem passadas
O dia anterior, como todo sábado, eu tinha me postado ao lado de mamãe, que passava meu vestido com seu grande ferro cheio de brasas acesas. Eu gostava de olhar para ela, enquanto passava as dobras, uma a uma, com perfeição geométrica, fixando-as com um pano úmido sobre o qual pousava o ferro, que de tanto em tanto abanava para avivar as brasas. O pano úmido gemia àquele contato, soltando um sopro de vapor e quando mamãe levantava o pano as dobras saíam debaixo dele perfeitas e me fascinavam. E eu não via a hora de colocar aquele vestido quando, a manhã de domingo, acordaria ao som daquele repicar festivo, tão cheio de alegria. E agora finalmente tinha chegado o momento tão esperado
A um último chamado, um derradeiro repicar, se calam as vozes e se entra na igreja. Primeiro as mulheres, que na soleira desdobram seus lindos véus, agitando-os um pouco no ar, numa última ostentação, e os colocam na cabeça com um movimento flexuoso dos braços. Depois os homens, que tiram os chapéus e abaixam os olhos, e permanecerão em pé, no fundo da igreja.
A missa devia ser importante, muito importante, porque todos, também os homens, vinham assistir: vinham Nonno Giuseppe, tio Gemino, tio Attilio, tio Omero... E eu gostava de ver. Todos os gestos, e as palavras, e os cantos, me fascinavam. As mulheres se levantavam, e se ajoelhavam, e sentavam de novo e todos aqueles movimentos enchiam a igreja de um burburinho, um fremir que a percorria inteira. De vez em quando todos, em coro, respondiam à invocação que Dom Renato, do altar, dirigia para o alto e era uma única, submissa e poderosa voz. Depois tio Omero tocava o órgão e a igreja toda ressoava de cantos. Era realmente lindo
Mas eu não gostava quando Dom Renato começava a prédica. E então, para passar o tempo, eu ficava olhando os véus que cobriam as cabeças das mulheres: - " Quando eu for grande – dizia a mim mesma - vou comprar um como esse aí...não, como aquele lá...não, melhor aquele outro ...".
Depois, eu fixava longamente a imagem de São Jorge com sua grande espada enfiada no dragão e achava bom que São Jorge fosse nosso amigo, mamãe tinha dito para mim, era ele que protegia Fratterosa. Olhava em seguida a imagem de Nossa Senhora com o menino Jesus no colo e os anjos gordinhos todos em volta, olhava as arcadas da igreja e o teto e o órgão, agora silencioso, com tio Omero que escutava atento as palavras de Dom Renato.
Saciados os olhos, sentia meus pés se tornarem inquietos. Queriam se mexer, correr para a casa de Nonna, que nos esperava com o almoço pronto. Eu sabia, era assim todo domingo: Nonna, que assistira à primeira missa da manhã , estava em sua cozinha e preparava a sopa de quadrucci, a massa feita em casa que ela cortava em quadradinhos tão miúdos, tão queridos, e que cozinhava no caldo de galinha que borbulhava na grande panela preta suspensa por uma corrente sobre o fogo da chaminé. Eu já sabia e parecia-me até sentir o cheiro bom daquela panela preta, que se misturava ao cheiro do incenso que o coroinha sacudia com força no ar, de cá para lá, de lá para cá.
Nonna Gemma sabia que eu era louca por aquela sopa de quadrucci, e eu não entendia porque não a fazia sempre. Nos outros dias a sopa que Nonna fazia era ruim, e eu a engolia à força, desviando a colher dos pedacinhos de toucinho que boiavam no caldo e a massa era grosseira, com gosto de fubá. Eu não podia saber que não havia farinha e ovos para todo dia e que durante a semana Nonna misturava farinha de trigo com fubá e só usava água para amassar, deixando os ovos para o domingo. Nem podia saber que, nos outros dias, ela fazia o caldo refogando pedaços de toucinho aos quais acrescentava alguma verdura, chicória ou favas, e deixava a galinha para o domingo.
Mas agora era domingo e Nonna estava lá, em sua cozinha, cortando a massa em quadradinhos tão miúdos e me abraçaria quando eu chegasse, e me diria com ar de cumplicidade: -"Adivinha o que Nonna preparou para você ".
- Ajoelhe-se e feche os olhos - dizia mamãe, séria, interrompendo meus pensamentos.
- Por que?
- Porque agora vem Jesus e não se pode olhar para lá - respondia ela, indicando o altar.
Corro para a casa de Nonna:
- Nonna, Nonna, já cheguei
- Adivinha o que Nonna preparou para você
CLARAS, FRESCAS E DOCES ÁGUAS
Numa das fábulas que contava Nonna Gemma, um príncipe, chegada a hora de se casar, e desejando encontrar uma jovem que fosse ao mesmo tempo bela e virtuosa, pôs-se a caminho pelas terras de seu reino. Anda que anda, encontrou uma velhinha dobrada sob o peso de um feixe de lenha e o príncipe, que era belo e virtuoso, carregou aquele feixe até a casa dela que, agradecida, perguntou-lhe o que queria em troca. O príncipe falou de seu desejo e então a velhinha lhe deu três laranjas, recomendando-lhe abri-las somente quando encontrasse uma fonte.
Feliz, o príncipe pôs-se de novo a caminho, com a esperança de encontrar logo uma fonte. Mas, anda que anda, não encontrou nenhuma e ele, vencido pela curiosidade, decidiu abrir uma das laranjas. Diante de seus olhos estupefatos, dela saiu uma bela jovem, de longos cabelos que lhe caíam como cascata pelos ombros.
- Pretos – exclamávamos então nós – Os cabelos eram pretos , os olhos escuros como a noite
Nós, que já conhecíamos a fábula, tantas vezes ouvida, sabíamos que iriam aparecer outras duas jovens e deixávamos para a última aqueles que considerávamos os ideais supremos da beleza feminina: longos cabelos cor de ouro e olhos azuis como um céu de abril.
Nonna nos deixava dizer, deixava que introduzíssemos nossa fantasia em suas fábulas. E assim, a beleza das jovens e das princesas era descrita com detalhes, em variadas cores de cabelos e de olhos, pele lisa e branca como neve, boca vermelha como cereja. O príncipe, ao contrário, não tinha propriamente um rosto, não sabíamos a cor de seus olhos e nem de seus cabelos: ele era vagamente belo e sua beleza se confundia com sua virtude, que era seu atributo principal.
Logo que saía da laranja, a bela jovem dizia: - " Filho de rei, de tua água beberei ". Mas, não havendo nenhuma fonte nas redondezas, o príncipe respondia: - " Água não encontrei " e ela, esvaecendo-se como neblina ao sol, dizia: - " Por ti morrerei ".
O príncipe então retomava seu caminho em busca de uma fonte, mas não conseguindo encontrar nenhuma, e novamente vencido pela curiosidade e pela ânsia, abria a segunda laranja, esperando talvez que dessa vez a jovem viesse ao mundo sem sede. Mas suas esperanças eram vãs e assim morria uma jovem de cabelos cor de mel e olhos verdes como campos na primavera.
Finalmente o príncipe entendia que devia seguir os conselhos da boa velhinha e, também, que devia dominar sua ânsia e sua curiosidade, que até então não lhe haviam valido para realizar seu desejo. E assim retomava seu caminho, segurando sua preciosa última laranja, até que finalmente encontrava uma bela fonte, de águas claras e frescas, circundada de verde relva e árvores frondosas, que a cobriam de doces sombras restauradoras.
- Como a Fonte Cannella – gritávamos então nós.
- Sim, como a Fonte Cannella, - repetia Nonna, que continuava a nos deixar dizer, a introduzir em suas fábulas, agora, nossa realidade.
Com o coração trepidante, o príncipe abria a terceira laranja e dela saía a bela jovem de cabelos cor de ouro e olhos azuis como um céu de abril. " Filho de rei, de tua água beberei" - dizia ela e o príncipe, dessa vez, oferecendo-lhe clara e fresca água no côncavo de sua mão, dizia-lhe: " Desta água te darei ", e ela finalmente pronunciava as palavras tão esperadas: " Para ti viverei ", e se formava um pequeno coro, porque nós, aquelas palavras, as dizíamos entusiastas junto com Nonna Gemma.
A história ainda não acabava e antes que se pudesse dizer: " E viveram felizes para sempre ", os dois ainda encontrariam muitas dificuldades, que iriam reforçar suas virtudes, atributo essencial para a felicidade eterna. Mas eu, aquela noite, sonhava fontes e laranjas e o fato de que havia, nas proximidades de Fratterosa, uma fonte como a da fábula, me deixava tranquila, creio, quanto ao meu destino.
A Fonte Cannella era uma das duas fontes de Fratterosa, a outra era a Fonte Grande, talvez a antiga Fonte Romana. Haviam sido construídos reservatórios nas nascentes, na encosta da colina, e a água era aberta em horas determinadas, e as mulheres, especialmente as moças, iam sempre em grupos para buscá-la e, na Fonte Cannella, também para lavar roupas. E os moços, sabedores do horário da água, por ali passavam, tomados de grande sede, e entre bater de panos e borbotar de água, e risos e olhares, muitos amores nasciam. Depois, sempre em grupos, as moças voltavam para a aldeia, carregando cestos de roupas perfumadas e barrigudos potes cheios de água, apoiados em rodilhas no alto da cabeça, e caminhavam feito rainhas, como se em vez de pano as rodilhas fossem de brilhantes.
Eu também tinha meu pequeno pote e tentava em vão fazê-lo ficar firme em minha cabeça, mas não conseguia e a água caía e me molhava toda.
- Quando você for grande, - dizia então Nonna, - espera quando você for grande...
E assim, no meu futuro, havia também aquele sonho, em que eu entraria na aldeia carregando na cabeça meu barrigudo pote cheio de fresca e doce água, sem deixar cair uma gota sequer, e passaria como uma rainha, mostrando a todos que já estava pronta para sair de minha laranja.Recolher