Projeto Memória nos Bairros
Depoimento de Giuseppina Raineri
Entrevistada por Stella e Marina
São Paulo, 30/09/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MT_HV020
Transcrito por Ronaldo Ventura Souza
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Ô irmã, para começar a entrevista a gent...Continuar leitura
Projeto Memória nos Bairros
Depoimento de Giuseppina Raineri
Entrevistada por Stella e Marina
São Paulo, 30/09/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MT_HV020
Transcrito por Ronaldo Ventura Souza
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Ô irmã, para começar a entrevista a gente gostaria que a senhora dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Giuseppina Raineri, nascida na província de Cremona, Itália. Dia quatro de novembro de 1929.
P/2 - E o nome dos seus pais.
R - Francesco Raineri e Amazilda Pedrazani.
P/2 - E de seus avós, dos outros avós, de todos os avós, os quatro.
R - Avós maternos: Anite Pedrazani, Rosa Pasquale Pedrazani; avós paternos: Luiza Vilotti, Giuseppe Raineri.
P/1 - A senhora conheceu os seus avós?
R - Não conheci nenhum deles.
P/1 - Nenhum? E a senhora sabe qual era a atividade deles?
R - Atividade do avô materno era arquiteto; da avó materna doméstica, do lar; do avô paterno agricultor; da avó materna do lar.
P/2 - Como era a sua casa da infância?
R - Minha casa era bastante grande, uma casa numa cidadezinha de campo, nós chamamos paese, porque lá tem a cidade e a sede da província, e a província coordena todos as cidadezinhas que são chamadas de paeses. Então tinha umas duzentas casas, entre elas a casa dos meus pais, uma casa muito grande, com jardim, com área para brincar, mas que servia também, desde que estava no meio dos campos para recolher naquele lajeado, o trigo, o milho, lá secava o sol, porque não tinha todos os recursos das máquinas que tem agora, a colheita do trigo e do milho, nos primeiros anos era feita ainda a mão, depois começaram as máquinas colhedeiras, mas ainda debulhadeiras era uma outra máquina que eu lembro bem na minha infância, era objeto de muita admiração para todas as crianças. Quando vinha essa máquina muito grande pra gente parecia uma coisa imensa, onde os operários jogavam os feixes de trigo e aí saía do outro lado o branco, mas que ainda não era bem seco, então precisava de alguns dias de sol naquela eira para poder secar. E nós, crianças, brincávamos naquele trigo estendido, de pé, fazendo as linhas para poder arejar… (risos) e poder receber o calor e graduação do sol pra secar, depois era recolhido em sacas...
P/1 - Eles caíam e ficavam inúteis, é isso, aí vocês...
R - Não, eles estendiam a eira, mas depois de duas, três horas precisava entrar para fazer, mexer o final, porque o que estava embaixo vinha, aflorava a superfície que não tinha recebido diretamente os raios do sol, esse vinha. E para nós era um divertimento, um jogo, agora para os adultos era uma ajuda que as crianças davam para esse trabalho de preparação do milho para ser depois colocado em sacas e levado aos moinhos.
P/2 - E quantos irmãos você vocês eram?
R - Eu tinha uma irmã, minha irmã mais velha e dois irmãos mais novos que eu.
P/2 - E como é que era o relacionamento entre os irmãos?
R - Ah, muito bom. Nós brincávamos, aquelas briguinhas de irmãozinhos, mas foi sempre muito... Tínhamos um entrosamento sempre muito bom, porque também os nosso pais eram admiráveis e promoviam esta paz e comunicação na família, e eu não poderia dizer quem era o preferido de nós, porque geralmente cada um se achava o preferido (risos).
P/2 - Que interessante. E como era viver em família, a vida no dia-a-dia?
R - No dia-a-dia... Alcançada a idade escolar, nós íamos a escola, pai trabalhava no campo, mas tinha os operários junto com ele que trabalhavam, e também algum dia da semana ele ia nos mercados das cidades próximas para a comercialização dos grãos, porque ele era produtor de grãos, não somente trigo e milho, mas também sementes de gramados e também de ervas para o gado, porque semeia-se o pasto, pelo menos na Lombardia, os pastos para o gado eram semeados, não é pasto livre, é tudo semeado lá, tudo é cultivado. Então meu pai cultivava a terra, minha mãe fazia os trabalhos do lar, nós crianças íamos a escola e na volta da escola os pais ainda cobravam as lições, vocês tinham lições (risos) e brincávamos. E também o centro de... A fluência comunitária e de encontro com as outras famílias era a igreja, a única paróquia, Paróquia de Santo Estevão, nós íamos a missa e tinha também um chamado oratório, a parte feminina, a parte masculina, onde as crianças se divertiam, aprendia catecismo, fazia teatros e todas essas coisas.
P/2 - Oratório é onde fazia isso tudo?
R - Oratório... Não era oratório de rezar, era o conceito de oratório de Dom Bosco, era um lugar principalmente de lazer para as crianças, então lá se jogava bola, fazia trabalhos de salão, em jogos de salão fazia círculos, contava piada, nas férias esse oratório festivo se abria também durante os dias de semana, e lá tinha umas moças da cidade mais velhas que nós que pertenciam a ação pastoral da igreja e ensinavam para nós bordado, costura. E passávamos as férias mesmo sem sair, às vezes não saímos, aliás todo o ano a família providenciava umas férias fora, aí umas semanas na praia ou nas montanhas, eu direi que nunca gostei da praia, eu gostava muito das montanhas, gostava muito.
Meu pai tinha sido militar na guerra de 1914, e o campo de guerra eram os Alpes, então ele conhecia muito bem aquelas montanhas e tinha um grande interesse em nos levar nessas montanhas e fazer conhecer os lugares onde ele tinha feito as batalhas, onde tinha também padecido derrotas, muitos companheiros deles foram levados presos. Ele nos mostrava os lugares onde ele tinha passado, ainda os buracos das bombas, e muitas coisas, a história nós aprendemos ao vivo do pai que tinha participado dessa Primeira Guerra Mundial. Mas além disso eu gostava muito das montanhas e todo o ano, nas férias, ali uma semana nós passávamos nesses lugares de veraneio. Muito interessante também era a subida aos cimos, cimos dessas montanhas cobertas de neve e de geleiras, e tinha guia que nos levava, porque íamos em muita gente, todos amarrados com uma corda. E mesmo adolescentes nós participávamos dessas chamadas cordatas, que era andar amarrado numa corda na escalada das montanhas.
P/2 - E a praia, que praia vocês iam?
R - Era a praia no Adriático.
P/2 - Bom, e quem mandava na casa? O pai ou a mãe?
R - Eu acho que ambos (risos).
P/1 - Como a senhora descreveria os pais da senhora?
R - Como eu descreveria?
P/1 - Sim.
R - Pessoas que orientavam os filhos em tudo, tinham muito cuidado, mas ao mesmo tempo eles nos deixavam viver bastante, muita liberdade de expressão e sempre atentos a que nós produzíamos em casa, animados pelas conquistas na escola, tinha um irmão que gostava muito de desenhar, fazer projetos, então era muito encorajado pelos pais a fazer esses trabalhos, brinquedos, eu lembro que ele fabricava pequenos aviões, carrinhos. Nunca os nossos pais nos reprimiram em alguma coisa, claro que nos orientaram sempre para a integridade, transparência, nos alertaram quando nós errávamos, até alguns tapas nós levávamos (risos) mas sempre sentíamos muito amor e muito espaço deixado para a nossa expressão, eles nos deixavam falar muito e notávamos nos nossos pais muita estima por parte deles para os filhos. Enfim, eu acho que era um ambiente muito saudável, não, tenho certeza que foi um ambiente muito saudável onde cresci, muito contribuiu para o estado atual, até com setenta anos, tranquilidade de espírito e um certo equilíbrio na visão das coisas, eles nunca eram muito dramáticos, claro, todo o mundo tem a sua emotividade, choro, riso etc., mas aquele bom senso, aquele equilíbrio que sabe dar o justo valor as coisas, que não hipertrofia e não dramatiza situações.
P/1 - E a sua dedicação à vida religiosa foi uma coisa que foi despertada desde pequena?
R - É, desde pequena realmente nesse ambiente tranquilo de uma cidadezinha rural, a gente não encontrava muitos atrativos do chamado mundo, digamos. E desde criancinha eu admirava muito quando na minha cidade chegavam às irmãs que iam pedir donativos para as crianças órfãs, na minha cidade não tinha irmãs. E quando eu via essas figuras, perguntava para a minha mãe quem eram essas mulheres e que elas pareciam simpáticas no modo de fazer, e achei interessante elas estarem pedindo dinheiro, pedindo mantimentos para crianças órfãos, “o que isso mãe?”. Então mamãe explicava que elas eram religiosas e que dedicavam toda a vida delas ao senhor em benefício do próximo, isso ficou matutando na minha cabeça. “Dedicar a vida ao senhor e ao serviço do próximo”, mas isso deve ser uma coisa maravilhosa, então eu dizia: “mãe, eu acho que eu vou ser uma irmã também” e ela me dizia: “se Jesus chamar, você irá (risos), não é para todos.” Mas nunca fiquei cultivando essa ideia, quer dizer, o que era mesmo com certeza, uma vocação. E que depois frequentando a escola superior, a universidade que eu cursei em Bolonha, uma cidade universitária muito cheia de atrativos, nunca, nunca me deixei atrair pelas coisas que eram oferecidas a juventude, não que eu fosse muito retraída, porque tinha muitos amigos, amigas, ia também em festinhas que faziam, nas festas dos, lá era interessante a festa dos, como é que chama, dos calouros...
P/1 - Então como era irmã nessas festas?
R - Elas faziam carros, carros alegóricos, que nem um carnaval, não era como aqui, não tinha, se eles pegava na porta da faculdade os calouros, eles mandava pagar um café, uma coisa bastante sadia, pagar o almoço, às vezes não tinha dinheiro, dava um jeito de emprestar (risos), mas eram coisas muito simples. Depois quando terminava toda a inscrição, depois terminando quase no fim do primeiro trimestre tinha uma grande festa chamada “as matrículas”, e aí tinha carros alegóricos que representavam várias coisas, não sei, coisas engraçadas, piadas até. E então a gente participava dessas coisas, nós tínhamos grandes chapéus, uma tradição muito antiga que era dos universitários. De acordo com a faculdade que cursava tinha um chapéu com uma ponta na frente.
P/2 - Um trevo de cores?
R - De cores. Letras era branco, Química era azul, Medicina era vermelho.
P/2 - A sua já era medicina naquela época?
R - Já era medicina, depois tinha uma porção de coisas dependuradas no chapéu, tinha um esqueletinho, uma caveira (risos) várias coisas, vários enfeites engraçados no chapéu, tinha até concursos de chapéus. Então essas eram as festas da matrícula. Mas embora participando dessas coisas, muito sadias, indo aos cinemas, algum baile, eu sempre cultivava no meu coração aquela vontade de ser religiosa, de dedicar toda a minha vida a Deus e ao próximo, e por isso que escolhi essa faculdade. Por que? Até no curso secundário eu fiz o colegial clássico, estudei Latim, Grego, imagine, cinco anos de Grego, oito anos de Latim e muita literatura, e eu me saí muito melhor nas matérias literárias, na Literatura, nas Línguas do que na Matemática, por exemplo, embora eu gostasse muito de Ciências, especialmente Ciências Biológicas. Mas eu escolhi Medicina justamente para poder ter uma profissão que fosse útil na missão, o meu sonho sempre foi ser missionária. E depois durante os estudos superiores eu estava já pensando como ia concretizar o meu sonho de ser religiosa e ser missionária, conhecendo várias congregações, e entre as congregações aquela com que mais me afinei, pelo enfoque educativo que tinha e também por saber que poderia ir às missões, foi a congregação das irmãs Marcelinas, porém não estava em Bolonha, estava em Milão. Eu conheci através de uma moça com quem eu conversava, aliás que pertencia a um grupo de jovens da ação católica, porque eu era universitária e meu ramo da ação católica teria sido dos universitários, mas lá na minha cidade, porque eu sempre voltava nos fins de semana, eu reunia jovens e conversava com elas sobre a bíblia, sobre religião, sobre a moral, sobre vários assuntos, e entre essas jovens tinha uma que queria ser religiosa e conhecia as Irmãs Marcelinas e aí me convidou para eu ser Marcelina também, para eu conhecer pelo menos a congregação em que ela queria entrar. E quando eu fui conhecer essa congregação, foi o dia 23 de maio de 1952, me identifiquei e em novembro de 52, 21 de novembro de 1952, depois de várias idas a sede central dessa congregação, entrei como postulante nessa congregação. Aí como eu estudava em Bolonha, tinha feito quatro anos em Bolonha, me transferi para a universidade de Milão e terminei os meus estudos de Medicina em Milão.
P/2 - Quantos anos a senhora tinha?
R - 26 anos. Então lá eu fazia estágio, primeiro nos hospitais de Bolonha, depois nos hospitais de Milão, especialmente na clínica médica, porque a minha tese de lá foi na clínica médica sobre a hipertensão arterial, e estagiei principalmente lá. Entretanto na Itália, o curso médico não dá um grande enfoque na prática, é bastante teórico porque tem muitos alunos e tinha aulas magistrais daqueles professores, então o estudo é mais confiado a responsabilidade de cada um. E quando saí de lá, mesmo tendo feito uma tese brilhante, não está apto ainda a exercer a medicina. Então quando vim para cá, que foi imediatamente após a formatura, 56, primeiro eu me deparei com dificuldade da língua, embora uma senhora do consulado brasileiro em Milão dar uma série de aulas para mim, vinte aulas de português brasileiro, um pouco diferente. Então eu vim para cá sabendo algumas palavras (risos) que fazia que se houvesse nada, porque é diferente ver escrita a palavra e ver depois toda a linguagem, a construção do período diferente, mas não tive muita dificuldade porque a superiora do colégio Santa Marcelina, onde cheguei...
P/2 - Em Perdizes?
R - … Em Perdizes me disse: “olha, você a partir de hoje não vai falar mais italiano, nem comigo que sou italiana, mesmo que você erre e fale português.” E aí eu obedeci, eu ainda estava jovenzinha, pegava as coisas ao pé da letra, não falei mais italiano, mesmo que falasse mal, falava português. E ela me colocou logo para dar aula, e as meninas na escola me ensinavam um pouco (risos) então eu fui mais rápido do que pianista.
P/2 - A senhora tinha quantos anos então?
R - Vinte e seis.
P/1 - Irmã, por que o Brasil?
R - Porque As Marcelinas tinha unidades de missão no Brasil, tinha um hospital, não era nem dela, trabalhar num hospital de... Eu morei em Santa Catarina e administrava uma Santa Casa de mulher em Minas, e tinha muitos campos abertos de missão no Brasil e por isso que a madre geral me enviou ao Brasil, não me enviou na África porque nós não tínhamos casas na África, mas era época em que as congregações, mesmo tendo seguido muito tempo numa só linha de missão de apostolado, se abriam a vários ramos, quem tinha escola abria-se também para a assistência aos doentes, e aqui tinha atividade de escola e muitas atividades pastorais no interior, nas paróquias com as crianças, e esses dois pólos da saúde. Mas a ideia da madre geral, que surgiu justamente nesses anos, era de construir um hospital de congregação no Brasil, de não ir a hospitais já existentes, mas ter um hospital nosso, que desse enfoque a assistência didática, tivesse um enfoque educativo, formar enfermeiras, enfim, ter também o lado das escolas, não somente escolas tradicionais, escolas em inespecíficas, mas escolas já com endereço profissionalizante, especialmente nesse campo que era novo para nós. E eu chegando aqui, começou também a preparação das irmãs para atender no hospital, então várias irmãs foram enviadas a escola de enfermagem da Cruz Vermelha para se formar em auxiliares e enfermeiras, enquanto eu revalidava o diploma em Belo Horizonte, por que não em São Paulo? Porque eu fui, mas a congregação não aceitou, naquela época, revalidar o diploma em São Paulo, tanto como nós tínhamos uma casa em Belo Horizonte foi para lá, e lá aceitaram e a revalidação consistiu em fazer 23 provas desde de anatomia patológica de todas as clínicas com uma prova escrita, oral e prática.
P/1 - Em português?
R - Em português (risos). E aqui em São Paulo, eu tinha revalidado o curso secundário, o colegial, foi no colégio Dom Pedro II, chamava-se Dom Pedro, na praça, agora é um outro título, não uma outra escola lá, Colégio Roosevelt que se chamava, no Parque Dom Pedro. E lá prestei exame de Português também escrito e oral, com uma Redação, várias questões de Gramática, de Sintaxe, e depois de Geografia também e de História, Geografia do Brasil e História do Brasil, então acho que eu mudei esse curso secundário.
P/1 - Teve que revalidar o secundário e o universitário?
R - É, o universitário foi em Belo Horizonte, enquanto eu estava preparando para a revalidação do curso secundário, comecei o estagiário aqui na Santa Casa, na segunda clínica médica, aqui em São Paulo, em cinquenta, 56 que foi para Perdizes, aquele ano, em 57, porque eu revalidei o curso secundário em janeiro de 57, foi isso. Então no ano de 56 eu ia frequentar a clínica médica da Santa Casa, clínica médica de pediatria, quando eu passava alguns períodos, especialmente nas férias do ano letivo da lá de Belo Horizonte, porque quando eu fui para Belo Horizonte, que foi em fevereiro de 57, comecei a frequentar as clínicas universitárias, especialmente dermatologia, onde tinha muitas doenças de pele que eu não conhecia, são tropicais, a clínica de moléstias infecciosas e depois a clínica médica do professor Romeu e as outras. E aí as aulas, os professores permitiam que ouvisse as aulas proferidas por eles ao curso médico. Então nas férias que não tinha aula e não tinha estágio, eu voltava e aí eu ia na casa maternal, e o professor foi muito gentil, ele me inseriu nos estagiários da, da casa maternal, então era muito interessante, foi muito interessante também esse estágio e comecei a gostar muito da obstetrícia e ginecologia com esse estágio na casa maternal. Então terminando a revalidação, foi em junho de 58, aí eu vim de 59, eu vim para Itaquera, porque em vista desta perspectiva que a madre geral tem de se abrir para um hospital que fosse próprio da congregação, foi procurado um terreno numa região carente, onde fazer uma casa de repouso para as irmãs, porque aqui no Brasil as irmãs chegaram em 1912 e já tinha bastante irmãs idosas que tinha dificuldade de permanecer nos colégios, irmãs que ficavam doentes também, doenças crônicas, então surgiu a necessidade de uma casa de repouso. Então a idéia foi esta: por que junto a casa de repouso não construir também um hospital que vai servir para atender a população carente e ao mesmo tempo servir respaldo para as irmãs idosas e doentes? Então foi procurada a região, foi procurado o terreno e foi comprado uma chácara aqui em Itaquera, chácara Santo Antônio se chamava.
P/1 - E a quem pertencia essa chácara, a senhora se lembra o nome da pessoa?
R - Eu não sei, mas eu posso até ir atrás. Sei que era Companhia Agropastoril, aqui era tudo rural. Então a Companhia Agropastoril foi a imobiliária de vendas dos terrenos que aqui estavam, agora propriamente de quem era essa chácara eu não sei, sei que pertencia a esta companhia, inclusive tem a escritura ainda de compra, ainda pode ser vista.
P/2 - Mas a senhora compra da empresa nesse momento?
R - Olha, só que não era eu que fazia as compras, porque a superiora era Sofia, interessante que essa Sofia era irmã do engenheiro Marquetti que fugiu, foi exilado do fascismo porque ele não gostava do fascismo, veio para o Brasil, e aqui ele se naturalizou e fez vários empreendimentos, o túnel Nove de julho tem o nome dele lá, a hidrelétrica de Paulo Afonso ele também participou, Marquetti, era um engenheiro, irmão da superiora do colégio. E foi ele convidado a fazer um estudo para a construção desse hospital, ele fez viagens pela América Latina e Europa também, para conhecer a arquitetura e engenharia hospitalar e depois fez o projeto.
P/1 - Ah, ele que é o autor do...
R - Do projeto do prédio antigo, o prédio antigo não é este, aquele que está atrás desse, desse, desse bloco aqui.
P/1 - Irmã, como era o bairro nessa época?
R - Olha, (risos) plantação, cultivo de frutos, pêssego, laranja...
P/2 - Foi construído numa área rural?
R - Área rural. Então aqui inclusive, quando foi 35 anos do hospital que fizemos umas comemorações e aqui tem todo o resumo do passado, próximo ao presente, se quiser levar. Então aqui fizemos uns painéis, essa era a casa desta chácara onde nós moramos em 1956.
P/1 - Aí moravam as irmãs?
R - Moravam as irmãs. Em 58 foi acrescentado uma construção porque vieram mais irmãs para cá, mas essa casa, olha, tinha galinheiros, granja.
P/1 - E tinha asfalto já?
R - Não, não tinha asfalto, o galinheiro, olha as vacas, tinha vaquinhas, tinha irmãs aqui que tiravam leite.
P/1 - Como vocês abasteciam o hospital?
R - Com os produtos dessa chácara no começo, e tinha uma horta muito bonita, tinha mais de cem galinhas, tinha essas vaquinhas que davam leite, bananeiras e depois comprava as coisas no mercado, aquele mercado ali do municipal, como que ele chama o bairro aí?
P/1 - No Brás, no, não.
P/2 - No centro.
R - É, no centro, que tem ainda na Senador Queirós, aquele mercado antigo municipal.
P/1 - Vocês tinham carro para ir até lá ou...?
R - Sim
tinha, tinha caminhonete. As alunas do colégio vinham brincar aqui.
P/1 - Qual colégio?
R - Colégio Santa Marcelina das Perdizes.
P/1 - Que linda essa foto!
R - É muito! Tinha um verdadeiro bosque, uma lagoa dos patos.
P/1 - Era aqui uma lagoa construída?
R - É, uma lagoa construída, quando os patinhos tinha um quiosque com, tinha até faisão. Castanheiras, daquela castanha da Europa.
P/1 - Vocês que plantaram tudo isso?
R - Não, já tinha, já tinha, tinha esse viveiro aqui, tinha um chiqueiro de porcos, parquinho infantil, aqui as alunas que vinham passear, olha como era a rua, de terra.
P/2 - Essa rua?
R - Essa rua, que era a rua do hospital, agora se chama Santa Marcelina.
P/1 - Já tinha luz elétrica quando vocês...?
R - Sim, olha os postes aqui, eles são aqueles postes de madeira, tinha luz elétrica sim.
P/1 - E a água, irmã?
R - A água era do poço, tinha um poço, um poço que subia com bomba, depois logo ligaram a água para a construção do hospital.
P/2 - Mas era poço artesiano ou não?
R - Não, artesiano nós construímos depois para abastecer o hospital, mas depois ligaram a água da rua também, um poço de 150 metros, que agora até secou.
P/2 - Eu não sei como funciona, a senhora explica como que funcionava para construir esse hospital?
R - A verba foi exclusivamente com a colaboração dos colégios, que na ocasião tinha colégio muito frequentado nas Perdizes, tinha um colégio no Rio, um colégio em Muriaé.
P/2 - Muriaé?
R - Muriaé, é de Minas Gerais, esses colégios eram todos colégios pagos, e muitos donativos, mas particulares, porém do governo nós não recebemos nada. E foi feita muito economia na construção dessa, porque o engenheiro praticamente não cobrou nada, era o irmão da superiora Sofia, e fizeram tudo muito direitinho, não era uma coisa de amador, com todas as normas legais, mas o colégio foi construído, o hospital foi construído a custa do colégio, foi muito barato, eu lembro que custou, agora não dá mais para, cem mil, cem mil cruzeiros, cem mil dinheiro, sei lá o que era.
P/2 - A congregação não contribuiu, quer dizer, a matriz?
R - Da Itália? Muito pouco, muito pouco, porque lá também tinha, tem bastante dificuldade, ele não tem muito dinheiro de sobra, agora aqui no Brasil tinha bastante economias e com estas economias construíram este hospital.
P/2 - Agora uma perguntinha de esclarecimento, uma congregação católica tem que ter por fim uma assistência no Terceiro Mundo não conta com uma verba no Vaticano?
R - Não.
P/2 - O Vaticano...
R - Pelo menos nós nunca recolhemos, eu sei que no Vaticano tem até um banco para as obras da religião, mas nós nunca recolhemos do Vaticano.
P/2 - É um banco que financia e depois tem que pagar juros em cima?
R - Não, mas esse banco acho que tem financiamentos a fundo perdido, eu não sei bem como é que funciona. E tem lugares onde dão fundo, mas nós nunca nos interessamos porque pensávamos em fazer com as forças próprias. Agora para não dizer que nós não recebemos nada do Vaticano - mas isso é muito recente - nós recebemos uma verba da Conferência Episcopal Italiana, que tem
a sede lá no Vaticano, em Roma, na Conferência Episcopal Italiana. Então veio uma verba para construir a escola de enfermagem, mas isso recentemente, em 1995.
P/1 - Irmã, eu ouvi dizer que nas origens da construção do hospital, existia o intuito de se tratar as doenças respiratórias?
R - Não, não era isso não, a ideia era... Aqui tinha muitos bosques de eucalipto e um ar puro, e esse perfume de eucalipto mesmo, então a superiora Sofia dizia sempre que lá é um lugar bom para o hospital porque os doente vão respirar um ar puro, não é que era para doenças respiratórias (risos).
P/1 - Como é a história?
R - Não, não foi, não foi.
P/1 - Não era então especializada em doenças respiratórias?
R - Não. O hospital desde começo mesmo com a intenção de ser um hospital geral e de funcionar desta forma, naquele tempo não havia os institutos de previdência social, meçaram umas caixas beneficentes e tal. E os hospitais filantrópicos funcionavam recebendo receita de particulares, dois terços do hospital, pagantes, um terço não pagantes, eram assim chamados indigentes. Então assim funcionava a Santa Casa, assim funcionava o Hospital Humberto Primo, Hospital Matarazzo, teriam dois terços de pagantes e um terço de não pagantes. Mas dois terços de pagantes, quem que viria aqui nessa lonjura para se tratar nesse hospital? Mas acontece que logo modificou muito o cenário social e começaram os institutos de apoio: IAP, IAPTEC, IAPC; então nós víamos que com particular não se arranjava nada e começaram a fazer os convênios com os institutos de previdência social e o hospital foi ocupado em grande parte por esse previdenciários. E a ala dos indigentes desapareceu logo porque eram todos previdenciários praticamente e o que não tinha IAPI, o IAPTEC, o hospital assistia gratuitamente, nós tínhamos quatro enfermarias de adultos e duas enfermarias de crianças completamente gratuitas. Mas depois quando modificou e veio o SUS, não existe mais distinção de previdenciário e não previdenciário, primeiro se transformou em INPS, e depois o INPS em SUS, e o SUS prevê um sistema universalizado, igualitário e que atende todo mundo. Então agora não se faz mais diferença de previdenciário, não previdenciário e, portanto, essa parte de completamente gratuitos desapareceu, entretanto o hospital faz muita gratuidade porque nem tudo é coberto pelo SUS. Aliás o SUS tem umas tabelas que nos deixa sempre deficitária, agora sim que o governo está ajudando, porque ele cobre os nossos déficit. Então todo o mês ele paga uma verba, não somente o Estado, mas também o município para nos ajudar a fazer o equilíbrio de caixa, porque as despesas são muito superiores as receitas. E por isso que agora nós implementamos uma parte de convênios para poder fazer frente a esse desequilíbrio financeiro, porque a vocação do hospital é atender as pessoas que não tem convênio, que não podem pagar, mas com os recursos que o SUS paga não são suficientes, não é suficiente.
P/2 - Aqui não tem nenhuma parte de pagando, porque se tem...
R - Era no começo e agora recomeçou para poder alcançar equilíbrio, senão nós estaríamos sempre de pires na mão, e como estamos com o governo para nos ajudar a pagar os financiamentos, não financiamento para investimento, financiamento para o dia-a-dia, para o consumo, porque não é suficiente, se pagar dois reais uma consulta e em média vinte reais uma diária, nem sempre alcança vinte reais, não dá. E aqui é um hospital terciário, um hospital que atende as patologias mais complexas, praticamente é a única referência para complexidade de uma região de três milhões de habitantes ou mais, a parte de pronto socorro é aberta, tudo vem aqui, aqui é o ponto de chegada, ninguém é transferido daqui, todos transferem para cá, mas aqui é o ponto final, entra e aqui fica.
P/1 - É o único o hospital do bairro?
R - Não, no bairro tem mais um, tem o Hospital do Planalto que era do PAS da prefeitura, e tem alguns hospitaiszinhos particulares, mas que não atendem nada, nada de SUS.
P/1 - E a grande parte da população recorre a esse hospital?
R - Recorre a esse hospital, vai no Planalto também, mas alguma coisa mais complexa vem para cá, e vem diretamente aqui, posto de saúde também tem para atender as coisas mais simples, o dia-a-dia, mas o povo prefere vir aqui, porque aqui encontra raio-x, encontra o laboratório, se precisar internação. Ir no posto de saúde é o início de uma via sacra, é por isso que tem essa cultura de vir diretamente ao hospital. Mas com essa forma o hospital fica sobrecarregado demais, porque ele deveria atender agora a demanda terciária, isto é, a maior complexidade na internação, mas tem um enorme atendimento ambulatorial por causa desta demanda primária que não consegue ser absorvida pelos postos de saúde existentes. Então o hospital se empenhou também na assistência dessa fatia de população que não encontra respaldo e assistência nos postos de saúde. Junto com o governo nós implementamos a saúde da família, os postos de saúde da família, duas entidades que assumiram essa tarefa que deveria ser do município, mas o PAS não quis assumir os consultórios médicos de família que foram começados a ser implantados, que se começou a implantar em 94, até antes, com os agentes comunitários de saúde. Então aqui em São Paulo quem assumiu foram essas duas entidades, a fundação Zerbini, do Incor, e a Casa de Saúde Santa Marcelina, então nós temos umas quarenta equipes já, uma equipe formada por um médico, uma enfermeira, quatro auxiliares de enfermagem, duas auxiliares de enfermagem e quatro agentes comunitárias, e cada equipe atende uma população de oitocentos mil famílias. Então elas são cadastradas e essa equipe atende as necessidades de saúde dessa população. Nós temos unidades aqui perto, temos unidades na cidade, na... Como é que chama, no começo da cidade Tiradentes aí, como é que chama, Estrada do Pêssego e no Costa Melo, na Vila Formosa, no Jardim Copa, enfim tem várias unidades em redor desse hospital e outras ao redor do hospital de Itaim Paulista. Esse outro hospital que foi assumido pela Casa de Saúde Santa Marcelina, isso foi a 1997, sete, bom tem dois anos de funcionamento praticamente, e o outro agora recentemente, março de dois mil, em Itaquá. Então são hospitais daqueles que foram financiados no começo pelo Banco Mundial, era uma ideia de formar um hospital modular, com vários postos de saúde em volta, mas a construção desses hospitais se prolongou por vinte anos e agora nesse governo foram concluídos. E no lugar de administrar pelo governo, foi achada essa fórmula de parceria com as entidades filantrópicas e a nossa como já estava aqui assumiu Itaim, a leste, a Santa Casa assumiu um hospital em Guarulhos, a Faculdade de Santo Amaro assumiu de Pirajussara, e a Escola Paulista também assumiu... E assim esses hospitais que foram recentemente inaugurados só funcionam e funcionam muito bem por causa da parceria com entidades filantrópicas. Mas isso eu estou me divagando muito na história, não tem nada a ver com isso, tem alguma coisa a ver (risos) mais para vocês saberem.
P/2 - Voltando um pouquinho, esse hospital aqui atende a quantos, qual é a capacidade de atendimento, ou na realidade a quantos atende?
R - Atende cerca de dois mil consultas diárias, 3500 internações/mês, oitocentos partos mensais, 1600 cirurgias, esse é o movimento do hospital.
P/2 - E essas cirurgias assim, falando medicamente, abrangem todas, inclusive as mais sofisticadas?
R - Inclusive transplante de rim, transplante de medula, estão se preparando equipe de cirurgia cardíaca para fazer transplante de coração também, mas todas as cirurgias cardíacas são feitas aqui, temos neurocirurgia, porque nós recebemos o trauma craniano, mas não é só feita a cirurgia do trauma, mas também tumores cerebrais. Tem um grande movimento, quando vão levar trabalhos a congressos ficam espantados como um hospital particular tem um movimento desse, em algumas especialidades tem mais número de casos, uma casuística mais rica que o próprio Hospital da Clínicas, porque aqui não tem, uma população não tem nenhum outro hospital. E desde que a cidade foi dividida em regiões para o atendimento das urgências, o Hospital das Clínicas não atende mais quem for daqui, isto é, está regionalizado.
P/1 - Quando aconteceu isso, irmã?
R - Do plantão controlador? Ah, no início da década de noventa que está se preparando, mas que está funcionando plenamente desde 97.
P/2 - Ou seja, como é que funciona? A senhora estava dizendo que as Clínicas não atende quem vai daqui.
R - É, vai de novo, se for alguém espontaneamente para lá, é feita uma pesquisa sobre o endereço que ele dá, então aqui nós atendemos pessoas da região que fazem, que são atendidas pelos hospitais da região oeste, vai para Itaquera, eles encaminham na região na qual deveria ser atendidos, quando se trata de emergência, trauma, por exemplo, resgate, uma DR, a polícia já sabe que se é aqui, tem que trazer aqui, se é na zona sul é no Hospital São Paulo, se é na Zona Oeste é no ABC ou na Santa Casa. Então agora está regionalizado o atendimento de emergência, também o atendimento de maternidade. Entretanto, os plantões regionais que se constituíram, plantão regulador regional que se constituirá, se não conseguem atendimento na região, aí se dirige ao plantão regulador central, excepcionalmente podem conseguir uma vaga nas outras regiões, mas de preferência, é de acordo com a regra, é na própria região que cada um vai ser atendido.
P/2 - E os funcionários?
P/1 - Não, ia só perguntar, antes de entrar nos funcionários, o que mudou na dinâmica do hospital aqui Santa Marcelina nessa divisão por regiões?
R - É, não mudou nada (risos). Os que aqui vinham, continuam vindo.
P/1 - As pessoas de Itaquera?
R - Encaminhados pelo plantão controlador, eles tem encaminhamento, mas é espontâneo, eles vêm diretamente aqui, em carro próprio, em ambulância que eles alugam, às vezes, uma ambulância particular, às vezes a pessoa não tem dinheiro para se tratar num hospital, mas tem como pagar uma ambulância para fazer levar até lá. Então para nós praticamente não mudou nada, para nós está cada vez mais solicitado nosso serviço de emergência, já fizemos três reformas para adequá-lo a situação, e nunca, nunca é satisfatório, porque os primeiros dias são uma beleza, parece que dimensionamos certo, depois de um mês, dois meses já está tumultuado de novo.
P/2 - Dizem que essa zona aqui é muito violenta, tem muito, a senhora percebe isso no movimento do hospital?
R - Tem muito baleado, demais. A região de Itaim Paulista mais ainda.
P/1 - Irmã, pensando no bairro, como a senhora descreveria a população de Itaquera, a vida social, condição social da população de Itaquera desde que a senhora chegou até hoje?
R - Quando nós chegamos tinha sessenta mil habitantes e eram quase todos habitantes que se ocupavam de trabalho de chácara, e a impressão que dava não era de grande pobreza, tinha pobres, mas não tantos como se vê agora, porque aumentou demais a população. Então depois da vinda das migrações do Nordeste tem muita gente que mora mal, come mal, está mal servida de tudo, subemprego, desemprego. Se de um lado melhoraram muitas coisas, por exemplo, transporte, metrô foi um grande recurso, comércio tem lojas belíssimas, bom, belíssimas, enfim, tem supermercados aqui no Parque do Carmo na região da, como é que chama aí, agora me deu um branco, ali onde tinha a colônia japonesa, tem um shopping...
P/1 - Carrefour?
R - Carrefour, isso, Carrefour.
P/1 - Jacu Pêssego, né?
R - Sim, Jacu Pêssego. Tem shopping muito bom, Shopping Aricanduva, é muito bonito, e também Carrefour supermercados, nessa parte melhorou porque tinha aquelas vendinhas, aquelas lojinhas, barraquinhas, se melhorou o comércio, melhoraram os transportes e tem classe média razoável, uma fatia de classe média razoável, mas tem muito, muita classe, muito pobre, muito mesmo, favelados não diminuíram, apesar de ter feito centros de, Cohab e CDHU, programa do CDHU, programa Cingapura, as favelas continuam do outro lado, e houve muitas invasões e construíram de uma maneira muito desordenada, umas habitações precaríssimas. Então quem vai ali da São Teodoro para Jacu Pêssego até a Ayrton Senna, embora falta um pedaço para completar, tem uma visão muito triste, especialmente olhando a esquerda uma casa atrás da outra sem um verde, sem uma planta, sem nada, um monte de casas sem condições de morar, tudo uma gambiarra única, os fios elétricos. Eu acho que piorou, piorou porque mais gente veio morar aqui de maneira inadequada.
P/2 - Eu ia perguntar se os funcionários do hospital tantos os mais humildes quantos os universitários são de onde? Eles são da região de Itaquera?
R - A maioria é da região. Agora os universitários, os funcionários que não são da região, são especialmente os de nível universitário. Aqui não tem muito médico que mora nesta região, vem mais da zona sul, da zona oeste que são médicos do Hospital das Clínicas que se formaram na Paulista e trabalham na Paulista também, grande número, no HC, e são os que mais moram longe, mas os funcionários administrativos, enfermagem, é daqui da região, porque aqui também surgiram vários escolas que formam pessoal para nível administrativo, e escola de enfermagem também, nós temos uma escola de enfermagem que funciona desde 68, e já formamos, agora eu não me lembro o número, mas muitos funcionários, muitos auxiliares e técnicos de enfermagem. E praticamente aqui é uma, os que saem das nossas escolas encontram logo emprego nos hospitais da região, então tem muitíssimos auxiliar de enfermagem formados por nós, são todos daqui, da leste. E agora tem também faculdade de enfermagem que está no segundo ano de funcionamento.
P/2 - Aqui na região?
R - É, da Santa Marcelina. Existe uma faculdade de enfermagem que começou na Universidade Castelo Branco, porque aqui tem duas universidades Castelo Branco e Cruzeiro do Sul em São Miguel.
P/1 - E a senhora, ultimamente, quando foi instalado o metrô, a senhora acompanhou a construção do metrô, chegou a ver a época em que ele foi levantado, a área?
R - Era uma área belíssima ali, morros cheios de árvores, de eucaliptos e que foi cortado, foi cortado o morro para fazer o pátio de manobra do metrô, era muita, muita vegetação que tinha ali, não tinha casas.
P/1 - Não teve desapropriação então?
R - Alguma, alguma, na Vila Cordeiro, mas do lado da Cohab já era uma área que era do INPS, construíram as Cohab e logo veio o metrô. Eu não sei se o governo comprou, se era do governo, se era do INPS, não sei de quem era aquela região, mas certamente era de uma autarquia ou do governo. Só alguns que foram desapropriados, mas na área onde fizeram aquela ponte de acesso ao pátio de manobra do metrô. Mas eu sei que ali tinha uma colina, porque abria a janela desta casa de manhã enxergava, enxergava três cruzes lá, tinha árvore, tinha três postes que pareciam três cruzes, então me lembrava do calvário (risos). Mas depois, inclusive ali tinha, morava uma família pobre que irmã Lúcia ia sempre visitar. Tinha um casebre, mas depois esses morros...
P/2 - Esses morros que foram cortados?
R - Foi cortado.
P/2 - Agora o que a senhora acha que mudou com a chegada do metrô aqui?
R - Ah, mudou as condições de transporte, o transporte foi, o afluxo, a ida para os trabalhos, os empregos na cidade facilitou muito as pessoas, esse metrô realmente é uma benção para a região. E então respeita muito metrô, eu conheço metrôs da Itália, agora eu fui recentemente num congresso nos Estados Unidos, mas nem se compara com o nosso metrô, é muito mais bonito, é novo, né? (risos) Se percebe porém uma coisa que é interessante que quando ao povo se oferece alguma coisa que mostra respeito, o povo respeita, não sei se é porque tem fiscalização, mas não me parece que seja isso, porque realmente se impõe, então ele fica, quase induz o povo a cuidar de uma coisa bonita que é oferecida.
P/1 - Se vê pela limpeza, né?
R - É.
P/2 - E o comportamento é outro?
R - É outro.
P/1 - Irmã, a senhora foi na inauguração do metrô, no dia da inauguração?
R - Ah, eu não fui, não fui.
P/1 - E a senhora já andou de metrô?
R - Usei e muito, ando até gratuitamente (risos). Mas não ando muito de metrô e de qualquer outra condução porque fico muito presa ao hospital, mas eu prefiro andar de metrô do que de carro.
P/1 - E só para completar, qual foi a sensação... Se a senhora se lembra da primeira vez que andou de metrô?
R - Então, é muito agradável, muito agradável. E eu não sei, um avanço (risos).
P/2 - Agora, depois a gente vai perguntar sobre o dia-a-dia hoje, mas eu queria voltar um pouquinho no tempo, como é que foi essa decisão da senhora ter optado por entrar na Santa Marcelina, ser missionária, tipo freira mesmo, né?
R - Então, mas isso é um desejo que... Eu não sei como alguém tem um desejo inato de formar uma família, foi quase como que um desejo inato de me consagrar a Deus e de estar a serviço do próximo. Não sei, eu não tive muita preocupação em escolher um estado de vida, eu fui levada naturalmente desde a infância a pensar nisso, desde que eu vi aquelas mulheres que iam pedir esmola para as crianças, achei aquilo maravilhoso, porque a minha mãe falava sempre que nós precisaríamos pensar em quem não tem nada, então ela sempre me dizia: “quando você vai na escola, vê se algum coleguinha falta alguma coisa”, então contava a história de Jesus que olhava pelos pobres. Então nasceu em mim aquele sentimento de compaixão, de ternura para quem não tem, para o pobre, e quando eu vi aquelas irmãs que só faziam isso na vida, eu senti que era um desejo do profundo do coração, que nenhum outro atrativo conseguia tirar.
P/2 - Agora, por que a Santa Marcelina e não outra?
R - Então, porque quando eu fui conhecer as marcelinas, vi como eram as comunidades, muito alegre, muito dadas, e também aquela tendência a não somente fazer caridade, mas promover as pessoas, fazer com que as pessoas, elas mesmas fossem gente, então uma obra assistencial unida, uma obra educativa, achei que era o melhor meio para realizar uma missão junto ao povo.
P/1 - Irmã, esses princípios são passados de alguma maneira para os funcionários do hospital?
R - São.
P/1 - Como vocês fazem?
R - Nós temos inclusive documentos para colaboradores e cooperadores. Colaboradores são os nossos funcionários e cooperadores aqueles que mais de perto querem acompanhar a missão marcelina, até ser consagrados para esta missão. E os colaboradores feita, que são os funcionários, o introdutório, um treinamento e no treinamento é apresentado o trabalho do hospital, a quem o hospital pertence, o carisma da congregação, desde a fundação, o respeito pela pessoa humana é a maior obra de Deus, a obra-prima de Deus é a pessoa humana que merece todo o respeito, os direitos humanos (risos) e também, como disse o carisma, e a nossa maneira de encarar o nosso trabalho assim que eles também comunguem esse mesmo espírito, e portanto tenham máximo respeito pelas pessoas, e pelos associados aqui, e tem sempre uma educação continuada, são sempre associados às nossas comemorações, festas e as nossas devoções, os nossos santos.
P/1 - Tem alguma festa específica, alguma comemoração específica que a senhora gostaria de citar e descrever e que também envolve a comunidade, como que isso faz?
R - É a festa de Santa Marcelina. Santa Marcelina não é a fundadora da congregação, é a inspiradora da congregação, porque a congregação foi fundada em 1838 por um padre que era o reitor do seminário, numa época muito difícil da história italiana, em que a Itália começava a se tornar independente da Áustria, e ele amava muito a pátria, a igreja, e é uma época histórica muito conturbada em que o imperador da Áustria nomeava os bispos (risos) e então ele fundou a congregação no local onde Santa Marcelina viveu e morreu, era irmã de Santo Ambrósio, tudo que é milanês se chama ambrosiano hoje, porque Ambrósio imprimiu uma grande marca na região, na cidade de Milão. E ela era uma grande educadora, porque educou os seus irmãos para igreja Ambrósio e para a pátria Sátiro, que foi o prefeito. É por isso que a congregação tomou o nome de Marcelina, porque seria uma educação de educadora, ela passou os últimos anos de sua vida educando o povo, assistindo os doentes e associando outras moças junto com ela para fazer este apostolado, e sobretudo assistindo o irmão nos afazeres do governo da igreja de Milão. E por isso que chamam Marcelina. E nós celebramos a festa de Santa Marcelina dia dezessete de julho, a comunidade eclesiástica, aqui em volta, desde começo da fundação afluir também para as cerimônias religiosas, por ter uma capela ao lado que é uma capela para acolher o povo aqui nas missas, na catequese, tem uma pastoral da saúde, visita as famílias, eles também se chamam comunidade Santa Marcelina e fazem questão, então celebram uma festa no dia de Santa Marcelina, tem quermesse, bingos, folclore, celebrando a nossa santa padroeira.
P/1 - Irmã, eu notei que aqui por perto tem várias casas comerciais que levam o nome da... O bairro foi ficando com uma cara...
R - É, de Marcelina.
P/1 - … De Marcelina. Como é que a senhora se sente, a senhora participou ativamente da fundação dessa obra?
R - É, é uma parte do objetivo alcançado por Marcelina, a educadora, Marcelina formadora, Marcelina está formando o bairro também e por isso que em alguns pontos, em alguns locais se chama também Marcelina. Se chama Santa Marcelina porque o jardim chama-se Santa Marcelina, porque é parte do bairro Santa Marcelina. E o comércio também tem interesse porque com a facilidade localiza.
P/2 - Como é a vida religiosa das marcelinas, é muito, é mais liberal, menos liberal, sabe se é esse tipo de comportamento?
R - A congregação das marcelinas é uma congregação que associa duas grandes forças, a força da oração e a força do trabalho. E o fundador nos deu como símbolos da nossa vida aquela passagem do evangelho que descreve Marta e Maria, que era uma família amiga de Jesus, onde ele ia para se refazer dos seus dias trabalhosos e lá tinha Marta que fazia seus afazeres domésticos, se preocupava com fazer comida para Jesus, e a Maria, quando ele chegava ficava lá a seus pés escutando (risos) e Marta ficava incomodada com isso, quer dizer, “manda a tua irmã me ajudar, a minha irmã me ajudar” (risos) e Jesus responde para Marta: “Marta você se preocupa com muitas coisas, só uma coisa é necessária, Maria escolheu a parte melhor e não lhe será tirada” (risos). Então nós devemos ser na vida... Oração, escutar o mestre, mas também trabalhar. Então nós temos muito intenso o trabalho e muita intensa a oração também, porque se o trabalho acontece e tem os seus frutos é porque é alimentado pela oração, que a nossa força vem de Deus e da comunhão com Deus, então nós temos uma intensa vida de oração, missa diária, reza diária dos salmos, chamada ofício, nós, laudas de madrugada, se puder tem uma oração meio-dia também, tem uma oração na parte da tarde que se chama vésperas, e a noite conclui com uma oração chamada completa.
P/2 - Mas é coletiva?
R - Coletiva, coletiva, individual é a oração com a Bíblia, cada uma de nós, de dez minutos a meia hora, uma hora, se puder, ficar sozinha com Deus, na contemplação, na meditação, essa é confiada a responsabilidade de cada um. Entretanto nosso fundador aconselhava que a oração se faz em qualquer tempo e lugar mediante um pensamento, quando você vai para o trabalho, durante o caminho pensa o que vai fazer, o que vai fazer com Deus, que vai levando Deus para aquilo que representa Deus, que é o próximo. Então cada uma alimenta uma espiritualidade de forma que também os trabalhos sejam acompanhados por um espírito de oração e oferecidos a Deus. Então essa força que nos sustenta. Mas nós temos muita liberdade de ir e vir, ter iniciativa no nosso trabalho, aliás isso é muito incentivado, ninguém fica fiscalizando ninguém.
P/2 - Quantas irmãs tem nesse hospital, nesse trabalho?
R - Nesse trabalho tem 37 irmãs divididas entre hospital, assistência às irmãs idosas, que temos bastante, tem uma cinquenta idosas lá. Algumas completamente sem… Que perderam… Com Alzheimer, tem várias pessoas de idade que tem problema psíquico, arteriosclerose etc., e parte trabalha com centro juvenil, nós temos 350, há mais, quatrocentas crianças de sete a quatorze anos no programa de centro juvenil, era OSEM chamado antes, Orientação Sócio Educativo do Menor, 350 crianças na creche de zero a seis anos. E depois trabalhos pastorais, aos domingos e aos sábados, a catequese, e a orientação de vários grupos nas paróquias, especialmente na nossa paróquia tem Nossa Senhora das Graças. Então, às vezes, tem irmã que se ocupa da orientação dos jovens, grupo de jovem.
P/2 - Muito trabalho.
R - Muito trabalho.
P/1 - Irmã, me parece que esse bairro é bastante assistido por centros religiosos e que fazem também um trabalho social, então tem o hospital, tem a obra social Dom Bosco, tem a cidade dos velhinhos. A senhora acha que existe uma particularidade nesse bairro que faz com que haja essa reunião de pessoas que tem esse trabalho social junto a...?
R - Então, a fama de pobre, de criança desamparada, principalmente a obra Dom Bosco veio por causa disso, porque eram famosos os meninos de Itaquera que iam para a praça da Sé, e a fluência de imigrantes que tinham aqui as suas habitações precárias, favelas, atraiu o interesse das pessoas que querem se dedicar a obras sociais. E também havia na ocasião em que houve essa explosão populacional, aqui era o bairro que ainda era rural e tinha muitas áreas em que se podia construir, a fazenda do Morganti em grande parte foi ocupada pela cidade dos velhinhos, que foi a sociedade. Não sei se receberam a doação do terreno, se compraram para fazer essa casa dos velhinhos na fazenda Morganti. E lá o bairro que surgiu se chama Jardim Morganti.
P/1 - Depois veio a Cohab também em volta, né?
R - Aí depois veio a Cohab, não sei se a Cohab surgiu por expropriação, por compra de terrenos por parte do BNH ou do INPS, mas tinha muitas propriedades que foram compradas ou que eram já de nível governamental.
P/1 - E qual aspecto que a senhora mais aprecia no bairro e qual aspecto ou aspectos, enfim, que a senhora menos aprecia ou acha que tem que ser mudado?
R - Não sei, é tão variado o bairro, tem muitas facetas, né?
P/1 - E pessoalmente assim, no seu íntimo?
R - Olha, acho que é um bairro de pessoas muito esforçadas, que se esforçam muito para melhorar a sua situação, não encontram muita acomodação, certo que num universo, numa população muito grande tem todo o tipo de gente, e aqui tem muitos marginais também, mas de um modo geral, a população é uma população esforçada, que se esforça para progredir, para estudar, para ter melhores condições de trabalho, para ter também serviços humanizados, e tem organizações comunitárias como sociedade amigos, e várias outras entidades que surgiram de natureza comunitária para a melhoria das condições do bairro, oficinas de artesanatos, também o Parque do Carmo contribui bastante com isto, esta área de lazer constitui um recurso muito bom de convivência comunitária e também é um campo de aplicação de busca de recursos para a sobrevivência, porque se você vai lá passear vê que tem muitas pessoas que vendem doces, coxinhas. Então todas essas áreas de afluxo comunitário são logo exploradas pelas pessoas para poder melhorar as próprias condições financeiras e...
P/1 - Tá ótimo.
R - Agora, acredito porém que nós estamos numa fase de um pouco de depressão, porque alguns anos atrás esses, as sociedades, as associações comunitárias pareciam mais ativas, por exemplo, tinha grupos de teatro que, mas talvez sejam dificuldades financeiras, eles foram ajudados e não souberam achar patrocinadores, faziam todo o ano a representação da Paixão, ao vivo, no Parque do Carmo, agora morreu isto, era uma tradição de um grupo da líder que fazia isso, agora não estão mais fazendo, porque também as pessoas que incentivavam eram pessoas anciãs que em parte morreram, e não sei se a faixa mais jovem está a fim dessas representações ou não tem mais ninguém que incentiva o teatro.
P/1 - Tinha muito público?
R - Tinha. Porque era muito interessante, era um cenário, um teatro natural, como se fosse uma, um estádio natural.
P/2 - Onde que era?
R - No Parque do Carmo. O povo sentava na grama e lá embaixo armavam o palco, era uma coisa muito linda, e faziam a representação inteira da vida de Jesus, desde o nascimento até a Paixão, uma coisa muito, como não fazem em Caruaru, uma coisa assim, isso não, não, grandiosa assim, mas era muito bem feita, com os costumes. E precisava de dinheiro para isso, mas eles sabiam arranjar o dinheiro, porque gostavam disso, agora parece que não, a juventude não está mais a fim de fazer essas coisas, preferem assim show (risos), canções.
P/2 - E foi até que ano o evento?
R - Ah, já faz uns dez anos.
P/2 - Que acabou?
R - Sim.
P/1 - Era grande? era até noticiado pela mídia, dez anos.
R - Sim, sim dez anos talvez seja muito, mas cinco anos, certamente já faz cinco anos que não tem, ou se tem, tem alguma coisa pequena e não é assim grandioso como era. E tem um pouco de regresso nisso eu acho, mas tem outras coisas que se preparam de que eu não sei (risos), porque sempre assim flutuar.
P/2 - Agora a gente já está se encaminhando para o final da entrevista, e a senhora tem ainda algum sonho, a senhora está realizando tanta coisa, mas sobrou algum sonho ainda?
R - Sim. O sonho é o seguinte: até está se realizando em parte, nós estamos inaugurando agora a radioterapia, e aqui vai ter o impulso a especialidade de Oncologia, para tratar dos pacientes cancerosos. E tem muita ainda como o centro de transplante de medula, que já tem bastante transplantado já que... E como é difícil de entrar na fila, isto é, encontrar lugar logo na fila de espera, então aqui se oferece, abre essa oportunidade de mais pessoas poder usufruir desse tratamento, e não são só daqui, tem gente de fora também que vem e não tema onde ficar porque são tratamentos longos, tem que classificar a medula de parentes, às vezes, e não tem, aqui não tem nenhum hotel em Itaquera. Então meu sonho é fazer uma casa de apoio para poder atender essas famílias que vem de longe e não tem onde ficar e não tem como pagar um hotel. Algumas pessoas estão sabendo deste sonho e fundaram uma entidade chamada Casa de Emaús que é uma...
P/1 - Qual é o nome?
R - Emaús, Casa de Emaús da família Marcelina. Emaús por quê? Porque Emaús foi aquela aldeia onde dois peregrinos encontraram o terceiro peregrino e que acolheram na casa dele e descobriram que era Jesus (risos). Então seria as pessoas que reconhecem a presença de Jesus nas pessoas que necessitam de um amparo, de um abrigo. Então é poder realizar essa casa de Emaús, uma. A segunda é poder realizar o Instituto da Criança aqui em Itaquera, como tem na zona oeste, Hospital das Clínicas têm instituto da criança, fazer um aqui, e que tenha uma larga faixa dos recursos aplicados para o tratamento do câncer das crianças, um lugar adequado, porque criança é muito problemático colocar junto com os adultos na quimioterapia, precisaria uma acomodação a parte e o hospital não tem lugar para isso, está reformando a pediatria para internação, tudo bem, mas a criança precisa de um ambiente alegre, bom, também o adulto, naturalmente, mas é bom que tem um espaço próprio, onde possa ficar com as mães, ter onde se recriar, ter um tratamento adequado a estado de criança. Então esses seriam os meus sonhos (risos).
P/1 - Irmã, e pensando no bairro, como é que a senhora gostaria que o bairro fosse daqui a cinquenta anos?
R - Bom, que não tivesse nenhuma favela para começar, porque aqui eu acho... Eu não me conformo como nós nos acomodamos a ver os barracos. Eu gostaria que não tivesse mais favelas, que aqui não tivesse, que todo mundo morasse dignamente, nem que ser uma casa pequena, mas uma. Não sei como é que pode se conformar com uma população ter uma habitação desse jeito, naquela marginal, passaram por lá? Ao lado do rio Tamanduateí, mas que coisa horrorosa que fizeram lá, como é que pode deixar um ser humano morar desse jeito, eu vejo e não me conformo. E eu tentei uns anos atrás, quer dizer, um pouquinho mais de tempo de ir no fim de semana naquela favelinha que se formou aí no metrô, mas é complicado, favelado é complicado, precisaria conviver muito para achar a linguagem adequada para esse tipo de população, para se inculturar com o favelado não é fácil.
P/1 - Tem ainda uma favela lá?
R - Tem. Isso é que nem fungo (risos) que surge logo depois duma chuva, quando menos espera surge um barraco, depois outro, depois outro, aí se forma. Aí no metrô teve, o metrô quis desalojar aquela favelinha onde, eu recebi o despejo do metrô (risos). Porque naquela ocasião comprei um barraco, construímos de tijolos lá e depois... E quando foram lá verificar que aquele terreno era do metrô, mas até hoje, porém não sabem bem qual parte é do metrô e qual é da prefeitura, e afinal a conclusão é que estão ainda lá, então disseram: “isso daí é da irmã Giuseppina”, então eles mandaram a carta para mim (risos) que era para até uma determinada data desalojar, sair de lá. Depois eu fui no metrô, ainda na gestão anterior, nos entendemos, entrou um advogado dos Sem-terra (risos), mas depois eu não pude mais me ocupar daquilo lá, inclusive para não, para que não fosse invadido o barraco que era o setor comunitário, não era um barraco, aquela salinha que era o centro comunitário, coloquei uma pessoa para morar lá. Bom, mas lá não só não conseguiram desalojar as pessoas que estão ainda lá, mas também construíram na outra parte do córrego até sobrados, bem, sem louvor nenhum, não tem nem calçada, e no outro lado construíram outra favela, chamada Favela da Paz. Então quando começa alguém ocupar um terreno desocupado, pode contar que daí a um mês eu tenho uma favelinha construída aí. E quais são os motivos? Não consegue mais pagar aluguel, e é por causa disso, desemprego. Porém junto se associam pessoas de gangue que se refugiam na favela. Então aí eu não sei, esse é o ponto de estrangulamento de quem conhece bem como é que funciona, você não sabe com quem está lidando, precisaria conviver para conhecer. De repente com muita frequência amanhece um morto, foi baleado, por quê? Acerto de contas, queima de arquivo, não sei como é a coisa.
P/2 - Então aqui aparece muito?
R - Aparece.
P/2 - Como é que é seu dia-a-dia hoje? Como é a sua vida?
R - Sim. Então eu levanto às cinco e dez, até às seis e quinze para as sete, oração; depois tomo café e venho para cá, e aqui vou desenvolvendo a minha agenda, e a minha agenda consta principalmente de reuniões, porque eu estou na coordenação da assistência médica hospitalar. Então eu lido com o diretor clínico, com a superintendente, a irmã Teresa, diretora administrativo, enfim, todas as áreas de direção que estão entrosadas com a assistência médica hospitalar. Reuniões com os supervisores, vejo a lista dos problemas emergentes, porque as rotinas não sou eu que cumpro, mas as coisas de emergência, as coisas extraordinárias e respondo as cartas que vem do CRM [Conselho Regional de Medicina],
enfim, as cartas que são mandadas a diretoria, preparo esse expediente para as nossas secretárias depois enviar. E depois eu vou visitar nos andares os doentes, vejo como está o andamento do hospital, porque é muito importante dar a presença também. E assim se desenvolve meu dia, mas é principalmente entre reuniões, porque as especialidades são muitas, tem que fazer reunião com cada supervisor de cada especialidade, as vezes é junto, tem as várias comissões, comissão de prontuário, comissão de ética médica, comissão de ética da pesquisa, comissão de ensino, comissão de prontuários, então são tantas as comissões que ano dá para... E cada dia é com uma comissão ou com um serviço e que a gente se reúne, recebe os relatórios, recebe os problemas, os planejamentos e as dificuldades de execução dos planejamentos, enfim...
P/2 - E como é seu lazer?
R - O meu lazer (risos). O meu lazer é onde eu trabalho. No fim de semana, eu vou as comunidades fazer treinamento e reciclagem de ministros da Igreja, por exemplo, de ministros da liturgia, de catequese, visitar ali a pessoa necessitada e se sobra algum tempo ouvir um pouco de música, que isso me faz muito bem (risos).
P/2 - A senhora não assiste televisão?
R - Televisão eu assisto ao noticiário, de vez em quando algum Globo Repórter, quando tem algum evento, agora as Olimpíadas, não tudo (risos).
P/1 - Irmã, de onde vem o gosto pela música?
R - Desde de criança.
P/1 - É?
R - Eu sempre gostei de música, a minha família sempre gostou muito de música e meu pai, especialmente meu pai tinha um gosto musical muito grande e sempre educou a gostar de música. Então mostrava para nós o que era uma música lírica, uma música clássica, sinfônica, então falava dos autores, essa música é de Wagner, essa música é de Verdi essa música é de Bach. E nos levava a concerto também, a ópera, desde criança. Então eu comecei a gostar de música (risos), cantá-la também, os pedacinhos, os pedaços de ópera, eu me lembro que uma vez um amigo de meu pai veio nos visitar com um grupo de amigos e ele apresentou às crianças, e um amigo dele falou: “aquela menina é a cara da Nini?” (risos) “Sim, você não canta o flama da Nini?”. Eu não estava bem lembrada, agora eu não me lembro que eu cantasse aquilo lá, mas me lembro da expressão desse jeito, acho que eu teria uns quatro, cinco anos, “mas aquela, aquela que canta Nini?”
P/2 - Desde cedo plano geral?
R - Desde de cedo.
P/1 - Irmã, e a última pergunta, é assim: que lições a senhora tirou da sua experiência de vida, tem tirado e que a senhora gostaria de deixar registrado? Quer dizer, as mais importantes, porque acho que a senhora fez já tanta coisa bonita, importante.
R - A realização maior que uma pessoa pode ter é em servir o outro, servir o próximo, sempre aquela cantiga, não é cantiga, como dizer, aquele motivo que sempre soou ao meu ouvido, ao meu coração desde criança: “dedicar-se a Deus, fazer bem ao próximo”. Olha, eu acho que a religião, abertura de coração a Deus é maior força da vida da pessoa, e também é um norte, é uma orientação. Eu não sei o que acontece para as outras pessoas, mas a mim parece impossível viver e se realizar, ser felizes e ter paz sem ter Deus na vida e sem olhar para o semelhante, não se dar par de que você está bem e que outro perto de você esteja sofrendo, tenha alguma carência. Então são essas duas grandes coisas, de ter Deus como norte da vida e essa dimensão horizontal do próximo perto de você. Então você se realiza tendo esse referencial e tendo esse campo de atividade para com o outro.
P/1 - Tá jóia. Então a gente queria agradecer muitíssimo pela entrevista, muito obrigada.
P/2 - Muito obrigada!Recolher