Memória dos Bairros
Depoimento de Alfredo Campos
Entrevistado por Marina D’ Andrea e Stella Franco
Local: Estação Brás do Metrô
São Paulo, São Paulo, 21 de setembro de 2000
Código: MT_HV008
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liamara Guimarães de Paiva
P/1 – Por favor, o senhor poderia dizer de novo o seu nome, data e local de nascimento?
R – Alfredo Campos, nascido em 3 de junho de 1926, no Brás, capital, São Paulo.
P/2 – E o nome dos seus pais?
R – Júlio de Campos e Elvira Fernandes.
P/2 – Em que local eles nasceram?
R – Meu pai nasceu em Braga, Portugal, minha mãe nasceu em São Paulo, bairro do Belém.
P/1 – Você sabe em que época o seu pai chegou no Brasil?
R – Meu pai deve ter chegado em 1900, 1901.
P/1 – E por que ele veio pra cá, o senhor sabe?
R – Naquela época eles vinham pra cá porque aqui era o novo mundo, né? Então, ele veio pra cá já com filho, tinha um filho já, quando veio pra cá.
P/1 – Sei, irmão do senhor. E o senhor nasceu aqui?
R – Eu nasci aqui no bairro do Brás.
P/1 – Em quantos irmãos vocês são?
R – Nós somos em cinco. Vivos são só dois, né?
P/1 – O senhor pode dizer os nomes dos seus irmãos?
R – Eduardo, o mais velho, falecido, Olga, falecida, depois vem o mais novo, Durval, falecido, e vivos: eu, Alfredo e outra irmã, Alice.
P/1 – A Alice é a mais nova?
R – É a mais nova.
P/1 – O senhor pode descrever o local onde o senhor morava? O senhor lembra da primeira casa?
R – Eu lembro. Eu nasci na Rua Mendes Júnior, número 26, na Rua Mendes Júnior.
P/1 – Como era essa casa?
R – Era uma padaria, meu pai tinha uma padaria naquela época, eu nasci numa padaria. Meu pai tinha a padaria lá, eu nasci na padaria.
P/1 – Seu pai era dono da padaria?
R – Dono da padaria.
P/2 – E como é que era, era do lado, atrás da padaria?
R – Nós morávamos no fundo da padaria.
P/2 – Tinha uma entradinha assim de lado?
R – Não, tinha uma entrada do lado e uma entrada pra padaria, né? Naquele tempo se faziam os jogos, aqueles jogos, quem é mais velho deve saber, da caixa de fósforo,
Caximbá que eles falam, do tempo antigo. Meu pai tinha essa padaria, durante alguns anos ele manteve essa padaria.
P/2 – Ele entregava pão também?
R – Naquele tempo se entregava o pão com uma carroça.
P/2 – E onde guardava a carroça e o burro?
R – A carroça se guardava ao lado mesmo, ali, tinha uma cocheira do lado, naquele tempo eles consentiam fácil, né?
P/1 – Como era na sua casa a relação de família, com a sua mãe?
R – Era tudo muito bom. Naquela época nós éramos em três, né? Porque minha mãe quando se casou com ele já era viúva, e ele era viúvo, então, minha mãe já trouxe uma filha, né? É a segunda, a Olga. Então, nós vivemos muito bem. Graças a Deus. Até que veio aquela crise, né? Veio uma crise depois, mais ou menos, 1928, 1930, aí meu pai teve que fechar a padaria, né?
P/1 – Ele fechou a padaria?
R – Fechou a padaria pra ser motorista, ele era motorista.
P/1 – Ele foi trabalhar onde?
R – Ele trabalhava com uma casa de doces na Rua Rio Bonito, Fábrica de Doces Brasil. Ele entregava doces naquela época. Era tipo esses furgõezinhos antigos, bem antigo, ele entregava doce. Eu me lembro porque eu ia com ele entregar doce naquela época, eu tinha uns seis anos, sete anos. Ia entregar doce no quartel, que hoje é Osasco, né? Antigamente chamava-se Quitaúna, que tinha muita cobra d’água.
P/1 – A cidade de Osasco?
R – Osasco naquele tempo tinha o quartel, o que dominava mais era o quartel lá, né? Chamava-se Quartel de Quitaúna. Nós íamos entregar doces lá, e pão.
P/2 – Que doces eram?
R – Esses doces, cocada, maria-mole, queijadinha, esses doces. Bala de coco queimado, bala mistura, todas essas coisas.
P/1 – O que é bala mistura?
R – É uma bala colorida de diversas cores, toda picadinha, então, chamava-se bala mistura. Naquele tempo a gente comprava um tostão, o homem enfiava uma colherzinha, uma latinha, tirava um tostão de bala. Naquela época era assim.
P/1 – Era a medida?
R – Era uma medida e tinha lá um tostão de bala.
P/1 – Seu, Alfredo, onde seu pai pegava esses doces?
R – Era na Fábrica de Doces Brasil, na Rua Rio Bonito. Eu não lembro o nome, já fechou essa fábrica. Fábrica de Doces Brasil. Como é que era o nome? Dos proprietários, agora esqueço os nomes. Os proprietários, eles têm um restaurante na Rua Rio Bonito.
P/1 – E aí continuava morando na casa da...
R – Não, nós tínhamos saído da padaria. Moramos na Rua Padre Lima, quando nasceu uma irmã minha, a Alice, nós tivemos que mudar pra Rua Coronel Emídio Piedade, onde tinham umas casas ali. Aí, nasceu o irmão menor, o Durval. Nós moramos ali durante muitos anos, depois mudamos para a rua paralela à Rua Dr. Virgílio Nascimento. Eu me lembro até hoje porque naquela casa, nós não podíamos ter luxo porque era uma família pobre, mas naquela casa quem construiu gostava e tinha já uma banheira. Só que não tinha água quente. Esquentava numa lata lá fora a água, punha na banheira, depois jogava a água fria. (risos).
P/2 – Como é que era a banheira?
R – Essas banheiras comuns que usam agora, não tem essas banheiras?
P/2 – Mas embutida?
R – Não, não, uma banheira só. Só a banheira.
P/2 – Uma coisa pra fora?
R – Pra fora, uma banheira assim que nem eles fazem hoje. Tinha aquela banheira só com uma torneira de água fria. E o chuveiro. Então, a gente, nessas latas de óleo, de banha, esquentava a água lá, trazia água quente e a gente tomava... Era um luxo danado, né? Tomar banho de água quente! (risos)
P/1 – Por que não tinha água quente?
R – Quando não tomava banho de bacia, né? Naquele tempo os mais pequenos tomavam banho de bacia. A bacia com água quente e fria, dava banho. Senão tinha que tomar banho de água fria, né?
P/2 – Como era o fogão?
R – O fogão naquela época era de carvão e de lenha. Nós usávamos mais carvão, né? Nós usamos lenha durante muito tempo, depois usava-se carvão.
P/1 – E a iluminação?
R – Eu peguei ainda, quando eu morei na Rua Emídio Piedade, eu ainda, com essa idade, setenta e quatro anos, eu ainda vi o homem acender o lampião e vir apagar.
P/1 – E como era?
R – Era um lampiãozinho, o homem vinha e acendia o lampião, eu não sei de que forma era, acendia e ia embora. Punha aquilo nas costas assim, era um pau comprido, punha nas costas e ia embora acender o outro lá, e acender o outro, acender o outro. De manhã ele vinha de volta e apagava.
P/1 – Era um poste em cada esquina?
R – Não, não. Um poste não. Era um ou dois em cada quarteirão. E o lampião só ficava até, vamos dizer... Era assim: aqui era a Rio Bonito, e aqui era a Rua Emídio Piedade, eu morava aqui e o lampião vinha só até aqui, não chegava onde eu morava. Não tinha iluminação, mas logo depois veio, né? Em 1930 e poucos, mais ou menos.
P/2 – Como é que era essa iluminação?
R – A iluminação era a que está nessa fotografia aqui, o poste com a luz caída lá pra fora, né?
P/1 – Essa foi a primeira iluminação de rua?
R – A primeira iluminação que eu vi foi essa. Primeiro foi o lampião, né? Que eu vi o homem vir acender. Eu não o via apagar porque era cedo, mas eu via ele acender toda noite, à tardezinha.
P/1 – Que horas?
R – Mais ou menos cinco e meia, seis horas, eles vinham. E naquela época tinha o que hoje falta em São Paulo, segurança. Parece brincadeira mas tinha guarda civil que não deixava a gente jogar bola na rua. Você estava jogando bola, vinha o guarda e tirava a bola, o civil. E a rua não era calçada, era de terra. Mas naquela época tinha até essa segurança. O guarda vinha pra tirar a bola quando a gente jogava a bola na rua.
P/1 – Por que ele não deixava?
R – Não deixava porque o pessoal reclamava, quebrava os vidros das casas. Depois, sabe, aquele “Filho feio, não tem pai”, né? Aí não era ninguém que quebrou, né? Então, o guarda passava lá...
P/1 – E vocês não brigavam com esses guardas?
R – Não, não, a gente respeitava muito. Respeitava. Hoje, não é porque a gente é velho... mas a gente tinha um pouco mais de respeito pelas coisas.
P/2 – Quando não podia mais jogar bola do que vocês brincavam?
R – A gente ficava brincando com bolinha, porque antigamente não se brincava com o que tem hoje, tudo automático, tudo elétrico. Se brincava com a tampinha de cerveja, antigamente o leite era um litro com aquela tampinha. Com tampinha de cerveja, ou a gasosa, aquela gasosa, então, a gente jogava de deixar cair no bueiro do registro da água, tinha uma coisinha e a gente jogava aquilo. Jogava bolinha de vidro, fala-se bolinha de gude, né? Bolinha de vidro, pegador.
P/1 – Como é que é pegador?
R – Pegador? Um tinha que se esconder e o outro tinha que.. Senão, não via pessoa e o outro vinha no lugar onde você estava e não pegava. Mãe da rua, a gente chamava, né? Mãe da rua era atravessar a rua num pé só, né? E o outro não pegar, né? Um ficava no meio da rua cercando, então, enquanto aqueles corriam, ele corria lá e os outros atravessavam a rua, chamava-se mãe da rua essa brincadeira. As meninas brincavam de amarelinha, né? Naquele tempo até os meninos brincavam, a gente brincava também, por que não? De lenço atrás. Quando fazia aquela roda, de correr e jogar o lenço atrás. A gente corria. Ficava uma pessoa, a gente jogava o lenço. Ficava sempre uma falha, vamos dizer, de dez, ficava nove aqui e um corria com o lenço e a gente ficava olhando pra frente. Então, a pessoa jogava o lenço, né? Aí o outro entrava e quem ficou com o lenço atrás não percebia, porque ele tinha que pegar o lenço rápido e correr atrás de quem deixou pra pegar, pra ele não ficar correndo.
P/1 – E quem perdesse nessas brincadeiras, tinha castigo, como é que era?
R – Não, não tinha castigo. Era só ficar correndo com o lenço, né? A pessoa, se percebia que pôs o lenço, corria, pegava a pessoa, sempre ficava um. Tinha também aquela brincadeira da cadeira, que até hoje ainda fazem, sempre sobra um. Tinha outra coisa, a gente
fazia muita fogueira. Eu, principalmente, gostava muito de fazer fogueira na rua. Deixava a minha mãe maluca. Era tudo terra, né? Então, faziam fogueiras, cada um trazia uma coisa. Uma coisa que eu gostava de fazer era circo. Eu morava numa vila e eu fazia um circo lá. Era um botão, o ingresso. Pra entrar na vila e ver o circo era um botão. (risos)
P/1 – Um botão?
R – Um botão ou um palito de fósforo. Então, eu é que tomava conta do circo, eu é que montava o circo.
P/1 – Que vila era essa?
R – Chamava-se, na Rua Dr. Nascimento, uma vila pequena, uma vila de cinco casas, tinha um terreno grande porque esse seu Amadeu deixou, era um homem tão bom, Amadeu Bragante. Ele deixou uma área muito grande, gramada, para as donas de casa secarem a roupa na grama, quando não armava aquele varal, mas secava. Então, num canto lá, eu, à tardezinha pra noite, eu armava um circo, escondido eu também cantava, viu? (risos) Só que eu cantava só músicas do Orlando Silva.
P/2 – Que músicas, por exemplo?
R – Eu cantava “Meu Consolo é Você”. Eu só cantava essa música, “Meu Consolo é Você”.
P/2 – Como é a letra dela?
R – Essa aí, agora...“Meu consolo é você, meu grande amor. Eu explico por quê. Sem você sofro muito, não posso viver. Tudo fiz sem querer, meu grande amor. Peço desculpas a você. Mas se por acaso você não me perdoar, juro por Deus, que não vou me conformar. A minha vida sem você é um horror, eu sofro noite e dia e você sabe por quê, meu consolo é você.” (risos) Tinha uma outra que eu não lembro. Cantava eu, cantava a menina Dalva, música italiana, e tinha uma prima dela, que se chamava Norma, ela vinha cantar, mas ela queria se meter a cantora e não tinha nada pra cantar. E ela cantava uma música que era de arreliar, ela cantava “chiribiribi”, eu não lembro hoje como é que era. Então, quando ela começava a cantar a turma já vaiava, a única vaia do circo era aquela: “chiribiribi, não sei o quê...” Agora eu não lembro direito. Era música italiana. E quando ela cantava, a turma já preparava a vaia, aqueles quarenta, trinta, que estavam em volta. Já preparavam a vaia.
P/2 – Por falar em chiribiribi, como é que era, tinha muito italiano entre seus amiguinhos?
R – Não. Tinha o pessoal filho de italiano, principalmente que vinha do interior, italiano e português. Porque aquele bairro nosso ali dava muito português, mas tinha muito italiano.
P/2 – E espanhol?
R – Tinha, espanhol, italiano.
P/1 – Como era a convivência entre as famílias?
R – Um dos grandes amigos que tive foi um menino espanhol, ele era espanhol, o Antônio, nunca mais soube dele, mas foi um dos bons amigos que eu tinha quando eu morava na Rua Emídio Piedade. Pra ir ao cinema, era o Oberdan, eu fui quando tinha mais ou menos uns dez anos talvez, quando o Cine Oberdan, de triste memória, o Oberdan pegou fogo. Pegou fogo, né? A molecada morreu.
P/2 – Era um dos cinemas mais antigos do Brás.
R – É. O Oberdan. Eu ia sempre no Oberdan, eu ia com esse rapaz, o menino. O ingresso custava trezentos réis. Depois passou pra quinhentos réis. Eu ia na geral, né? Era a geral.
P/1 – Qual era a diferença?
R – Era assim: a geral era lá em cima, era o “puleiro”, que falavam, né?
P/1 – Era mais barato?
R – A geral era mais barata, era trezentos réis, depois passou pra quinhentos. Embaixo tinha os balcões e tinha as cadeiras. Tinha as cadeiras e em volta eram os balcões, como você tem no teatro, né?
P/2 – Esse Oberdan era um tipo de um teatro, foi teatro, né?
R – Foi teatro. E o Colombo ainda.
P/2 – Depois virou cinema.
R – É, mas o cinema da molecada era aquele, né? Eu gostava muito, eu ia muito com esse rapaz espanhol, foi meu amigo.
P/1 – O que vocês assistiam lá, Seu Alfredo?
R – Ali era o seguinte, o primeiro filme que eu assisti foi o Cavaleiro Vermelho, com Buck Jones. Era um seriado. Depois passava um filme de amor, aí tinha que vir um “faroestão”, né? Naquele tempo era o Timothy McCoy, Bob Steele, Tom Tyler, Buck Jones e outros
agora que eu não lembro.
P/2 – Tom Mix?
R – Tinha o Tom Mix. E, comediante tinha o Boca Larga. Depois veio... Tinha o Groucho Marx, o Gordo e o Magro, que a gente assistia muito. Mas toda sessão de cinema tinha que ter um desenho. Toda sessão tinha um desenho, por pequeno que fosse, mas tinha um desenho.
P/1 – Antes do filme?
R – Passava primeiro o seriado pra por fogo já na molecada. Depois passava um desenho, depois vinha um filme de amor. Naquele tempo era Marlene Dietrich, Glória Swanson, Joan Crawford, Betty Davis, artistas muito bonitas daquela época, Robert Taylor, Humphrey
Bogart, todos esses artistas.
P/2 – E os desenhos, como eram?
R – Desenho, tinham muitos desenhos, já era do Walt Disney, né? Tinha do Mickey, tinha do Pato Donald, tinha muito desenho do Popeye. Popeye já tinha, tinha muito desenho do Popeye.
P/1 – E o Zé Carioca, já tinha nessa época?
R – Não, não, o Zé Carioca é de muito depois. O Oberdan, sem querer eu me livrei do Oberdan, de morrer talvez lá, e ficar vivo.
P/2 – Qual é a história do incêndio?
R – O incêndio é o seguinte: eu fui no Oberdan, mas eu cheguei lá uma duas e quinze, aí, eu perguntei para o porteiro: “A série, já faz uns quinze minutos que começou.” Aí, eu falei, “Então, eu não vou. Então, não vou entrar.” Eu estava sozinho. Eu saí dali e fui até o Cine Universo na Avenida Celso Garcia. Lá tinha o circo Piolim, e eu gostava de circo, tanto eu gostava que eu montava, então, fui pra lá. O Piolim começava às três horas e eu fui pra lá, para o circo. Depois que eu saí de lá, que eu vim descendo a Rua Bresser que a gente soube da catástrofe, do que houve lá no cinema. Foi o seguinte, era um filme de avião e o avião pegou fogo e alguém gritou “Fogo, fogo!”, o cinema enchia muito, a criançada começou a correr, todo mundo correndo e, principalmente a geral, era uma entrada assim e era uma escadaria e fazia isso assim, a escada. Pra ficar aqui, que o cinema era assim. A molecada juntou, aquele grupo, e a geral era o seguinte, quando acabou, vendeu os ingressos, fechava. Eles fechavam aquelas portas. Era uma porta um pouco maior que essa assim, fechava aquela porta.
P/1 – E, aí, começou todo mundo a..
R – A turma da geral, né? Quando eles correram a porta estava fechada. Ali começou a amontoar. Uns pularam pra fora, se machucaram, morreram, outros ficaram presos naquela porta ali.
P/2 – Mas não houve incêndio?
R – Não, não houve incêndio. Não houve nada.
P/1 – Mas alguém se machucou?
R – Morreu muita gente. Ih, morreu criança! Eu não sei falar o número, mas morreu mais de quinze crianças, eu acho. Agora, mais foi pelas cadeiras. Aqui, também, ficava só uma saída, quando terminava o filme, estava terminando o filme, eles abriam as laterais, não sei se ainda tem até hoje, abriam aquelas portas de vidro e saía a molecada. Mas como estava passando o filme, todas essas laterais ficavam fechadas. Ficava só uma saída. Jamais eles iam esperar que fosse acontecer isso, né? Aí, quando amontoou aquela garotada morreu, morreu muito foi na geral, né?
P/1 – Em que ano foi isso, seu Alfredo?
R – Agora não...
P/1 – A década?
R – Isso foi mais ou menos mil novecentos e ... Não chegou nem a quarenta, foi trinta, perto de 1940. Foi terrível isso aí. Morreu muito garoto conhecido da gente.
P/2 – Foram pisoteados, né?
R – Pisoteados. Porque foram correndo e...
P/2 – Quer dizer, aquele fogo que estava no cinema o pessoal pensou que estava...
R – Pegando fogo.
P/2 – Pois é, era no filme.
R – Um avião que bateu e pegou fogo, e alguém gritou lá e, aí, correu. Era só garotada mesmo no cinema. Não tinha adultos, quase não iam adultos, só garotos. O Oberdan era o cinema... Tinha o Babilônia mas já não iam tantos. Mas foi uma coisa terrível. Foi terrível aquilo.
P/2 – Tivemos também um prédio antigo, você lembra do Coliseu, aquele teatro que tinha no Largo da Concórdia?
R – Não, ali era o Colombo. Chama-se Colombo. Eu fui lá. Não, ali era teatro, foi teatro mesmo. Era teatro. Ele andou passando uns filmes. Até, por sinal, depois da Guerra, o Donato, nós levamos o Donato pra ver um filme de Guerra lá, foi Ataque ao Amanhecer, filme do Paul Muni. Um dos bons filmes. E nós levamos o Donato, esse Donato era um pracinha do clube que tinha voltado da Guerra e nós levamos ele lá pra assistir no Colombo. No Colombo vinham muitas companhias, era um teatro bem no meio do Largo da Concórdia em que vinham muitas companhias italianas.
P/1 – No Largo da Concórdia. Bem no meio. Foi demolido.
R – É, demoliram. Mas quem vinham muito ali eram companhias italianas.
P/1 – De ópera?
R –Mas vinham muitas companhias de opereta ali naquele teatro. Naquele tempo tinha o Colombo, de teatro assim, pra isso, tinha o Teatro Apolo, na Rua Boa Vista, encostado naquela Ladeira Porto Geral, uma ladeirinha ali perto do Largo São Bento? Ali tinha o Teatro Apolo. Tinha o Recreio, praticamente não funcionava bem, tinha o Teatro Santa Helena, onde ficava muito o Genésio Arruda, foi um dos maiores comediantes de todo o Brasil, né? Depois veio aquele Teatro Santana, ali onde é o Mesbla hoje, na Rua 24 de Maio. O Teatro Santana ali. O Santana, eu fui muitas vezes lá porque... mas aí já quando eu era moço, quando vinha aquelas companhias de revista, do Walter Pinto e de outros. Ali já era companhia de revista. Ali foi um teatro muito famoso, foi aquele, né? Assisti também ali Procópio Ferreira. Graças a Deus ainda assisti Procópio Ferreira. Assisti no Cine Odeon, lá naquelas peças. Do Procópio assisti Deus lhe Pague, não tenho lembrança. E, assisti uma coisa que hoje pouca gente viva acho que tem (que também assistiu), eu assisti Oscarito e Beatriz Costa. Não sei se você já ouviu falar de Beatriz Costa. Ela é uma artista portuguesa, comediante. Foi uma das mais famosas que teve no Brasil. Ela e o Oscarito, quando o Oscarito estava começando a carreira dele. Era muito bonito. Tipo teatro de revista mas foi num teatro que durou pouco, durou alguns anos, Teatro Cassino Antártica, se chamava, debaixo do Viaduto Santa Ifigênia. Debaixo do Viaduto Santa Ifigênia. Quem vem, vamos dizer, da Luz para o Vale do Anhangabaú, ali debaixo tinha o depósito da Antártica e lá dentro tinha um teatro. Então, lá tinha o Theatro Cassino Antarctica. Eu assisti lá ainda Beatriz Costa e Oscarito. Nós íamos lá também porque lá a cerveja era barata.
P/1 – Porque era na Antártica?
R – Antártica. Eu assisti muitas peças lá.
P/1 – Seu Alfredo, e no Teatro Colombo, o senhor lembra o que assistiu?
R – Eu assisti só o Genésio Arruda. Ópera eu não vou dizer que eu assisti, eu não assisti ópera.
P/1 – Genésio Arruda era um comediante?
R – Era um comediante falando acaipirado, né? Mas foi um dos bons comediantes, talvez, que teve até no Brasil. Depois, quando demoliram o Colombo, eles passaram a ir ao Oberdan. Nessa aí começou o Mazzaropi. Foi quando o Mazzaropi começou também e entrou no Oberdan também. Funcionou muito lá no Oberdan.
P/1 – O Mazzaropi teve o início da carreira dele lá no Oberdan.
R – Ele começou em outros lugares, talvez até no Interior, mas quando ele veio pra São Paulo, ele começou num teatro que seria pequeno, um cinema que seria o Oberdan, né?
P/2 – Só pra continuar aquela história do Oberdan, depois ele continuou funcionando?
R – Não, parou o cinema. Tentou ali mas não tinha mais ânimo pra ninguém não. Ninguém mais foi.
P/1 – Em que rua era mesmo?
R – O Oberdan era na Rua Ministro Firmino Whitaker.
P/2 – E o Colombo diz que era no meio da Praça da Concórdia?
R – Era.
P/1 – Como é que era?
R – Era um teatro que tinha as gerais, que eram as madeiras, de ripinha, como tem ainda de vez em quando e embaixo tinha as cadeiras e tinha os balcões, do lado, mais em cima. Quer dizer que ficava, então, as cadeiras embaixo, a plateia mesmo, do lado os balcões, seria vamos dizer, como é que a gente dá o nome hoje? Frisa, camarote, tipo de camarote, e em cima era a geral. A mais barata era a geral.
P/2 – Mas ele era sozinho no meio da praça?
R – No meio da praça. Sozinho.
P/2 – E como foi que acabou?
R – Ali a prefeitura queria liberar por causa do trânsito, né? Porque o Brás foi um bairro muito judiado. Naquele tempo, “Chegou atrasado no serviço por quê?” “A porteira do Brás.” É a porteira, então, aquilo, tinha o trem, que toda hora fechava, a cada cinco minutos fechava. Era tudo ali, bonde, ônibus, tudo ali, não tinha. Então, eles queriam ampliar tudo aquilo. Foi quando o Ademar fez o primeiro viaduto. Pequeno, mas foi ele que fez, né? Então, começaram a acabar, limpar com aquilo, né? Foi quando acabaram com o Teatro Colombo.
P/2 – Eles limparam acabando com teatro? Isso que eu não entendo.
R – Precisava ampliar a praça, né? E, o teatro já não tinha mais quase vida, né? Não tinha mais vida quase, o teatro.
P/1 – Seu Alfredo, e teve algum momento em que o teatro teve muito público? As pessoas iam muito?
R – Sabe? Eu era mocinho não frequentava assim. Tinha, a opereta ali tinha sim. Mas depois foi caindo muito por causa de cinema. Muitos cinemas. Nós tínhamos o Cine Rex, o
Universo, tinha o Babilônia, o Cine Oberdan, tinha o Rialto, aqui na Rua João Teodoro, tinha o Piratininga. Antes do Piratininga era o Mafalda, aí, depois, pra cá, quem vem ali pra Rua Caetano Pinto, tinha um cinema que chamava-se Olympia. Ali passava muito filme espanhol. A maioria dos filmes que passava era do José Mojica. Quem queria assistir filme do José Mojica ia ali e filmes espanhóis mesmo. Com o Angelilo, aquele cantor espanhol, o Angelilo, e os outros assim que agora não me lembro de memória. Mas o pessoal ia assistir no Olympia, que era mais perto, dos espanhóis.
P/2 – Tinha o Cine Glória também.
R – Tinha o Glória na Rua do Gasômetro, né? Também acabou.
P/2 – Como era esse Cine Glória?
R – O Glória é ali, ainda existe, até hoje. Não sei se a senhora conhece a Rua do Gasômetro. Não tem o restaurante Gigio na esquina?
P/1 – Tem o Gigio, do dono português.
R – Então, ali, em frente, bem em frente ainda tem lá as coisas todas. A entrada. A frente dele é muito bonita. É bem em frente ao Gigio, bem em frente ao Gigio.
P/2 – Esse cinema...
R – Era só cinema, Cine Glória.
P/1 – E tinha um que chamava Ideal, ou não?
R – O Ideal era na Rua Piratininga.
P/2 – Era uma casa que tinha gente que morava em cima?
R – Morava em cima. Era um tipo de uma casa. Do lado era uma residência meio chique e embaixo era o cinema. Mas a estrutura parece que é a mesma. A frente, é tudo igual.
P/2 – Era chique essa casa?
R – Olha, parecia-me pela fachada, o que tinha em frente, o trabalho que tinha... O prédio existe ainda, da mesma forma, do mesmo jeito.
P/2 – Hoje é uma firma de madeiras.
R – Madeiras. Quem for na Rua do Gasômetro e vê o Gigio, vai ver o antigo Cine Santa Helena lá, intacto ainda. Só embaixo abriram as portas.
P/2 – E morava uma família?
R – Morava uma família em cima.
P/1 – O senhor conheceu essa família?
R – Não conheci. Um dos últimos filmes que eu assisti lá foi Legião de Heróis. Eu era moleque, em 1942, 41, 42, eu assisti Legião de Heróis. Eu me lembro, foi o último filme que assisti naqueles anos.
P/1 – Seu Alfredo, eu só queria, pra voltar um pouquinho na história da porteira, que o senhor comentou, como é que era o negócio? A porteira era desculpa pra quem chegou...
R – O sujeito chegava tarde e atrasava mesmo, né? Então, qualquer um que acordava atrasado: “A porteira.” A porteira do Brás pagava o pato sempre, né? Mas era verdade, porque ela fechava a cada cinco minutos, né? A cada cinco minutos, porque ali passava bonde e ônibus. Já pensou numa rua de oito metros de largura, ali, de oito metros, passava um bonde pra cá... Era um bonde pra lá, um bonde pra cá. E ônibus tudo pra lá, ônibus tudo pra cá. Tudo. Duas mãos. Então, como é que passava? Então, cada cinco minutos fechava o trem. “Vem vindo o trem.” Aquela correria. Ficavam os guardas pra prender lá porque passava trem todo instante, né?
P/1 – E era perigoso?
R – Aquilo era um perigo danado. Era um inferno! Aí, foi quando construíram o viaduto, o primeiro viaduto ali, o Ademar, né? Ali melhorou bastante.
P/1 – Onde era essa porteira?
R – Porteira do Brás, na Avenida Rangel Pestana. Na Rangel Pestana mesmo, ali. Ainda tem lá, não sei se tem porteira lá. Agora é um paredão, né? Deve ser um paredão lá agora, né?
P/1 – E de que era essa porteira? Qual material?
R – A porteira era de madeira, só que era automática. Tocava a campainha ela começava a fechar. Muitas vezes pegava alguém, prendia alguém. Ficava ali.
P/2 – Era que nem uma porteira de sítio?
R – É, só que era automática, não era com os homens fechando, né? Já tinha uma outra porteira debaixo da Rua Rodrigues dos Santos e ainda uma outra. Tocava lá, os homens vinham e fechavam. Fechava uma parte, depois fechava a outra. Mas era um homem, era pela mão, e aquela do Brás era automática.
P/2 – Ficava aquele trânsito todo parado?
R – Ficava um trânsito enorme, aí, ia passando, aí vai, fecha outra vez. Fechava. A cada cinco minutos ia fechando. Era um verdadeiro inferno.
P/1 – E na hora que abria passava carro?
R – Ônibus e bonde. Tudo ali. Gente. Tudo.
P/2 – Cachorro, passarinho, periquito?
R – Tudo, tudo, tudo. Ali tinha, naquela época, as casas Pirani do lado. Casas Pirani. Mais do lado tinha uma das mais famosas casas de móveis, fábrica de móveis de São Paulo, deve estar hoje pelos Jardins, Móveis Paschoal Bianco.
P/1 – Paschoal Bianco?
R – Paschoal Bianco. Do outro lado de cá tinha uma casa muito famosa, em 1948 nós fomos comprar disco lá pra fazer o carnaval. Nós fazíamos o carnaval com disco, né? Então era a Casa Mignon. Pegada a porteira mesmo, eles vendiam disco. E pra fazer o carnaval nós íamos lá. Eu me lembro, em 1947, 48, 47 ou 48, nós fomos lá comprar disco pra fazer o coiso. Punha disco, né?
P/2 – Não era Manon?
R – Não. Mignon, casa Manon foi outra, muito famosa mas na cidade. Aquela chamava-se Mignon.
P/1 – Que discos vocês compravam lá?
R – Disco de carnaval. Uma das mais famosas que depois deu dor de cabeça pra nós, mas deu dor de cabeça. Mas aí já tinha orquestra. Eu me lembro Chiquita Bacana, nós estávamos tocando Chiquita Bacana, o Brasil vai ser sempre isso. Então, naquele tempo tinha a SBAC e a UBC, eles recolhiam os direitos autorais, então, tinha a UBC, União Brasileira dos Compositores e a SBAC, Sociedade Brasileira dos Autores Compositores. Eu me lembro bem porque eu ia pagar isso lá e eu sabia o nome. Então, fui falar com o músico e ele: “Não, tira só da SBAC, não precisa. Tira só da SBAC que dá pra fazer o carnaval fácil.” Mas acontece que a orquestrinha não sabia bem, ela ia pondo as músicas que vinha e que animava. Daqui a pouco, num sábado lá, estava tocando Chiquita Bacana, eram umas onze horas da noite, no primeiro dia de carnaval, eu estava com o Antônio Fernandes até, chega um fiscal – até, por sinal, mais tarde eu virei amigo dele, ele trabalhava na cooperativa de Cotia durante a Guerra, ele sem braço, sem um braço, chamava-se Ulisses – chegou ele lá: “Deixa eu ver os alvarás.” “UBC não tem? Então, está multado, está tocando Chiquita Bacana. Chiquita Bacana é nossa. Não é da SBAC”
P/1 – Não podia tocar sem autorização?
R – Não podia tocar. Tinha que recolher com eles. Você recolhia as músicas da SBAC, da UBC não... Mas falava: “Vamos pegar esse homem e jogar pra baixo da sacada.”
P/1 – Mas isso era tocando o quê, na orquestra?
R – Não, isso era tocando no conjunto já. A orquestra lá. Chiquita Bacana, eu nunca mais vou esquecer por causa disso. Ainda me lembro daquela época de 1947, 1948, nós íamos comprar as músicas na Casa Mignon, os discos lá.
P/1 – Como era esse negócio de carnaval com disco?
R – O carnaval era aquela bolacha 78. Ficava tocando e depois quando acabava puxava, né? A molecada queria repetir, você puxava de novo a agulha, punha de novo ou, senão, passava para o outro lado.
P/1 – Onde era o carnaval?
R – Era na Rua Bresser 220, depois passou pra 230.
P/2 – No cinema?
R – Não. Era a sede do clube. Primeira sede que o clube alugou, decente assim mesmo, né? Foi aquela lá. Mas nós estávamos, então, com isso.
P/2 – Que clube?
R – O Silva Telles. No mesmo clube nosso, o Silva Telles. Então, Quer dizer, então, se dava com o disco. Mesmo à noite! Olha, os grandes bailes que nós tivemos, não desmerecendo, que nós tivemos grandes festas, ela pode falar agora, mas daquela época, dos nossos bailes, a gente não esquece. Com disco!
P/1 – Como era Seu Alfredo?
P/2 – Como eram os bailes? Como funcionavam?
R – Punha um 78, né? 78 tocando. Os bailes eram boleros do Lucho Gatica.
P/2 – No carnaval?
R – Não. Nos bailes comuns. E no carnaval à noite, à noite nós não dávamos. Com disco nós não dávamos pra marmanjos. Só pra criança. Porque era novidade naquela época, não tinha baile por ali. Mas o poder aquisitivo não dava. Então, nós fazíamos o seguinte, com o disco não dava dor de cabeça. Não tirávamos nem alvará, nem nada. Quem aguentava pra não multar em parte, era esse Capitão Cantidio, que tem a aquela prova lá que é o nome dele. Então, nós dávamos pra molecada e quase que não se cobrava. Uma mãe ou outra vinha lá com três filhos, “Tá, dá dez tons, dá dois mil réis, sei lá.” Um cruzeiro, dois cruzeiros. Uma outra, chegavam os moleques lá, que nem as filhas desse Monteiro -
que é diretor esportivo do clube, hoje ele está com noventa e dois anos, está muito bem de vida ainda – as filhas dele vinham em três. Elas davam a volta no quarteirão e chegavam lá e ficavam olhando. Eu perguntava: “Cadê teu pai?” “Meu pai saiu.” “E o que vocês vieram fazer?” “A gente vai ver se dá pra dançar, né?” O que eu ia fazer, ia cobrar?
P/1 – Aí vocês deixavam entrar?
R – Ia cobrar? A maioria entrava de graça. E não dava. A gente deixava um rapaz de porteiro cobrar de um ou outro que veio e que não conhece, mas a molecada: “O meu irmão joga aí no time.” “Joga no time?” Como é que você ia cobrar deles? Eu não tinha coragem. E nós passamos a baile com disco... Tem fotografia aqui ainda, aquela que eu mostrei que não podia colar o rosto, ela está pra lá, ainda era com disco, né? Era Lucho Gatica, Gregório Barros... e agora assim, boleros, tinha aquele choro, que o Donato gostava muito, esqueço agora. E a gente ficava, tinham que ficar os diretores, uns três ou quatro no salão, pra ninguém colar o rosto, não encostar nada. (risos) Quem pagava o pato era eu, porque o presidente era bem magrinho, porque é duro chegar numa moça e falar: “Você vai ser suspensa se você encostar o rosto outra vez.” Porque esbarrava o rosto. Naquela hora do bolero encostava um pouquinho o rosto ou qualquer coisa: “Aquele cara encostou lá, precisa falar com ele.” Para o homem era mais fácil falar. E para uma moça, como que eu ia falar? Eu tinha que ir lá: “Você para, vai com jeito.” “Foi sem querer Alfredinho.” “É, mas não pode encostar o rosto, você sabe.” Ia três, quatro, assim, de cada lado e ficava sempre um diretor. Ficava cada meia hora cada diretor trocando o disco, né? Eu nunca me esqueço disso.
P/1 – Revezando, né?
R – Revezando. Porque todo mundo queria dançar. Eu proibia um pouco, né? Eu era meio chato, eu proibia um pouco os diretores de dançar.
P/1 – As pessoas que iam no baile eram do bairro?
R – Tudo do bairro. Vinham pessoas de fora, mas, mais pessoal do bairro, né? A gente dava baile das oito às onze, né? Depois nós contratamos, mais tarde, um conjuntinho - eu falo conjuntinho porque eram cinco, seis músicos.
P/1 – Como é que chamava o conjunto?
R – Era Thor e Seu Conjunto, era o irmão da Cláudia. Irmão da Cláudia, a família dela era de músico. O Moretti, Tori Moretti ele chamava, era uma rapaz meio assim, “Olha, Tori, o primeiro baile que nós vamos dar com orquestra é você, hein?” E contratamos ele. Eu me lembro até hoje, era o Tori na bateria, Joel no pistão, Arsênio no sax, o Sossego que era militar no trombone, o cantor era o Odilon – muito bom, foi meu amigo muitos anos, até agora – e um rapaz de cor, o Cocada – que faleceu moço - ele tocava pandeiro, bongô, e eles animavam os bailes assim. Eles eram muito bons, tocaram muitos anos com a gente. Muito bom. Depois, aí, o pessoal queria uma coisa melhor. Nós partimos pra essa que tem uma fotografia aí, acho que um dos músicos mais honestos de São Paulo, Orquestra Los Guarachos. Um dos sujeitos mais honestos. Ele foi assassinado. Era o seguinte, era difícil contratar a orquestra dele, era meio cara, eu nunca me esqueço, é uma passagem até meio gozada, Nós contratamos eles, ele era um músico, ele tratou dez músicos, vinha onze e nunca nove. Se ele tratava doze vinha treze e nunca onze. Um sujeito honestíssimo ao extremo, bom, sempre deu negócio com ele. Uma das melhores orquestras de São Paulo era a dele. Muito honesto, honestíssimo, tocou muitos anos no Silva Telles. Depois a gente não aguentou mais ele, né? Ele cresceu muito, tocando pra nós, tocando pra outros, a orquestra dele cresceu muito. Nós tivemos que viver de contratar orquestra de momento, né? Então, naquela época os músicos se reuniam na Praça da Sé, em frente à catedral, ali, e a gente ia lá tratar, mas eram os maiores enrolões do mundo. As músicas ficavam tudo ali. Se reuniam tudo ali. Toda semana. O dia todo. Já começava agora assim, vamos dizer, quatro horas ia até oito, nove horas. Se reuniam em frente à Catedral, àquela escadaria, ali. Os músicos se reuniam ali nos bares e quem queria contratar orquestra ia lá contratar e falar com eles. Só que a gente comprava gato por lebre constantemente, né? Constantemente.
P/2 – Agora, por falar em música...
P/1 – Marina, só um minutinho.
R – Agora, o seguinte, o clube foi fundado em 1910, com o nome de Fenianos, um nome carnavalesco. Fenianos, que seria carnaval, né?
P/2 – Fenianos?
R – Fenianos, o clube foi fundado primeiro com esse nome. Aí, esse grupo de pessoas resolveu em 1912 formar o Silva Telles, em 10 de agosto de 1912. Então, foi o Seu Alfredo dos Santos, Carlos Cesarino, Higino Cesarino, e mais outros que agora não vêm à lembrança, né? Era um grupo, eles formaram, então, o Silva Telles naquela época.
P/1 – Onde era?
R – Eles fundaram o clube na esquina da Rua Santa Rita com a Rua Rio Bonito, mas a Rua Silva Teles era paralela ali. Como era um nome, parecia tradicional, né? Então, eles puseram o nome de Silva Telles. E ali ficou até hoje, com esse nome. Sempre pulando pra lá, mudando sede de um lado para outro, naquele tempo era mais difícil, né? Graças a Deus, mas foi indo. Silva Telles até hoje tem um bom patrimônio.
P/1 – Esse bailes que o senhor estava contando era realizados onde?
R – Na Rua Bresser, quando o Silva Telles em 1947 para 1948 alugou uma sede lá. Então, foi quando começamos a fazer bailes nessa época.
P/1 – Aí já tinha mudado, era a segunda sede?
R – Não, a primeira sede grande que o Silva Telles teve foi lá. Na Silva Teles com a Rua Bresser mesmo, número 220.
P/2 – Fora os bailes, que atividades mais que o senhor fazia?
R – Naquela época nós só tínhamos futebol. Bom, aí, a pergunta veio a calhar. Naquela época nós formamos o baile. Então, nós resolvemos naquela época, a diretoria, que nós éramos todos moços, naquela época eu tinha vinte e um anos, vinte e dois, nós resolvemos fazer um departamento feminino, trazer as moças também pra lá. Então, elas tinham um dia. Terça-feira era o dia das moças jogar xadrez, dama, naquele tempo não era tênis de mesa, era ping-pong, nós tínhamos uns livros ainda. Quer dizer, então, elas tinham as terças-feiras pra elas, só as moças. Terça-feira era só das moças. Durante um ano ou dois ainda funcionou. Depois, aí, já começou cada uma a arrumar um namorado, deram muito casamento aqueles bailes. Deu muito casamento. Então, elas foram arrumando namorado e ficando noivas. Aí, expandiu já. Depois de uns três anos tinha umas senhoras que faziam parte do clube, mas não como departamento feminino formado, com seu dia marcado, como tem hoje. A Wilma e mais um grupo de senhoras que frequentam tudo lá e trabalham, são diretoras. Mas naquela época em parte era um pouquinho também de machismo, que só homem que podia ser diretor, mulher não. Também tinha essa coisinha ainda. Mas depois a gente foi se acertando e umas moças vieram fazer parte também, mas era mais homem. Então, nós tínhamos mais futebol. Mantemos durante um certa época atletismo, um pouco. Inclusive eu era atleta também, né? Eu naquela época corri na São Silvestre. E nós fizemos essa prova. A Gazeta, naquela época, durante anos, fazia a prova dos bairros. Cada clube patrocinava a prova no seu bairro. Nós tomávamos conta do Brás, do bairro do Brás. E, Graças a Deus, essa prova do Brás, nos anos todos que a Gazeta nos deu ela, depois ela parou, não fez mais, sempre foi a prova com mais número de concorrentes.
P/2 – Essa prova era o quê?
R – Era uma prova pedestre, com mais ou menos uns dez quilômetros, por aí, a gente fazia, né?
P/2 – Pelo bairro?
R – Pelo bairro, só em volta do bairro.
P/1 – Corrida?
R – Corrida pedestre, né? Como é uma São Silvestre. Chamava-se Prova dos Bairros. Brás era prova do Brás. Pari, Pari. Nós agrupávamos o Pari e mais outros, Canindé, tudo, vinha tudo pra cá, né? Então, a Gazeta fazia uma enquete, geralmente o Brás é que dava o maior número de concorrentes. Porque a gente dava muito prêmio também, né? Só que custava um pouco para o clube. Organização, prêmios, a Gazeta dava o troféu, o restante a gente dava atraindo o pessoal. Durante muitos anos, até que a Gazeta parou com essa prova, ela não fez mais, Prova dos Bairros. Aí, o clube se restringiu a quê? Ao Departamento social, nós tínhamos desde aquela época, 1948, 1949, Natal das Crianças Pobres. Por aqui, pelas redondezas, foi o pioneiro. Muito bem feito. Nós dávamos mais de dois mil brinquedos.
P/1 – Onde vocês arrecadavam?
R – Arrecadando. Um pouco os associados que davam, um pouco as firmas comerciais. A gente ia pedir, sempre por intermédio de carta. Ou com algum político, empresários. Um pouquinho de cada um, a gente procurava pegar. Ou, então, fazia umas rifas, juntava algum dinheiro pra gente poder comprar alguma coisa, doces, material pra se fazer um lanche para as crianças também. Tudo isso aí tinha que se fazer com o dinheiro da gente mesmo, arrecadado entre nós. Mas era muito bem feito o Natal, sem proteção, não tinha a mínima proteção. Era filho de associado. Com tudo o que falavam: “Não, não, não.”
P/2 – Quais eram as firmas mais importantes que doavam?
R – Olha, agora, lembrar assim...
P/2 – Às vezes tem muita firma também que já fechou, né?
R – Fecharam muitas. Tinha a Casa Portugal, tinha a fábrica de móveis Bandeirantes, que ainda ia lá até há pouco tempo, esse rapaz, a Bandeirantes.
P/1 – De brinquedos?
R – Eles praticamente faziam brinquedos só na época de Natal e ajudavam bastante a gente, davam muitos brinquedos. O da Casa Portugal dava prêmios pra gente sortear e com aquilo também fazia-se dinheiro pra gente comprar, sabe? A gente muitas vezes pegava uns brinquedos bons, baratos e comprava também, né? Porque precisava também comprar. A gente ia ser injusto se nessa hora lembrasse de uns e esquecesse outros, viu?
P/1 – Seu Alfredo, essa prova de pedestres era de atletas ou amadores?
R – Não, não, a maioria era tudo iniciante. Só iniciantes. Não valia, o pessoal que já concorria na Federação Paulista de Atletismo, não valia não.
P/1 – Era uma corrida em ruas do bairro?
R – Rua Santa Rita, Rua Carlos de Campos. Dava-se a volta ali pelo Largo Santo Antônio do Pari, Rua Maria Marcolina, Rua Silva Teles, Rua Bresser, dava uns oito quilômetros, mais ou menos.
P/1 – O senhor ganhou alguma vez?
R – Não, eu nunca ganhei. Eu corria porque eles achavam que eu dava. Mas eu não podia concorrer porque eu tinha vício, bebia, não fumava. Mas eu me dedicava mais. Corri algumas vezes aquela prova, cheguei uma vez, acho que, em terceiro lugar lá, mas ganhar não ganhava não. Corri a São Silvestre, tudo. Fomos representar o Silva Telles na São Silvestre, conseguimos medalha. Na São Silvestre. Mas depois parou, né? O pessoal começou...
P/2 – Em que ano essa medalha da São Silvestre?
R – Da São Silvestre? Eu ganhei medalha em 1947.
P/2 – Que lugar?
R – Cheguei em sexagésimo quinto. Não era fácil. Parecia que o coração ia sair. Porque naquele tempo não tinha hoje os “keds” que eles falam, tênis que hoje tem. Naquele tempo, tênis de antigamente, era uma folha de papel. Que nem uma folha de papel, né? Enquanto era só asfalto era muito bom, mas naquele tempo tinha o bonde Santana, né? Ali, começo da Estação da Luz. E, ali era paralelepípedo. Já pensou correr com aquela folha de papel, pisando naquele paralelepípedo? A gente só aguentava porque nós corria com a camisa escrito Silva Telles. Então, naquele tempo, o pessoal, do lado, falava “Silva Telles, Silva Telles” Por causa do futebol, né?
P/2 – O trajeto qual era?
R – O trajeto era o seguinte: vinha do Pacaembu, Avenida Pacaembu, Avenida São João, entrava no Largo Paissandu, pegava-se a Cásper Líbero, saía numa travessa ali, vinha parar na Brigadeiro Tobias e aí saía na Estação da Luz, onde tem aquela Igreja São Cristóvão, pra pegar a Avenida Tiradentes, o final era na Ponte Grande. Que não é hoje, tinha a Ponte Grande, né? Tinha a Ponte Grande e a Ponte Pequena. Hoje é a ponte das Bandeiras, né? Saía do Pacaembu naquela época. Mas era triste. A gente aguentava porque...
P/2 - Isso era quando, mais ou menos?
R – Saía meia noite.
P/2 – Não, o ano?
R – Eu concorri em 1947. Foi o último ano em que só tinha corredores sul-americanos. Naquele ano ganhou Oscar Moreira. Foi o último ano. De 1948 pra frente começaram a vir os europeus. Aí, veio o Zátopek, aquela locomotiva humana e outros que ganhavam tudo, né? Mas até 1947 só corriam os sul-americanos. Eu cheguei em sexágesimo quinto, ainda consegui um medalha. Mas não era fácil não. A gente corria, o pessoal gritava “Silva Telles”, então, animava, mas não dava nem pra pensar.
P/1 – Seu Alfredo, vamos retomar um pouquinho a história do futebol? Como é que foi que surgiu o time de futebol?
R – O futebol começou naquela época porque o Silva Telles tinha um campo no fim da Rua Silva Teles, entre a Rua Silva Teles e Emídio Piedade, perto da Igreja, hoje, Igreja Santa Rita. O Silva Telles tinha campo lá, né? Naquele local. E, dali o Silva Telles passou para o outro campo dele na Rua Joaquim Carlos, perdeu aquele campo porque ali era terreno todo grilado. O pessoal grilava e perdeu. O Silva Telles teve campo naquele local, na Rua Santa Rita, onde hoje é a CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), e deve-se muito... o Silva Telles teve campo aí nesse local graças a um que foi presidente, eu estava lendo aqui pra ela uma coisa, Seu Vitório Serradura, chamava-se esse senhor. Ele entrou no clube em 1919, depois ele foi presidente de 1924 a 1933. O Silva Telles perdeu o campo nessa rua, lá no fim da Rua Santa Rita, e foi fazer um campo num capinzal que é hoje a CMTC na Rua Santa Rita, Rua Cachoeira. E, lá precisava carpir. O Silva Telles foi carpir e fazer o campo. Aí, chegou um sujeito chamado Torres que se dizia dono de tudo. Naquele tempo tomavam o terreno e era deles. O Vitório, então, foi e estavam fazendo o campo e apareceu o Torres armado com o tipo de uma espingarda e, ele estava pronto pra matar um rapaz, que era esse Tatu, que foi um maiores jogadores do clube, o pai dele era fundador. E, ele queria matar o Tatu, foi pra matar. Então, o Vitório falou: “Não, você não vai matar o moleque, você vai matar eu. Se você tiver que matar você vai matar um homem, não um moleque.” E se pôs na frente dele, aí, ele baixou e o Silva Telles fez um campo lá. Tem essa história também, né? E ali o Silva Telles ficou um tempo e depois passou para o fim da Rua Joaquim Carlos, onde nós ficamos até, mais ou menos, 1950. Aí, perdeu o campo de uma vez, né? Passamos a jogar em outros campos, jogando fora, mas perdemos o campo. Mas o Silva Telles jogou lá muitos anos naquele campo da Joaquim Carlos.
P/1 – Tinha outro time de futebol no Brás?
R – Tinha muitos.
P/1 – Quais eram? Como é que chamava, futebol de várzea?
R – Futebol de várzea, naquele tempo. Nem amador não se chamava. Naquele tempo tinha o Lusitano, outros que fecharam depois, tinha o Heróis da Chama. O Heróis da Chama era feito por bombeiros, por isso que se chamava Heróis da Chama. Tinha o Brás Palestra, tinha o São Paulo, que fechou logo, tinha o time que é o mais famoso de baile, que era no Largo da Maria Marcolina, o Paraíba, tinha um outro time muito bom que era dos feirantes, Feira Livre, tinha um que existe até hoje, mas é só futebol, nunca saiu, Flor do Brás, teve o Belo Horizonte. Aqui no Brás, assim, não. Depois teve o Vila Maria, que é da Vila Maria, com quem a gente jogava, né? Nacional do Bom Retiro, tinha o Ordem e Progresso que depois disputou uma primeira divisão, que era do Canindé, tinha o Maria Zélia, vocês devem conhecer, a Maria Zélia lá em cima, União dos Operários, tinha o Vasco, que é da Vila Guilherme, com quem a gente jogava, Centro da Coroa e muitos outros times que a gente jogava. Lapeaninho. Depois nós disputamos campeonato amador, foi com o Lapeaninho, União Vila Ipojuca, Sampaio Moreira, Durex, Baruel e, muitos times assim, muitos clubes.
P/1 – O senhor foi jogador do Silva Telles?
R – Eu joguei, mas eu era muito... Eu só servia pra ser diretor. Eu entrei no clube pra ser secretário de 1945 pra 1946, aí, em 1948 o presidente abandonou o clube. O clube ficou meio acéfalo, completamente. Aí, nós, moços, que já tínhamos uma outra cabeça, resolvemos fazer uma assembleia. Porque esse rapaz que era presidente era muito bom. Ele pôs dinheiro do bolso dele, gastou dinheiro do clube também, uma coisa que... Então, nós moços resolvemos fazer uma assembleia. O clube tinha que fazer uma assembleia pra poder fazer um Conselho, era a norma, né? De fato, reunimos o pessoal mais ali. Reunimos, fizemos uma assembleia, formamos um conselho e tinha que ter alguém. Mas eu, como eu mexia muito com futebol na Federação Paulista de Futebol, quando a Federação Paulista de Futebol era na Avenida Ipiranga 313, eu mexia. Eu ia muito na Federação pra fazer a inscrição dos jogadores, tudo, eu mexia com isso, né? Para o clube. Então, acabei eu sendo o presidente, naquela época. Mas qualquer um deles, o Fogueira, o Donato, todos eles poderiam ter sido o presidente. Aí, o clube se organizou melhor. Começamos a fazer aquelas festas que se faziam naquela época: concurso de bolo, o bolo mais bonito. Então, vinha vinte, trinta bolos, pra ver qual era o mais bonito, né?
P/2 – Quem mandava esses bolos?
R – Os bolos, eram as famílias que traziam, punham lá, fazíamos uma comissão que votava pra ver qual o bolo mais bonito. Pra trazer o pessoal tínhamos que começar a criar essas coisas, né? Até, uma coisa que nós tínhamos, é o seguinte: convidar pessoal mais velho que foram de outros clubes que fecharam pra vir orientar um pouco a gente, porque a gente era moço. Então, esses mais velhos, Coronel Xavier, o Antônio Manoel Fernandes, e outros, vinham pra orientar um pouco a gente. Não adiantava nós querermos ser donos do Silva Telles se não tínhamos capacidade ainda pra dirigir aquilo sozinho, né? Faltava alguém. Então, havia o concurso de bolo. Naquela época a gente chegou a ter trezentos, quatrocentos sócios. Eram muitos, tinha bastante sócio naquela época.
P/2 – Famílias ou individuais?
R – Individuais. Mas ali era o seguinte, dava um baile, o sujeito vinha com a senhora, ele entrava. Então, era sócio só individual e valia por tudo, né? Depois, fazíamos concurso da rainha, quando a gente arrecadava algum dinheiro. Nós temos muitas fotografias assim. Arrecadava-se dinheiro pra dar os prêmios e trazer gente, né? Fazíamos bailes, por exemplo, os bailes à caipira. A gente ia comprar ou roubar bambu por aí pra enfeitar o salão. Mas com bambu realmente dentro da sede.
P/2 – Como era a decoração?
R – A decoração era com bambus, papeizinhos, vermelho e branco e punha-se gaiolas com alguma coisa dentro, aquela coisa toda. Enfeitava-se tipo moda caipira mesmo. Pedia para o pessoal vir também fantasiado, a caráter, né? Eram muito bonitas essas festas. Então, a gente tinha que criar pra segurar, se não, não se segurava o clube, né? E, assim, foi se levando o clube sempre assim. Os bailes muito bons. Os nossos bailes eram muito bons. Graças a Deus, muito bons. E, depois, com o tempo, como falamos antes, as orquestras, trazendo orquestras boas.
P/2 – O senhor lembra alguma coisa curiosa desse período, engraçada, que tenha acontecido, que chamou a atenção, que ficou na memória?
R – Tem uma passagem só que... Sabe? O sujeito pra se fantasiar ele precisa beber um pouco. Então, um dos nossos Papai Noel, ele chamava-se Luizinho, a gente punha um apelido nele, Luizinho Leitão, porque ele era gordo. E, ele se fantasiava, mas bebia todas. O pessoal vinha vindo do Largo São José do Belém, num carro aberto, com o pessoal em cima do carro, e não sei o que foi que alguém mexeu e eles ficaram bravos e foram partir pra briga. E ficou brigando, todo mundo. Eu não estava, né? Eu sei, depois que aconteceu, depois eles chegaram, fiquei sabendo. Mas acontece que ninguém respeitava Papai Noel. Na hora da briga a turma desceu o braço no Papai Noel. E a molecada em volta chorava, as minhas crianças “Não bate em papai Noel” (risos) Aí, precisou levar ele para as crianças, depois que acabou a briga. O pessoal não sabia se ria ou se chorava. A turma gritava: “Para, não bate em Papai Noel.” A criançada, né?
P/2 – Agora fala um pouquinho do clube de futebol da Light.
R – A senhora diz da Light? É o seguinte, em 1926, um engenheiro, ele era alemão, tomava conta da Light aqui no Glicério e no Cambuci, que tem até hoje ali a Light, né? Na Rua Independência. Mas antigamente pegava tudo aquilo. E, eles tinham muitas luzes claras ali por fora. E tinham os campos de futebol ali. Tinha muito campo de futebol. Ali jogava o Mocidade do Glicério, jogava os Onze Milicianos e mais outros clubes daquela zona. E, ele então, achou que dava pra fazer um campo de futebol. “Se eu acender mais um pouco as lâmpadas aqui das oficinas, dá.” Então, convidou o Silva Telles pra ir jogar lá. Isso em 1926. Eu não lembro o mês nem nada, porque eu não estava lá. Quem me contou esteve lá, tudo, e foram jogar lá. O Silva Telles ganhou deles, de dois a um. Eu tenho até o time que jogou. Tem um que está vivo até hoje, tem novena e dois anos. Miguelito, Reta, Alemão, depois jogava Toneco, Rufe, Freitas, jogava Tatu, Cabeça, Ibra, Capiné, Laureano entrou, o Félix ainda que é de uma família lá debaixo, do Chiquinho. Eles jogaram lá e ganharam de dois a um. O primeiro jogo noturno que teve no Brasil foi aquele lá. O primeiro jogo noturno no Brasil.
P/2 – Ah, é? Foi realmente iniciativa da Light?
R – É, esse engenheiro alemão. Depois eles jogaram, acho que mais vezes com outros clubes, né? Mas o primeiro jogo foi esse aí. Tinha um rapaz que trabalhava na Light e jogava nesse clube, eu vi esse clube jogar depois, mais tarde, já em 1937 eu vi esse clube jogar contra o Silva Telles. Como o Silva Telles tinha um time muito bom, ele convidou e o Silva Telles foi jogar lá, contra a Light.
P/2 – O que mais? Teve alguma outra coisa que houve envolvimento com a Light de algum jeito?
R – Não, com a Light foi esse jogo de futebol. E o clube, depois, disputou muitos torneios, né? Em 1941, o Silva Telles foi vice-campeão de um torneio monstro aqui, um torneio entre Brás, Pari, Canindé, todos esses bairros, o Silva Telles foi vice-campeão, em 1941. Não foi campeão, não vou falar que foi campeão que é mentira, foi vice-campeão. O torneio reunia esses clubes todos, de todos esses bairros. Saía muita briga também, né? Só que as brigas naquele tempo não resultavam em nada grave, em nada mais perigoso. Porque naquele tempo se brigava com o braço. Hoje não. Hoje a briga é de outra maneira, mas naquele tempo... Um dos jogos que mais marcou época foi, mais ou menos, em 1940, 1941. Nós tínhamos naquele tempo um campo que era gradeado e fechado. Naquele tempo, os campos eram todos abertos, né? O único campo fechado e gradeado era o do Juca Santana, aqui na Rua Miller. Então, arrendava. Naquela época, jogou Silva Telles e Flor do Brás. O Flor do Brás era uma dissidência do Silva Telles. O pessoal que saiu do Silva Telles foi formar o Flor do Brás. E, o Flor do Brás se tornou grande em futebol, né? Se juntavam na mesma esquina, Rua Bresser com Silva Telles naqueles bares, o mesmo pessoal. Só que nada de falar muito porque daqui a pouco brigavam, né? Como teve o campeonato marcou. E a Federação naquele tempo, a subdivisão Almirante Barroso, eles marcaram, “Não, tem que ser em campo fechado.” E, o único campo fechado era o Juca Santana. Então, foi jogar lá, Silva Telles e Flor do Brás. Ficou assim, ficou gente de fora porque não cabia o pessoal todo. Os bairros todos. Quem é que não queria ver jogar Silva Telles e Flor do Brás?
P/1 – Quem ganhou Seu Alfredo?
R – Ganhou o Silva Telles de três a dois, né? Foi um jogo muito bonito. Teve uma expulsão de campo de um jogador que foi famoso, Lara, que jogou até no Palmeiras, jogou no Fluminense, no Palestra, ele foi expulso pelo Flor do Brás. Mas foi um jogo muito bonito. Muito bom. Foi um dos jogos que marcou época.
P/1 – Aqui no bairro?
R – No bairro, marcou época. Porque naquele tempo os campos eram todos abertos, né?
P/1 – Como era isso, de campo aberto?
R – Não tinha nada, só o campo. Tinha o campo e não tinha nada em volta, a torcida ficava toda ali. E, nós tínhamos, o Silva Telles tinha uma vantagem, na época bem antiga, o Silva Telles tinha um senhor que ficava fazendo linha para o pessoal não ficar dentro do campo, né? Era aberto, não tinha marcação nenhuma. Então, esse senhor de cor... O Silva Telles tinha uma coisa, geralmente não vinha muito o pessoal de cor no Silva Telles. Depois que começou a entrar muito. Mas não tinha. Não sei, não era por nada. Teve alguns jogadores que jogaram naquela época antiga, o Sabiá, e mais um outro. Mas como diretor não. O Silva Telles teve presidente até 1948, o único homem de cor do clube era o presidente e tinha um senhor que jogava, o Rufo, ele está numa dessas fotografias, ele corria a linha assim, pra ninguém invadir o campo. O bandeirinha era ele.
P/2 – Ficava no chão?
R – Ficava todo mundo de pé, né? Assistindo o jogo de pé, né? O Silva Telles, naquele tempo, gradeou o campo de 1945 pra 1946, quando foi disputar o campeonato amador da Federação Paulista de Futebol. Aí, foi disputar o campeonato amador.
P/1 – Esses campos de...
R – Aí, tinha que gradear, né? Eu não sei qual a ideia, as senhoras têm mais formação que a gente, mas tem uma coisa, me parece que naquele tempo nós tínhamos menos formação, menos cultura, mas nós tínhamos mais educação e respeito. Hoje, se tem menos educação e menos respeito e se tem mais cultura ou educação. Educação, o seguinte, se estudar sobre isso, eu tenho uma formação melhor, tudo, só que educação e respeito falta hoje. Antigamente uma grade de um metro e vinte, um metro e trinta e ninguém invadia os campos. Hoje, para os clubes jogarem é preciso ter uma gaiola de quatro, cinco metros de altura, o alambrado, pra ninguém pular dentro do campo, né? Como é que é? Antigamente nós não tínhamos formação, mas parece que nós tínhamos educação e respeito, né? Nós respeitávamos o juiz. Ninguém pulava o campo não. Não tinha perigo que ninguém pulava. Quer dizer, foi quando começaram os campeonatos, aí teve que se gradear os campos. Aí, todo mundo foi gradeando, né? Foi quando Silva Telles entrou pra disputar a primeira vez, em 1946.
P/1 – Esses campos abertos aqui no bairro, eles eram campos pertencentes ao clube?
R – A maioria da prefeitura. Tudo da prefeitura ou particular, né? Mas a maioria da prefeitura.
P/1 – E onde eles se localizavam?
R – Localizavam-se, por exemplo, o Glicério tinha muitos clubes, o Brás tinha muito. Toda aquela parte ali debaixo do Brás tinha campo. Tinha campo assim. Deixa eu ver se eu consigo lembrar. Tinha, assim, a Rua Emídio Piedade aqui, aqui tinha o campo do São Paulo, aqui tinha o campo do Feira Livre, aqui tinha o campo do Fazendinha, aqui tinha o campo do Flor do Brás. Não, era o Feira Livre, era Feira Livre, depois virou Flor do Brás. Aqui tinha o campo do Paraíba. Não, aqui era Silva Telles, Paraíba era aqui, Paraíba era mais pra cá. Depois deste lado fizeram um campo onde hoje tem a Igreja Santa Rita, 12 de Outubro. Mais para o lado do Canindé tinha um campo que se chamava Dragão Paulista Mocidade. Naquela zona tinham uns campos assim.
P/1 – Era um perto do outro?
R – Perto do outro. Era assim, por exemplo, a rua era aqui, Emídio Piedade, então, aqui era a trave de um campo, que vinha até aqui, aqui a rua dividia o campo, aqui era outro campo.
P/1 – Um campo de um lado da rua, outro campo de outro lado da rua?
R – Outro campo do outro lado da rua. Era assim, depois aqui tinha o Feira Livre. Esse aqui era o melhor campo pra gente assistir porque era assim, o campo era embaixo e a gente ficava sentado num barranco, no morro, uma coisa de terra e o campo eles fizeram embaixo, todo gramado. Um campo muito bom.
P/1 – Por que se chamava Feira Livre esse campo?
R – Era o pessoal da feira livre, os feirantes.
P/2 – E o Flor do Brás?
R – O Flor do Brás era uma dissidência do Silva Telles. Eles jogam futebol até hoje. Mas não...
P/2 – Essa rua no meio era asfaltada?
R – Não, não tinha, a Rua Emídio Piedade era toda de terra naquela época. Asfaltou muito depois. Até, ali, naquela época, em 1933, teve a segunda maior enchente daqueles lados. A maior enchente que teve naquela zona toda foi em 1926. Depois, em 1933, eu não vou contar que teve uma passagem muito maluca comigo, em 1933. Encheu de água até a Rua Tijuco Preto, ali, quando desce a Silva Teles, onde tinha um banco ali, encheu até de água. A água vinha até ali, então, a prefeitura punha barco pra levar o pessoal pra Vila Guilherme, do outro lado do bairro. A prefeitura punha os barcos e levava o pessoal e trazia porque não tinha como vir de lá pra cá.
P/2 – Como é que aconteciam essa enchentes, era o Rio Tietê que subia?
R – Era o Rio Tietê que subia. O Rio Tietê naquele tempo era que nem uma cobra, né? Uma cobra, uma verdadeira cobra. A água era limpa, só que tinha uma coisa, a água limpa, limpa, limpa, né? Depois veio mais enchentes, mas menores. Até onde morava o Donato, veio até ali um pouco de água, mas foram menores.
P/2 – E como foi que seguraram as enchentes? Como foi que seguraram que não aconteceu mais enchentes?
R – O rio foi se alargando, o rio depois.
Melhoraram o rio, canalizaram, um modo mais bem canalizados, então, foi andando, não teve mais enchente.
P/2 – Não teve mais enchente?
R – Não, teve. A água ainda veio de vez quando até umas ruas ali embaixo, vem ainda um pouco de água, né? Vem, vem até hoje um pouco.
P/2 – Eu passo perto onde tinha a cantina, aquela da pizzaria, ali, aquele pedaço ali, enche de água.
R – Onde morava a Dona Antônia também vem, vem sim, um pouco de água, mas já é pouco. Agora o bairro já está bem melhor. Mas enchia muito de água ali, naquelas épocas.
P/2 – Sempre que enchia tinha transporte de barco?
R – Não, até naquela época que teve a parte ruim, a prefeitura punha os barcos pra levar o pessoal pra lá e pra cá. Tinha uns barcos grandes. A gente que era moleque pegava os barcos assim: “Você mora lá?” “Moro.” Depois, na hora de voltar “Agora não tem volta, agora você fica aí.” Mas as pontes, aquelas pontes de madeira, cobriam tudo naquela época.
P/2 – Agora existe uma ponte, você atravessa de um bairro para o outro.
R – Agora tem as pontes por cima. É, fizeram umas pontes lá. Vila Guilherme.
P/2 – Ali é Pari, já, né? Ali é Pari pra Vila Guilherme.
R – Pari pra Vila Guilherme, é um viaduto muito grande. Ah, já faz anos, faz uns vinte anos ou mais, que fizeram aquilo ali, né? Mas antes era meio triste. Tinha umas pontezinhas, uma e outra. Passava-se ali, depois fizeram duas. Aí, as enchentes pararam mais, né? Graças a Deus. Aí, também foram acabando os campos de futebol, né? Tem isso aí. Hoje tem que se fabricar jogador de futebol porque antigamente na várzea era mais fácil.
P/2 – O que houve com aquele espaço que era dos campos? O que houve?
R – As indústrias, loteamentos. Porque aquilo era de particulares, as indústrias foram tomando conta também. E as prefeituras, outra prefeitura tomou conta e foram andando e só sobrou um campo que é o do Vigor lá embaixo, sujeito até a uma hora qualquer acabar. Tem outros campos ali que fogem, já é Belém, ali na Ponte da Vila Maria, do lado de cá, porque aquilo é do INPS. Até o INPS não mexer, vamos ver o quanto eles ficam lá, né? O Silva Telles uma hora, é o seguinte, era muito gostoso o futebol, mas não adiantava a gente querer ter aquela glória de futebol e amanhã falar: “O clube fechou porque acabou o futebol, não tem mais.” Então, nós queríamos que o Silva Telles –
todos que estavam lá pensavam assim – que o Silva Telles tinha que ter aquilo que é próprio, que é dele. Não adianta nada hoje, a gente vai num clube de futebol: “Olha, está vendo? O clube tem isso, tem futebol de salão...” Amanhã a prefeitura cisma, tira o terreno e acabou. Porque esses comodatos de noventa e nove anos é só conversa, né? Porque lá embaixo, no contrato, diz, que a hora que a prefeitura quiser tem um prazo e tem que sair. Então, o Silva Telles achou melhor investir em alguma coisa e ter o que é dele. Não ter o futebol, mas ter o que é dele. Vive dentro do que é dele, ninguém vai tirar mais, né? Acabou um coisa que a gente gostava que era o futebol, né? Pelo menos nós temos um patrimônio que ninguém vai nos tirar. Não adianta ter um campo de futebol que não é nosso e amanhã nós vamos sair. Parece que foi a melhor coisa que o Silva Telles fez, que o pessoal fez tomando essa iniciativa e fazendo isso, né? E, hoje vai se trabalhando, graças a Deus, com futebol. O Silva Telles foi primeiro clube que lançou o futebol feminino em São Paulo. Mais ou menos no ano de 1960. Dona Antônia Mathias Nicola, que era a madrinha do clube, pegou umas moças e fez dois times. Então, ela fazia exibição por aí, né? Ia exibir o Silva Telles por aí.
P/2 – Ainda existe?
R – Não, não, parou logo. Naquele tempo, tinha também essas coisas, né? Até hoje tem ainda essa coisa contra futebol feminino. Veja só, naquela época o que não tinha, né? E, ela foi indo até que as moças foram desistindo. Durou uns dois anos ou três, talvez, por aí, ela tocou.
P/2 – Elas jogavam bem?
R – Tudo o que era possível, né? Foi treinando, iam dando um chutinho lá, mas dava pra apreciar um pouquinho, inclusive faziam exibições. Uma das que eu assisti bem – eu até falei, eu não trouxe o jornalzinho, eu não sei, estava com o irmão do Donato. Nós fomos fazer uma exibição em São Caetano, na General Motors, no clube, na General Motors. Eles pediram pra ir lá, eles foram.
Depois, eles até prestaram uma homenagem no jornal da General Motors e tudo, né? Ela aguentou aquilo um tempo, a Dona Antônia tocou o clube lá um tempo, depois parou, não deu mais pra fazer não. Só mais lá em cima mesmo. Mesmo futebol de salão, a senhora vê que a senhora ia ter um certo preconceito, né? Bobagem, hoje joga tudo.
P/2 – O senhor está contando essas histórias todas, eu perguntaria assim, em que momento isso tudo foi mudando, o bairro foi tomando outra cara, outro costume, outras atividades?
R – Infelizmente, veja só, no Brás, o único clube que praticamente ficou com essas coisas me parece que foi o Silva Telles, né? Tem um outro clube que era uma sociedade, o Ninho, mas era uma sociedade particular do pessoal português, só beneficente, mais nada. Depois formou o Independência, porque o Independência é um clube muito forte financeiramente. Mas ele foi formado em jogo de carteado, né? O Independência foi formado com jogo de carteado, só. Um jogo de carteado muito forte, né? E sustenta o clube, eles têm um patrimônio muito bom, atrás dessa Igreja. Aquela Igreja que tem ali na Avenida Celso Garcia.
P/2 – Essa que é do evangélico Edir Macedo?
R – Até parece que foi vendido, o Independência foi vendido pra eles. Eles estão comprando tudo.
P/2 – Eles estão comprando, a Igreja, né? Mas o clube ainda não conseguiram
R – Eles querem pegar o quarteirão. Clube assim... Depois, o Lusitano parou, o Flor do Brás, que se restringiu a um pouquinho de futebol, tinha um clube que defendeu muito o tênis de mesa, pessoal muito bom. Só que também fechou. A maioria foi fechando, infelizmente essa é a verdade.
P/2 – Enquanto isso acontecia com os clubes o que acontecia com o bairro, paralelamente?
R – O bairro para, né? A senhora vê uma coisa que o nosso bairro ali, ela conhece bem, ontem eu saí um pouco, estava andando lá, perto da sede do Silva Telles, onde o pessoal faz compra. Não tem um supermercado?
P/2 – Tem.
R – Onde é?
P/1 – Tem na Rua Itapiraçaba, onde eu falei com ela até, no 409, ao lado tem um supermercado.
R – Mas é pequeno, né?
P/2 – Não, é grande.
R – Porque...
P/2 – Você lembra de ter visto?
P/1 – Não, não estou lembrada.
P/2 – Tem aqui em cima, tem um na Santos, tem na Rua Santos, o trem que pertence...
R – Ali era o Matarazzo, o Matarazzo fechou.
P/2 – O Matarazzo fechou.
R – Porque eu não vejo. Acho que de uns vinte anos pra cá talvez. Esse comércio de coreanos, eles tomaram conta, né?
P/2 – Bom, nas lojas, aí é roupas.
R – Eles tomaram conta das ruas todas, né?
P/2 – Tem muito tecido, loja de tecido.
R – O Silva Telles eles não pegaram, mas pegaram ali...
P/2 – A Rua Almirante, aquela que eu moro, é todinha, só tecidos.
R – Era tudo residência.
P/2 – Tinha muito comércio.
R – Comércio, mas pequeno. Rua Bresser também tinha. O comércio imperou mais com os coreanos. Agora, a Piratininga toda vida foi isso aqui, né? Toda vida foi só máquinas. Piratininga foi só máquinas sempre. Mas acabou.
P/2 – O Metrô causou alguma influência?
R – Não, não, isso vem vindo, o Metrô, não foi o Metrô. A gente não é contra, veja bem, nós somos todos brasileiros, ninguém nasce onde quer, só nasce onde os pais querem, né? Então, o Brás sempre foi muito bom, mas depois que começou a vingar o pessoal lá embaixo, do norte, acabou o Brás. Infelizmente essa é a pura verdade. Essa é a pura verdade.
P/2 – Onde eles se instalaram?
R – Instalaram-se em tudo quanto foi canto aí.
R? – Principalmente mais aqui perto do Largo da Concórdia.
P/2 – Mas a senhora está falando dos camelôs?
R – Não, tudo, antes não era camelô. Mas começou a vir muito pessoal ruim também, né? Pessoal ruim. Então, foi desvirtuando aquilo. Porque antigamente ali no Largo da Concórdia tinha a Cantina do Lucas que hoje está no Rio, na beira do viaduto tinha a Cantina do Lucas. A primeira cantina a vender sopa de tartaruga e rã. Mas isso foi em 1940 e pouco. Em frente tinha dois restaurantes italianos muito bons.
P/1 – Como se chamavam?
R – Um não lembro, o outro chamava-se Macarolle, era um italiano malcriado que só ele. Aqui pra baixo tinha o Luiz, tinha o 1020. O 1060 foi um dos maiores restaurantes de São Paulo, aqui na Rangel Pestana, foi um dos melhores restaurantes de São Paulo, ele depois saiu. Tinha a Adega do Brás, tem a Adega Castelões, até hoje. A Adega do Brás fechou. O Castelão ainda existe. Quer dizer, o comércio foi saindo. Depois, também com aquelas construções de viadutos, eles vão ficando embaixo, debaixo do viaduto, tudo isso foi... E mais, também, foi a frequência que foi desvirtuando, caindo muito também, né? Caiu muito a frequência. Depois teve uma coisa. Já em 1950 e poucos foi quando acabou o meretrício em São Paulo, com Lucas Nogueira Garcês, então, isso aí tinha que ir pra algum lado e aqui veio muito. O Brás começou a situar isso.
P/2 – Mas ele fechou foi ali naquela...
R – No Bom Retiro.
P/2 – Não, ele fez lá, confinou.
R – Confinou lá, antes. Não foi ele que confinou, parece. Eu não tenho bem certeza.
P/2 – Eu também não tenho. Primeiro estava espalhado na cidade, depois no Bom Retiro. E depois?
R – Depois se espalhava, confinou lá no Bom Retiro, em 1940 e poucos. Depois, ali resolveu acabar com aquilo (o meretrício). Acabou. Acontece que acabou, mas onde vão essas moças? Então, elas começaram a ir, abrir mais aquela zona que a gente fala Boca do Lixo, vamos dizer que seria a Barão de Limeira, ali perto da Praça Júlio Mesquita. Aqueles apartamentos, infelizmente, todo aquele pessoal que morava por ali, a maior parte teve que sair. Outra parte foi pra outro bairro e outra parte veio pra cá. Onde tem estrada de ferro é um inferno também. Chegou, aqui veio e se instalou. Porque naquela época antiga...
R? – Em que ruas?
R – Naquelas ruas todas paralelas ali, Almeida Lima, Joaquim Nabuco... Porque só tinha uma casa de tolerância aqui no Brás, duas, naquela época, década de 1940, 1930 e poucos, por aí. Só tinha duas, eu conhecia muito bem. Uma era indo pela Avenida Rangel Pestana, quando vai chegar na porteira, do lado esquerdo ali, beirando a linha, chamava-se Rua da Cruz Branca. Hoje tem outro nome. Ali tinha uma ou duas casas de mulheres. Eu sei que tinha ali. E, na Rua Casemiro de Abreu, em frente a Sinagoga tinha uma casa também. Aquelas casas, só tinha ali. Depois veio afluindo, então, o pessoal: “Tem uma casa de mulher em tal rua.” Então, começou a ir. Aí, começou também – aí eu vou dizer com experiência – a se abrir esses hotéis de curta permanência por aqui. Mas aí, já não foi brasileiro, infelizmente, porque a Europa aproveitou. Como a gente faz quando lava uma casa, pega água suja e manda pra baixo. A Europa aproveitou mandava o que não prestava pra cá depois que a Guerra, né? Ou durante a Guerra. Foi mandando tudo o que é coisa ruim pra cá, e nós tivemos que engolir. E, aí, foi quando começou a abrir esses hotéis de curta permanência. Quem abria isso era espanhol, português, argentino, turco, tudo isso, todas essas raças, eles que vinham com as experiências deles de lá, abria aqui.
P/2 – Depois da Guerra?
R – Ou quando estava terminando a Guerra que começou a vir o pessoal mandado pra cá. Eles é que abriam os curta permanência. Eu sei porque uma vez na cidade – desculpe eu contar assim – eu estava na cidade junto com uma moça com quem eu saía, fomos andar, ela falou: “Não, aqui pertinho, aí, tem um gringo aí que abriu uma casa.” Era curta permanência! Foram eles que nos ensinaram a fazer isso. O brasileiro não sabia disso não.
P/1 – E aqui teve muitos desses hotéis?
R – Mas aqui abria as casas de tolerância, em lugar de casa de tolerância eles punham hotel. Então, a senhora pode ver, pra quem conheceu o Brás, a Rua Piratininga, a Rua Carneiro Leão, a Rua Caetano Pinto, que era a rua dos espanhóis e dos italianos, mais dos espanhóis, bom, naquelas ruas lá foram abrindo indústrias e hotéis. Quem é que pode andar depois naqueles anos de 1940 e poucos pra frente, os cortiços foram acabando. Naqueles cortiços espanhóis moravam mais de cem pessoas num só cortiço.
P/2 – Como era?
R – Um “cortição”, comprido, vamos dizer, de cem metros, tinha os quartos com a cozinha. Quarto e cozinha. Agora, banheiro, o banheiro era um só pra dez famílias. Então tinha isso.
P/1 – Coletivo? E os tanques?
R – Tanque também, precisava esperar a hora, cada um pra si. Um, dois tanques num cortiço que tinha cem pessoas. Era muito assim. Isso tudo foi acabando, né? Quando o pessoal chegou, as famílias também tiveram que ir indo, foram indo embora e foi se largando. O Brás sofreu muito com isso aí, com o meretrício acabando, o Brás sofreu muito. Isso aí foi acabando. Não passou muito lá pra trás, mas para o lado de cá, do lado direito da Avenida Rangel Pestana, pra dentro ali, ali acabou, né? Rua Joaquim Nabuco.
P/2 – Você atribui aos nordestinos?
R – Não seriam eles. Seria, sabe o que acontece? Eles não gostam de montar o comércio, eles montam essas bancas, e vai acabando. E vinha uns que não era tipo família e eram briguentos naquela época.
R2 – Agora tem outros, tem muito nordestino, mas tem comércio, lojas de roupas, de tecido e tudo.
R – Tem muito agora.
P/1 – Estão estabelecidos?
R – Agora, o Brás sofreu muito naquela época, eu não sei, eu acho também, que acabando com o meretrício...
P/1 – Seu Alfredo, eu nunca tinha ouvido falar nesse termo “casa de tolerância”.
R – Tem um nome muito feio pra falar. Porque na rua onde eu moro tem três casas lá, né? A gente sabe. Sai até no jornal. Sai lá “fotografia, bonita, não sei o quê, rua tal.” Na rua onde eu moro tem três. Até eu falo pra minha mulher: “Nós estamos importantes.” Número 620, número 636 e número 660, parece. Eu lembro até o número. Tinha um nome muito feio que se falava. Mas quando acabou lá piorou muito isso aqui.
P/2 – Os coreanos estão há quanto tempo?
R – Acho que há uns vinte anos, né Wilma? Não chega a isso? Então, acabou. É um bairro que só tem o comércio. Você passa na Rua Bresser, é uma rua triste. Tudo fechado. Durante o dia tem...
R2 – Às sete horas da noite fecham.
R – Fecham, é uma rua triste. Todas tristes porque é só comércio, não mora ninguém. São ruas tristes, dá até medo. Se bem que eles têm uns seguranças em cada esquina, eles pagam. Mas é um bairro que parou.
P/2 – Antes eram só casas, né?
R – Eram casas. Todo o pessoal, quem não gostava de morar lá?
P/2 – Demoliram as casas ou reformaram?
R – Reformaram tudo, trocaram tudo.
R2 – As famílias moram mais em apartamentos, em prédios de apartamentos.
P/1 – Seu Alfredo, eu queria voltar um pouquinho porque a gente não falou nada sobre a sua formação escolar. Com quantos anos e onde foi a primeira escola?
R – Eu estudei num grupo escolar, Orestes Guimarães.
P/1 – Onde era?
R – Na Rua
nima. Era na Rua
nima, agora é lá no Pari, no Canindé. Eu não sei mais. Eu sei que tem lá. Mas eu estudei lá. Eu lembro até o nome do diretor, bravo que só ele. Dr. Juvenal. Naquele tempo nossos grupos eram bem cuidados, tudo, né? Tinha o Grupo santo Antônio do Pari e tinha o nosso lá. Eu falo o nosso porque eu estudei lá os quatro anos. Graças a Deus não repeti nenhum ano. Mas era muito bem cuidado, eu me lembro até hoje.
P/1 – O senhor terminou o grupo escolar e deu continuidade?
R – Depois, eu esperei um pouco e entrei numa escola, aliás, tinha um professor pra me ensinar. Ali perto de onde você mora. O professor Pinto, em frente ao Eduardo Prado, pra eu ter uma noção do que era entrar pra uma academia. Antigamente falava-se Liceu, outros falavam academia, tinha isso aí, academia e liceu, né? Eu fui tomar umas lições lá. Um pouquinho pra poder entrar para a academia.
P/1 – Eles chamavam de exame de admissão isso ou não?
R – Não, não tinha. Dali eu já entrei nesse liceu. Liceu era Acadêmico de São Paulo, era na Rua Oriente, o outro, Academia São Paulo era na Rua São Caetano, eu ia lá na Rua São Caetano. Quando começou o terceiro ano eu tive que desistir porque os rendimentos de casa não davam pra pagar. Era pago, né? E não dava, então, pra eu estudar, né?
P/1 – Aí, o senhor começou a trabalhar?
R – Aí, eu comecei a trabalhar, mas eu fiquei lá até quando começou o terceiro ano. Naquele tempo a língua que se aprendia era francês, não era inglês, né? Naquele tempo falava-se francês, né? Eu estudei até aquela época, depois não deu mais e eu tive que trabalhar, né?
P/1 – E você trabalhou onde no começo?
R – Eu, que nem eu disse, quando tinha doze, treze anos, pra não ficar na rua porque a gente vivia morando perto de campo de futebol, né? Eu ia à tarde no ginásio. Ginásio Acadêmico São Paulo. Aqui era Liceu Acadêmico São Paulo. Então, de manhã, eu acordava cinco e quinze da manhã, naquele tempo a gente não tomava muito banho, lavava o rosto, tal e ia pra padaria trabalhar. Eu trabalhava até a hora do almoço, depois vinha pra casa, almoçava e ia estudar.
P/1 – Que padaria?
R – Acho que uma das melhores padarias que existiu em São Paulo, Padaria Trieste.
P/1 – Onde era Seu Alfredo?
R – Rua Bresser com Silva Telles. O melhor pão que eu comi até hoje, que eu tenho noção, foi aquele. Vinha gente de fora naquela época. O pessoal vinha, tomava o bonde, vinha do Bom Retiro, vinha da Mooca, comprar pão lá. Porque só fazia pão doce no fim de semana, sexta-feira e sábado, né? E, o pão deles, naquele tempo, tinha pão suíço, pão de água, pão suíço, pão redondo, pão de água, né?
P/2 – O que era pão suíço?
R – Pão suíço era um pão pra tomar café, era gostoso. E o pão de água era mais pra refeição, né? Fazia-se naquele tempo o pão doce que nem um corninho, três biquinhos, fazia o pão doce, fazia jacaré. A família vinha comprar, se tinha criança era triste aquilo, né? Mas o pão mais gostoso que eu comi até hoje foi naquela padaria. O pão suíço deles era... Eu trabalhei naquela padaria um tempo, um ano, dois anos talvez.
P/1 – E depois?
R – Depois eu tive que trabalhar na Zona Cerealista porque o meu irmão mais velho trabalhava naquela época lá e eu fui pra lá, né? Fazer pacote. Porque naquele tempo vendia-se o feijão branco, feijão preto, feijão fradinho, grão-de-bico, lentilha, ervilha se vendia em pacote, cinco quilos, né? Nem todo armazém aguentava comprar um saco porque demora pra vender. Não é como hoje que está empacotado. Então, vinha lá: “Moleque, precisa fazer cinco quilos de grão-de-bico, cinco quilos de ervilha, dez quilos disso aqui.” Tudo pesado assim. Então, eu fui trabalhar nessa época.
P/1 – E tinham vários armazéns assim?
R – A Santa Rosa era armazém, cheia, de ponta a ponta. Só que naquela época também tinha uma coisa, na Rua Santa Rosa passava o trenzinho de carvão, do gás. Era o seguinte, a Rua Santa Rosa começava aqui, na Rua do Gasômetro, ela começava aqui, daqui pra cá, mas aqui era o Gasômetro, desse lado da rua e aqui começava a Rua Santa Rosa. Mas ele tinha o trenzinho dela, pelos trilhos que ia até o Largo do Pari – não sei se você chegou a conhecer o Largo do Pari, onde hoje só vende coco, só tem caminhões de coco, melancia, jaca, e isso aí.– então, atravessava a Rua Santa Rosa e ia lá. Lá eles deixavam os vagões vazios e traziam os vagões carregados de carvão coque que vinha de Santos. Aquele carvão coque vinha mais do exterior, né? Vinha por navio e punha no vagão, e aqui eles tiravam e passava aquele trenzinho o dia inteiro, pra lá e pra cá. O caminhão estava encostado, tira o caminhão, precisa tirar o caminhão pra passar o trenzinho.
P/1 – Era num trilho na rua que vinha um carrinho com carvão? E esse carvão vinha do exterior, vinha de Santos pra cá. Em vagões e daqui passava para um vagãozinho pequeno, que era uma bitolinha estreita para o gás. E, naquele tempo se curava bronquite, essas coisas, dizem que curava, o pessoal ia lá, onde tinha o gás, esquina da Rua do Gasômetro, a Rua da Figueira é a Rua Santa Rosa, ia esperar sair, pelos bueiros, saia aquele ar e o pessoal ia tomar aquele ar lá. Ficava um tomando o ar, saía, entrava outro. Dizem que fazia muito bem. Diz que curava naquele tempo porque era puro aquele gás, era do carvão mesmo, puro. Hoje eu não sei como é que é. Mas, então, o pessoal ia lá tomar aquele ar pra respirar. Muita gente fazia isso.
P/1 – O senhor lembra da região onde foi instalado depois o Palácio das Indústrias?
R – O Palácio da Indústrias já existia.
P/1 – Já existia na sua época?
R – Aquilo foi feito pelo Ministério do Trabalho, aquilo foi feito pelo Ministério do Trabalho. Ali, eu sei porque tirei lá a minha carteira profissional, em 1945.
E, já muito antes, tinha uns vizinhos nossos, o Seu Antônio Fontes, José Fontes, eles eram diretores lá do Ministério do Trabalho. Ali era o Ministério do Trabalho.
P/1 – Era lá?
R – Ficava ali, a gente tirava a carteira profissional lá. Eu tirei lá por causa deles, porque eles conheciam e eu precisava tirar. Mas eu poderia ter tirado antes, né? Mas eu fui tirar lá a carteira profissional, em 1945.
R2 – Na história não dá que ali foi a casa de Dom Pedro, na época?
R – Não sei. Eu conheci como Ministério do Trabalho.
P/2 – E, depois, não foi Palácio das Indústrias?
R – Aquilo virou Palácio das Indústrias...
R2 – Mas depois de Dom Pedro.
R – Muito tempo depois. Antes disso aí, aquilo ali foi, acabou a central. Porque a central de polícia nossa era no Pátio do Colégio e ali terminou e veio tudo ali pra baixo. Então, ali é que tinha a sangria dos presos que não queriam contar, né? A polícia ficou muitos anos ali depois. Mas antes da polícia aquilo foi Assembleia Legislativa. Eu me lembro porque... Era Assembleia Legislativa e nós tínhamos ganhado um dinheiro do João Mendonça Falcão, deputado estadual, foi presidente da Federação Paulista de Futebol muitos anos, mas nós, o clube naquela época, traiu ele, parece. Não sei o que foi lá e no lugar de apoiar bem ele, apoiou outro candidato. Pediram pra ir lá, e eu falei: “Não vamos que ele vai soltar uma.” Ele falava besteira, ele não era um homem de formação, camarada bom mas sem formação. Eu falei: “O João vai por alguém pra fora.” E, nós fomos lá. Fui eu, o Eduardo Corrêa, agora não lembro tudo. Eu sei que o Eduardo Corrêa estava. Teimaram, eu falei “Não vai.” Eles foram no armazém, naquela época eu já era moço formado, né? Foi por 1950, por aí. Eu sei que já tinha Assembleia naquela época. Fomos lá. Esperamos lá. Quando entramos, “João Mendonça Falcão.” Aí, o rapaz: “Pode entrar, entra lá.” Entrou, chegou lá, era o pessoal do Silva Telles. Ele falou: “O que vocês querem aqui?” “Aquele dinheiro.” “De futebol eu trato na Federação Paulista. Pode sair, sai, sai. Futebol eu trato lá, não trato aqui. Pode sair, pode sair.” Aí, o Eduardo, que conhecia ele melhor, era mais velho, o Eduardo Corrêa, falou “É, ô João, mas que...” “Não, não, aqui eu sou deputado. Futebol é lá na Federação, pode ir lá. Aqui não trato de futebol.” Eu falei, ele ia por a gente pra fora. O Antônio da casa Portugal ficava: “Por que nós vamos lá? Por quê?” Não sei o que fizeram de política lá que a coisa deu errado e ele nos pôs pra fora. Depois ele deu uma verba lá. Fomos buscar, pouca coisa. Na Praça da Sé, fomos buscar até. Mas a Rua Santa Rosa até hoje tem comércio lá, mas é um comércio bem mais baixo, né? Bem mais baixo. Inclusive estava pronto pra sair de lá com aquele prédio com nome, de cento e oito andares.
P/1 – Ia pegar aquele pedaço?
R – Ia pegar tudo. Ia pegar uma área enorme, desde a Rua do Gasômetro, só não tirava o Palácio ali, Palácio do Pitta. Mas ia pegar até esse Largo do Pari.
P/1 – Isso aí não vai pra frente.
R – Não, não vai pra frente porque todo mundo quer ganhar dinheiro. Esse dinheiro que eles estão pra fazer esse prédio – eu soube por uma moça que é chefe de uma multinacional junto com meu sobrinho aqui no ABC – esse dinheiro é dinheiro sujo da Europa, dinheiro de sonegação, dizem que é. Então, é muito dinheiro. Eles aplicam nos outros países porque eles não podem aplicar na Europa. Então, tem que aplicar, esse grupo, eles aplicam fora, então, resolveram aplicar aqui no Brasil. Já teve uma outra história de Caraguatatuba, mas agora é aqui em São Paulo. Então, vieram aplicar, justamente mais um sujeito que tem uma vida meio pendurada, o Mário Garnero. A gente não sabe, o Mário Garnero. Não sei, dizem. Acontece que eles foram pedir para a Câmara Municipal.
P/2 – Onde que entra esse Mário Garnero?
R – Não, o Mário Garnero seria o intermediário entre esse grupo e eles, né? Agora, ninguém quer deixar isso barato. Eles iam desapropriar pagando o valor exato. Muita gente já estava se preparando. Até, na Rua Benjamim de Oliveira tem uma garagem automática, que a gente fala lá, parece que já iam até fazer reunião do pessoal que é dono da garagem. Eles vão pagar pelo valor, nós vamos ver o valor, não tem nada de... Vão pagar direitinho. Acontece que todo mundo quer ganhar dinheiro em cima. Qual é o vereador que não quer tirar uma lasca disso, qual é o secretário que “É, porque vai ficar mal, já falaram que vai ficar muita sombra em São Paulo, então, vai tirar, 108.” Então, cada um pôs um empecilho. Agora, se eles têm todo esse dinheiro, sonegando ou não, acho que eles são espertos, né? Ou somos nós espertos, queremos tirar dinheiro deles. Tem a maquete pronta deles, já está na Rua Paula Souza essa maquete. E, parece que não vai sair não. Eles pararam.
R2 – Eu não ouvi falar mais.
R – Eles pararam e vão aplicar em qualquer outro lado. Em um dia qualquer vão aplicar.
P/1 – Eles vão arrumar outro lugar agora.
R – Vão, porque não adianta falar “Não, isso aqui é bonito.” Mas nós temos que nos conformar que o progresso traz a coisa. Traz e essa zona era bom que saísse daí. A melhor coisa que vinha. É tudo coisa velha, cheio de rato, cheio de bicho, cheio de tudo. A Zona Cerealista, a parte mais nova que tem lá é de 1954, foi quando abriu a Rua Mendes Caldeira. Quando o Jânio Quadros mandou os batateiros de Pinheiros embora, vieram pra cá alguns. Porque a Rua era assim, tinha a Rua Américo Brasiliense aqui, a Rua Santa Rosa até o Largo do Pari, aqui eram os armazéns e aqui era a Companhia Mecânica Importadora de São Paulo do Conde Siciliano, essa ia da Rua Santa Rosa até a porteira, essa Companhia, muito grande. Teve um tio meu que foi motorista dele viajou pelo mundo todo com esse Conde. Esse Conde levava ele de motorista. Naquela época, de 30 e pouco. Esse meu tio, ia de motorista com ele, pra todos esses lados do mundo. Eles resolveram vender e essa firma Mendes Caldeira passou a vender, mas abriu uma rua aqui no meio. Então, montou armazém aqui, a Rua Mendes Caldeira, no meio e era armazém aqui, que dava pra estrada de ferro. Então, montou essa rua. A parte mais nova que tem de lá é essa aí, de 1954. O resto, tem coisa que é de 1800.
P/1 – O senhor sabe por que se instalou a Zona Cerealista aí?
R – Olha, sinceramente... Eu acho que por ser perto do mercado e perto da ferrovia. Porque naquele tempo nós tínhamos o mercado ali na Praça Fernando Costa, né? Depois veio para o Mercadão, né? E ali começou a se instalar. Eu tenho a impressão também por causa da estrada de ferro. E foi se abrindo. E, depois, não é, porque ali, muitos dos comerciantes eram bareses, naquele pedaço da cidade a maioria é italiano, bareses, os donos maiores de armazéns eram eles, né? Eles que foram montando os armazéns ali. Eu trabalhei ali naquela época, depois voltei novamente em 1954, pra lá, pra Zona Cerealista. Mas hoje está acabando.
P/1 – Seu Alfredo, em um determinado momento da entrevista o senhor citou os bondes, o senhor tomava bonde?
R – Tomei bonde muitos anos. Eu tomava o Bonde Bresser, na Rua Bresser com Silva Teles, naquela época de 1942 pra frente. Eu tomava o bonde e descia no Largo de São Bento e depois atravessava o Anhangabaú pra na praça Ramos pegar o Pinheiros, né? Quando eu perdia o horário do Bresser ou ele estava atrasado, a gente chegava muito cedo, então, andava à pé na Rua Silva Teles, Rua Maria Marcolina e pegava o Camarão. Bonde Camarão, que ia da Rua Oriente até a Praça Ramos. Na Praça Ramos pegava o Pinheiros. Só que naquela época, em uma hora a gente ia até Pinheiros de bonde, com dois bondes.
P/1 – Hoje não chega mais, de ônibus?
R – Hoje você não chega nem até a cidade. Depois eu passei a morar no Belém, eu pegava o ônibus Paissandu, Água Rasa, Paissandu, na esquina da Rua Herval... Descia no Paissandu, atravessava a Conselheiro Crispiniano, parava ali no Mappin, pegava o bonde Pinheiros e em uma hora a gente ia pra lá.
P/1 – O bonde tinha hora certa para passar?
R – Tinha mais ou menos aquele horário certo de passar, o pessoal já sabia. Os próprios cobradores, quando eles eram camaradas, eles batiam o sininho deles, “Acho que o cara vem correndo”, aí já aparecia aquele camarada correndo. Já sabia que o pessoal pegava aquele bonde, o pessoal esperava. Olha, ainda tem alguém, agora como a gente já está com idade, pega o ônibus e fica na frente. Tem motorista que não quer nem ver velho, não adianta falar que é velho, não quer nem ver. Mas ainda tem uns motoristas que ainda são desse tempo. Eu moro ali na Liberdade, então, eu vou à Conselheiro Furtado e pego o ônibus pra ir até o Parque da Aclimação. O ônibus vai
pela Machado de Assis e Cardoso de Almeida, né? E pega os bairros assim, né? Então, ele já tem o horário, ele pega aquele pessoal com horário. Ele vem vindo lá, de vez em quando, o motorista olha assim de longe – de vez em quando eu pego o ônibus e fico olhando – e o motorista fala para o cobrador: “porra, está faltando alguém. Está faltando aquela moça lá. Não está no ponto.” Ele fica olhando e já vê que não está no ponto. “O que será?” Daqui a pouco aparece alguém correndo lá e ele fala “Apareceu.” Outra hora “Fulano não veio hoje, né?” Eles lembram os passageiros. Eu falo para o cobrador: “Pô, ainda tem gente assim que nem vocês, rapaz? Que lembra do passageiro.”
P/1 – Por que na época do bonde era assim?
R – Naquela época, tinha muito motorneiro que gostava, esperava um pouquinho, que ia chegar, se era uma senhora que ia descer parava até no meio do caminho pra descer, não é? Hoje não, hoje é muito difícil, você vê um velho descendo, uma senhora, o cara toca o ônibus e “Desce aí!” Infelizmente a maioria é assim, uma boa parte é assim. Infelizmente é que nem minha mulher fala “Ninguém gosta de velho.” Mas ainda tem alguns, que nem eu vejo naquela linha de ônibus, pelo menos eu vejo alguns motoristas e cobradores, principalmente motoristas, que ainda respeitam o pessoal e espera, sente falta do passageiro, ainda tem.
P/1 – Seu Alfredo, também, a gente ouviu muito falar do passeio na Rangel Pestana.
R – Então, aí, era o seguinte, nós fazíamos o “footing”, eu sou contra isso aqui, falar isso, porque eu acho que tudo tem que ser feito em português.
P/1 – O “footing”?
R – Falar “footing”. A Rua Celso Garcia com a Rangel Pestana, vinha da Rua Bresser até o Largo da Concórdia, né? Naquela época de 1930 e pouco, 1940, que depois a gente parou já. Então, a gente ficava ali pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Mas mais de um lado, era só do lado, era só do lado de lá, vamos dizer, quem vai na avenida do lado esquerdo. O lado direito não tinha. Até tem uma passagem gozada, depois vou contar, é de São Caetano, é pra rir. Naquele tempo ficava passeando ali, pra lá, pra cá, pra lá, pra cá. Ali, olhando. E, naquele tempo, a gente pra falar com uma moça dava uma piscada (risos), dava uma piscada, né?
P/1 – E ela parava?
R – Parava, depois vinha, parava, depois vinha conversar um pouquinho. Mas era assim o passeio. E o cinema, a gente tinha o cinema. Porque rádio também pouca gente tinha. Era o futebol e as moças, o cinema, baile pouco, também naquela época, não se tinha. As moças só iam em baile se ia a família toda, né? Naquele tempo tinha o Paraíba, tinha o Almeida Garret, aqui na esquina da Rua Cavalheiro, Joaquim Nabuco, em frente ao Largo da Concórdia ali. Tinha uns clubes ali, tinha o Minas Gerais. Mas as moças que frequentavam os bailes, muitas vezes até era mal citadas, né? Tinha o Nacional, tinha o Brás Palestra. Mas ia muita família também. Muita gente casou, por exemplo, casava, ia conhecer a moça no baile, né? E casava assim. Mas o pessoal não gostava de baile “Moça que frequenta baile!” Aquelas conversas de... Mas o passeio da gente que era moço era ali, que era na avenida. Durou muitos anos aquele passeio ali, muitos, muitos anos.
P/1 – Era o quê, final de semana?
R – Era só de domingo. Sábado era pouco, mas domingo enchia. Domingo era pra valer mesmo. Domingo!
P/2 – O que o senhor mais gosta no bairro, no Brás?
R – No Brás? É a minha Paixão: Silva Telles. Mais nada. Deu isso e não tem mais jeito, depois que pegou o micróbio, não teve mais jeito.
P/1 – Ficou contaminado?
R – Não teve mais jeito.
P/2 – Se o senhor pudesse melhorar esse bairro, fazer alguma coisa pelo bairro, vamos dizer, uma coisa que está na sua cabeça, o que seria?
R – Eu acho que teria que virar um bairro residencial. Teria que ser mais residencial, viu? Hoje, o bairro nosso é comercial. Só comercial. Então, aquele, que nem antigamente. Bom, nem pode ter hoje, né?
P/2 – Fábrica não tem mais?
R – Não, todas as fábricas foram indo embora, né? Acho que não sobrou nenhuma fábrica. Tinha mais lá pra baixo na Rua Emídio Piedade, as indústrias mesmo foram embora, né? As indústrias foram embora. Tinha muita fábrica de doce, as fábricas de doce foram embora. É só o comércio mesmo. Eu não sei, mas eu acho que o comércio começou um pouco a decrescer, eu já vi lojas pra alugar. Antigamente não tinha. É como na Zona Cerealista. Na Zona Cerealista na nossa rua lá, na Américo Brasiliense, não ficava uma rua, falava que alguém ia sair já tinha outro pra entrar. Hoje já tem armazém pra alugar. A coisa ficou ruim lá. É muita oferta e menos procura. Eu acho que tudo foi virando. Todo aquele contrabando e coisas que vinham era tudo pra cá. Hoje o contrabando, não precisa ir ao Paraguai pra pegar contrabando. O contrabando paulista, pelo menos, é oficializado.
P/2 – Como chegava antigamente o contrabando?
R – O contrabando antigamente era feito pelos caminhões que vinham do Paraguai. Hoje o contrabando nosso, há muitos anos, o governo federal oficializou o contrabando. Porque é o seguinte, é muito fácil. O Brasil tem um tratado com o Paraguai, tudo o que ele exportar, tudo o que ele importar pelo mar, pode entrar no Brasil pelo porto de Paranaguá e pelo porto de Santos. Agora, o Paraguai fica aqui, aqui é Paranaguá. O Paraguai fica aqui, aqui ele fica. Por que tudo o que vem para o Paraguai tem que parar em Santos se tem que ir daqui até lá? Não, espera, então, teria que ficar em Paranaguá. A lógica, né? É uma reta pra lá. Não fica, né? Fica aqui. Porque tudo isso aí não é nada. 10% ou 5% ia para o Paraguai, o resto fica aqui em São Paulo, ou vai para o outro lado. Ficam por aqui. Isso aí é certo que fica aqui. Não precisa trazer, esses containers todos ficam. Há um ano, pouco atrás, foi preso ali no Matarazzo, perto da Zona Cerealista, cheio de containers lá, com tudo quanto era coisa desses coreanos e chineses. Se pega, eles vão muito pra Sorocaba. Esses containers ficam tudo por aqui, é 10% só que vai para o Paraguai. Quando fala que vai para o Paraguai, se não vai para o interior, com outra nota. E tudo nota de firmas que não existem, ninguém paga imposto. Quer dizer, nós temos um contrabando oficializado. Por que eles não ficam no Paranaguá que é pertinho? Eles vêm aqui. Hoje não tem mais. Eu acredito que com isso aí, no interior, esse pessoal hoje tem comércio, não precisa vir à São Paulo comprar.
P/1 – Seu Alfredo tem uma imigração boliviana e paraguaia para o bairro também?
R – Tem, muito. Boliviana. Paraguaia não. Boliviana e Colombiana estão cheias.
P/1 – Eles trabalham com o quê?
R – Eles trabalham com qualquer coisa. Eles não se metem muito. Esse ramo mais é chinês e coreano, ramo de roupa, é chinês e coreano. Agora, boliviano e colombiano se metem com outra coisa e a maior parte deles, quer saber, é muito fácil encontrar. Tem mais uma raça, a romena. A senhora vai ver, vai na Zona Cerealista e no mercado, vê eles catando coisas pra depois refazerem e revenderem.
P/1 – Que coisas?
R – Frutas e verduras que se joga fora, eles vão tentar recuperar pra vender. Vê a miséria que eles passam ali na Zona Cerealista. Fica assim, o marido fica com o carro aqui, um carro velho, mas fica lá com o carro, e vêm aquelas bolivianas, colombianas com criança, com tudo, num estado que a gente tem pena. Mas, tem pena de tudo, mas vamos ter pena primeiro dos nossos. Vem lá pedir batata, pegar tudo. A turma dá batata podre, aquela escolha que a gente tem, dá tudo pra eles. Eles vão lá, catam, arrumam, pra depois ir vender por aí. Vão vender por aí. Eles se submetem a isso. Lá na nossa Zona tem muito deles, na Zona Cerealista.
P/1 – E romeno também?
R – Agora estão os romenos com essa história também. Dizem eles que é por causa de religião que estão mandando embora. Na nossa zona não. Eu moro ali, então, eu vou à feira do Glicério, e na cidade anda muito, eles vêm com um pedaço de papel escrito: “Eu sou romeno, estou passando fome por causa de religião...” Com um papel e uma pedaço de pau, eles andam assim na cidade, né? Pedindo. E na feira do Glicério está cheio disso agora. Senhora com criança, homens. Você vê que estão mal alimentados, mas com aquilo lá. O pior é que eles vêm pra Argentina e a Argentina joga tudo pra cá, né? E, nós estamos cheio disso aí também. Boliviano e colombiano, é como o nigeriano, qual é o futuro que essa gente traz pra nós? Nada. Nós estamos recebendo isso aí só pra dar trabalho. E o pior é que vem... zonas assim, que nem o Brás, que tem estação, junta muita gente. Vem tudo para aí. Infelizmente nós estamos dessa maneira, viu? Colombiano e boliviano não traz futuro nenhum e o nigeriano traz só vício. Pode ver, só trazem eles com coca, com droga, tudo o que é besteira, né?
P/1 – A gente está encaminhando a entrevista para o final, então, eu gostaria de saber o que o senhor tirou de experiência dessa vivência no Brás que o senhor gostaria de deixar registrado?
R – Vivi a vida toda aqui e gosto do Brás, né? Hoje já não é mais aquele nosso Brás mas a gente gosta porque nós temos o nosso clube ali que ainda pode fazer alguma coisa ou ajudar que nem agora. Vamos ver se a gente consegue uma colaboração, a Wilma que gosta também disso, uma hora qualquer começar a fazer o Natal das crianças pobres. Fazer alguma coisa por alguém.
P/1 – Retomar o Natal das crianças pobres?
R – Retomar o Natal das crianças pobres. Fazer alguma coisa por esse pessoal, fazer alguma coisa pelo bairro. Porque muitas vezes não é fazer pelo Silva Telles, é fazer, recuperar essa molecada que pode pegar um vício, tudo. De repente a gente pode fazer alguma coisa por eles ainda. Porque se nós formos esperar as autoridades, então... A gente vê muita criança ali. Não sei até a gente pensar numa coisa, numa aula. Formar até uma... ajudar uma escola, fazer uma sala de aula, a gente vê.
P/1 – Pra encerrar agora, eu queria perguntar se o senhor tem algum sonho.
R – De ver o meu Silva Telles nunca fechar. Nunca acabar.