Projeto: Incor 25 anos
Depoimento de Jeronimo Machado
Entrevistado por Ricardo Guanabara e Inês Barreto
São Paulo, 25/10/2000
Realização Museu da Pessoa
Código : INC_HV011
Transcrito por Elaine de Souza Zanolo
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Seu Jeronimo Machado, o senhor poderia começar falando o seu nome completo, data de nascimento e local?
R – Eu sou Jeronimo Machado, nasci no dia 26 de março de 1930, em Ribeirão Claro, hoje Guapiaçu.
P/1 – Qual que é o nome do seu pai e sua mãe?
R – Meu pai Jeronimo Machado, minha mãe Onófria Alves da Conceição.
P/1 – De onde eles são?
R – São do Estado de São Paulo.
P/1 – Qual era a profissão deles?
R – Lavrador rural.
P/1 – Lavrador?
R – É.
P/1 – E sua mãe?
R – Do lar, né?
P/1 – Do lar. Quantos irmãos o senhor teve, Seu Jeronimo?
R – Cinco irmãos.
P/1 - Cinco irmãos?
R - Cinco irmãos.
P/1 – O senhor passou a sua infância toda em Guapiaçu?
R – Não, eu passei toda a minha infância não na cidade, e sim na roça, até os oito anos.
P/1 – Até oito, e depois?
R – Depois mudamos para Barretos, ficamos lá um ano, mais ou menos, e mudamos para Nova Granada. Lá é que eu comecei a estudar, tudo isso aí.
P/1 – E o senhor chegou a trabalhar na roça também?
R – Trabalhei.
P/1 – É? Com que idade o senhor começou a trabalhar?
R – Na roça não tem idade para trabalhar, você começa desde pequeno a trabalhar. Comecei espantando pássaro preto para não arrancar o arroz, quando nascia.
P/1 – E na enxada, o senhor trabalhava?
R – Trabalhei na enxada também.
P/2 – Que tipo de lavoura tinha naquela região onde o senhor trabalhou? Arroz?
R – É. Arroz, feijão, milho e algodão.
P/1 – O Seu pai morreu muito cedo, não é?
R – Morreu muito cedo, eu tinha 17 dias quando ele faleceu.
P/1 – O senhor sabe do que é que ele morreu?
R – Não, não sei. Até a gente não tem o atestado de óbito. Se fizeram, minha mãe não sabe.
P/1 – E depois, em Barretos, o que é que o senhor fazia?
R – Em Barretos não fazia nada, nada.
P/1 – Não estudava?
R – Eu comecei a estudar, mas depois mudamos, então (estudar?) foi pequeno, foi pouco tempo.
P/1 – Aí foram pra Nova Granada?
R – Aí Nova Granada é que entrei...
P/2 – Nova Granada vocês moravam na cidade ou moravam também...
R – Na cidade, e aí lá é que eu entrei no grupo escolar e fiz o curso.
P/1 – Com que idade?
R – Eu entrei no grupo escolar lá... Estava com nove anos.
P/1 – Como é que era o interior de São Paulo nessa época?
R – Olha, era gostoso, era muito bom.
P/1 – É, por quê?
R – Você tinha infância, hoje os garotos não têm infância. Ontem a gente tinha infância, então eu tive infância. Mesmo trabalhando na roça, sempre tive infância.
P/2 – O senhor brincava com os seus irmãos, a família era grande, como é que era?
R – Não, a família não era grande, a família era pequena, porque a minha mãe tinha eu e uma irmã, depois, mais tarde, a minha mãe casou novamente, então a infância foi muito boa.
P/1 – Que brincadeiras que vocês faziam?
R – Olha, lá é brincar nos pés de laranja, goiaba; caçar passarinho, essas coisas assim.
P/2 – E dessa escola o senhor se lembra alguma coisa, desse grupo escolar, de uma professora, alguma coisa?
R – Não, filha, não. Lembro de uma professora, mas todo o nome dela... Era a dona Aparecida, e o marido dela era o seu Francisco, que era o diretor.
P/2 – Diretor da escola?
R – Diretor da escola.
P/2 – E ela foi professora muitos anos do senhor, ou cada ano era uma professora?
R – Não, cada ano era uma professora.
P/2 – E por que é que o senhor se lembra dela em especial?
R – Porque, não sei, ela era muito boazinha com a gente, tratava bem. Peguei outras professoras já mais... Porque naquele tempo podia-se professor pôr (aluno) de castigo, isso aí.
P/1 – Ela era rígida?
R – Ela era rígida, mas sabia conversar com a turma, aí peguei outras que...
P/1 – Foi mais difícil?
R – Sim, você tomar reguada, ficar na frente dos alunos com o braço aberto lá, o braço ia cansando, descendo. A professora vinha com a régua, “pum” na cabeça. O braço levantava, é, a ponta de lápis, se a gente estava conversando na carteira com o colega, ali a professora vinha andando devagarzinho, por trás, e na cabeça enfiava a ponta do lápis. É, então, aquele tempo que eu acho que a turma estudava, hoje não, hoje o professor não pode fazer nada. Minha orelha chegou a fazer ferida de uma professora lá, que tanto torcia “assim”, que a minha orelha acho que ficava que nem mola, devia soltar “sciii”, para trás. Fez ferida aqui assim “ó”.
P/1 – Não é porque o senhor era muito indisciplinado?
R – Não, é muito rígido. Se ficava conversando com o colega do lado ali, colega também, aí não sei o que, bem quietinho ali, “sciii, uhm, puxo” (riso). Mas se estudava, era um rígido... Vão falar assim “Ah, mas isso não podia fazer, não sei o que”, se eu estudei foi graças a isso, o medo que a gente tinha. A professora fazia você respeitar ela, ela te respeitava, mas se saísse fora ela não perdoava, então o sujeito andava na linha.
P/2 – E como é que era, o senhor ia para escola de manhã, voltava pra casa...
R – Ia pra escola de manhã, voltava para casa.
P/2 – E trabalhava à tarde já nessa época?
R – Não, ainda não trabalhava, mas a parte da tarde era sentar e estudar, estudar, estudar, que no outro dia o negócio estava esperando.
P/1 – E na casa quem é que sustentava a casa?
R – O meu padrasto, trabalhava na prefeitura lá.
P/1 – Como é que se chamava o seu padrasto?
R – Chamava Domingos Besse, ele trabalhava de lixeiro, trabalhava com carroça, lixeiro na cidade. Depois, mais tarde um pouquinho − isso mesmo, estudando − arrumei um serviço. Passei a estudar à tarde e arrumei um serviço de manhã, para entregar leite. Tinha a leiteria, então pegava uma sacola cheia de litros e saía entregando nas casas.
P/2 – E esse foi o seu primeiro trabalho?
R – Primeiro trabalho, só que não registrado, não é? E era menor, também.
P/1 – Que idade o senhor tinha?
R – Estava com uns 12 anos, mais ou menos.
P/1 – E o senhor contribuía com o orçamento da casa?
R – Ah, sim, o pouco que ganhava... Lá tinha que...
P/1 – O senhor se dava bem com o seu padrasto?
R – Me dava muito bem com ele.
P/1 – Sua mãe se casou logo depois que o seu pai morreu?
R – Não, eu tinha seis anos quando a minha mãe...
P/1 – E ela conheceu ele lá em Nova Granada?
R – Não, ela conheceu ele lá no sítio em Guapiaçu.
P/1 – Ela já foi para Barretos casada?
R – Já, já. Fomos para Barretos a minha mãe já estava casada.
P/1 – Até que ano o senhor fez a escola?
R – Fiz a escola, eu estudei lá no grupo quatro anos... Eu fiz até que ano? Entrei lá...
P/2 – Até o quarto ano?
R – Foi até o quarto ano.
P/1 – Então o senhor fez os quatro anos do primário?
R – Do primário.
P/1 – E depois o senhor continua?
R – Aquele tempo lá na cidade só tinha grupo que você fazia até o quarto ano, não tinha onde continuar, aí eu fui trabalhar numa chácara, com um chacareiro em Olímpia. Ele pagava um colégio à noite e eu comecei a estudar nesse colégio à noite, e de dia trabalhava na chácara.
P/1 – Na enxada?
R – Na enxada também, mas ele tinha plantação de rosa, eucalipto. Ele teve um dia as mudas de eucalipto, muda de rosa, e outras flores assim que eu não me lembro no momento, então, formiga.
P/2 – Formiga?
R – Formiga, pegava formiga.
P/1 – Para que?
R – Pegar a formiga − não me lembro o nome da formiga − arrumava uma folha de bananeira, jogava terra ali e ia nas casas da formiga. Cavoucava e ia pegando formiga com os ovinhos, ia jogando e amarrava na folha de bananeira, e aquilo era para... Essa formiga atava as formigas que cortavam a roseira, esses negócio, e ele vendia para outros que (iam?) em casa, essas coisas aí.
P/2 – Ai, que interessante!
P/1 – O senhor fazia controle biológico?
R – Não, eu não me lembro o nome da formiga (riso), se você tivesse falado, se eu soubesse disso antes eu tinha...
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou lá?
R – Eu fiquei dois anos, era pra ficar mais, mas tivemos uns problemas e eu tive que voltar para trás.
P/1 – Problema de trabalho?
R – É, um problema com a família do chacareiro, como eu morava junto e tudo, acabei entrando no meio das encrencas, e saí mal com aquilo, tive que voltar para Nova Granada.
P/1 – O senhor ficou esses dois anos. O senhor estudou nesses dois anos?
R – Estudei, num colégio...
P/1 – Então o senhor fez mais duas séries?
R – Fiz mais duas, mas...
P/1 – Aí voltando pra Nova Granada ,o que é que o Senhor fez?
R – Aí fui trabalhar de engraxate na rua, engraxar sapato na rua, uma caixa nas costas lá e fui, fui ganhar o dinheiro lá.
P/1 – Tinha muita freguesia?
R – Na rua assim você tem um pouquinho, meia dúzia de fregueses, mas são os caras que vêm para cidade, ali aproveita para engraxar o sapato, a botina, a bota.
P/2 – Tinha algum ponto assim, rodoviária, alguma coisa assim, que o senhor ficava?
R – Não, naquele tempo não tinha rodoviária, tinha a jardineira. Mas parava em frente a um bar, é isso aí, ele ia de uma cidade para outra, esse negócio, mas rodoviária não. Você ficava mais na praça, no jardim lá, você ficava engraxando.
P/1 – Como é que era a vida familiar, seu Jeronimo, com a sua mãe, com os seus irmãos, o senhor se dava bem?
R – Não, me dava muito bem viu, me dava. E depois arrumei um serviço, num sítio encostado com a cidade, aí voltei a trabalhar com a roça, larguei o engraxate.
P/2 – Aí o senhor morava no sítio ou morava na cidade?
R – Não, eu ficava no sítio, então eu vinha na casa da minha mãe domingo, eu vinha visitar a turma.
P/1 – E aí até quando o senhor ficou lá?
R – Fiquei lá até 17 anos, aí viemos para São Paulo.
P/1 – A família inteira?
R – A família toda, mudamos para São Paulo.
P/2 – E por que é que a família inteira veio para São Paulo?
R – Porque o interior estava muito ruim, né filha, começou a... Principalmente emprego, se você trabalhar só na roça, tem aquela época do algodão para plantar, mas se o Sol vem ali e mata o algodão, aí é o ano todo perdido. O arroz a mesma coisa, planta o arroz lá, você conta com o serviço na colheita, mas não choveu lá, mata tudo, você fica sem emprego, sem nada, então fica ruim.
P/1 – E aqui em São Paulo vocês vieram para morar aonde?
R – Nós viemos para morar lá no Alto do Mandaqui, em uma casa de um tio. Ele deu a casa pra gente morar lá até arrumar emprego, tudo, e arrumar uma casa para alugar.
P/2 – Esse tio, seu tio, não da tua mãe?
R – Da minha mãe.
P/2 – E ele já morava em São Paulo?
R – Ele já morava em São Paulo.
P/1 – Como é que era São Paulo?
P/2 – Em que ano foi isso, o senhor lembra?
R – Foi em 46.
P/1 – 46.
R – É, aquele tempo era duro, viu. Você tinha que andar a pé mesmo, para pegar condução era longe. Mas ali do alto do Mandaqui a gente tinha o trenzinho da Cantareira, que fazia Cantareira até o Tamanduateí, ali no São Caetano, então aquilo era a nossa condução. O último trem saía da Tamanduateí às sete horas, depois você tinha condução, tinha o bonde até Santana, depois até a Voluntários da Pátria, até o fim dela. Aí você − se bem que aquele tempo era lindo − podia passar num lugar escuro, assim, podia ter medo de assombração, é, mas não da violência que tem hoje. Você nem lembrava, nem pensava nisso, ninguém; era tudo sossegado, o único medo que você tinha era assombração.
P/1 – O Alto do Mandaqui naquela época devia ser um lugar bem retirado.
R – Eh, mas não é muito longe de Santana não, você conhece lá?
P/1 – Não, estou dizendo... Naquela época devia ser mais deserto.
R – Ah sim, deserto era, Nossa Senhora. O Mandaqui hoje, a baixada ali tinha porteira ainda, que hoje é a Avenida Engenheiro Caetano Álvares, tinha porteira.
P/1 – Era fazenda?
R – Era um terreno assim, mas você não via. Tinha uma plantação, mas não plantação desses negócios. Um pé de laranja, esses negócios.
P/1 – Aí o seu padrasto fazia o que aqui em São Paulo?
R – Ele trabalhava em uma firma, uma perfumaria, não me lembro o nome no momento. Trabalhou muito tempo lá, depois ficou doente e acabou falecendo.
P/1 – O que é que ele teve?
R – Olha, eu não... Falar certo do que é que ele... Morreu disso, eu não sei.
P/1 – E aí? O senhor...
R – Eu fui trabalhar em uma firma, na Cama Patente.
P/2 – Ah, conheço.
R – Ali na Rodolfo Miranda.
P/2 – Quer dizer, conheço, é uma firma famosa, não é?
R – É, ontem cama era só Cama Patente. Eu fui trabalhar nessa firma lá, trabalhei seis anos nessa firma.
P/2 – E o senhor fazia o que lá?
R – Eu trabalhava de lustrador. Aprendi, entrei lá como aprendiz, aprendi a lustrar cama, a lixar, lustrar.
P/1 – E onde é que ficava esse serviço?
R – Aí na Rua Rodolfo Miranda, na Ponte Pequena.
P/1 – O senhor ficou lá seis anos?
R – Fiquei seis anos, depois fui trabalhar numa... Mas eu trabalhando lá fiz o SENAI, fiz a escola no SENAI de torneiro mecânico.
P/2 – E era aonde essa escola?
R – Na Rua Monsenhor Andrade, ali no Brás. Monsenhor Andrade, é isso né? Fiz, saí de lá e fui trabalhar numa firma de autopeça, eu não me lembro o nome da rua agora, eu trabalhei pouco tempo nessa firma, depois fui trabalhar na manutenção de uma fábrica de telas de arame.
P/2 – O senhor acha que foi bom o curso no SENAI?
R – Foi.
P/2 – Quanto tempo de curso o senhor fez?
R – Quatro anos.
P/2 - Quatro anos?
R - Quatro anos, e quando eu trabalhava na Cama Patente tinha convênio com o SENAI, então eu estudava um dia todo, no outro dia trabalhava na firma.
P/2 – Ah, então isso era ótimo hein, foi muito bom isso.
R – É, e fiz esse curso de torneiro.
P/1 – Nessa indústria de autopeça o senhor já foi como torneiro?
R – Como torneiro. Depois fui trabalhar na manutenção dessa firma que fazia tela de galinheiro, para campo de futebol, essas coisas assim. Também torneiro, e ali você, trabalhando na manutenção, vai aprendendo outros serviços, não é? É solda, é ajustagem, é furadeira, fresa, essas coisas aí. Tendo vontade, você tem um amigo que entende, que ensina.
P/1 – O senhor aprendeu muito lá?
R – Aprendi bastante, só até hoje não aprendi fazer solda acetileno, porque a primeira vez que eu peguei em um maçarico para fazer uma solda, não sei o por que, engoliu o fogo e estourou a borracha no cilindro. O cilindro não estourou, mas ficou pegando fogo lá e eu corri bastante viu, corri bastante.
P/2 – Levou um susto.
R – Nossa Senhora.
P/2 – Onde foi isso?
R – Isso foi nessa firma onde eu trabalhava...
P/2 – De telas?
R – De telas, na firma. Filha, corri. Medo de o cilindro explodir, porque a turma me falava, nunca tinha visto um negócio daquele explodir, nunca vi, mas também, esquece. Quando vi o “pum”, o fogo pra rua... Então, esse eu não consegui aprender, até hoje...
P/1 – O senhor não quer saber?
R – Eu não quero saber, não consigo. Olhar o serviço, mesmo ali o que eu estou fazendo, me chama a atenção o cilindro, então você não faz o serviço direito. Aí eu aprendi a solda elétrica, mas a solda acetileno não deu.
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou nessa firma de tela?
R – Nessa firma eu fiquei uns quatro anos, aí saí da firma porque eles mudaram para Taipas, então para ir pra lá era muito difícil.
P/1 – E aí o que é que o senhor foi fazer?
R – Fui trabalhar. Fiquei desempregado, procurando serviço, aí arrumei um serviço numa fábrica de guarda-chuva, trabalhar em um torninho lá, fazendo algum servicinho pequeno. Mas não gostei daquilo, e um amigo me arrumou um emprego no IBEC, aqui na Faculdade de Medicina.
P/1 – O que é o IBEC?
R – IBEC é Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, filiada à UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura].
P/1 – E o que é que o senhor fazia?
R – Eles faziam kits para estudante. Micrômetro, uma série de coisas.
P/2 – Que ano foi isso?
R – Isso já foi em 56.
P/2 – Cinquenta e seis o senhor entrou no IBEC, é isso?
R – Cinquenta e seis não, foi 46... É, foi em 56, mais ou menos.
P/1 – E era bom trabalhar lá? O senhor gostou?
R – Era bom. Eu comecei a trabalhar no IBEC, e aí que conheci a equipe do Zerbini, o que eles faziam. Estavam começando a cirurgia, e faziam a experimental na faculdade. Tinham dificuldade em peças, essas coisas assim, e o professor Isaías (Hall?), então, pediu que o encarregado da oficina deixasse um funcionário para esse serviço, para a equipe do Zerbini, e me puseram para trabalhar para a equipe do Zerbini. Ali fui fazendo o serviço, mais tarde o doutor Adib conseguiu montar no prédio do HC uma oficininha, um torninho, uma plaina pequena, uma oficininha pequena para fazer serviço direto, ficar trabalhando, porque ele pretendia montar um aparelho para cirurgia, e me convidaram para ir pra lá, e eu vim, vim pro HC [Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo].
P/2 – Seu Jeronimo, quando que o senhor casou, foi quando o senhor veio para...
R – Pro HC.
P/2 – E o senhor conheceu como a sua mulher, aqui, ou foi antes?
R – Ah, isso foi lá no bairro mesmo.
P/2 – Ah, foi lá no bairro.
R – Foi lá no bairro (riso). Não me pergunte muita coisa (riso)... bom, deixa para lá, mas foi isso aí filha. Então, aí deixei o IBEC e entrei no HC, fui trabalhar no HC, na oficina.
P/2 – Quanto tempo o senhor ficou no IBEC, só no IBEC?
R – Mais ou menos dois anos.
P/2 – Dois anos?
R – É, e vim trabalhar na oficina, eu e o Adib.
P/2 – Mas ele era...
R – Ele era médico.
P/2 – Um jovem médico formado?
R – É, e gosta até hoje de uma oficina. Gosta, gosta de trabalhar num torno, numa plaina, gosta de uma oficina, tanto é que a turma tem aí guardado um avental... Agora faz tempo que ele não aparece, mas sempre estava aí, pegava o avental dele, tinha ideia de um negócio lá e um ajuda ele aqui, outro ajuda ele lá, e ele ia fazendo, começava a fazer. Ele pensava uma coisa e fazia, não ficava bom, a gente fazia para ele. Mas ele, então, nessa oficininha que começamos, eu e ele, fizemos o primeiro aparelho que fizemos para cirurgia do coração. Tinha um médico paraguaio fazendo estágio com a equipe do Zerbini, terminou o estágio dele, ele foi para o Paraguai e conseguiu levar esse aparelho para lá, que nós fizemos, ¬¬¬o primeiro que fizemos...
P/2 – Ah, ele levou. Vocês não têm mais aqui, então?
R – Não, não temos.
P/1 – Que aparelho era?
R – Para cirurgia do coração, aparelho do coração e pulmão.
P/2 – De circulação...
R – Extracorpórea.
P/2 - Extracorpórea?
R – É, então o primeiro que fizemos foi para isso, foi para o Paraguai.
P/1 – O senhor lembra do nome dele?
R – Não lembro o nome desse, são muitos anos. Depois fizemos outro aparelho, já esse a turma conseguiu ficar para a equipe. Fomos fazendo o que a turma precisava, na cirurgia, essas coisas assim. O Adib trazia para a oficina e a gente...
P/1 – Onde que ficava essa oficina lá no HC?
R – No HC a oficina começou no décimo andar, ao lado da caixa d’água, em cima da... Onde as mulheres dão neném, lá, filha, que nasce o neném?
P/2 – Maternidade.
R – Não.
P/1 – Obstetrícia?
R – Obstetrícia, perdão (riso), em cima da obstetrícia, uma salinha pequena. A oficina era pequenininha, ficamos lá.
P/1 – Quem é que trabalhava com o senhor?
R – Era eu e o Adib, só.
P/1 – Só vocês dois?
R – Só nós dois.
P/1 – Não tinha nenhum assistente?
R – Não, não tinha não. Mas começou a aumentar a cirurgia, aumentar o serviço, aí conseguimos... Onde é o PAMB [Prédio dos Ambulatórios] hoje, tinha um barracão lá, conseguimos lá uma parte desse barracão.
P/1 – Onde era o quê?
R – O PAMB
P/1 – O que é que é PAMB?
R – Instituto de Ambulatórios, esse prédio amarelo aqui em frente... Aí onde ele está naquele tempo era mato tudo, fizeram um barracão lá para manutenção do HC e sobrou um pedaço para nós, aí mudamos pra lá, e veio mais um...
P/2 – E me diz uma coisa, o senhor fazia desenho dessas peças, como é que era o desenvolvimento dessas coisas que vocês faziam?
R – Você não fazia um desenho, você fazia uma... Como é que é o nome? Você riscava lá o que você tinha, a ideia, e ia fazendo. Mas como aquilo era um negócio experimental, o que você estava fazendo...
P/2 – Era mais um modelo, uma peça modelo do que...
R – Você tinha uma ideia, você ia fazendo aquilo.
P/2 – Ia mudando.
R – E você ia mudando.
P/2 – E depois, pra fazer de novo, depois que conseguiu o primeiro?
R – Depois que você tinha já, isso aqui assim funciona, aí era feito o desenho.
P/2 – Então quando a oficina cresceu um pouco, tinha desenhista? Como é que funcionava?
R – Não.
P/2 – Eram vocês mesmos que faziam?
R – É, porque no SENAI você aprende a desenhar as peças, não é... Você aprende.
P/2 – Então o senhor fazia isso?
R – Então eu que fazia isso.
P/1 – E quando o senhor mudou, quem era a equipe da oficina quando foi pra esse prédio novo?
R – Não era prédio, era um barracão do HC mesmo, era eu e o Adib ainda.
P/1 – Continuou só os dois?
R – Continuou, aí veio mais um, conseguimos (fazer) o HC contratar um ajustador. Eu trabalhava no torno e fazia ajustagem também, mas já tinha um ajustador, porque o Adib... Quando não tinha cirurgia que o Adib vinha para a oficina, pra ajudar ali, essas coisas. Então veio mais o ajustador, ficamos mais ou menos uns dois anos, eu e o ajustador. Depois conseguimos um torneiro, aí conseguimos (fazer) o HC comprar mais um torno, já um torno grande, não um torno de bancada. E fomos tocando, aí foi aumentando o serviço e o HC foi admitindo mais funcionários pra gente, então.
P/2 – E o senhor se lembra quais eram as peças que o senhor fazia, as primeiras ou depois mais tarde, que tipo de coisa vocês estavam fazendo?
R – Olha filha, era tudo para cirurgia do coração. Era oxigenador, ponta de aspirador, intermediário, tudo pra cirurgia do coração, só pra cirurgia do coração. Aquilo que os médicos tinham dificuldade, nisso, naquilo, traziam a dificuldade para a oficina e a gente discutia e fazia, e aquilo era levado para experimental numa faculdade. O médico testava junto com a gente e via se precisava ser modificado ou não, o que é que precisava ser modificado, e aí trazia de volta para a oficina para fazer as modificações.
P/1 – Como é que era o Adib, trabalhar com o Adib?
R – Ele gostava de oficina, ele trabalhava muito bem e tudo, o problema dele na oficina é que ele queria que o funcionário ficasse trabalhando até oito horas, dez horas da noite, direto. E se ele não ficava ele já não gostava.
P/2 – Então naquela época era duro o trabalho, trabalhava bastante quando ele estava?
R – Ele ficava porque ele marcava cartão, e naquele tempo nós tínhamos que marcar o cartão mecânico. Você ficava até às dez horas, oito horas da noite trabalhando, você não ganhava. No outro dia você chegava 16 minutos atrasado, perdia um terço, então a briga que a gente fala com o Adib era isso, você ficava e não ganhava, e no outro dia se condução, o bonde... Tivesse algum problema no bonde, chegava depois de 15 minutos, perdia um terço. O Adib não, bom (riso). Mas era tudo o que a gente fazia na oficina.
P/2 – E o doutor Zerbini, você tinha contato com ele?
R – Tínhamos, tínhamos contato com ele, mas o doutor Zerbini era cirurgia, os problemas ali, os médicos é que tinham que trazer para a oficina, que resolviam. Ele não vinha à oficina discutir um serviço, uma dificuldade que ele tinha, isso a equipe dele é que tinha que vir na oficina.
P/1 – Então o senhor não tinha contato diário com ele?
R – Não, contato diário não, porque a oficina era fora do prédio, e se não tinha alguma coisa para conversar com eles, a gente nem subia ao prédio, entrava ali por baixo mesmo − onde tinha a portaria − ia à oficina. Mas o que precisasse poderia ter contato direto com ele.
P/1 – Qual eram os materiais que vocês usavam nessa época para fazer os aparelhos, as órteses, vocês usavam muito...
R – É o aço inox, naquele tempo 308, aço inox 308. Onde entrasse em contato com o sangue era o aço inox, e na oficina nós tínhamos o latão, o ferro, aço prata, alumínio, chapa de aço inox para outro serviço, isso aí, vários materiais.
P/1 – E plástico?
R – Não, plástico não, naquele tempo não tínhamos nada de plástico, tudo...
P/1 – Quando é que vocês começaram a usar o plástico?
R – Olha, o plástico na cirurgia, não sei o ano certinho, mas foi bem tarde, viu.
P/1 – Que década, 60, 70?
R – Não, mais. Mais ou menos 70, ou depois de 70, porque todos os intermediários que hoje são plásticos, ontem eram aço inox, tudo isso aí.
P/2 – E o tamanho das coisas também foi diminuindo com o tempo, como é que é isso?
R – Alguma coisa sim, outras não, outras foram aumentando. Os oxigenadores eram uma cópia do oxigenador americano, oxigenador de disco, então esse oxigenador de disco nós tínhamos três tamanhos, um para criança, pequeno, outro mais intermediário, e um para um adulto. Então a quantidade de disco era para criança menor até o outro maior, esses discos eram estampados fora, não tínhamos peça para estampar os discos.
P/2 - Mandava fazer...
R – Não, era feito fora, não tínhamos. E depois veio, eu não me lembro agora o ano, veio o oxigenador de bolha. Começou nos Estados Unidos oxigenador de bolha, não sei o que, aquele negócio, e aí começamos a fazer. No começo deu muito trabalho... Pra você eliminar as bolhas, você fazia as bolhas para oxigenar, mas depois você tinha que eliminar as bolhas, tinha que matar as bolhas para o sangue voltar para o paciente oxigenado, sem bolha. Aí foi, deu um bocado de trabalho.
P/1 – Como é que vocês resolveram?
R – Foi resolvendo, aumenta aqui, “fecha mais para cá”... E as esponjas eram de aço inox, também vinham dos Estados Unidos, siliconiza melhor as esponjas, porque as esponjas eram siliconizadas, tinha um trabalho com elas lá. Mas isso não era feito na oficina, era feito já na sala de cirurgia esse serviço, já era outro pessoal que fazia, e você tinha... Usava menos sangue no oxigenador de bolha, e de disco você tinha que encher todo aquele oxigenador, mangueira até o paciente com sangue de doadores, então era meio difícil arrumar doador, e a cirurgia começou a aumentar, oxigenador de bolhas, mas...
P/1 – Quais eram as dificuldades desse trabalho, o que é que o senhor achava que era mais difícil para realizar essas tarefas?
R – O mais difícil você tinha que... No oxigenador de bolha você tinha que ter um permutador para manter sangue, a temperatura do sangue. Se precisasse descer a temperatura do paciente, você tinha que ir gelando o sangue, ou depois, com a água quente passando, o permutador esquentar essa água. E eram as microbolhas, esse deu trabalho, no começo deu muito trabalho.
P/1 – E além do Adib quem é que criava peças lá?
R – Olha, a equipe do Zerbini tinha outros médicos, iam lá, “tem esse problema”, não sei o que, e junto com a gente ele ia explicando o que precisava e a gente fazia, mas o direto da equipe com a oficina, e quem entendia tudo, era o Adib.
P/1 – E quem que eram essas outras pessoas?
R – Eram estagiários que vinham para a equipe, eu não lembro o nome de toda essa turma.
P/2 – Foram muitos, não é?
R – Ih, o que passou de estagiário aí não...
P/2 – E você tinha contato com gente de fora, que estava desenvolvendo isso? Porque muitas das coisas, né, Estados Unidos...
R – Não.
P/2 – Não vinha gente pra cá?
R – Não.
P/2 – Ou eles traziam peças, isso sim?
R – O primeiro aparelho que fizeram a cirurgia do coração, o professor Zerbini importou dos Estados Unidos. Importou um, depois fizemos já... Quer dizer, o modelo, só o modelo diferente. Mas era tudo, as bombas para você injetar o sangue no paciente e passar (luxador?), essas coisas, e aí foi modificando.
P/2 – Foi o primeiro?
R – É, aí foi modificando isso, aquilo. Junto com a equipe, né?
P/1 – O primeiro transplante o senhor acompanhou?
R – Sim, estava junto. Quer dizer, não o transplante assim, porque eu não tinha... O meu serviço era outro, mas deixar os aparelhos... Tudo direitinho, certinho, pra hora que aparecesse o doador e o receptor, aparecesse o receptor todo.
P/2 – Então houve uma grande expectativa com relação à isso?
R – Nossa Senhora! Houve uma...
P/2 – Ficou todo mundo esperando?
R – Ficou esperando e caiu na imprensa. O pronto-socorro das clínicas diminuiu bem, viu.
P/2 – Ah, é?
R – Oh, filha. Porque é aquele negócio que o povo fala assim “vai lá, eles estão precisando de...”.
P/2 – De coração (riso).
R – De peça para transplante.
P/2 – De doadores.
R – É, de doadores. Ah, mas diminuiu...
P/2 – É mesmo?
R – É.
P/1 – O povo fugiu de medo?
R – Ah, fugiram de medo, caiu na imprensa que transplante precisava de um doador, e o povo “não, chega lá tira e fala que chegou morto, não sei o que”, aqueles negócios.
P/2 – Ninguém mais vinha para o HC?
R – O cara vinha se ele tivesse desacordado, se não soubesse, senão “não, não.” (riso)
P/1 – E quanto tempo durou essa fuga aí?
R – Olha, isso demorou um pouquinho, eu não me lembro assim... Uns seis meses, mais ou menos, essas coisas aí, mas a turma fugia (riso). É aquele negócio “precisa de um doador, aí eu caio lá, já viu, já vem ali, morreu, mas meu fígado, meu coração, já foi”, não vinha (riso), foi isso aí. E a pessoa que filmou todo o transplante, todos os aparelhos, aquela parafernália de aparelho, tudo, entrou assim, meio por baixo dos panos na oficina, para não espalhar aquele negócio todo, e devagarzinho foi subindo para a sala de cirurgia, para, a hora que tivesse o doador mesmo, ele filmar tudo aquilo.
P/1 – Foi uma coisa um pouco escondida, então?
R – Mais foi por causa da imprensa... Não é... A imprensa toda, aquele negócio, transplante não é... E era um problema, né.
P/1 – E foi uma época de muito tumulto?
R – Foi, porque a equipe estava preparada, o Zerbini preparou a equipe para o transplante. Aí estava aquele negócio, receptor, doador... E procurando manter longe da imprensa essas coisas assim, para não...
P/2 – E foi um período longo?
R – Foi, até preparar a equipe para um transplante, foi, porque uma equipe fica no doador, uma equipe no receptor, trabalhando cada um em um lugar e tempo certo, todos aqueles negócios lá. Eu não entendo muito não, vi muita cirurgia, mas não...
P/1 – Além dos oxigenadores que o senhor citou, que outros aparelhos o senhor acha que foram muito importantes, que foram difíceis de fazer, desenvolver?
R – Que foi difícil também pra nós desenvolvermos aqui foram as válvulas cardíacas, que eram válvulas de titânio. É difícil trabalhar com titânio, você fazia uma peça, outra peça, outra peça, e faltava um pedacinho aqui, uma falha ali, quando você tirava um bom assim, ou fazia o polimento, punha na lupa: tudo com uns buraquinhos, não servia. Aí tivemos que apelar para o IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas], fazer o vitálio, fundir o vitálio para nós lá no IPT. Conseguimos no CTA [Centro Técnico Aeroespacial], em São José dos Campos, com a equipe lá de neurologia, com essa turma assim... Para eles ajudarem a gente, a gente ia pra lá, pra fazer lá, fundir lá.
P/1 – Com vitálio também?
R – O vitálio, né, fundir as válvulas e o vitálio junto com os professores, conseguir sair sem falhas, porque a gente fazia e era um problema. Tinha lá uns professores americanos também, e até que conseguimos fazer sair, perder menos... Não era sair todas, você fundia 50, perdia 10%, 20%, mas sempre tinha válvula boa para ser usada. Esse deu trabalho, esse deu porque tivemos que apelar para terceiros aqui, acolá, e tivemos sorte porque a turma ajudava, o IPT ajudou muito, o CTA ajudou muito.
P/2 – E nesse momento vocês já estavam aqui ou ainda estavam no HC?
R – Estava lá no HC ainda.
P/2 – Lá no HC?
R – Lá no HC.
P/1 – Que peças mais foram importantes?
R – Olha, não teve assim... Depois, uma peça mais importante... Importante foi você passar do oxigenador de disco para o oxigenador de bolha, e não se pensava ainda em fazer o oxigenador descartável, que o problema seria você eliminar as bolhas, porque para oxigenar tudo você podia fazer, mas o problema era eliminar as bolhas, então não se pensava ainda em oxigenador descartável. E esse foi um negócio meio difícil, depois as válvulas nós tivemos, e os outros assim são outros aparelhinhos pequenos para cirurgia, essas coisas assim. E aí foi em 73 é que mudamos para cá, pra esse prédio.
P/2 – A bioengenharia foi o primeiro...
R – Foi a primeira que veio, tivemos que...
P/2 – Foi a primeira que começou a trabalhar aqui?
R – A primeira que começou a trabalhar aqui. Primeiro porque tinham, não sei o por quê, tinham que fazer urgente o PAMB, o instituto dos ambulatórios, e o nosso barracão ficava ali naquele terreno. O trator foi tirando terra e muda, muda... E a Beter [construtora] fez, terminou urgente para nós essa parte onde está a oficina hoje. Tivemos que sair correndo de lá e vir para cá, então ficamos aí, e ainda o prédio sem terminar. Terminando o prédio, a oficina já estava aqui, e a turma que estava no prédio, no HC, continuou lá porque não tinha nada aqui dentro, nós tivemos que vir por causa da localização da oficina naquele tempo.
P/2 – E naquele tempo vocês faziam peças para vender pra fora, não é?
R – Fazíamos, vendíamos. Fazia... Vendemos aparelho (tosse), vendemos aparelho até para a cidade de “Lades”, acho que é “Lades,’ pra Inglaterra.
P/2 – Leeds.
R – Hein? Leeds, sei lá, (riso), eu não entendo inglês, eu não sei não, mas é isso aí. E toda a América do Sul têm aparelhos nossos, além dos estados que a turma vinha fazer estágio aqui e levava os aparelhos. Então fazíamos aparelho, a oficina vendia, mas o dinheiro era revertido para a oficina, então tínhamos liberdade de comprar um material melhor que você precisava. Vendemos muitas máquinas, muitos aparelhos para cirurgia.
P/2 – E hoje em dia o que é que a oficina faz?
R – Hoje faz máquinas só para cirurgias e dar manutenção para cirurgia, e hoje estamos trabalhando em pesquisa. Hoje a turma... A maioria aqui é pesquisa, temos aí (Monteggia?)...
P/2 – Que tipo de pesquisa está acontecendo?
R – Olha, as pesquisa eu não... Todas as pesquisas eu não sei te falar porque...
P/2 – Mas alguma que o Senhor tenha conhecimento.
R – Olha, não sei todas não, eu...
P/2 – O Senhor está trabalhando em algum, com alguma...
R – Não, na pesquisa não, eu fico só lá na oficina, ali, que é aquilo que eu conheço bem. Então eu fico ali, e pesquisa é...
P/2 – E dá manutenção para as...
R – Para os aparelhos, é, isso aí.
P/2 – Para as salas de cirurgia.
R – Pesquisa, o Doutor Adolfo, que é o diretor, que poderia explicar toda a...
P/2 – A parte da pesquisa.
R – A pesquisa, que são várias pesquisas que a turma está fazendo aí dentro. E eu então fico ali na oficina, dando manutenção, fazendo alguma coisinha, porque hoje já faz bem menos serviço para a turma.
P/2 – O senhor ainda faz desenhos?
R – Não, hoje não.
P/2 – Não?
R – Não, se eu vou fazer alguma coisinha eu faço um desenho ali para mim, mas nada, fazer desenho assim para os outros não.
P/2 – Aquele de prancheta?
R – Não, hoje nós temos aí...
P/2 – Os desenhistas.
R – Tem os desenhistas, hoje tem até máquina que faz , é computador, esses negócios. Ontem era na régua, no lápis.
P/1 – Quando vocês mudaram para cá, quantas eram as pessoas da equipe da bioengenharia?
R – Da bioengenharia, você diz? Quantas pessoas?
P/1 – É, quantos trabalhavam?
R – Nós tínhamos em torno de umas 20 pessoas.
P/1 – Bastante.
R – É, aí nós já tínhamos um engenheiro eletrônico, e já começou a desenvolver o marca-passo. Começou a desenvolver o marca-passo, então aquela parte que tinha o engenheiro eletrônico, hoje não tem mais.
P/2 – Não tem mais o que? O engenheiro eletrônico?
R – Não, o engenheiro eletrônico tem.
P/2 – Tem? O marca-passo (riso)? O que é que não tem mais?
R – (riso) Não se faz mais, você tem que importar pilha, esses negócios, uma dificuldade. Não, então fica mais barato a turma comprar nessa firma, mas fizemos aqui bastante marca-passo.
P/1 – Quem é que era o chefe da bioengenharia na época da mudança para cá?
R – Era o doutor Seigo Tsuzuki, ele que era o...
P/2 – E ele gostava também dessa parte de desenvolvimento na oficina?
R – Assim, não. Trabalhar lá na oficina, não. Podia discutir com você isso ou aquilo, mas ele...
P/2 – Sei, trocar uma ideia.
R – Troca uma ideia, mas que nem o Adib fazia, ir lá no torno e trabalhar, não. Mas ele ajudava...
P/2 – Era interessado?
R – É, ficou muitos anos com a gente aqui, o professor Verginelli também, ficou dois anos com a gente aí. O cabeça sempre foi um médico, então o Adib foi para a Secretaria de Saúde para montar o Dante Pazzanese, aí ficou o professor Verginelli dois anos com a gente, depois veio o doutor Seigo, o Seigo ficou muitos anos aqui com a gente.
P/1 – Como é que era trabalhar com o Seigo?
R – Ele era uma mãe, o Seigo. Nunca puniu ninguém, sempre conversou, sempre chamou, sempre. Era uma pessoa legal. Se bem que o Adib também era, mas o problema era esse, trabalhar até mais tarde (riso). Era só isso, mas é muito amigo.
P/1 – O Seigo trazia... Porque o Adib trazia muita ideia, desenvolvia muitos projetos, o Seigo também fazia isso?
R – Não, o Seigo...
P/1 – Era mais rotina?
R – Era mais rotina, alguma coisinha você discutia com ele, sobre isso ou aquilo, mas era rotina o serviço. Mas ele era, na oficina, uma boa pessoa, um grande amigo, uma boa pessoa.
P/1 – E o doutor Zerbini, ele de vez em quando descia aqui para ver o trabalho?
R – A verdade é, o professor Zerbini descia à oficina quando tinha uma visita, aí ele descia à oficina, mas sobre serviço, sobre você fazer isso ou aquilo, não.
P/2 – Aí já não era ele?
R – É, ele empurrava para um da equipe para tocar aquele negócio, e ele era só na sala de cirurgia, mas com visita ele descia na oficina.
P/2 – E a irmã dele, acho que até hoje ela ainda ajuda, não é?
R – Olha, ela deve estar aí.
P/2 – É nessa área de bioengenharia que ela...
R – Ela fica na parte de silicone, eu levo vocês lá para vocês conversarem com ela.
P/2 – Ah, eu queria conhecê-la pessoalmente.
R – E ela é voluntária e trabalha com nós aqui há anos.
P/2 – Muitos anos, não é?
R – Nossa Senhora! Se não tiver 40 anos é por aí, viu. É voluntária, boa gente também, vem aí e tem que arrumar serviço para ela, hein. Se o serviço é pouco você tem que tirar o serviço de um funcionário...
P/2 – Pra dar para ela (riso).
R – Pra dar pra ela, o funcionário fica parado e ela trabalhando, se o funcionário tiver trabalhando e você disser para ela “olha, eu não tenho um servicinho aqui para dar para a senhora”, arrumou uma encrenca.
P/2 – Fecha o tempo?
R – Uh, filha, fecha o tempo, fecha o tempo mesmo. Diz que agora ela está velha, não precisa mais dela, então.
P/2 – Aí ela fica ofendida?
R – Oh! Tem que tirar o serviço do funcionário, o funcionário fica parado e ela trabalhando, aí está tudo certinho, está tudo certo, tudo legal, não tem problema nenhum. Mas não tem, e se tem pouco serviço, você tem que ir separando, deixando pra ela, pra ela fazer amanhã, porque ela vem de manhã e depois do almoço, uma hora, duas horas assim, ela vai embora, mas tem que dar serviço para ela, senão...
P/2 – Acostumou, né?
R – (riso) Mas é interessante, filha.
P/1 – O senhor tem 41 anos de Incor?
R – Quarenta e um, eu entrei 3 de julho de 59.
P/1 – O senhor já aposentou?
R – Já aposentei mas continuo trabalhando. É, a aposentadoria é muito pouco, mas tudo bem (riso).
P/2 – Enquanto tiver saúde, né?
R – Eu já estou cansado disso aqui, mas ainda... Sei lá, eu vou parar.
P/2 – Ainda dá mais um tempo?
R – Eu vou parar, aí o tempo vai passando você vai ficando.
P/1 – Por quê? O senhor gosta tanto do Incor?
R – Não, você acostuma com aquilo, não é... É costume, que é o caso da dona Eunice, a irmã do Zerbini. Ela vem trabalhar agora, ela vem de bengala aí, desce do táxi, sempre tem alguém ali segurando ela, _______.
P/2 – Acompanha.
R – É, e se fala pra ela “não tem mais serviço para a senhora aqui”, matou ela (riso), matou. Então, está velhinha, e Nossa Senhora.
P/1 – E o senhor também é assim, se não tiver serviço para o senhor, o senhor fica bravo também?
R – É, de vez em quando eu fico, agora eu não fico mais bravo não, não tem serviço não tem serviço, vou lá para fora, tomo um cafezinho... Vocês não fumam, não é? Mas eu fumo, tanto é que vocês vieram aí, eu tinha tomado um cafezinho, “vai demorar um pouquinho”, aí cheguei, vieram, falei “Ih”, então quando tem tem, quando não tem, vou lá para fora, fumo o meu cigarrinho.
P/2 – É isso aí.
P/1 – O senhor tem religião, seu Jerônimo? Praticante?
R – Não, praticante eu não tenho, falar para vocês, eu sou católico, mas é aqueles católicos que de vez em quando vai lá na missa, de vez em quando, mas assim, de fanatismo, não.
P/1 – O senhor tem netos?
R – Tenho.
P/1 – Quantos?
R – Tenho... dois, quatro, seis; seis netos. As netinhas fizeram primeira comunhão, esses negócios aí, mas eu não sou fanático, não, acho que todo mundo deve ter uma religião, acho que ainda hoje nós temos que um respeitar o outro como irmão, esses negócios são a religião, graças à religião.
P/1 – Como é que é a convivência familiar, o senhor com os seus filhos? Primeiro que o senhor era muito exigido aqui no trabalho, isso não serve para a família não?
R – Não, porque a patroa, quando eles eram pequenos, não trabalhava, ela cuidava deles. Todas as minhas férias, 30 dias das minhas férias, a família todinha ia para Santos, porque eles gostavam...
P/2 – Oh, que delícia!
R – Então, lá para o meio do ano alugava uma casa, acertava tudo direitinho, pagava, arrumava uma perua Kombi para levar a turma. Pagava para ir, ir levar, ir buscar, saía daqui tudo pago, 30 dias lá embaixo.
P/2 – E hoje em dia o senhor ainda vai para lá de vez em quando?
R – Não, agora a turma já está grande.
P/2 – Mas o senhor (riso)...
R – Eu não era fanático assim pela praia, ia um pouquinho na água e saía, era mais para olhar a molecada, para não ir lá na água, e as barraquinhas ali (riso). As barraquinhas na praia ali... É muito boa.
P/2 – Muita cerveja.
R – Não, era caipirinha mesmo filha, que cerveja (riso). Naquele tempo não tinha latinha, era garrafa, e a garrafa não gelava bem não... Caipirinha mesmo.
P/1 – Além daqui do Incor, nesse tempo todo o senhor desenvolveu outra atividade paralela?
R – Não, só o Incor, porque aqui entra às sete, sai às quatro, então para ir trabalhar em outro lugar aí...
P/2 – Difícil, né?
R – É muito difícil.
P/1 – O senhor tem algum sonho, algum projeto na vida para realizar, seu Jerônimo?
R – Olha, o meu sonho seria eu parar de trabalhar aqui, ter um sitiozinho em qualquer canto, pra você criar... Porque nasci lá né, então...
P/2 – Voltar às origens.
R – Ia voltar às origens lá, companheiro. Arrumar aquele chapeuzinho lá para ir procurar ninho de galinha no mato, lá no capinzal, é... Pegar muito aqueles espinhos, carrapicho, picão, isso.
P/2 – O Senhor ainda tem família no interior ou não?
R – Não, não tenho.
P/2 – Nenhum dos filhos? Todo mundo ficou em São Paulo?
R – Tudo está aqui em São Paulo, mas o meu sonho seria esse aí, um “sitinho” pequeno, para não arrumar muito serviço (riso), pra não dar muito serviço (riso).
P/2 – Não dar dor de cabeça.
R – Não dar dor de cabeça.
P/1 – Seria um divertimento, não quer aporrinhamento não.
R – Ah, não, não quero, é só para...
P/1 – E a esposa compartilha desse sonho?
R – Olha, eu desconfio, ela diz que não... Que também gostaria, mas eu desconfio que não vai segurar as pontas lá não, num “sitinho” ela não seguraria as pontas não.
P/1 – Foi por isso que o senhor não realizou?
R – Não, é que eu não tenho condições de comprar um sitiozinho e arrumar ele. Depois você ir para lá... Mas mesmo se eu arrumasse um sitiozinho, ela ficaria aqui com os filhos e eu ficaria por lá, né? Ah, não tinha problema.
P/2 – Não tinha problema?
R – Não. Então é isso aí, o meu sonho seria isso aí.
P/1 – O que é que o senhor achou dessa experiência, de o senhor dar esse tipo de entrevista?
R – Bacana, bacana companheiro. A gente relembrar ainda, no caso de vocês fazerem uma pergunta que eu nem lembrava mais daquilo, mas você fez a pergunta, “uh”, voltar para trás.
P/2 – A memória vem vindo, não é?
R – É, então, é bacana você conversar sobre tudo isso aqui da oficina, desde que começou tudo, o que passou, dificuldades, todas essas coisas assim. Eu achei bacana, muito bom.
P/1 – Tem alguma coisa que o senhor gostaria de falar sobre __________?
R – Eu acho que ele... Nós lutarmos mais para fazer alguma coisa, uma pesquisa boa na oficina, um negócio brasileiro mesmo. Nós precisamos de um Adib.
P/2 – Olha que beleza.
R – Que agora se aposentou, nem sei por onde anda mais ele, de vez em quando... Demora assim, aparece aí, encontro ele.
P/2 – Aparece de visita?
R – É, é isso aí.
P/1 – Apesar de ele ser duro deixou saudades?
R – Ôh, grande amigo. De palavra mesmo, falou? É o fio de bigode (riso).
P/2 – Está certo então, muito obrigada.
R – Oh, eu que fiquei satisfeito com vocês, bater esse bate papo nosso, de amigo.