Heranças e Lembranças
Depoimento de Doba Zonenschain
Entrevistada por Karen Worcman e Patricia ______
Rio de Janeiro, 19/10/87
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº HL_HV006
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
R - Bom, eu não sei se eu preciso falar. Vocês têm que perguntar. Eu ...Continuar leitura
Heranças e Lembranças
Depoimento de Doba Zonenschain
Entrevistada por Karen Worcman e Patricia ______
Rio de Janeiro, 19/10/87
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº HL_HV006
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
R - Bom, eu não sei se eu preciso falar. Vocês têm que perguntar. Eu não sei onde começar. Só por perguntas.
P/1 - Nós vamos perguntar. Vamos começar pelo seu nome. É o mais fácil.
R - Por onde?
P/1 e P/2 - O nome.
R - Ah. Doba… Bom, o nome de agora? O nome de solteira era Ianpolsky.
P/1 - E agora?
R- Zonenschain. Pode escrever “ai” no fim. Não precisa… O verdadeiro Zonenschain é com “e”, porque é um nome alemão. Mas eu mudei aqui, quando eu cheguei, nós mudamos a carteira para ‘ai’. Pra ser mais fácil, senão eles iam nos chamar de Zonenschein. Aí mudei o A.
Sonne é o sol e schein é o lustro, o brilho.
P/1 - Esse nome é alemão?
R - O nome é alemão, mas nós não somos alemães. Antigamente, os nomes foram adotados por cidades, por intuição, por localidades, por mitos, religiões; cada um estava muito religioso, botou o nome. Era assim, mais por cidadezinhas. Agora, você está vendo? Esse nome já está um pouco mais adiantado. Zonnenschein. Já tem um nome um pouco...
P/1- Ele é o sol que… O que? Qual?
R - Sonne é o sol. The sun, como em inglês. E schein é o brilho. Já está um pouco adiantado, mas tem nomes muito mais difíceis.
P/1- E Ianpolsky?
R - Ianpolsky tem inclusive nos Estados Unidos, na União Soviética. Eu já li vários lugares que tem, às vezes porque as famílias se dispersaram muito, as famílias judias. E às vezes pode ter uma ligação qualquer. Mas...
P/1- O que quer dizer Ianpolsky?
R - Não, não tem, não quer dizer… Ianpolsky, eu sei sim. É de uma cidadezinha pequena na União... Na Rússia, na Bessarábia. Ianpol. É isso. É uma localidade. Não sei nada sobre essa localidade.
P/1- E por que escolheram esse nome? Por que que escolheram em alemão, dizer em alemão?
R - Isso não sei, porque já vem de tão antigo, de bisavós e… Que eu não posso saber.
P/2 - Doba é um nome comum?
R - Doba é um nome comum; me deram esse nome, Doba. Tem muitos nomes Doba na nossa cidade, na nossa localidade. É uma província. É uma cidade, vamos dizer, como… Maior do que Teresópolis. Um município… É uma localidade de um município maior.
P/2 - Como é que chamava?
R - Iedenitz. Um município, assim como Brasília. Era Hotchin, capital. A essa Hotchin pertencia Lipkan, pertencia Sukaran, muitas localidades pequenas.
P/2 - Era uma cidade?
R - Uma cidade pequena.
P/2 - Era um shteitel? Pode-se dizer isso?
R - É. Sim. Um shteitel. É isso mesmo, um Klein shteitel. O município era Hotchin e a esse município pertenciam muitas shteitel assim.
P/1 - E isso era onde?
R - Bessarábia, que era a antiga… Depois da revolução passou para Romênia, foi romanizada.
P/2 - Ah, então… Foi a zona então ao sul, não? Ao sul da Bessarábia, porque tem zona na Bessarábia que passou pra… Essa história de Polônia consta também… Problema histórico.
R - Isso é ocidental, mas tem o oriental. Isso aqui foi [na] Bessarábia ocidental, parte ocidental.
P/1 - Essa Iedenitz era no sul, então.
R - Sul, Iedenitz é sul.
P/1 - Era perto de que país?
R - Perto do… Hotchin, por exemplo, era perto de cidades grandes que pertenciam à Hungria, à Bulgária. Nesse canto.
P/2 - Ah, nesse canto.
R - É. Hungria, Bulgária, Tchecoslováquia, Iugoslávia. Bessarábia era nesse canto, aí foi romanizada depois da revolução, em 1917.
Esse episódio pequeno eu queria contar pra vocês. Eu tinha justamente, como eu nasci em fevereiro, quatorze - aliás, na minha carteira está escrito treze. Abriram ginásio particular e queriam que eu entrasse no segundo ano. Eu estava preparada, aí escreveram em agosto, mas eu nasci em fevereiro. Então, eu...
P/1 - Quer dizer, só podia...
R - Aqui na carteira só dia treze de agosto. Eu nasci dia 29 de fevereiro… Dia 28 de fevereiro, no fim de fevereiro.
Foi o seguinte. Eu me lembro, era criança, e quando entraram, era uma jogada, uma corrida. Vocês sabem. Durante uma reforma, uma... Tipo [uma] guerra, revolução, aí fogem os russos, vêm os romenos e ficam… Pessoas brutas, não é, sem cuidar das pessoas. E as moças bonitas tinham medo que eles invadissem as casas, as pegassem, as violentassem. Eu me lembro como hoje que…
Prispe se chamam aqueles bancos de cimento que estavam na frente nas cidades pequenininas. Na colônia não tem aqueles bancos? Mas eram mais baixos.
P/2 - Ah, mas não eram de cimento. Na colônia são de madeira.
R - Não, mas tem de cimento. Você não reparou? Perto daquela mesa onde tem aquela árvore grande em frente ao salão. Tem bancos em volta da mesa. E lá tinha pequenas, perto de cada casa. Aliás, deve ter aqui, nas seções rurais, os camponeses fazem bancos assim e se juntam com os vizinhos, batem papo. Isso é a vida deles.
Uma moça me pegou no colo. Eu devia ter, naquele tempo, de dois e pouco pra três anos. Mas eu era… Três anos já é uma criança grande. Ela me pegou e fez de conta que me deu de mamar. Até hoje eu me lembro que eu pensei… Eu fiquei quietinha e pensei: “Mas eu já estou grande pra ela fazer isso comigo.”
Isso foi feito comigo em 1917. Uma moça iídiche me levou no colo pra se salvar. (risos) Eu não posso esquecer isso.
P/1 - Conte um pouco como era essa cidade.
R - Bom, a cidade era constituída, a maioria, de judeus.
P/1- Ela tinha mais ou menos quantos habitantes?
R - Ah, lá naquela cidade mesmo… Em casa eu tenho anotado bem, mas devia ter umas quinhentas famílias. Só.
P/1- E em média, dessas quinhentas famílias, tinha quantos judeus?
R - Não, judeus mesmo. Tinha muitos judeus. A maioria era judeu. E tinha também mais longe, nas ruas mais afastadas, os judeus que estavam na frente dos açougues, do comércio. Tudo era judeu.
E mais pra longe, perto da seção mais rural, tinha casais… Tinha ciganos. Viviam ciganos também. E tinha… Goim, tinha muitos - inclusive, muitos deles eram de um nível um pouquinho mais alto. Eu mesmo tinha um colega goi que o pai dele era.. Como é que se diz? Que fornece pra polícia… Agente da polícia. O pai desse meu colega do ginásio era agente da polícia.
P/2 - Mas não era judeu.
R - Não, não. Goi. Tinha muitos. Agora, os goi viviam em bom relacionamento.
P/1 - A polícia, as pessoas que faziam esse tipo de trabalho, que trabalhavam… Tinha prefeitura? Eram judeus ou não judeus?
R - Tinha prefeitura e era… Não. Tinha, como em todas as cidadezinhas, um prefeito também judeu. Tinha um prefeito judeu.
P/2 - A parte do prefeito...
R - Tinha. A parte da prefeitura e tinha judeu ligado com o povo judaico. Tinha uma Talmud-Torá, tinha escolas, tinha… Tinha schil, sinagogas. Muitas, várias sinagogas.
P/1- Nessa cidade, por exemplo, de quinhentas famílias, tinha quantas sinagogas?
R - Tinha quatro sinagogas.
P/2 - Eram todas iguais as sinagogas ou tinha diferenças entre elas?
R - Tinha as famílias, já está falando com crianças, com tudo. Não é famílias. Pessoas, né?
P/1 - Ah, quinhentas pessoas então.
P/2 - Quinhentas pessoas. O fato de ter quatro sinagogas, assim como temos agora... Eu acho que tem diferença uma da outra. Qual era a sinagoga de lá?
R - Olha, a sinagoga… Eu, pessoalmente, não vivi a vida da sinagoga porque eu saí de lá com dezessete… Ainda não tinha completado dezessete anos.
Eu estudei desde criança, tanto que com dezessete anos já terminei o curso científico. Eu tinha mais relacionamento com a parte mais adiantada, mais liberal… Eu não ia ao shil, mas meus pais, meus avós iam.
Eu sei que a vida das sinagogas era uma vida muito comum, não tinha nada de divisão. Não se sentia aquela pressão de mitnagdim, chassidim, como a gente está entendendo isso. Era igual, era unânime. Uma vida em conjunto. Não era dividido em classe clericais e… Eu sei que era uma vida democrática.
Eu sentia que na cidadezinha pequena os religiosos estavam se dando bem, não era feito política. Porque nós conhecemos muito bem a política e o comportamento entre os mitnagdim e os chassidim. Nós sabemos muito bem a perseguição dos mitnagdims contra os chassidims. Eu estudei muito sobre isso e eu estudei, inclusive, hidrin. Chamushe, Zincachamushe, eu estudei. Tanto assim que quando, em 1914, abriu o ginásio, ainda era um ginásio russo, com diretor e tudo russo. Eu tinha… Não. Desculpa. Não abriu em 1914. Eu tinha onze anos… Quatorze… Em 1925 abriu um ginásio. Já era romanizado e tudo, mas o ginásio... Ah, eu vou trazer um retrato do ginásio também.
P/2 - Ah, seguro.
R - Inclusive o último grupo onde nós fizemos dez anos de… Eu sou o fim. Cinco alunos terminamos o quinto ano, não tinha mais. A situação econômica era muito ruim. Eu mesmo estudava porque a minha avó foi pra os Estados Unidos e lá tinha filhos dela, eles mandaram dinheiro pra eu poder estudar.
Eu terminei o científico e fui fazer o vestibular, mas no meio do vestibular eu fui barrada. Eu tinha que fugir porque já pertencia a grupo progressista, naquele tempo. Eu já trabalhava na Juventude, tinha muita ligação com os jovens do Hashomer Hatzair. Inclusive o Hashomer Hatzair era esquerdista, [tinha] muitos esquerdistas.
P/2 - Como começou a atividade sua na política?
R - A minha atividade começou junto, vamos dizer, de grupos com que eu me dava. Eu estudava no ginásio, então tinha grupos de...
P/1- Esse ginásio, ele era… Eram todos judeus?
R - Não, não. Era misturado, tanto que eu já disse que tinha um colega que o pai dele era agente da polícia. Tinha outros também, mas [a] maioria eram pessoas da classe mais rica. Eu entrei, eu já disse...
P/1- Era paga a escola?
R - Paga. E muito bem paga. Eu tinha colegas dessa classe, mais ricas, que em geral se falava só russo.
P/1 - Era russo. Ensinava-se em russo também?
R - Já não se ensinava em russo. Já ensinavam, no ginásio, em romeno, porque os romenos, em 1917, ocuparam a Bessarábia. Já era Romênia.
P/2 - Em que ano?
R - Em 1918, 19, começou a funcionar tudo em romeno.
P/1- O seu primário foi feito em russo?
R - Meu primário, não. Meu primário foi feito em hebraico. Paralelamente com isso eu estudei chumash num… _____. Geralmente os nossos pais, muito dos nossos pais queriam muito segurar os filhos em escolas e na tradição judaica.
P/2 - Então, primeiro você… Tinha uma escola…
R - Escola Talmud Torá.
P/1- Paga também?
R - Paga. Lá estudei e lá já estudavam iídiche, romeno, hebraico. E eu terminei essa escola.
P/2 - Era iídiche e hebraico.
R - Iídiche e hebraico.
P/1- E era só primário, aí acabou… Essa escola não tinha ginásio?
R - Não tinha ginásio. E quando abriu essa ginásio com científico junto, foi ainda uma ideia de antigos intelectuais russos - o diretor e o inspetor eram russos. Eles precisavam ter uma pessoa, que aliás era um grande antissemita, um professor romeno que dava cobertura. Assim como um advogado tem que dar cobertura pra um que não terminou ainda, se ele faz algum trabalho, então ele dava cobertura, esse professor romeno. Era um antissemita, uma pessoa muito antipática, mas o diretor era russo - o diretor e a diretora, a inspetora.
E tinha professores... Tinha um professor de francês que era da França mesmo. E uma professora alemã, que estudava com a gente alemão. Uma pequenininha, ele alto, eles iam sempre assim… Eram da Alemanha.
P/1- Então era uma escola progressista.
R - A iniciativa era ainda [da] intelectualidade russa.
P/1 - Em que ano isso, mais ou menos?
R - Isso era mais ou menos... Eu vou te dizer, era 19... Entre [19]15 e 16. Espera. Eu terminei em 1927.
P/1 - Bom, se a senhora nasceu em 14, em 1924, a senhora tinha dez anos.
R - Justamente. Entre dez e onze anos eu entrei no segundo ano porque eu já tinha tanto estudo. Eu estudei, me jogaram tanto… Não é com todos, mas devem ser muitos como eu. Só estudar, então eu estava tão bem preparada que podia entrar no segundo ano. Meu pai foi [ao] prefeito iídiche que estava lá trabalhando, fez um favor e me transferiu oito meses mais velha, pra treze de agosto, aí eu podia entrar. Com onze anos eu já podia entrar no segundo ano. Quando eu terminei, eu me inscrevi no vestibular, mas eu tinha que fugir.
P/1- Aí começou a sua atividade na escola. Conte.
R - Já no ginásio, na escola não.
Na escola também [tinha] brincadeira de criança, assim como aqui. Como vocês fazem com as crianças aqui, nós também tínhamos atividades. Mas não era de Israel ainda. Era assim, atividade judaica.
P/2 - Era política?
R - Não, não era política ainda. Aliás, o diretor da nossa Talmud Torá morreu em Israel. Ele também foi para Israel.
Então eu comecei já, me entrosei. Toda vida era uma pessoa muito dinâmica, muito… E me entrosei. Fui trabalhando assim com essas crianças, era um divertimento. E tinha muitas que depois, com o tempo, se… Tinha um que está agora em Israel, Kolker, que escreveu um livro e me mandou, que era “Poalei Tzion". Ele se dava muito bem comigo. Eu tenho o livro dele, posso até trazer pra vocês. Vocês vão ver de onde ele é. Um livro novo. Ele era Poalei Tzion [movimento sionista e socialista europeu] e eu era… Comecei por influência de uns tios meus, que estavam morando em casa… Porque a mãe deles, a minha avó foi nos Estados Unidos, eu fui influenciada mais no estilo progressista. Tanto assim que quando eu já estava terminando o científico eu já era, podia-se dizer naquele tempo, comunista. Era jovem, não podia ser comunista, mas era já pertencendo ao lado esquerdo.
P/2 - Por influência da família?
R - Influência de família. Sim.
P/1- E todo mundo lia em casa, lia...
R - Li muito. Líamos muito. Nosso divertimento, quando chegávamos da escola, muitos dos nossos amigos estudavam michodshim nas cidades grandes - em Chernovitz, em Kesheniv, que eram cidades pertencentes a outros países. Eles vinham nas férias e se reuniam por acaso na minha casa - e se reuniam muito, porque meu pai também viajou logo. Eu tinha um quarto grande só pra mim, então a gente comprava citrins, que veio de Israel, e mais alguma coisinha; a gente sentava, cada um comia um pedacinho e a gente lia, discutia. Os divertimentos nossos eram discussões. Era só isso.
P/1- E liam que tipo de coisa?
R - Nós líamos tudo. Eu li romancistas franceses, todos, todos. Em iídiche. Romain Roland, André Gide, Balzac, todos esses eu li. Dostoiévski, Górki, todos esses escritores. Tolstói. Tudo isso nós líamos...
P/2 - Tudo em iídiche.
R - Tudo em iídiche. Nós líamos muito, mas muito mesmo.
P/1 - E depois conversaram.
R - E conversávamos, discutíamos. E eu não bancava a comunista. Nós éramos todos pessoas mais liberais.
P/1 - O seu pai também?
R - Não. Meu pai não. Ele já tinha viajado.
P/1- Ele participava das reuniões?
R - Não. Meu pai já nem estava lá. Ele tinha viajado pro Brasil. Ele inclusive, quando foi embora, me pediu muito: “Não se meta em coisas assim que eu tenho medo que te… Você vai ser presa.” Ele já sabia que eu estava meio pra esquerda.
P/2 - Tinha alguma organização judaica pra vocês?
R - Tinha. Tinha já… Organizações sionistas tinha muitas.
P/2 - Não, mas liberais.
R - Comunista tinha já o Partido Comunista, mas eu não tinha ainda a idade de entrar no Partido.
P/2 - Mas era Partido Comunista...
R - Era um Partido Comunista ilegal. Na clandestinidade, já.
P/2 - Mas não judeu. Era...
R - Tinha judeus, tinha maioria. Que eu conheci lá eram mais judeus, porque tinha poucos goim esclarecidos que entrassem. Talvez, com o tempo... Esse Kolker já vai descrevendo muitas pessoas da ala extrema russa e... Que eram também, pertenciam também a células. Mas eu não pertencia porque eu não tinha idade para isso.
P/1- Tinha que ter quantos anos? Dezoito, não é?
R - Tinha [que] ser… É, maior de idade. Eu não tinha maior idade. Eu só sei que eu era esquerdista e sei que tinha Partido Comunista já - trabalhador, com trabalhadores, iam já fazer trabalhos com eles em prol de reivindicações. Eu mesmo tinha ido…
Eles faziam o seguinte: eles mandavam um intelectual e um trabalhador falar perante um grupo de trabalhadores numa casa clandestina, pra esclarecer. Porque o povo estava muito explorado, pagavam muito pouco. As minhas tias, uma era costureira. E eu conheci muito esse ambiente.
Eu mesma fui uma vez numa reunião dessas falar. Eu tinha quantos anos? Dezesseis anos. Mas naquele tempo era tão sectário que não mandavam um intelectual sozinho. Mandavam o intelectual… Eu pertencia já à parte intelectualizada, não é? Mandavam um trabalhador. (risos) É, era muito sectário antigamente.
P/1 - E isso era um trabalho ligado à Rússia, não é? Era um partido… Já tinha tido a revolução na Rússia.
R - Ligado [à Rússia]. Ainda existia, naquele tempo, geral… Era...
P/1- Internacional.
R - Internacional.
P/1 - Vamos voltar um pouco, falar um pouco da família. Como era o nome do seu pai?
R - Ucher Ianpolsky.
P/1- E da sua mãe?
R - Gi… A questão não é essa… Em vez de Gita, Gitsa. Então, escreve com c. Gitca.
P/1- E quantos irmãos?
R - Eu tinha dois irmãos e uma irmã.
P/1- O seu pai… Em que que eles trabalhavam?
R - Meu pai era comerciante.
P/2 - Do quê?
R - Ele trabalhava, naquele tempo… Tinha uma pequena oficina de cortar folhas que fazem fumo. Isso era legal. Tinha uma fábrica disso.
P/2 - De tabaco.
R - De tabaco. E, ao mesmo tempo, ele estava ligado com dois sócios camponeses. Trabalhava na agricultura também. Eu mesmo ia lá com ele às vezes, ele tirava aquele arbis, aquela melancia, aquele melão de lá e… Longe da cidade ele se ocupava com agricultura também.
P/1- E a sua mãe trabalhava?
R - Não, não. Ela era dona de casa.
P/1 - E como era a maior parte das profissões dos judeus nessa cidade? Trabalhavam em geral com quê?
R - Em geral, trabalhavam em artesanato. Costureiras, sapateiros; muitos trabalhavam em comércio, nos açougues, açougueiros. Tinha esses mercados de vender alimentos - era dos judeus, então precisavam se ocupar com isso.
Assim como meu pai, muitos já se ocuparam de agricultura. E tinha já intelectuais, na época que foi romanizada começaram já a aparecer médicos. Porque quando eu nasci, nem tinha médico ainda na cidade, era farmacêutico. Nem tinha ainda, vamos dizer, parteiras. Eram moças que conheciam e faziam de boa vontade esse trabalho.
Mas depois [a cidade] começou a [se] desenvolver intelectualmente também. E muitos judeus moravam… Eu já estou incluindo, quando eu falo de Iedenitz, como vou dizer, aqui no Rio com Madureira. [Havia] muitas localidades pequenininas - Adorf se chamou. E tinha judeus também morando lá.
P/2 - Aderfi?
R - Adorf. É uma localidade onde se ocupavam mais com a agricultura. E lá tinha uns judeus que tinham uma lojinha de vender bebidas, vender mercearia ou botequins. Sei lá. Essas coisas.
P/2 - São mais subúrbio?
R - Mais subúrbio, um tipo de subúrbio longe. E tinha também judeus se ocupando com isso.
P/2 - Como era a situação econômica? Porque vocês… A escola era paga...
R - A situação econômica era… Era escola paga, mas me mandavam dinheiro. Meu pai era considerado um comerciante; tínhamos uma casa própria, a casa do pai dele e...
P/1- Morava todo mundo? Seus avós, todo mundo dentro de casa?
R - Sim, uma casa grande. Depois meus avós viajaram pros Estados Unidos, ficou só meu pai conosco. Depois meu pai viajou, ficou só minha mãe, meus irmãos, até que nós vendemos e viajamos.
A situação econômica estava muito ruim. O meu próprio pai lutou muitos, muitos anos. Assim no 19… Depois se romenizou, eles eram muito corruptos, os romenos, e meu pai tinha muita dificuldade de abastecer a casa com alimentos. Era muito ruim. Tinha pessoas ricas, como em todo o ambiente, em toda a vida tem, mas o povo era pobre. O povo, a classe média que não era alta, como meu pai, que fazia… Mas decaía, os negócios decaíam muito. E a situação econômica não era boa, não.
P/2 - Foi pior quando os romenos entraram?
R - Quando os romenos o quê?
P/2 - Quando a cidade passou a...
R - Eu não conheço quando era Bessarábia. Eu nasci… Eu tinha dois anos e pouco quando romenizou.
P/1- Quer dizer que não era uma boa situação.
R - Não, não era.
Em 1925, já na época que eu… 26, 27, eu já era uma mocinha, a situação econômica e política já estava parecendo muito, muito ruim. Muito conservador. Nós tínhamos lá um seminário de… Uma escola fechada, um seminário romeno. E tinha lá muitos alunos, mas eram internos. E eles… Lá era o núcleo já, a gente já sentia que era um núcleo de antissemitismo e quase nazismo. A gente não sabia ainda do nazismo, mas era um núcleo contra os judeus, esse seminário. Os seminaristas.
P/1- Por quê? Como é que vocês sabiam?
R - Nós sabíamos porque escutávamos, inclusive. A gente passava todo dia pra ir pra ginásio… Atitudes deles, declarações deles, dos dirigentes de lá. E na nossa própria… [No] ginásio, eu não te disse, tinha um professor romeno que era… Legalmente ele assinava pelo diretor. Ele, por exemplo, fez o seguinte: ele queria fazer aulas particulares em romeno com as alunas, pra elas passarem e terminarem o ginásio, senão…
Eu e uma colega minha chamada Sônia… Os pais dela tinham uma loja, uma mercearia, bastante coisa. Eram mais ricos do que eu. Nós sabíamos muito bem a matéria; ele queria que nós fizéssemos aula particular e nós não queríamos. Estudamos muito, fizemos a prova e ele botou zero. Aí o diretor tinha uma certa força ainda - os professores, todo mundo foi se empenhando, porque nós éramos boas alunas. E fizeram [uma] segunda prova.
Não sei de isso tem que ser...
P/1- Tudo. Tudo.
R - Segunda prova. E juntaram-se todos os professores. Então, entre todas as perguntas pra ele fazer nossa prova, pra nós duas, era um alarme na cidade sobre nós duas. Éramos… Parecíamos revolucionárias. (risos) [Éramos] meninas. Tínhamos o quê? Ainda nem tínhamos completado dezessete anos, terminamos com dezessete anos. Era um episódio.
Ele fez a prova. Então, nós respondíamos todas as perguntas. E estudávamos muito. Mas cada língua tem influência de outras línguas, isso vocês sabem. A língua romena tem uma grande influência de francês, italiano, de latim, mas tem uma certa influência eslava também. E nós pegamos, nós tínhamos muitos professores e amigos que deram pra nós material; a gente estudou, então a gente respondeu tudo. Entre vinte perguntas da influência, duas perguntas nós não respondemos, nós não sabíamos. Ele queria botar zero, então foi uma grande força que se uniu de todos os professores, e já de fora, elementos intelectuais. Olha, foi um episódio.
Nós passamos. Botaram dez pra gente. Então eu me lembro… Isso é interessante. Eu já sabia… Em fui em markt. Nós morávamos numa rua que era perto… Markt é como a feira. Como se diz? Essas pessoas [que] fazem mesinhas na rua, aqui?
P/1- Camelô.
R - Camelô. Eram mesas assim, mas era estabelecido.
Eu fui lá fazer umas compras pra casa. Eu já sabia que a situação política não estava boa. Estava na véspera de primeiro de maio e eu já sabia que tinha alguma suspeita sobre mim, porque eu estava no lado esquerdo. E eram muito rigorosos, já era uma política no país praticamente fascista. Então, Komtumarodin do 27, 29 até o trinta e pouco, quando Hitler, em 39, já tomou o poder.
Isso foi uma reflexão já nas outras cidadezinhas nos outros países. Era já uma reflexão do descontentamento na Alemanha e tudo isso. Isso se refletiu porque...
Eu cheguei lá para fazer uma compra [e] estava lá a diretora com a inspetora, fazendo compras. Elas moravam lá longe, num bairro mais luxuoso. Ela disse pra mim em russo: “Doba, por que você não vai apanhar teu diploma?”
P/1- Fala em russo mesmo.
R - Eu não sei muito bem. “_______________ premium?" Por que eu não vou apanhar o diploma. “Porque… __________” Apanhar...eu esqueci a palavra, o diploma. “_____________ premium." “Por que não foi?” Mas eu já podia ir, porque eu já estava… E no dia seguinte de manhã eu fugi, tanto que depois tiraram por mim, me mandaram o diploma de científico. Quer dizer, eu terminei com prêmio. Por isso eu estou dizendo que tinha muito antissemitismo, porque éramos judias e ____________ atrás dele só pra ter aula particular que nós não precisávamos. Isso era um episódio...
P/1 - Ele queria que vocês tivessem aula particular porque ele vivia… Por que vocês eram judias?
R - Não. Não éramos judias, mas ele agia assim tão radical por que nós éramos judeus. Ele era contra todo mundo, contra judeus. Ele era muito antissemita, um romeno muito antissemita. E nós sabíamos que ele tinha ligações com esse dirigentes de seminário. Nós sabíamos que o seminário era um núcleo de nazistas em Iedenitz, já naquele tempo.
P/1- E como era… .Em casa se falava que língua?
R - Iídiche, só iídiche. Não só em casa. Quando eu cheguei pra cá e todos os emigrantes chegaram, nós fazíamos nosso contato, nossas conferências… Nossa vida toda era feita em iídiche porque éramos da mesma…
Tinha alguns… Eu cheguei pra cá com dezoito anos completos. E tinha alguns aqui com 25, 24 [anos]. Uma diferença… Quase a mesma geração. Com o tempo, quando já passa de setenta, entre setenta e oitenta, já tem um pouco de diferença, talvez. Mas naquela época [eram] 24, dezoito, 22, 25 [anos], então nós todos falávamos iídiche. Só iídiche. E toda a literatura era lida em iídiche, livros da biblioteca e... Nosso trabalho...
P/1- Mas, por exemplo, o trabalho que tinha de esquerda, tudo era feito em iídiche?
R - Tudo em iídiche. Era na biblioteca, vinham conferencistas....
P/1- Ah, isso aqui. E lá na Romênia?
R - Na Romênia ainda era em iídiche. Tudo em iídiche.
P/1- Quando a senhora falava aos trabalhadores, falava em iídiche?
R - Iídiche. Todos eram trabalhadores iídiche. Eram alfaiates, eram… Eram o que eu disse em que trabalhavam. Uns até tinham uma coisinha pequena, um artesanato pequeno em casa. Artesões, mas pobres. Não eram ricos.
P/1- Os judeus ricos faziam o quê? Trabalhavam?
R - Os judeus ricos ainda falavam russo. Não tinham se acostumado tão bem ao romeno. A intelectualidade…. Mesmo os que não eram muito ricos, mas ainda tinha aquela… Como é que se diz? Ambição de assimilação, de não bancar simples judeus.
P/2 - Como era o relacionamento entre os ricos e os pobres entre judeus?
R - Bom, era dividido. Mas eu, por exemplo… Só quem tinha ligação. Eu, por exemplo, tinha uma colega minha, Lia Iacovsky, e ela morava até perto do ginásio; era uma rua principal, Pachtovi Goss, que se chamava em russo. A rua principal, rica.
Ela morava lá. O pai dela até que já estava muito por baixo, mas eles ainda eram aristocratas. As três irmãs tinham terminado o ginásio e… Faculdade, quero dizer, já tinham faculdade, [tinham] terminado em países grandes, em outros países, porque lá em Iedenitz não tinha faculdade. Elas falavam só russo. E a minha amiga era a menorzinha. Eu ia lá. Eu me dava muito bem [com eles], eles gostavam muito de mim.
Eu tinha uma outra colega que o pai dela era médico. A gente fazia festas lá, ela fazia anos, a gente fazia festas. Quem estudava tinha ligação com os ricos também. Eu tinha ligação com famílias ricas e recebiam a gente muito bem. Mas eles eram… Deus me livre se alguma… Por acaso, uma colega minha do ginásio gostava muito de mim e ela começou a se interessar por literatura, por… Não era esquerdista, mas assim… Ela se apaixonou por um rapaz que era sapateiro. Um rapaz lindo, alto, bonitão - Iosel ele se chamava. E era por meu intermédio. A mãe dela queria me matar, eu nunca mais pude ir na casa dela por causa dessa _______, ela se apaixonou por esse rapaz. Quer dizer, era proibido uma ricaça casar com um trabalhador.
P/1 - Mesmo entre judeus.
R - Mesmo entre judeus. E ele era um rapaz formidável.
P/2 - Tinha sinagogas separadas para os ricos?
R - Não, não. Sinagogas não eram separadas. Lá dentro devia ter um que tinha mais cadeiras. Inclusive tinha aquelas cadeiras Mishrach Maarav. Então, para os mais ricos, cadeiras no Mizrach e eram chamados mais pra maten tora. (risos)
P/1- E como era na sua casa? Eram muito religiosos?
R - Não, o ambiente não era nunca religioso na minha casa. Quer dizer, meu pai ia no shil a minha mãe também ia.
P/1- Toda sexta-feira...
R - Sábado, especialmente yom ____. Mas muito religiosos, o ambiente… Kosher não tinha. Eu não tinha ambiente religioso.
P/1- Sábado podia sair, fazer coisas?
R - Podia, inclusive na cidade toda não havia esse problema.
P/1 - Os judeus, em geral, não...
R - Não. Não havia problema nenhum de sábado. Só [que] sábado era sábado,
não se trabalhava. Mas podia ir num teatro… Não tinha teatro.
P/1- Cozinhar, fazer...
R - Cinema. Cozinhar não, não se cozinhava. Preparava-se a comida [de] sexta-feira pra sábado. Isso sim. E fazia comida iídiche, kugel, essas coisas. Fazia...
P/1- Qual era? Era diferente a comida de sábado?
R - Era diferente. Fazia-se...
P/1 - O que se comia todo dia e o que que se comia no sábado?
R - Comida normal. Comida como aqui, normal.
P/1 - Tinha arroz e feijão?
R - Não. Feijão e arroz não tinha. Tinha passoles brancas, tinha feijão branco, se fazia iur com sopa de galinha. Tinha isso.
Não tinha bife, não se comia bife naquele tempo. Mas tinha comida boa. Ensopadinho, tinha borsh, tinha muita batata. Tinha comida boa.
P/1 - E no sábado o que tinha de diferente?
R - O sábado tinha mais kugel, tinha iur, tinha galinha, peixe. Fazia-se peixe no sábado.
P/2 - Acendiam velas? Velas no sábado?
R - Velas? Sim. Minha mãe acendia velas, ainda tem os castiçais. Quando ela morreu, foi… Eu queria. Por beleza. Minha irmã não faz… Minha irmã não acende a vela, mas ela pegou por beleza. Ela foi a primeira, disse: “Isso fica comigo.” Eu queria, porque é muito bonito. É ornamento, de prata.
P/2 - Então os castiçais estão...
R - Estão aqui ainda. Estão com minha irmã.
P/2 - Ah, então nós temos que ver esses castiçais. Temos que ver.
R - Vocês nunca viram castiçais?
P/1- Como é que se chama a sua irmã?
R - A minha irmã, vocês podem telefonar para ela. Mas ela é uma pessoa muito simples. Ela não tem nenhuma capacidade de dar alguma entrevista.
P/1- Não. Só pra gente ver os castiçais.
R - Ela é Sara. 286-3181. Telefona pra ela mais ou menos... Ou de manhã ou à tarde. À noite. Porque ela costuma sair. Acho que ela até trabalha, está trabalhando. Diz que vocês tiveram uma entrevista comigo, da ARI, e eu falei que na nossa casa tinha castiçais, [que] vocês gostariam de ver os castiçais.
P/2 - Ela tem alguma outra coisa?
R - Eu não sei se ela tem. Os castiçais eu sei que ela levou, mas outra coisa não… Eu ainda vou procurar também na minha casa. Vocês perguntam...
P/2 - Ela é menor ou maior que você?
R - Ela tem quase oito anos, sete anos menos que eu. Ela tem 66, mas ela não é velha. Parece uma pessoa assim… Mas ela não tem nada de preparação política nem literária. É uma pessoa simples.
P/2 - Como foi a diferença com a senhora?
R - Muito diferente. Tanto assim, até agora… Até agora isso trabalha ainda o relacionamento. Ela, na vida dela, nunca leu um livro.
P/1 - Nunca leu um livro.
R - Nunca. Ela leu essas revistinhas. Mas ela se considera… Ela vai pra fora, come fora, se considera… Moderna. (risos) É assim. Fútil. É uma pessoa mais fútil, mas é simpática. Ela é boazinha.
P/1 - E os seus irmãos, eram como? Eles liam?
R - Não, eu fui a única. Nem os irmãos… Um já morreu, um vive…
Quando cheguei no ginásio, aí começaram a história de psicologia, de economia, que estudava… Porque o ginásio era um curso forte, estudava bem. Ensinavam muito, inclusive muitas línguas. Latim, francês… Inglês não. Grego. Nos últimos dois anos nós estudávamos grego.
P/1- Ah, é?
R - É. Eu não sei quase nada.
P/2 - Grego antigo ou...
R - Grego antigo. Eu não sei por que precisava. Mas um belo dia tinha lá... Não sei se era uma conversa ou se entrou na aula mesmo, sobre a mais valia. E eles explicaram de uma maneira muito perturbada. Eu fiquei tão nervosa. Cheguei em casa e chorei. Eu era menina ainda. "Titia, olha, eles explicaram assim, assim". Expliquei pra ela. Ela disse: "Menina, não chora. É natural que os capitalistas... Isso é que é a teoria deles. Eles querem… Tem que explicar de uma maneira pra o povo não entender de onde é que vem o grande capital. Está perturbada a dialética." Eles me explicaram, eu chorei. (risos)
Agora não tem isso nas escolas. Agora estudam, explicam direitinho. Inclusive estudo sobre sexo, sobre tudo.
P/1 - A mais valia se explica direitinho no colégio.
R - Explica-se tudo direitinho. Naquele tempo não, era completamente perturbada a teoria sobre a mais valia, tanto que eu fui pra casa chorar. (risos) Lá eu tinha medo de dizer. (risos)
P/1 - Mas… As suas tias estudavam também. Quem é que lia muito em casa? Pra ter passado isso.
R - As minhas tias tinham um grupo de amigas delas que já eram pessoas...
P/1 - Elas eram costureiras?
R - Não, não. Um até… Tinha um que estava no ginásio estudando. Depois ele ficou meu professor. A irmã dele estudou. Outra era costureira mesmo. E outras, algumas amigas que se interessavam... Eu não digo que ninguém se interessava por literatura. A juventude, os jovens, mais adultos também, se interessavam porque já era influência naquele tempo, com a chegada dos ventos da revolução de 1917 e ao mesmo tempo, da formação de grupos do sionismo político, era justamente nessa época. Aí formaram-se nas províncias pequenos grupos que se interessavam por leitura, política...
P/1- Grupo de jovens.
R - De jovens. E esses...
P/2 - Qual eram os nomes? Os nomes dos grupos?
R - Eram como eu já disse. Era Athia, Hashomer Hatzair. Era um dos primeiros Hashomer Hatzair, especialmente. Eu me lembro. Eu tinha muitos amigos do Hashomer Hatzair. A gente estava junto conversando e aí se dividiram. Era assim, como eu estava contando aqui do Manifesto Socialista, que se dividiram. Uns foram mais pra esquerda, outros foram mais pra direita e se formaram grupos. E o principal desses grupos era a leitura.
Ora, como se leu. Lia-se junto, discutia-se. Lia-se muito, tanto questões filosóficas como expressamente literatura, os clássicos. E a literatura russa, francesa.
[Eram] pessoas simples. Eu tinha um amigo que está agora em Paris, ele tem dois anos mais do que eu, Moshe Shuster. Ele trabalhou até no jornal Nouvelle Press, em iídiche, lá em Paris; agora ele trabalha em outro setor. Ele era um alfaiate e era um autodidata. E olha que ele trabalhou como escritor. Ele tem artigos, eu tenho jornais com artigos dele.
A juventude começou a ler tanto e a se preparar tanto com toda espécie de cultura, de todos os países, que chegava... Traduções também. Uns sabiam ler… Eram já em romeno. Eu mesmo traduzi umas revistinhas pequenas, junto com esse meu amigo, porque ele sabia russo e eu sabia muito bem romeno. Eu já estava estudando no… Como nós sabíamos ídiche também, ele me dizia do russo pra iídiche e eu traduzia em romeno. Quer dizer...
P/1 - Por que em romeno?
R - Em romeno, pra gente dar pra fazer propaganda.
P/1- Pra não judeus.
R - Pra não judeus também, pra fazer propaganda. E tinha uns, já começava a ter uns jovenzinhos que não sabiam iídiche porque na casa deles falavam russo. Mas eles sabiam romeno, jovens até iídiche, dos mais aristocratas. E eu traduzi muita literatura de russo em romeno, por isso eu nunca estudei russo. Por isso eu leio russo e sei algumas palavras. Você viu, falei algumas palavras em russo. E leio certinho russo, só dessas traduções.
Na vida dos jovens, dos adultos naquele tempo, era leitura. Quando se reuniam… Eu não digo que não tinham namorados, que não davam beijinho, que não se agarravam, que isso não é normal. Mas lia-se muito, estudava-se muito, tanto que surgiram muitos autodidatas.
P/1- A senhora fazia parte de uma organização? Tinha um nome essa organização?
R - Não, eu não cheguei a ter organização. Eu, com dezessete anos, eu era...
P/1 - Eu sei. Não do Partido, mas de alguma coisa antes do Partido.
R - Não. Eu não cheguei, lá na Europa, a pertencer a organização. Eu era esquerdista e junto com estudantes, junto com… Esses de outro ambiente, a gente só fazia trabalho cultural. Eu não fazia trabalho político ainda, mas no fim comecei a fazer. Já fui até a duas, três cidadezinhas distribuir material.
P/2 - Material de quê?
R - Material que chegava da Rússia pra todas as cidades. Aí me aproveitaram, como eu era estudante, e fui até uma cidadezinha pequena. Eu comecei a ficar comprometida porque me encontrava com um e outro, mas não é que eu já pertencia a… Comecei a ficar comprometida, aí eu tinha que fugir. [Em] primeiro de maio vieram me dizer - um amigo meu, que era até professor meu, mas ele era mesmo do Partido. Ele veio me dizer: "Dobola" - me chamavam Dobola - "Você tem que fugir, porque eu acho que antes do primeiro de maio eles vão pegar todo mundo. E como você já é considerada uma das intelectuais esquerdistas, é melhor você sair da cidade." E eu saí da cidade.
P/1- Foi pra onde?
R - Primeiro eu fui lá na casa daquele sócio do meu pai, aquele agricultor. E de lá, eu mandei saber o que tinha na cidade e me disseram que tinha uma reunião uma vez na minha casa; eu dei a casa e pegaram uma pessoa. E eu estava envolvida. Muito difícil.
Eu ia pegar… Inclusive tinha um processo lá e eu peguei quinze anos [de prisão]. Sem eu estar lá. Eu já estava aqui no Brasil, aí eu já não podia... Porque veio a polícia com aquele rapaz preso, de Butashan, uma outra cidadezinha.
P/2 - De onde?
R - Butashan. Assim como Iedenitz. E ele mostrou os lugares...
P/1- Ele denunciou?
R - Não denunciou. Bateram nele tanto, como aqui, e ele mostrou os lugares. Eu não era tão envolvida nessa política, mas eu dei o quarto, eu dei a residência. Então, mostrou os lugares onde estavam sentados um e outro.
E tinha muita gente provocadora, que denunciava. Eu tinha um vizinho que era parente nosso. Era uma janela perto da outra… Ele era provocador, então talvez até ele tenha contado. Ele viu, pela janela, muita gente.
Do primeiro de maio eu podia até voltar, mas como nesse intervalo veio esse rapaz com a polícia lá em casa, eu tinha que fugir. Aí eu fui para diversos países e cidades.
P/1- Conte com detalhes.
R - Eu fui primeiro para a casa da minha avó [em] Britchive, outra cidadezinha pequena. Ele não me deixou entrar porque já tinha escutado que estavam me procurando.
P/1- Seu bisavô. Eles eram pais da sua...
R - Ele era o segundo marido dela, ela é que era bisavó. Ele era alfaiate e religioso.
Eu tinha chegado em Britchive com meu amigo, meu professor. E eu sabia, ele foi à casa de uma colega dele, de Britchive também. Ele também tinha saído da cidade e eu sabia pra onde ele tinha ido. Quer dizer, eu não sabia a casa, mas eu perguntei a meu avô e disse: “Olha, meu amigo foi na casa da Ester” ou… Um nome, não me lembro. Ele disse: “Ela mora lá…” tá, tá, tá. Aí eu fui lá e me agarrei nele.
Ele me levou e fui pra Hotchin - sempre recebido por amigos, por colegas. Já tinha em todas as cidades simpatizantes. E nunca mais voltei pra Iedenitz. Trabalhei depois em Bucareste, com nome disfarçado, numa fábrica pra poder me sustentar.
P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe ficou em Iedenitz. Até ficou presa.
P/2 - Depois de tudo o que aconteceu, ela ficou presa.
R - É. Depois denunciaram que nessa casa… Eu era uma infeliz, eu não tinha culpa nenhuma. (risos) Perguntaram a minha mãe onde eu estava, ela não sabia. Disseram pra ela pra dizer onde eu estava porque eles já sabiam. Nós andamos a pé muitos vilarejos pra poder tomar uma condução, por cuidado. Aí alguém… Eles pesquisaram. E disseram pra minha mãe: "Diz onde está sua filha, porque ela está andando com um homem na rua e ela não está se comportando bem. A gente quer salvar a vida dela." (risos)
P/1- Falaram isso pra ela, é?
R - Falaram isso pra minha mãe.
P/1- Eles, a polícia.
R - A polícia. Mas ela não sabia, coitada. Quem sabe, se ela soubesse, ela até diria. E ter medo que eu não fosse virgem até. Eu casei virgem. (risos)
Então, ela não sabia. Depois a soltaram, coitada, e ela ficou até o ano de 1933 lá.
Isso aconteceu em 1930. [Por] três anos eu andei. Trabalhei, andei, fiquei em outras cidades, com outro nome. E depois fizeram papeis pra mim; entrei, fui em Chernovitz, capital. Agora é russa também, mas naquele tempo não era russa. Era da Hungria...
P/2 - Era Hungria?
R - É. Não era bem da Hungria. Era austro-húngaro, mas pertencia a Romênia, naquele tempo. Eu tinha muitos amigos do ginásio já facultativos, porque eu também já ia fazer faculdade.
P/1- Ia fazer faculdade de quê?
R - Psicologia. Eu gostava muito de psicologia, até hoje eu leio muito sobre isso. Eles me receberam. Um até saiu do quarto dele, disse que a prima dele dormia lá. De manhã me levaram pro trem pra eu passar die grenze, como se diz? O limite. De Romênia e sair. Pronto.
P/2 - Pra onde?
R - Pra cá pro Brasil.
P/2 - Pra onde saiu?
R - Eu saí de Chernovitz… Grenze… Como é que foi a primeira cidade...
P/2 - O que é grenze?
R - É o limite. De Chernovitz… Eu não me lembro. A grenze era… Que grenze era naquele tempo? Eu não me lembro. Que era legal…
Bom, passei o limite legal. Não sei. Depois de tudo isso que passei, meus amigos da faculdade se despediram de mim. Lá dentro, depois que o fiscal passou - nem olhou pra mim, porque o fiscal já estava pago. Depois eu me abracei com minha família.
P/2 - Com quem?
R - Com minha mãe, com meus irmãos. Eles estavam lá.
P/1- Esperando do outro lado.
R - Não, já estavam no trem. Eu cheguei também para o trem, mas não podia me identificar com eles porque eu tinha outro passaporte.
P/2 - Ah, estava tudo combinado...
R - É. Estava pago. Papéis legais feitos especialmente pra eu poder sair do país. Eu não era a única, eram centenas e centenas de jovens que não tinham nada… Muito com política. Mas a situação já estava tão agonizante, já estava tão com sentido nazista, fascista, que eu não era a única. Qualquer coisa… Como era aqui em 64, era lá já em 29, 30, 31. Muitos jovens tinham que fugir e eu estava entre esses.
P/1- E quem fazia os papéis? Quem...
R - Tinha lá. Existia...
P/1- O pessoal do Partido?
R - Pessoas assim… Não, do Partido não. Tinha pessoas como aqui, que fazem. São humanos. É natural, ajudam. Têm condições de fazer.
P/1- Quando a senhora saiu de casa dessa vez, [fugindo] da polícia, tinha quantos anos?
R - Tinha… Eu tinha que completar dezessete anos. Terminei o ginásio naquele mês, era maio. Terminei o ginásio naquele ano.
P/1 - Saiu com dezessete anos e foi pra cidadezinha dos seus bisavós. E aí foi andando de cidadezinha em cidadezinha. E como que era que a senhora começou a viver, com que dinheiro, a comer, a...?
R - Eu comecei… Eu tinha amigos, dormia no quarto de amigos. Comecei depois, me arrumaram uma fabrica, iídiche até, de...
P/1- Onde?
R - Em Bucareste. Trabalhei lá. Esses… Retrós. Como é que se chama? Linhas. Uma fábrica de fazer linha pra costurar. Cartéis de linhas. Trabalhei numa máquina. Linha de costura.
P/1 - E trabalhou nessa fábrica quanto tempo?
R - Eu fiquei dois anos em Bucareste.
P/1 - Ah, então, ficou um ano andando e dois anos...
R - Em Bucareste.
P/1 - Aí continuou fazendo reunião, trabalho, alguma coisa ou…?
R - Ainda fazia. Fazia trabalho lá em Bucareste.
P/2 - Tinha alguma organização em Bucareste que você estava relacionada?
R - Tinha. Fazia um trabalho... Isso não é perigoso pra...? (risos)
(pausa)
R - ...Eu queria me reunir à família.
P/2 - Em que ano o seu pai veio pra aqui?
R - Meu pai veio pra cá em 1926 e nós fomos pra lá em 1933. Eu fui com minha mãe, com meus irmãos.
P/1 - E por que ele veio pra cá?
R - A situação econômica estava muito ruim. E assim como tinha a emigração pros Estados Unidos, tinha emigração pra cá também.
Isso estava ligado à situação política do país, estava decaindo muito. E os judeus já começaram a sentir o antissemitismo nos lugares. Inclusive na agricultura, quem estava ligado... E o pessoal queria fugir de lá, não podia mais viver nessas cidadezinhas pequenas.
P/1 - E por que ele escolheu aqui e não os Estados Unidos?
R - Escolheu porque ele tinha uma irmã aqui. A mãe dela e as outras irmãs foram para os Estados Unidos porque tinha lá um filho há muito tempo.
Antigamente, as famílias se dividiram nesse sentido. A história é essa. Desde 1870 e pouco, fim do século XIX, a emigração da Polônia, da Rússia e da Romênia era muito grande. Um dos filhos da minha avó, um tio meu, já estava lá, então a minha avó, com dois filhos, foi pra lá. E uma filha tinha um namorado aqui, aí ela veio pra cá e casou. Então, essa minha tia...
P/1 - Mandou uma carta pra ele.
R - Pra meu pai vir. E depois a gente veio pra cá.
P/1- Ele mandou uma carta chamando vocês.
R - É. Tinha correspondência, tinha ligações. Aí eu vim pra cá...
P/1- Quando foi isso?
R - Isso foi 1933. Em março de 1933 eu cheguei. E logo...
P/1 - Chegou aqui. Saiu de lá quando?
R - Saí… Vinte dias. Naquele tempo andei com o Flórida, 21 dias com o navio - francês, até.
P/2 - De onde você saiu?
R - Saí mesmo de Chernovitz. É isso mesmo, Chernovitz era o limite com a Rússia. De lá… Era uma cidadezinha pequena que levava a gente pra Paris, um localzinho que eu esqueci agora o nome.
P/2 - Ah, você foi de…
R - Chernovitz. Era Romênia ainda.
P/2 - Pra Paris. De trem?
R - Pra Paris, de trem. E de Paris nós fomos direto pra Marseille. Nós chegamos em Marseille e de Marseille nós fomos com o navio Flórida, francês. Lá eu me aperfeiçoei muito em francês. [Quando] cheguei pra cá, falava melhor francês do que falo agora o português.
P/1- No navio mesmo?
R - No navio. Porque o navio era francês e eu era a única pessoa da primeira, segunda e terceira classe que sabia francês.
Eu sabia literalmente, mas falar, praticamente não. Eu me lembro que logo que entrei no navio veio um padre e me deu um livrinho em francês. Respondi pra ele em francês que eu não sabia muito bem, mas respondi certo porque sabia ler bem. Não sabia falar muito. Aí ele disse: “Você vai aprender com isso.”
Li o livrinho e depois todo mundo precisava, a gente precisava de alguma coisa, eu ia lá, perguntava. Eu sabia perguntar como é que se diz isso, como se diz aquilo. Nesses 21 dias, eu fui a última a descer aqui do navio. Meu pai, a família, tia, estavam me esperando aqui. E eu lá fui a última, porque me seguravam: “Doba, pelo amor de Deus… Pelo amor de Deus não, beidach zei noch.” Queriam arrumar as papeladas deles e não sabiam falar, eu tinha que responder por todo mundo. Até que eu despachei todo mundo do navio, depois eu desci.
E [quando] eu cheguei pra cá, eu falava corretamente francês. Inclusive ajudei meu filho. Naquele tempo, ajudei muito. Ele entrou no ginásio, eu ajudei muito o francês pra ele.
P/1 - E no navio, quem eram as pessoas que estavam no navio?
R - Eram pessoas como nós, como eu. Pessoas que fugiram, emigraram.
P/1- Politicamente?
R - Politicamente, alguns já eram politicamente e outros simplesmente pela situação econômica do país. Vieram pra irmãos, pra tios, pra casar. Vieram moças pra arrumar aqui um casamento rico. E foi assim mesmo. Muitas amigas minhas, eu sei que elas casaram aqui com homens mais ricos que já estavam aqui, mais velhos.
A história dos emigrantes era essa. Mandaram os filhos, as filhas… Os filhos pra fazer negócio aqui, pra se aperfeiçoar aqui. Uns pra escapar do serviço militar - isso era muito, o serviço militar era lá um horror. E também a perseguição no serviço militar. E mandaram… Era um terror mesmo, como eu estou te dizendo. A influência já no 1929, 30… Tanto assim que em 1937, houve um congresso de cultura iídiche em Paris. Que eles chamaram… Até foi representante daqui também. Um já morreu, Perecmanitz - olha o retrato dele. Acho que é… Eu não estou vendo bem daqui… Acho que é aquele lá, o último. Nós tínhamos um jornal aqui, Unsere Stimme, “Nossa Voz”. Ele foi lá como mandante da biblioteca, tomou parte lá.
Em 37 fizeram aquela conferência pra já… Eu tenho até um livro sobre a conferência, em iídiche - estou lendo agora de novo - pra gente preservar a cultura iídiche, o povo iídiche que estavam em grande perigo. Já tinha os sinais do nazismo lá na Alemanha e isso já refletia nos outros países.
P/1- Então já se discutia o nazismo.
R - Já se discutia. Na Romênia já.
Em Ploiesti, uma cidade pequena perto de Bucareste, tinha uma fábrica muito grande e umas amigas minhas trabalhavam lá. Tinha uma greve. Naquela greve, eles vieram me contar - eram mais velhas que eu, eu não trabalhava na naquela fábrica. Elas contaram que era um verdadeiro nazismo já dentro da fábrica. Em Romênia, na capital. Era uma influência muito grande já da Alemanha.
P/2 - Em que ano foi isso?
R - Foi em 1931, 32 - aliás, foi no fim de 32. Era uma greve que repercutia aqui no Brasil também, em todo o mundo. Aquela greve, uma célebre greve política. Morreu muita gente, muitos trabalhadores. Era uma greve política mesmo. E quando cheguei pra cá...
P/1- Na Romênia, a greve?
R - Na Romênia, em Ploiesti. Quando eu cheguei pra cá, meus primos, da minha tia, primos da parte do marido, eram klienteltchik, trabalhavam em clientela. E eles pegaram um amigo... Nem vale a pena o nome… Tá vendo como eu me lembro de datas? Mas nomes, eu esqueço. Ele era um traidor. Um sishik, um agente. Iídiche. E ele se deu com pessoas iídiches também pra saber, pra pegar...
P/1 - Aqui, isso?
R - Aqui.
P/2 - Aqui, pra pegar aqui?!
R - Aqui. [É] natural, aqui já tinha um movimento completo de...
P/1 - De judeus progressistas.
R - Progressistas, na biblioteca, e já tinha policiais, traidores e agentes que já estavam organizados, [em] 1933 estavam em pleno vapor. Getúlio já estava [no poder].
Ele se deu com os meus amigos e veio me esperar. Disseram que vem de Bucareste… Talvez eles tenham dito alguma coisa porque sabiam que eu já era ______, quem sabe se eles disseram? Eles nunca me disseram isso.
Uma moça, filha do Ucher… Meu pai estava morando com ele na casa da minha tia, e ela sabe falar muito bem francês. Então ele veio pra mim, pra me conhecer, a título de falar francês. Eu falei francês com ele. Muito bom.
Ele começou a ir comigo e logo me liguei à biblioteca porque eu era progressista e o único clube que eu liguei não era comunista, não era nada. Era a biblioteca. E lá eu me encontrei com todos os meus amigos...
P/1 - De lá?
R - De lá, de Polônia, de diversos países. Eu fiz amizades aqui...
P/1 - E reviu alguém?
R - É, alguns tem... Alguns amigos ainda moram… Eu estava na cidade dela quando fugi. O marido dela é médico, os filhos são médicos, lá em São Paulo. Outros também têm a mesma história.
Ele veio comigo à biblioteca. Ele [era] tão burro que começou a querer me namorar. Eu era muito esperta já, a convivência que eu tinha e, de repente.. Eu senti alguma coisa errada e, de repente, ele me perguntou: "Doba, wi zoi kent min sie die Partei. Die Kommunistische Partei?"
P/1- O que ele perguntou?
R - Ele me perguntou em francês. Ai eu disse…
P/1 - Traduz...
R - Eu disse: “Eu não conheço nenhum endereço do…” E não conhecia mesmo. Eu não pertencia...
P/2 - Ele queria o endereço do Partido?
R - Ele queria, por meu intermédio, conhecer o Partido.
P/1 - Ah, ele falou: “Eu quero chegar no Partido.”
R - É, ele queria conhecer o Partido. Eu não sabia mesmo. E nem ia dizer, se eu soubesse.
Eu respondi assim: “Olha, eu não tenho endereço nenhum de Partido Comunista nenhum. Eu estou aqui na biblioteca porque é um ambiente liberal, um ambiente cultural, muita cultura, o que me interessa. E ponto. Mais nada.”
E com o tempo, ele começou a ficar… Ele, por muito tempo, ainda estava me perseguindo, tipo namoro. Mas não era namoro. Ele queria, por meu intermédio, pegar. E aqui tinha uma cozinha, feita da biblioteca, uma cozinha pra trabalhadores, na Praça XI. Tinha uma cozinha iídiche, em que todas as pessoas pobres que vinham à biblioteca também e de outros lugares vinham lá comer. Ele denunciou essa biblioteca. Talvez tinha lá pessoas que pertenciam ao comunismo.
Olha, era uma caçada triste. Eu não fui lá, eu não estava pertencendo ainda a nenhum partido. E eu me lembro que isso foi…Eu até sei a data, isso foi quando meu filho - já vai fazer cinquenta anos, meu filho já tinha dois, três anos. Um ano e meio. Eu ainda estava amamentando ele e não tinha tempo de me meter em política, em nada. Mas acho que ele devia ter uma simpatia pra mim, talvez.
P/1 - Tirou seu nome.
R - Meu nome não entrou, mas naquele tempo foi uma caçada muito grande. Foram presos, muitos foram soltos. Eles não tinham nada com partido, com nada.
P/1- Mataram alguém?
R - Não, não mataram ninguém. Mas ele que fez isso.
De lá pra cá eu trabalhei na biblioteca, depois nós fundamos a AFIBE, a colônia. Sobre a AFIBE e a colônia eu já dei uma entrevista muito grande. Está lá na Federação. Antes de fazer a AFIBE nós éramos um grupo, e já que éramos pessoas liberais e a Segunda Guerra estourou com tanta… Nós ligamos um grupo de mulheres, homens também - não tinha nenhuma organização de mulheres ainda, mas nós nos aliamos à Cruz Vermelha [e] ajudamos, mandando mantimentos e roupas. Nós trabalhávamos muito pra mandar para os países onde pudéssemos. A Cruz Vermelha se encarregou disso.
Quando acabou a guerra, nós tivemos a ideia de criar uma organização, a Associação Feminina Israelita Brasileira. Com fim pacífico, para trabalhar com esse fim, trabalho cultural. Nós tínhamos… Era uma sociedade nacional, a nossa sociedade nacional era em tudo. Porto Alegre e… pra mandar dinheiro em qualquer lugar pra ajudar as vítimas da guerra, os milhões de órfãos de guerra. Inclusive na luta, na guerra de independência de Israel nós mandamos muitas vezes dinheiro diretamente pra Tzahal [Forças de Defesa de Israel], porque achávamos que era uma luta contra os ingleses, contra os árabes, muito justa. Porque nós achávamos que a independência de Israel era uma uma reivindicação muito certa.
Depois, quando acabou, os órfãos ficaram já grandes, tivemos ligações com Paris, com a Argélia. Nós mandávamos para muitos lugares. Recebíamos cartas de agradecimento, retratos de crianças. Muita coisa nós rasgamos em 64. Nós tínhamos respostas de cartas, a gente rasgou. A gente tinha medo, porque… Nunca mexeram com a gente, mas sei lá, naquele tempo todo mundo tinha medo. A gente estava fazendo as reuniões, éramos uma sociedade legal, mas podia ter algum espírito-de-porco e dizer que essas são _____.
Depois, a gente resolveu, em 1952... Isso era desde 1947 até 1952, estávamos trabalhando em trabalho cultural e mandávamos dinheiro, como eu já disse, mas tudo era com fim pacífico. Fazíamos conferências na ABI - eu mesma tenho várias conferências que eu fiz na ABI. E não só eu, éramos um grupo de mulheres iídiche. Intelectuais - intelectual não digo que sou, mas eu tinha cultura. E as outras também tinham.
Olha. Essa aqui, Hovala, você está vendo, nessa cidadezinha dela eu estive. Ela também era minha colega de luta. Era uma pessoa fora do comum. Inclusive, depois do Vigésimo [Congresso], quando Kruschev desmascarou Stalin, ela quase morreu. E eu também. (risos) A gente ficou muito, muito...
P/1- Muito tocada, né?
R - É, muito tocada.
Então nós resolvemos, em 1952, já que os órfãos já estavam grandes, já eram homens, estavam se defendendo sozinhos, aí nós criamos a colônia. Pra felicidade, pro paraíso das nossas crianças. Assim nasceu a colônia, e com esse fim também - eu falei com vocês lá -, com o fim de dar um ambiente coletivo, um ambiente de respeito um pro outro, um ambiente humanista, pacifista, sem guerras. Sem nenhuma política - nem religiosa, nem sionista, nem antissionista. Nada de política. Isso vocês podem verificar durante todas nossas colônias, que nós temos uma clientela muito grande, que nós procurávamos sempre fazer um trabalho muito bom. Mas um trabalho cultural, pacifista, de reconhecimento, de respeito um pro outro.
Tinha anos menos proveitosos, tinha certa decadência também. Especialmente nesses vinte anos, nós não tínhamos quem dirigisse. Tinha, mas agora está subindo de novo... Nós temos um grupo muito bom que está dirigindo, vai dirigir as colônias. Um grupo novo.
P/1 - E como é o nome? Ela poderia dar entrevista?
R - Não, ela morreu. Acho que ela se suicidou e dizem… Ela se suicidou.
P/1- Ela se suicidou? E como foi? Ela era de onde, da Romênia?
R - Ela era da Romênia, perto de mim. Eu estava na casa dela.
Zobretchan. Eu até escrevi um artigo sobre ela, sobre isso, naquele livro Edex. Ela não aguentou o ambiente. Eu também não aguentei. Depois do Vigésimo... Isso também está... Depois do Vigésimo Congresso, eu nunca mais falei...
(pausa)
P/1 - O seu pai, quando a senhora chegou aqui, ele estava fazendo o quê?
R - Clientela.
P/1- Ele estava trabalhando de clientela.
R - Ele estava trabalhando… Eu queria acabar de estudar, eu queria fazer faculdade aqui - inclusive o Moshe Niskier fez a mesma coisa que eu, mas ele se arrumou porque ele trabalhou, como homem, também em clientela e começou a entrar na faculdade. E eu tinha que fazer um curso pra fazer… Eles não reconheciam meu diploma de lá, então tinha que fazer um curso rápido, mas isso devia custar muito dinheiro.
P/1 - O artigo. Ele fez o artigo.
R - Tinha um artigo especial. Eu, inclusive, fui à noite no edifício lá na Praça Mauá, estudar. Eu pensei que ainda iria conseguir, ia muito em amigas pedir alguma ajuda, mas não consegui estudar e… Eu queria entrar na faculdade, mas não consegui. Ele não podia... Trabalhou, tinha quatro filhos e não podia me sustentar.
P/1- E a senhora começou a trabalhar?
R - Não, eu não trabalhei. Trabalhei um pouco.
Eu pensei: ”Vou ajudar.” Trabalhei em arte, pensei “vou fazer isso”, mas não [me] dei muito bem. Depois trabalhei com uma pessoa pra ajudá-la a costurar, mas também pra costura eu não dava. Eu dava mesmo pra estudar. Aí, não trabalhei. Infelizmente não terminei nada.
P/1- E depois… Trabalhou muito aqui.
R - Por isso eu digo, decaí muito. Trabalhei [em] gesellschaft. [companhia]. Muito, muito mesmo.
P/1 - Isso é muito importante.
R - Muito trabalho. Eu tenho um trabalho social muito rico, muito mesmo.
P/1- A senhora casou?
R - Casei aqui, sim. Casei em 1935. Já vai fazer 52 anos.
P/2 - Seu marido, a senhora conheceu aqui?
R - Conheci aqui sim, lá onde morava. Ele também é uma pessoa progressista, mas não tem essa história minha. Ele veio muito cedo, pra escapar do serviço militar. (risos)
P/2 - De onde ele vem?
R - Lipkan. É perto, eu estive lá. Quando eu digo que eu fui com material pra distribuir, eu estive lá na cidade dele.
P/1 - Como ele se chama?
R - Muni. M-u-n-i. Zonenschain.
P/1- A senhora o encontrou aqui, na biblioteca. Como foi? Conta..
R - Nós nos encontramos… Eu morava em Olaria naquele tempo e lá tinha uma biblioteca, Mendele Mocher Sforim, e tinha uma escola iídiche, onde meu filho estudou lá também, iídiche - ele estudou numa escola pública, mas ia estudar iídiche lá. Meus filhos sabem falar iídiche.
Lá nós nos conhecemos, no trabalho, e casamos.
P/1- Casaram e tiveram quantos filhos?
R - Quatro - ah, dois filhos. (risos) Minha mãe tinha quatro.
P/1 - Quando a senhora veio pra cá, o bairro que a senhora foi morar foi Olaria?
R - Foi em Olaria sim, mas eu não vivia lá. Eu vivia mais em Vila Isabel. A minha tia, onde meu pai morava com ela… Também meu tio, era ativista da biblioteca e eu vivia mais lá porque aqui eu podia fazer...
P/1- Seu pai morava em Olaria?
R - Morava. A família morava em Olaria, mas eu ficava muito mais aqui na cidade. Mas eu ficava lá também.
P/1- Aqui na cidade era Vila Isabel, né?
R - É. Assim eu podia sair, ir ao teatro, me levavam pra casa. Pra lá era muito longe.
P/1 - E seus filhos, como se chamam?
R - Um é Leon, presidente agora da ASA. Ele é engenheiro. E a menina é Cléa Rubinstein. Ela é professora estadual e municipal [de] Matemática.
P/1 - E como… Bom, a senhora se naturalizou depois? Naturalizou-se brasileira?
R - Há muito tempo. Já tem… Em 50 e pouco, eu me nacionalizei - em 52, me parece, eu não me lembro muito bem a data. Mas eu fiz tudo sozinha, sem nenhuma intervenção de contador, de ninguém.
P/1- Foi lá e fez tudo.
R - Eu fui… Todo mundo. Fui num lugar, me mandaram em outro lugar e eu resolvi tudo, me nacionalizei. Meu marido também está nacionalizado há muitos anos.
Assim mesmo, depois que eu te contei o que eu fazia de coisas escondidas, você ainda gosta de mim?
P/2 - Seguramente por isso. (risos)
P/1- Mais ainda, né?
P/2 - Seguramente. Não, isso não...
R - É alguma coisa que eu queria que fosse...
P/2 - Não... Eu acho que foi a riqueza...
R - Eu tenho uma vida rica. Mas eu vou te dizer, essa minha geração… Eu estou vendo muita gente da minha idade, de 72, estão caídas. Porque elas… Porque eu tinha uma vida de jovem como agora [têm] os jovens - uma coisa só: a parte do sexo era mais restringida. Tanto assim que com tudo isso que eu estou contando…
Porque na geração dos setenta e poucos, oitenta agora, tinha muita gente que já levava uma vida social, uma vida dedicada à cultura, até política. Mas essas permaneceram, vieram pra cá e não envelheceram tanto. Continuam a fazer trabalho social. E os que levaram uma vida atrasada, conservadora, mesmo viajando, vindo pra cá, estão agora… Uma mulher de setenta está uma caída, uma velhota. E eu, internamente - internamente -, não me sinto nada velha. Tanto assim que… Às vezes falam em me botar como secretária ou presidente, sei lá. Eu não aceitaria de jeito nenhum, porque acho que a Sociedade tem que ser dirigida por jovens. Eu fico chamada em qualquer reunião, que tem que se resolver qualquer coisa. Ainda sobrei, a única. Tem mais algumas, mas são mais fracas, são um pouquinho mais velhas e fisicamente não conseguem. São de oitenta anos.
Sobraram poucas da minha geração. Tem algumas lúcidas que são muito interessantes ainda, mas não podem fazer mais nada. Mas eu sou a única mulher. Às vezes tem reunião de dez, onze homens, eu sou a única mulher. Ainda sobrei. Vamos ver até quando.
P/2 - Ainda tem muito para o trabalho. (risos)
R - Isso é devido ao trabalho cultural, social e político que uma certa parte da geração velha levava já - isso é uma declaração - nas respectivas cidades e países, de Polônia, Romênia, até a Rússia, em todas as cidades.
P/1 - E havia muitos jovens, nessa mesma cidade, que eram assim? Não faziam esse tipo de trabalho...
R - Havia. Não faziam nada.
P/1 - Eram religiosos? Tinham muitos jovens religiosos?
R - Religiosos tinha muito poucos. Jovens, não tinha, naquele...Na minha cidade quase não tinha jovens religiosos.
P/1 - Ah, não?
R - Eu não conheci muito. Deve ter tido. Eu não posso… Talvez. Eu não tinha contato com famílias...
P/1 - Não tinha. Mas não era assim, de qualquer forma, uma coisa...
R - Sim, mas esses que eu conhecia… Eu conhecia um panorama muito grande de pessoas. Além do ginásio, eu conhecia esses que trabalhava com eles. E tinha os pais pequenos burgueses, classe média, não pertencendo a nenhuma… Mas não eram religiosos. Devem ter tido famílias muito religiosas, com quem eu não tinha contato.
P/1 - E esses jovens, quando se discutia... Agora uma parte sim, só pra ver a mentalidade da época. Quando se discutia, não com esse pessoal que trabalhava, mas pessoas que não faziam nada, não eram religiosos, o que queriam fazer na vida?
R - Casar. Casar com homem rico e continuar sendo… Se a mãe quer que ela faça certas... Como é que se diz? Manifestações religiosas, certas… Ela fazia. Mas não é que era muito religiosa.
A principal ideia dessas que não faziam trabalho social ou cultural, estudar… Eram mulheres que sonhavam que viria alguém dos Estados Unidos, das Américas - e tinha muitos que iam lá escolher uma noiva boa, uma noiva bonita - ou elas serem mandadas pras Américas pra casar bem. A situação econômica estava tão por baixo que essas mulheres que eram atrasadas, essas jovens atrasadas eram… Já estavam vivendo só em prol de casamento. Esperavam mesmo vir um príncipe encantado. E vieram. (risos)
Olha aqui, eu tenho… Ela morreu há pouco tempo, uma senhora que morreu ano passado. Ela tinha… Eu estava na casa dela nesse meu trajeto que andava em Lipkan. E ela era linda, uma boneca de beleza. Era uma senhora interessante. Veio um senhor daqui do Brasil, também uma pessoa interessante... Ele também já morreu, tem um filho engenheiro aqui. Ela casou com ele. Ele veio buscá-la.
P/1- Elas iam à escola, essas mocinhas?
R - Iam à escola. É natural.
(pausa)
P/1 - Os homens, então, que não faziam nada?
R - Os jovens iídiche, que eram trabalhadores. Muitos estudaram e se formaram. Então, muitos deles… O agravamento da situação política nos países, que eu já tinha falado, nos anos 29, 28, 29 e 30 pra cá, até... Isso se prolongou até 39, era já insuportável, eu já falei sobre isso, então muitos jovens que já eram formados foram pra outros países. Outros jovens ficaram lá e até fizeram uma vida boa, fizeram negócios...
P/2 - Lá na...
R - Lá nas cidades pequenas. Abriram consultórios. Começaram a se desenvolver uma certa civilização, um desenvolvimento real também.
P/1 - Quando foi isso?
R - Nos anos 30. Até 39, antes da guerra. Porque foi uma miséria muito grande logo que os romenos entraram e o país estava muito devastado. A situação econômica era entre os russos que dominaram e eles vieram. Era muito ruim a situação econômica, mas depois foi melhorando e a civilização começou a entrar nessas cidadezinhas pequenas, tanto profissionalmente [quanto] intelectualmente. E os jovens se agarraram a esse trabalho.
Mas, infelizmente, como se agravou muito a situação política nessas cidades, pela influência do nazismo já - nos anos trinta e pouco já era muito o movimento lá. [Em] 37, Hitler já fazia propaganda do partido dele, que iria salvar a Germânia e o mundo inteiro; isso teve uma influência muito grande nos outros países, então começou a agravar-se a situação. Mesmo dos intelectuais, dos bem formados dentro das cidades pequenas. E muitos fugiram; outros que ficaram, infelizmente, tiveram esse fim. O fim da última guerra, [em] que morreram muitos. Foram pra guerra e morreram, foram massacrados. É isso.
P/2 - Você sabe o que aconteceu com o seu… O shteitl onde você vivia? Qual foi o fim?
R - Foi… Eu falei com uma pessoa que foi lá. Está meio atrasado, não está muito desenvolvido, mas está. Está estático.
P/1- Tem judeus morando lá?
R - Tem.
P/2 - Ficaram judeus da sua época?
R - Da minha época já tem muito poucos, quase não vive mais ninguém. Mas nesse livro que eu disse, desse Kolker, que vive em Israel, ele ainda ficou lá depois da guerra.
P/2 - Porque tem muitos judeus que ficaram depois da guerra.
R - Ficaram lá. E eles começaram, ele se… Ele me disse… O marido dessa nossa secretária que estava aqui, ele é de lá, tinha parentes lá. Ele é primo do meu marido. Ele disse que esteve lá. Tem lojas, tem pessoas vivendo, estão fazendo negócios, estão trabalhando, tem algumas fábricas. Mas tem a aparência de uma cidadezinha pequena, porque é longe da Rússia. Bessarábia é longe.
P/1 - E que língua eles falam agora? Iídiche, eles falam ídiche?
R - Os velhos falam, mas os novos… A mesma coisa aqui no Brasil. A mesma coisa como nos Estados Unidos. Iídiche fala-se muito pouco.
P/2 - O que aconteceu na guerra com o shteitl? As pessoas foram mandadas para onde? Você tem ideia?
R - Muitos amigos, muitos desapareceram. Muitos mesmo.
P/2 - Foram mandados pra Polônia?
R - Foram mandados para o campo de concentração. Natural. Muitos fugiram e outros foram mandados e executados mesmo. Muitos. Da minha geração que ficou lá, poucos escaparam com vida.
P/2 - Foram pra Israel?
R - Muita gente foi pra Israel. Muita gente.
P/2 - Foram organizados? Por Hashomer Hatzair?
R - Isso eu não posso dizer. Eu já não estava lá, não sei de que maneira eles fizeram isso, mas pode ter sido até não politicamente. Eles foram até aquele navio que não deixaram zarpar, você se lembra? Foram muitos. Isso foi na época da guerra. Foram muitos que não sabiam, não tinham nada com sionismo nem com nada. Eles queriam ir a qualquer lugar.
Felizmente foram pra lá. Muitos foram pra… Foram salvos, não sei se vocês sabem - todo mundo sabe -, pela União Soviética. Muitos judeus foram salvos pela União Soviética.
P/1- Ah, ele contou, o Dr. Moisés. Que os levaram pra lá, não é?
R - Levaram e trabalharam lá. Nós tínhamos aqui… Eu tenho aqui uma amiga que veio uma irmã do marido dela pra cá. Ela me contou que também foi requisitada e muitas amigas dela não queriam ir. Elas disseram: “Nós preferimos ficar aqui com o nazismo do que ir com o comunismo.” E elas morreram. Desapareceram todos.
Ela veio aqui. Ela criou uma família lá, trabalhou difícil. Eles foram lá pro Uzbequistão, pra Sibéria. Precisavam de trabalho. Era época da guerra. A Rússia estava muito atacada pelo nazismo. Trabalhavam, mas quem tinha cabeça e tinha consciência, trabalhou e depois se tornou muito... Subiu na vida. E ela veio aqui, contou pra gente.
Eu tenho aqui uma que está aqui no nosso ______ até, Malvina. Ela me contou que a irmã dela foi puxada por soldados russos. Ela que contou, [foi] puxada à força. Tiraram ela de casa, levaram ela e ela se salvou. Na Polônia, em 39, logo que... Muitos salvaram judeus da Polônia pra lá. Mas ela disse: “Isso aqui é uma história pra contar. A minha irmã que foi salva à força. Ela xingou, agarraram…”
P/2 - Ela não queria ir.
R - Não queria ir, pro comunismo não. À força eles agarraram ela e puxaram ela com a família. Foi assim que ela se salvou.
P/2 - E eles ficaram na Rússia?
R - Não, não. Depois foram, parece que… Ela tinha duas famílias. Uma foi pros Estados Unidos e outra ficou lá. Ainda está lá, está uma velhinha.
P/2 - Você gostaria de visitar o seu shteitl?
R - Eu gostaria muito, mas já não vou poder. Não vai dar porque a situação econômica agora está ruim. Eu não esperava que ia chegar isso.
P/2 - Mas é possível entrar na Romênia. Não é...
R - Sim, é muito fácil.
(pausa)
P/1 - Descrição do retrato. Como é que ela chamava?
R - Chamava… Imagina, minha bisavó. (risos) Ienik. Ela era uma pessoa, pode-se dizer coitada. E tinha… A maioria - minha bisavó, eu já tenho setenta e poucos anos - [era] muito atrasada. As mulheres naquele tempo eram…Sei lá, dominadas pelo marido. Você viu, ele não me deixou entrar. Então… Pelo menos o direito de eu ficar lá com ela [por] quinze minutos. Nada. Eles me chutaram da casa quando eu cheguei e ela não tinha o direito de pedir a ele pra eu ficar, pelo menos [pra] tomar um chá. (risos)
P/2 - São bisavós? Da parte de...
R - Bisavós. Da minha mãe. Muito atrasada, feito um animalzinho. Feito uma ___, como se diz. Mas não de mau que eu estou dizendo. Nada. Só pra comer e o pouquinho serviço que fazia… Aquela geração era muito atrasada.
P/1- Eles moravam onde?
R - Moravam lá também em Iedenitz. Depois ela morou com ele em Britchive, mas ela morava em Iedenitz.
P/1- Essa foto é mais ou menos de quando?
R - Essa foto… Acho que eu era neném ainda. Não sei. Nem sei se eu estava nascida. Eu a conheci. Deve ser mais ou menos no começo do século XX.
P/1- E ele já é da Bessarábia, não é?
R - É. Da Bessarábia.
P/1- O nome dela era...
P/2 - Como é o shteitl? Como era o nome?
R - Britchive, Iedenitz. Pode escrever que ela era de Iedenitz. Eu também vivia lá.
P/2 - Ie...
R - Iedenitz.Recolher