A história de José Carlos Soares e família
José Carlos Soares foi um homem simples, que passou a vida inteira ocupado em construir. Não só por dever do ofício, já que era um operário, mas também porque o desejo que o movia consistia na construção de algo que normalmente é o maior motiv...Continuar leitura
A história de José Carlos Soares e família
José Carlos Soares foi um homem simples, que passou a vida inteira ocupado em construir. Não só por dever do ofício, já que era um operário, mas também porque o desejo que o movia consistia na construção de algo que normalmente é o maior motivo de satisfação para as pessoas simples: a família.
Comecemos essa história como a primeira etapa de uma construção: o alicerce. A história da vida de José Carlos está intimamente ligada à de uma prima legítima, Clotilde de Araújo Soares, assim como o tijolo ao cimento numa parede. Nascidos em Cambuci, mais precisamente no distrito de São José de Ubá, no norte fluminense, ele em 4 de novembro de 1907 e ela em 14 de dezembro de 1912, eram ambos filhos de lavradores. Além dos laços sangüíneos, os dois tinham várias coisas em comum. A começar pelo fato de que ambos tiveram que começar muito cedo a luta pela sobrevivência. Por serem os mais velhos de proles numerosas, José Carlos e Clotilde passaram a infância ajudando os pais na lavoura, pois se sentiam na obrigação de colaborar com o sustento da família.
Anos depois, outra coincidência os manteria em situações semelhantes: suas famílias arrendaram terras para cultivar no vizinho distrito de São João do Paraíso, também em Cambuci, e para lá se mudaram. Um primo mais velho de José Carlos, penalizado com a dura vida que o menino levava, convenceu o pai dele para que o deixasse trabalhar como servente de pedreiro. Tão interessado ele ficou pela troca de enxadas e foices por baldes e pás que logo começou a construir. Ele acabava de conhecer e se apaixonar pela profissão que exerceria até se aposentar, aos 70 anos.
Clotilde, por sua vez, manifestava aptidão para a costura, atividade que lhe despertou interesse a partir do hábito de observar sua mãe trabalhando numa máquina, nos intervalos de descanso da lavoura. Anos mais tarde, José Carlos acabou se casando com Sebastiana - por um capricho do destino, foi a própria Clotilde, já uma exímia costureira, quem fez o enxoval para o primeiro casamento daquele que viria a ser seu marido. Passados dois anos, José Carlos ficou viúvo.
Em 1937, a família de Clotilde muda-se para o Rio de Janeiro, para tentar a sorte na então capital federal. Ciente das dificuldades que os Araújo enfrentavam, uma amiga da família, moradora de Ramos e proprietária de uma "casa de costura" (forma rudimentar das atuais confecções), convida Clotilde para trabalhar como costureira. No novo emprego, ela aprende a bordar à máquina e, em pouco tempo, torna-se uma excelente bordadeira.
No ano seguinte, nova coincidência reaproxima os dois primos: decepcionada com a falta de perspectiva no interior, a família de José Carlos se transfere para o Rio, em busca de melhores condições de vida. Com a mudança, José Carlos revê a prima e, desse reencontro, surge um romance que resultaria em casamento, realizado a 5 de setembro de 1939.
O primeiro fruto da união dos dois viria no ano seguinte, com o nascimento de Dalva, em Inhaúma, na época um pacato subúrbio. A vida do jovem casal só começaria a melhorar em 1944, quando José Carlos recebe um convite da empreiteira Cavalcante, Junqueira S/A, para trabalhar como mestre de obras na construção de uma usina de álcool de mandioca, projetada para suprir a falta de combustível durante a 2ª Guerra Mundial. O local escolhido para a construção da usina foi a modesta vila de Porto das Caixas, em Itaboraí-R.J., onde José Carlos desembarcou com a família em 4 de abril daquele mesmo ano. Para ajudar seu marido, Clotilde, além de costurar, servia refeições a alguns operários da obra. Em 1945 nasce o segundo filho, Denancir. Com a interrupção das obras da usina de Porto das Caixas, José Carlos é obrigado a retornar ao Rio para trabalhar em outros projetos da mesma empreiteira. Nesse período, ele se vê obrigado a permanecer no trabalho nos dias úteis - só voltava para casa nos fins de semana.
Já Clotilde, continuava os afazeres na máquina de costura - era comum trabalhar até de madrugada - para ajudar o marido na criação dos filhos e na construção de uma modesta casa na rua da Madureira, em Porto das Caixas. Nessa mesma casa viriam a nascer os outros três filhos do casal: Darcila (1948), José Maria (1950) e Carlos José (1953). Com a extinção da empreiteira, José Carlos regressa definitivamente para Porto das Caixas e começa a trabalhar por conta própria.
A família volta a enfrentar dificuldades e ele passa a trabalhar em Itaboraí. Nessa época não havia sistema de transporte entre as duas localidades e, para não chegar atrasado ao serviço, já que primava pela assiduidade e pontualidade, José Carlos percorria diariamente a pé, sob sol ou chuva, os mais de seis quilômetros que separavam sua casa do local de trabalho. Para isso, saía de casa religiosamente às 5 da manhã.
Em 1955, José Carlos é convidado pelo prefeito Símaco Ramos de Almeida para assumir a chefia de obras da prefeitura. Ele chegou a ser empossado na nova função, mas, para evitar o constrangimento ("um vexame", dizia) de ser dispensado na administração seguinte, pede demissão e volta a trabalhar como autônomo. Em julho de 61, nova mudança: José Carlos vai com a família para Itaboraí, pela proximidade com o trabalho e para facilitar o estudo dos filhos. A mudança coincide com o início de um dos períodos mais difíceis na vida do casal: filhos no ginásio, uniformes, livros escolares, calçados, etc.
Recém-empossado em 1963, o novo prefeito de Itaboraí, João Batista Caffaro consegue convencer José Carlos a reassumir a função de mestre de obras. Tal era sua dedicação ao trabalho e o conhecimento sobre cálculos que José Carlos não demorou a conquistar a confiança e a simpatia dos engenheiros com os quais trabalhava. Eles reconheciam o esforço do operário com um comentário que costumavam repetir: "José, para você só falta mesmo cursar uma faculdade, porque prática você tem de sobra".
Na nova função, José Carlos conquistou tanta admiração e respeito que permaneceria no cargo nos quatro governos seguintes. Aposenta-se, finalmente, em 1977, aos 70 anos de idade, durante o governo Milton Rodrigues Rocha, Apesar de ter mais tempo para descansar a partir de então, o casal continuou preocupado com a família, acompanhando o sacrifício dos filhos para estudar, mesmo depois de casados. A sensação de esforço recompensada era renovada a cada cerimônia de formatura de um filho. O brilho nos olhos do casal nessas situações refletia o empenho que eles empregaram para ver os filhos "bem colocados" como eles diziam. Os cinco filhos do casal deram a José Carlos e Clotilde 14 netos - dos casamentos de três deles vieram três bisnetas.
No primeiro semestre de 1992, mesmo aos 84 anos, José Carlos encontra forças para realizar mais uma "empreitada": atuando como uma espécie de consultor informal, ele conduz os fotógrafos Márcio Soares, Marlus Coutinho e Ronaldo Soares (seu neto) a locais históricos de Itaboraí, que foram registrados em fotos em preto-e-branco. O trabalho resultou na exposição de fotos "Instantâneos do Passado", dedicada ao próprio José Carlos. A parte mais interessante do trabalho, porém, ficará guardada apenas na lembrança dos fotógrafos: José Carlos revisitando cada patrimônio arquitetônico da cidade e contando detalhadamente as histórias sobre cada local.
No mesmo ano, numa das viagens de José Carlos a São Fidélis-RJ, quis o destino que o casal se separasse. Retornando a São José do Paraíso para rever o local onde passara a adolescência, sofreu um infarto e acabou falecendo em Campos, para onde foi transferido, no dia 21 de agosto, aos 84 anos. Para amenizar o sofrimento com a perda do companheiro de mais de meio século de convivência (foram 52 anos de casamento), Clotilde passa as horas bordando e costurando para a família. Às vésperas de ser presenteada com uma quarta bisneta, seu frágil coração parou, no dia 5 de junho de 1995, aos 82 anos de idade.
Nos últimos dias antes de partir, José Carlos tinha como hábito permanecer na varanda de sua modesta casa em Itaboraí, sentado numa cadeira, com as pernas cruzadas na altura dos tornozelos, meditativo. Naquelas ocasiões, quando exercia o merecido descanso do batalhador, o repouso do herói, ele no fundo sorvia, silencioso, o gostinho de ter conseguido construir, de forma brilhante, sua obra mais perfeita: uma família. Era isso que aquele sorriso simpático e aqueles olhinhos apertados queriam dizer.
Descansem em paz, papai e mamãe. Olhem por nós.
Texto: Dalva Soares com a colaboração do sobrinho Ronaldo.Recolher