Museu da Pessoa

Mercador de tecidos

autoria: Museu da Pessoa personagem: Aziz Riskallah Ibrahim

P/1 - Senhor Aziz, para a gente começar, eu gostaria que o senhor por favor dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.

R - Meu nome completo é Aziz Riskallah Ibrahim, eu nasci no dia 9 de junho de 1921, numa cidade da Síria, naquele tempo, hoje ocupada pela Turquia, chamada Antióquia. É uma cidade Santa, aonde São Pedro e São Paulo encontraram para formar a nova religião cristã universal, porque a primeira foi fundada em Jerusalém, e depois fundaram... Porque foi fundada... a primeira religião cristã que foi fundada em Jerusalém, ela era para os judeus. Então São Paulo, esse nome São Paulo de Tarso, Tarso é uma cidade que fica a uns 90 quilômetros da minha cidade, é um porto no Norte, mais para o Norte. Então eles se encontraram em Antióquia, porque Antióquia é uma história, ela representou a terceira cidade do mundo, que ela vinha depois de Roma e Alexandria, vinha Antióquia. Que Antióquia era a capital de um dos generais, do Alexandre, que herdou aquela parte, porque quando morreu o Alexandre, quem herdou o Império do Alexandre foram três generais deles. Um ficou com o Egito, que é chamado Ptolomeu, um ficou com a Europa, que é chamado Tancredo, e um ficou com a Síria e o Oriente todo. A Síria naquele tempo era a Síria de dez ou doze Estados que estão lá. Então ele cria um capital. E lá nós temos um rio que nem o São Francisco aqui, chamado Al Aaci. Al Aaci é o contrário, é um rio voltado, porque ele sobe do Sul para o Norte, e emboca no Mediterrâneo.

P/1 - Qual é o nome desse rio?

R - É chamado Orontes. Al Aaci é o nome dele em árabe, que os árabes usaram o nome dele. Mas o nome grego dele é Orontes. Então ele chegou lá e, que nem em Brasília, planejada, ele fez um Império, e ocupou a Síria inteira, isso no tempo de Alexandre. Então eu sou de lá e me orgulho da minha cidade natal e de meu país.

P/1 - O senhor poderia falar o nome dos seus pais?

R - O meu pai é Riskallah Bechara Ibrahim e minha mãe é Salma Lawand Ibrahim.

P/1 - E eles nasceram na mesma região?

R - Meu pai nasceu em 1872 e minha mãe nasceu em 1890. Tiveram oito filhos, dois homens e seis mulheres.

P/1 - Seis mulheres e dois homens, incluindo o senhor?

R – Sim. Meu irmão já é falecido, chamado Bechara, em nome do avô, como era costume. As meninas chamavam-se Mariana, Alie, Júlia, Selma, Nahia e Henrietta, ficou Henrietta. Mas era Henriete o nome dela. Eu ainda tenho cinco irmãs vivas, faleceram dois, o meu irmão Bechara e a minha irmã Mariana, que são mais velhos.

P/1 - O senhor conheceu os seus avós?

R - Não.

P/1 - Nenhum deles?

R - Nenhum deles.

P/1 - O senhor conhece a história deles, os pais do senhor passaram isso?

R - O meu pai contava da família dele, que eles eram em quatro homens e duas mulheres: Nazha e Victorine. O mais velho era Ibrahim Bechara Ibrahim, que era o primogênito, porque eles repetem o nome do avô.

P/1 - Invertido, né?

R - É. Depois tinha o meu pai Riskalla, depois tinha um chamado Nagib e depois um chamado Fuad. Da parte da minha mãe, meu avô chamava-se João Lawand Katon, o nome dele e a minha avó eu conheci ela. A minha avó materna eu conheci e convivi com ela. Chamava-se Khatun. Então eu conheci eles. Ela, meus tios maternais eram dois homens e três mulheres.

P/1 - Qual era a atividade dos seus pais lá na Síria?

R - Meu pai foi alfaiate, depois imigrou para o Brasil em 1914. Chegou aqui, ele foi para o Rio de Janeiro. Em 18 ele pegou a febre espanhola, não morreu porque Deus não quis. Então eles mandaram ele para o litoral, e viveu com uma família no litoral, trabalhou como alfaiate, e voltou em 1920, fim de 19, começo de 20. Eu nasci em 21, então nós somos lá em casa duas parcelas, a primeira três e depois cinco.

P/1 - A primeira nascida aqui?

R - A primeira era um homem e duas mulheres, e depois vem eu e mais quatro irmãs, as quatro são vivas. Eu tenho uma irmã, a mais velha hoje está com 87 anos.

P/1 - O senhor sabe por que ele veio para o Brasil exercer o ofício de alfaiate?

R - Filha, a terra lá, até 1920, que acabou o Império Otomano, todo mundo vivia lá sob ocupação otomana. E os otomanos já estavam em decadência, tanto mais que dividiram o Império deles. Os que tinham, viviam lá, a vida não é que nem aqui, que aqui é uma terra de oportunidade, uma terra de liberdade, e todo mundo tem oportunidade, pode ir de zero passar para dez milhões. Mas lá não pode, não pode porque o campo não dá. As cidades são relativamente pequenas e a Grande Guerra matou muita gente de fome lá. Aqui nós nunca morremos de fome, porque só comemos banana e já vivemos. E lá não tem. Lá o que morreram de fome é em grande quantidade. Não tinha, porque o governo pegava as (colheitas?), precisava para a Guerra, para os soldados. O algodão plantado ia para lá. E todos os Estados faziam isso, não só os turcos que faziam isso. Então nós somos um povo... o povo sírio é um dos povos mais antigos do mundo. Nós temos hoje mais ou menos uns dez mil anos de civilização, não é de história. Se você olha aquela zona todo, do Iraque até o Mediterrâneo, Chipre _______, nós demos ao mundo o alfabeto, nós demos ao mundo o domínio do mar, porque era um dos primeiros navegadores que chegaram, nós chegamos até aqui antes dos portugueses. No Rio de Janeiro tem uma pedra lá na Gávea, chamada Pedra do Rei, se você olha de longe, assim, é a cara de um desses nossos reis que faziam a barba rodada, assim, compreendeu? Então nós fomos invadidos por todos os conquistadores do mundo, nós conquistamos e fomos conquistados. Depois que Roma conquistou, veio a Roma nova, que é Constantinopla. Depois de Constantinopla ficaram os Turcos, então desmantelou tudo. A turma reclama que há muita questão de religião, há muita questão de divisão, é o tempo de ocupação. Por exemplo, no Brasil mataram Tiradentes, o quê que fez Tiradentes? Tiradentes estava lutando pela sua liberdade. E lá, então, em geral, o invasor, o ocupador, como se diz, ele tira... o primeiro que tira é as liberdades. Então o país ficou empobrecido, e veio a Guerra Mundial, a Primeira Guerra Mundial deixou todo mundo pobre.

P/1 - A Síria virou protetorado francês, não foi, nessa época?

R - Foi protetorado francês e outra parte protetorado inglês. Porque a Síria propriamente dita, a Síria de hoje, Palestina inteira, Transjordânia, Iraque, Kuait e Líbano, esses são a Síria, o que era a Província Síria no Império Otomano... e nós entramos na Guerra e ajudamos os Aliados daquele tempo para se livrar dos turcos, prometeram a nós liberdade. Prometeram a nós um Estado. E formamos um Estado, porque o xerife Hussein, que veio conosco lá da Arábia, da Arábia Saudita hoje, esse que foi... que os sauditas pegaram dele o poder, ele veio, e o filho dele era para ser um rei na Síria. Mas eles perseguiram e invadiram nós, em 1921, com armas, bombardearam Damasco e mataram, houve uma batalha simbólica nossa, para mostrar que nós não vamos se entregar, e morreu até o ministro da guerra nosso, chamado Yussef Elgazi, naquele tempo. Então isso criou uma pobreza total. Agora, antes dessa Guerra, por exemplo, eu, na minha cidade, eu conheci um filho de um homem que imigrou para a América. Eu conheci um filho de um homem que imigrou e voltou. Voltou para lá, ele trazia na cintura dele parece que cem libras esterlinas, porque naquele tempo a libra esterlina era ouro, para carregar. Então ele voltou, comprou uma propriedade na cidade, comprou uma casa, comprou um sítio e se elevou-se. Então, sabe como é, isso todo mundo quer imitar para ser o melhor.

P/1 - E o seu pai conseguiu juntar algum dinheiro aqui?

R – Juntou pouco, porque ficou doente e não conseguiu fazer dinheiro.

P/2 - Por que ele voltou?

R - Voltou porque ele não quis, ele não quis ficar. Podia ter chamado minha mãe para cá, ele não quis. Pode ser a doença, eu vou contar depois um caso, prefere-se que tenha gente por de volta. Então o que acontece? Ele voltou. Então, aqui ele criou... e em 1860, no Líbano, os estrangeiros movimentaram druzos contra os maronitas e houve matança. Então muita gente demandou os primeiros imigrantes para a América e, eu creio, a maioria era libanesa, no princípio. Então entre 14, antes de 14 e depois de 14, a imigração nossa para cá não era para ficar no Brasil. A imigração vinha para cá para fazer dinheiro, juntar dinheiro, não gastar nada aqui, e voltar para lá, para comprar e viver. No fim de 1925, 28, 30, já tinha gente contra essa idéia. E já tinha gente que mandava buscar noivas de lá para casar. A minha irmã veio em 1928 com meu irmão, por um patrício nosso, que o irmão dele era casado com uma prima dela.

P/1 - É uma prática corrente ainda, né?

R – Não, estranhamos essa atitude, porque hoje a liberdade é diferente. Mas naquele tempo a moça que era de uma família não podia casar com quem quiser. Ela tinha que casar com um moço com aprovação da família. Não que ele obrigava ela a casar. Ela podia escolher entre dois, três e quatro. Mas isso como hoje: "Eu quero ele, o que ele for." Vira as costas e saiu da casa, não existia nas tradições, não só nossas. Aqui no Brasil não era permitido isso também.

P/2 - E Antióquia, essa cidade que o senhor nasceu, como ela é?

R - É uma cidade à beira de um rio, hoje é uma cidade de 120, 130, 150 mil habitantes no máximo. Porque ela foi... ela era uma cidade construída rica, todos os Césares de Roma passaram uma temporada em Antióquia. E se você quer saber sobre a religião, você pega os Atos dos Apóstolos, você pega uma Bíblia, passa todos os Evangelhos, e você lê até... após os Evangelhos tem os Atos dos Apóstolos. Então tem aquelas que lidas, na missa chamada Epístolas,... antes de ler o Evangelho você lia uma carta que é para o São Pedro, o São Paulo e outros que mandou para Tessalonesse o que ele pensa, e para os... Isso aqui ele cita, porque ela era um centro, ela se tornou, com Paulo e Pedro, um centro do novo cristianismo universal.

P/1 - E a descrição física da cidade, o senhor tem lembrança de infância de lá?

R - Dela? Ah, eu tenho lembrança dela. Eu vim completar 17 anos aqui, e eu voltei já quatro vezes lá. Porque, filha, a terra é mãe. O sujeito que nega a mãe dele não merece viver.

P/1 - E o quê que o senhor tem de lembranças de infância lá de Antióquia?

R - Eu tenho de infância, de lá, nós temos um sítio, que ficava a dez quilômetros da cidade, e lá tinha um templo chamado Templo de Dafne. O Cristianismo acabou com eles, só sobrou um pouquinho de uma floresta de louros, lá. Porque lá acaba uma série de montanhas que atravessam a Síria, vai para o Sul, para uma parte do Líbano, ligando com as montanhas libanesas. Jorrava água, chamado Dafne. Dafne é um nome grego, de um anjo grego. Então jorrava da montanha água, assim, mas a cinco metros. Deve ser lá dentro da montanha cavidades cheias, que despejavam, água gelada deve vir das montanhas geladas. Porque ela no verão era fria e no inverno era morna.

P/2 - O senhor lembra disso de criança?

R - Eu estou falando de criança. Eu saí com 17 anos, todos os anos a gente passava lá uns três meses, quatro meses.

P/1 - E isso era dentro do sítio?

R - Não.

P/1- No caminho?

R - Porque o sítio fica assim, à beira de um vale, e depois começa a montanha. Então essa parte de frente para isso aí, o sítio não dava. Nós tínhamos... do nosso sítio até lá era mais ou menos um quilômetro, a gente ia à pé.

P/1 - E de Antióquia até o sítio, vocês faziam esse percurso como, esses dez quilômetros?

R - Eu, quando cresci, usava burro, usava cavalo, tinha carro já de aluguel, aqueles Chevrolets de 28, que de vez em quando você vê aqui. Alguns usavam, mas nem todo mundo tinha...

P/1 - Dinheiro?

R - _______. Por exemplo, eu ia e voltava à pé. E isso me fortaleceu e graças a Deus talvez isso faz as causas (riso) da boa saúde que a gente está gozando.

P/1 - O senhor andava dez quilômetros para ir e para voltar?

R - Eu fiz... minha escola, os franceses mandaram lá, abriram uma escola dos capuchinos, conhece os capuchinos, uma ordem religiosa?
P/1 - Sei.

R - Os capuchinos são aqueles que usam marrom, usam uma corda, e não usam sapato, usam sandália. Eles tinham uma escola lá, eu fiz o primário lá. E depois passei para o secundário, fiz dois anos, dois anos e meio, que depois me chamaram... porque quando casou minha irmã para cá, e veio com meu irmão, em 1938 mostrou-se à cara do mundo que haveria Guerra. E os turcos, na sua história, sempre foram aliados dos alemães. Então a França, porque tinha na nossa cidade, tinha sírios na maioria muçulmanos e cristãos, e tinha turcos, mas uma minoria, não era maioria. Porque não era maioria, que eles eram donos de terras e donos de casas. A maioria, eles tinham muito terreno e quem trabalhava nas terras deles eram muçulmanos.

P/1 - A sua família é de qual religião?

R - Eu sou ortodoxo.

P/1 - O senhor é ortodoxo?

R - Na minha cidade lá, 99 os cristãos, 99,9 ortodoxos, e tem 10%, tem uma família protestante e tem uma família de Nossa Senhora do Paraíso, chamado Melkita. Melkita é um ortodoxo que reconhece o Papa, mas usa o ritual ortodoxo na missa.

P/2 - E o senhor ia na Igreja?

R - Eu sou da Igreja ortodoxa, antioquina.

P/2 - Mas o senhor ia quando era criança, com a família, como é que era isso?

R - Em Antióquia?

P/2 - A sua família levava o senhor na Igreja ortodoxa?

R - Era, porque todo mundo era ortodoxo lá, ortodoxo antioquino. Porque tem a Igreja ortodoxa antioquina e tem a ortodoxa... a Igreja, quando se dividiu, se formou em cinco patriarcados, hoje tem quase dez. Que patriarcado tem, por exemplo, patriarca de Constantinopla, patriarca de Roma, que é apelido dele, Papa, e tem patriarca de Alexandria, patriarca de Jerusalém... Roma, Alexandria e Antióquia. Esses aqui eram sede de patriarcado... a minha cidade era sede de patriarcado ortodoxo antioquino.

P/2 - Eu queria saber mesmo mais das suas lembranças pessoais.

R - Muito bem. Lá, por exemplo, a Igreja nossa, eu frequentei ela lá, rezava-se... Por exemplo, a Páscoa nossa ficava lá domingo, segunda e terça. A Pasquella, que o italiano fazia ela aqui, nós fazíamos ela lá. A cidade é uma cidade de Lesta para Oeste, ela tinha uma rua principal, que levava o nome do rio. E tinha... a Igreja era do lado direito, e tinha lá no fim da rua, tinha uma Mesquita lá, onde a gente lá passava também. Lá na cidade, na quinta-feira, fazia uma feira, da onde vinha das redondezas todos os caboclos, trazendo cada um o que queria comprar ou vender. No centro, lá no fim dessa rua, começava uma parte comercial. A parte comercial, o que chama hoje de shopping center, o shoping center não é invenção americana. Se a senhora for a uma cidade síria, Alepo ou Damasco, nós temos uma quadra de 300 metros por 300 metros.

P/1 - E é a céu aberto?

R – Não é coberto. E tem quatro portas, e você entra lá, tem tudo que você quiser comprar, inclusive antes desse tempo motorizado, tinha lugar para a caravana guardar os animais, para comer, beber e dormir. Quer dizer, o que estão fazendo aqui, hotéis. Então lá existe todo tipo de... não fazemos diversificado. Então, por exemplo, a gente chegava lá, a primeira rua era a rua dos que vendiam essas coisas de comida...isso que se coloca na...

P/1 - Especiaria?

R - Especiaria! Depois começava sapatos, depois começava panelas e utensílios de cobre, depois começava o que vendia tecido, cada rua é só um ramo, um ao lado do outro.

P/1 - E o senhor vendia lá também, comprava?

R - Não. Não, porque meu pai, quando voltou da América, não trabalhou no ofício dele. Nós tínhamos um sítio, nesse sítio que estou falando, então começou dedicar-se, modernizou o sítio um pouquinho, dos modos antigos, e começou a render para nós. Nós éramos de uma classe média.

P/1 - Eram agricultores?

R - Não, nós éramos donos de terra.

P/1 - Donos de terra?

R - Nós tínhamos alimento... porque lá cada terra tem o chamado murabeh, murabeh é quarteirão. Quer dizer, ele mora lá, come, ele, a mulher, os filhos todos da terra, pode plantar algumas coisas para ele, ao redor da casa dele, mas a colheita, ele tem um quarto dela e 75 para nós.

P/1 - Entendi. Tem um nome para isso aqui no Brasil.

R - Tem um nome. Quarteiro, quarto, não sei. Esse que fizeram filme com o nome dele, lá no Sul. Outro dia fizeram o nome do filme lá, que o caboclo que trabalha ganha um quarto.

P/1 - É como se vocês alugassem aquela terra...?

R - As casas nossas lá, em geral, todas aquelas casas, você anda na rua é muro e porta só. E pode ter em cima uma varanda para olhar, mas tem que ser bem alto. Então eles fazem a casa... você entra em um corredor, e à esquerda, conforme o tamanho da casa, eles fazem casas em baixo, quartos embaixo e em cima. E depois vem uma área lá, nessa área em geral é plantada uma laranjeira, uma vinha. E depois, se tiver terreno, constrói mais para lá. Os mais remendados, os mais ricos, às vezes têm casas maiores, que fazem para ele e para filho, e para mais do que um filho, e os netos vivem lá. Então nós tínhamos duas casas. Nossa casa tinha embaixo dois quartos, um banheiro. Os banheiros são fora, para todo mundo lá. Agora, só depois de 30, 31, começou. E em cima também tem uma escada, tem algumas casas de dois andares, mas a cidade inteira... cidade velha não anda automóvel nela, porque não cabe. Você chega em um certo ponto de uma rua larga, depois deixa o carro lá e caminha.

P/2 - Como era a sua casa?

R - Essa casa era... você entrava, batia a porta, abria, entrava em um corredor, mais ou menos de uns cinco metros, à esquerda tinha dois dormitórios. Porque lá nós usamos... hoje estão usando no lugar, nós não usamos camas, usamos o chão. Porque nós usamos no inverno camas de lã, colchão de lã, não é cama, colchão de lã. E no verão nós usamos colchão de algodão. Então em todos os quartos, eles formam uma cavidade mais ou menos de uns 60, 70 centímetros, então você pega a sua cama, enrola ela, coloca ela lá, e coloca o cobertor em cima dela, e tem uma cortina, você fecha ela, fica uma sala.

P/1 - Para circular.

R - _________

P/2 - E o senhor mesmo que enrolava, mesmo quando criança?

R - Não, quando criança não fazia isso, mas eu tenho que dizer que quem fazia isso era minha mãe e minhas irmãs.

P/1 - Como era a sua mãe? Descreve a personalidade dela...

R - Eu sou parecido com minha mãe, era uma senhora de 1,70, 1,73 de altura.

P/1 - E de temperamento, como ela era?

R - A minha mãe era muito calma.

P/1 - Ah, é?

R - Minha mãe era calma, muito delicada, muito boa. Meu pai era mais alto do que ela, e era mais velho do que ela 16 anos.

P/1 - E ele era mais rígido do que ela?

R - Era mais rígido do que ela. Bom, filha, na hora que eles casaram, no mundo inteiro o homem era dominante absoluto. Quer dizer, dentro da casa as mulheres podiam ser mais fortes do que o homem, mas fora a ordem do homem ela tinha que respeitar e considerar. E o direito era dele 100%. Ela, muito boa, ela criou os oito filhos com amor. A mãe dela era muito, muito delicada, muito calma. Então nos criou em um amor, em um respeito, em um carinho. A gente lembra, ela morreu aqui.

P/1 - Ah, é?

R - Morreu aqui, meu pai está enterrado aqui também.

P/1 - E a sua formação escolar, seu Aziz, como foi?

R - Eu fiz apenas o primário e fiz dois anos e meio de ginásio. Eu tentei aqui fazer... eu cheguei em 38, me inscrevi em 40 acho. Na Praça da Sé tinha o chamado Madureza Diniz, Souza Diniz. Eu quis, queria, porque eu queria estudar, não deu. Eu vou te explicar por que que não deu. Eu me inscrevi lá, e fiz dois anos, um ano de... e fiz exame, porque naquele tempo o ginásio do Estado do Parque Dom Pedro era um dos maiores da cidade, passei em tudo, menos na língua. No outro ano nós chegamos aqui, filha, nós éramos em nove pessoas. Era eu, meu pai, minha mãe, três, quatro irmãs, sete. Veio conosco uma irmã com o marido dela, que, coitado, não se adaptou a coisa nenhuma, depois voltou e morreu lá. Então eu tinha um irmão que veio com minha irmã, que casou com essa pessoa. Morávamos todos juntos numa travessa da rua São Caetano, chamada rua Antônio de Melo. Eu não lembro se é 90 ou 92, entrando para João Teodoro era do lado direito. Então nós morávamos em um quarto... entrava lá, era um corredor assim, tinha um quarto, dois quartos, três quartos. Depois tinha uma cozinha, e depois tinha um banheiro, e tinha fora um quintalzinho. Então a gente morava... eu, meu pai e meu irmão ficamos em um quarto, as meninas no outro quarto, meu pai e minha mãe no outro quarto, e minha irmã casada, ela morava com o marido conosco. Tem que se adaptar. A senhora não... olha, hoje o que eu vejo, porque nós, patrícios, por causa disso às vezes nós exageramos, quando nós fazemos aqui as coisas. Lá se estava dormindo quatro em um quarto, aqui ele quer um quarto de 120 metros quadrados. Quer dizer, isso é uma extravagância do que ele não pôde fazer lá. E nós vivemos lá de 1938 até 45, 44.

P/2 - Aonde era mesmo?

R - A casa? Aonde nós fomos?

P/2 - É.

R - Porque meu irmão casou em 44, e comprou uma casa numa travessa da rua Afonso Celso.

P/2 - Não, me desculpa, eu confundi. Antes, a primeira casa no Brasil, onde que era?

R - Essa aí foi numa travessa, rua Antônio de Melo.

P/2 - Travessa da...?

R - Da rua São Caetano, a segunda travessa descendo, é rua Antônio de Melo. Ela sai da rua São Caetano, liga até rua João Teodoro.

P/1 - Seu Aziz, o senhor veio, o senhor tinha 17 anos?

R - Eu vim completar... Eu sou de 21, eu cheguei aqui em 38, eu cheguei em abril, dois meses depois completei 17.

P/1 - E se o senhor ficasse lá o senhor teria que prestar serviço militar?

R - Naquele tempo não tinha, na hora que eu saí não tinha.

P/1 - Não tinha? Não tinha esse medo de ter que prestar serviço militar?

R - Não, o serviço militar foi colocado lá em 1947, depois que a Síria se tornou independente da França. Enquanto a França estava lá, não permitia... ela tinha um exército pago para os sírios, de todas as religiões e raças, mas era para serviço da França.

P/1 - E o senhor, quando veio, nessa época, com quase 17 anos, o senhor tinha em mente para onde o senhor estava indo?

R - Eu tinha uma certa idéia. A idéia nossa era que a América era uma terra de lucro, uma terra de luxo, uma terra de poder, então a gente sempre sabia. E já quando nós chegamos aqui, eu já tinha uma tia aqui. Tinha uma tia que veio em 1926, com a família toda, já estavam aqui. E tinha muitos patrícios. Até, inclusive, quando nós chegamos, a rua São Caetano, não digo 80, mas 60% eram patrícios, da nossa cidade e de outras cidades.

P/1 - Era predominantemente sírios, ou tinha libaneses também?

R - Tinha libaneses. Filha, a questão do sírio e do libanês é uma questão que surgiu depois de 1921, 22. E foi provocada, porque eu vou dar para você um exemplo: Gilbran Kalil Gibran, autor libanês, já ouviu falar dele?

P/1 - Não.

P/2 - Um escritor?

R - É um escritor libanês que imigrou para os Estados Unidos. E deixou uns livros maravilhosos, inclusive tem um deles chamado "Profeta", que é uma coisa encantadora. E ele morreu jovem. Então o bom autor, quando morre jovem, vive mais na memória dos outros. Até 1920, 21, 22, 23, todos os livros escritos antes de 20, eles se dirigiam aos sírios. Porque como a Província era Síria, existia a montanha do Líbano, mas não existia uma entidade de Estado.

P/1 - Chamada Líbano.

R - Então todos os nomes que surgiam era depois. Eu vou dar um exemplo para a senhora. Na rua Santo André tem uma casa que vendia artigos de comida, velha, chamada Empório Sírio. O Empório Sírio, o dono dele é um libanês. O Esporte Clube Sírio aqui, os primeiros três presidentes dele eram de Líbano. Não é porque... é porque não existia.

P/1 - Não tinha. Hoje seria o Líbano. Entendi.

R - Ele chegava aqui e era... eles chegavam com passaporte turco, da onde provém nós sermos chamados aqui de turcos. Mas dentro dela está escrito: etnia síria. Então todo mundo era sírio. Quando veio a França, ela dividiu, fez dois Estados. E começou aquela movimentação. O que leva lá, talvez, não é bem caso da Síria, do Líbano. Infelizmente, naquela terra nossa, ainda as religiões representam mais do que um Estado entre criador e criatura. E lá as próprias religiões, elas têm um Estado, têm um fundo político. Então, por exemplo, aqui... porque o caso de Roma se tornou diferente, porque Roma era Igreja, tornou Império, e depois fizeram a Igreja quando separaram o poder político do poder religioso. Mas lá não conseguimos.

P/1 - Coexiste, né?

R - Então coexiste isso. Então tem gente que se julga mais religião do que da terra. E isso é errado.

P/2 - E aqui no Brasil, como era a relação dos árabes com os brasileiros? O senhor chegou adolescente aqui?

R - Eu cheguei... não, porque até... em 38 já era tarde. Mas os que chegaram na primeira viagem, eu sei, por exemplo, eu sei porque li e procurei, inclusive tem algumas obras de alguns... tem um tal de Cecílio Carneiro aqui, o nome é traduzido, porque ele se chamava Sacin Ganan, tornou-se Cecílio, tem um livro chamado "A Fogueira". Se você achar esse livro, deve achar ele em sebo.

P/2 - Mas o senhor, como o senhor se relacionava com os brasileiros?

R - Quando eu cheguei aqui, nos brasileiros eu sempre fui aberto. Então no princípio só vivia no meio dos patrícios, mas depois, como eu queria estudar, entrei na escola. Entrei na escola, me abri, comecei a falar. Comecei a falar, porque eu já vinha falando francês e era latino. Agora, onde eu melhorei mesmo, porque eu, depois de três anos, depois de prestei exame, não entrei, chegou o que era meu cunhado, que trabalhava, e me diz: "Tem uma vaga de viajante no interior. Você não quer viajar?" "Qual é a vantagem." Ele falou: "Um, você fica um mês fora de casa, economiza comida. Dois, nós pagamos, além do ordenado, pagamos uma comissão. E a viagem é tudo por nossa conta." E como eu tinha a responsabilidade de dar ao menos comida e roupa, não podia recusar isso. Então eu comecei a viajar tinha dois anos de Brasil. E o que melhorou a minha pronúncia, porque lá era obrigado, e a turma... hoje o que é chamado "os viajantes" desapareceram, o automóvel acabou com eles. Mas naquele tempo todo mundo viajava de trem, era obrigado viajar junto. Então às vezes tinha alguns vagões que tinha 20 viajantes e me ensinaram a falar certo.

P/1 - Todos de origem árabe?

R - Não, todos portugueses, italianos, tudo, depende do que vendia. E no meio deles, então eles começaram a me perseguir para pronunciar.

P/1 - E quais que eram os produtos específicos dos árabes, específicos dos portugueses e dos italianos?

R - Olha, filha, o produto específico era tecidos. Eu, por exemplo, nós trabalhávamos com casimiras, que hoje é um ramo que desapareceu. Atendia os alfaiates, porque naquele tempo todo mundo mandava fazer feito, encomenda. Hoje esses grandes magazines já atendem tudo o que você precisa. Eu comecei a viajar, eu fazia... a primeira cidade que eu fui era Campinas. Depois fui para Sorocaba. Eu, quando cheguei a Sorocaba a primeira vez, o asfalto chegava até São Roque só, depois de São Roque era só terra, não tinha asfalto. Campinas já chegava até a cidade. Trabalhei, e depois eu passei durante 20 anos, passava todo mês três, quatro dias em Campinas, gostava de Campinas. Isso foi até 1963.

P/1 - Senhor Aziz, o senhor lembra a primeira vez que o senhor bateu na casa de um cliente?

R - Ah, filha, treme as pernas, principalmente estrangeiro. Porque você chega lá, tem que convencer ele a comprar. E se você não tem língua, como é que você vai convencer?

P/1 - Como é que o senhor fazia?

R - Ah, eu chegava lá... tinha que meter o peito, filha, porque aqui é terra de aventuras. Você chegava lá, dizia que vendia casimira, essas coisas, às vezes dizia: "Não, mas o senhor veja...", dá uma abertura, faz isso, aquilo, e depois às vezes se tornava amigo de 20 ou 30 anos.

P/1 - O senhor vendia à prazo para eles.

R - Vendia à prazo. Naquele tempo todo mundo vendia à prazo. Tinha gente que vendia... eu vendia a 60, 90, 120 dias.

P/2 - Conta alguma história para a gente de alguma venda sua, uma história engraçada.

R - Eu vou contar uma história, eu nunca tinha visto, agora que eu sou surdo eu vou contar uma história melhor. Eu cheguei a Lins, aqui no Noroeste, cidade chamada Lins, acima de Bauru. Eu estava com algumas amostras, e me disseram, até um alfaiate bom, chamado Gigliolli, italiano. Eu sei que tinha um balcão aqui, o cara sentado lá fazendo o serviço, falei, falei, falei, falei, não respondeu. Então eu bati no balcão, falei: "Eu estou falando com você!" O cara levantou: "Ah, sim." Levantou, pegou um negócio atrás do balcão e colocou na minha frente. Era aquele fone que os surdos usavam antigamente. Eu larguei as amostras, saí correndo para a rua. (riso) E nos tornamos amigos depois, compreendeu? Então a gente está sujeito... por exemplo, eu estranhei a comida. Porque lá... a turma hoje, a nossa comida hoje é mais brasileira do que síria ou libanesa. O que o Brasil gasta de esfiha numa semana, acho que a Síria e o Líbano em um mês não gasta.

P/1 - O que o senhor estranhou aqui mais?

R - Lá nós comemos, por exemplo, vagem, essas verduras cortadas e cozidas com carne e um pouquinho de arroz. O kibe não é comido todo dia como a turma faz. Não é que nem vocês comem o feijão. Então lá sorte mais um pouquinho. E a comida lá... Eu estranhei, por exemplo, eu cheguei, a primeira vez que subi acima desses... eu fui até Jaú. Eu cheguei a Jaú, era hora de almoço e era quarta-feira. O homem colocou uma cumbuca na minha frente, que tinha uma orelha de porco, e tinha dois (cabelos?), ______: "Tira! Tira! Tira!" (riso)

P/1 - Era uma feijoada?

R - Era uma feijoada. Você acredita que eu levei uns dez anos para comer feijoada?

P/1 - O senhor nunca tinha visto feijão na sua vida?

R - Não, o meu pai falava em feijão lá, e nós não temos o feijão mulato que nem aqui, temos o feijão branco, fazíamos feijão em casa. Mas não é feijão. Era esse negócio que está dentro da cumbuca.

P/1 - É a orelha?

R - A orelha. Porque a minha mãe fazia feijão, nós chamávamos feijão por causa de meu pai. Mas feijão branco.

P/1 - Feijão marrom e preto não.

R - Marrom ou preto não. E o nosso feijão é maior um pouquinho do que aqui. Então a gente lá... no começo eu viajava mais para cima. Por exemplo, eu cheguei... eu viajava Campinas, Rio Claro, Limeira, Americana era uma vila, viu, essa cidade, não era cidade. Era Vila Americana. Era Limeira, Rio Claro, Araraquara, Catanduva, São José do Rio Preto era Rio Preto, não tinha lá. E depois de Rio Preto tinha, para cima, chamava-se o Sertão, tinha uma cidade chamada Mirassol e outra não sei como se chama lá. Mas como o meu era um ramo um pouquinho mais... não e comum, não é tecido de um tostão como hoje, então nós tínhamos que escolher um freguês que tinha um certo poder. De lá eu passava para a chamada São Paulo-Goiás, que tem Olímpia, Bebedouro, Olímpia, Barretos, essa parte de lá também cheguei lá, e cheguei na Sorocabana até lá em cima, até Presidente Venceslau. Assis, quando eu cheguei, não tinha calçada na rua.

P/1 - O senhor vendia mais nas cidades mesmo?

R - Nas cidades.

P/1 - Porque tinha aqueles mascates que vendiam para os colonos das fazendas, mas não era mais?

R - Não, só na cidade. Era um agente comercial para a cidade, porque o nosso ramo era ramo caro.

P/1 - E as suas casimiras onde o senhor conseguia, onde o senhor pegava?

R - Aqui nós tínhamos um depósito, e éramos atacadistas, na rua Florêncio de Abreu, número 20. Era tecidos Alexandre Arap.

P/2 - Bom, a Florêncio de Abreu número 20 é bem no centro. Como é que era o centro?

R - A esquina era uma casa velha que tinha nós, ao lado tinha uma camisaria, depois tinha uma casa de tecidos, chamada Casa Palma, e depois da Casa Palma tinha uma casa chamada... era irmão do meu cunhado, Vadi Arap, que hoje ainda existe, mas têm uma fábrica na Móoca, e os filhos tinham em Itapetininga, aqui para cima de Sorocaba, tem uma fábrica de confecções. Inclusive parece que andaram fabricando não sei para quem. Eles atendiam antigamente o exército, agora estão diferentes. Então a gente lá... eu lembro, quando fui de Ourinhos, porque os ingleses, que eram donos da parte do Norte do Paraná, venderam. Então abriu-se. Londrina foi aberta no meu tempo. Londrina hoje é uma cidade maior do que Curitiba. No dia que nós fomos, fomos de trem, não tinha meio de chegar até lá a não ser de trem. E a terra do Paraná, especialmente o Norte do Paraná, é uma terra vermelha. E quando chove aquilo se torna que nem sabão. Nós saímos de Ourinhos, levamos oito horas para chegar até Londrina. Chegamos a Londrina, só tinha... as Casas Pernambucanas tiveram glória naquele tempo. Não havia uma cidade aqui, paulista, que não tinha Casas Pernambucanas. Casas Pernambucanas era no Sul, e Casas Paulistas era no Norte. Era grande firma. Então em frente a ela era calçada, o resto tudo terra. E a terra, quando chove, lá você não pode andar. Só de charrete, porque aquilo fica uns dez centímetros para baixo o sapato. E para atravessar a rua, você só pode atravessar aonde os outros pisaram, porque se você se mete no meio da lama você cai e se suja todo. Eu lembro que nós chegamos até lá em um trem, e antes de Londrina tem uma serra chamada Serra Morena, então em Serra Morena parou, para fazer mais pressão para poder chegar até lá. Eu, quando cheguei a Cornélio Procópio, Cornélio Procópio só tinha dois prédios de pedra. Cinema e Igreja, o resto tudo madeira. Plantaram café, o café do Paraná chegava a ter três metros de altura. O café da Mogiana chega a 1,50; 1,80. Terra nova, aquilo dava lá. Mas a gente tinha que ir, então a gente ia lá, trabalhava, hotéis era péssimo. Não tinha aonde você comer a não ser sanduíche. E às vezes a higiene é muito relativa. Por exemplo, nessa Cornélio Procópio eu lembro um hotel chamado do Norte, se não me engano, o cara fez um poço e fez um fosso. E cruzaram lá embaixo.

P/2 - O senhor gostava dessas viagens, mesmo com todos esses problemas?

R - Eu era obrigado. Gostava ou não gostava, tinha que fazer... Filho, hoje nós encaramos a família como marido e mulher, e separados, às vezes. Mas nós fomos criados em um ambiente em que a família é eterna, nós podemos morrer mas a família não pode morrer.

P/2 - E o senhor era solteiro?

R - Era solteiro, eu casei com 35 anos porque eu queria ficar até 35 anos, eu tinha responsabilidade com as minhas irmãs. Eu tenho ainda duas irmãs solteiras. Mas hoje, graças a Deus, eu...

P/1 - As solteiras?

R - Que elas já estavam trabalhando, para as solteiras, hoje estão em um apartamento simples, mas bom, têm um telefone, não precisam de ninguém.

P/2 - Essa volta para a Turquia, te emocionou ter voltado?

R - Ah, emocionou, me emocionei muito mais do que nunca podia imaginar, porque eles fizeram uma coisa muito boa lá. A cidade não é muito grande. Então o que eles fizeram? Quando entraram, eles tombaram a cidade inteira e permitiram só construir ao redor da cidade. Então quando eu cheguei, em 74, eu passava a mão nas paredes, a gente vivia naquele tempo, porque é a mesma coisa que você dorme 35 anos e acorda e se acha na mesma sala, ou na mesma casa, na mesma porta, na mesma rua, tudo, tudo, tudo. Não mudou nada. Nada, nada, nada, nada. Eu corri à casa da minha avó, à casa do meu tio, à casa do meu outro tio e minha tia, corri tudo. Ocupados por outra gente, eles são gente receptadores, recebia a gente, a gente entrava lá, olhava, via o teto, via as casas, via aonde se brincou. É uma emoção que você não faz idéia o que é. E a gente, depois... porque eu saí de lá sem conhecer nada, conhecia só uma cidade à Leste de nós, chamada Alepo, hoje cidade de mais de um milhão e meio, e voltei para lá. Porque nós, pegar carro para ir, naquele tempo que eu saí, em Beiruth não tinha band para navio aportar.

P/1 - Porto?

R - Porto. E aqui não tinha porto em Santos. Nós saltamos no mercado de Santos, e viemos para cá pela estrada de ferro, aquela que engatilhava, subia a serra toda. Porque a descida de carro era para rico e levava três horas, duas horas e meia. Mas lá a emoção que se sente depois de voltar tanto tempo você não faz idéia. Então a gente ficou... depois eu fui duas, três vezes.

P/1 - Seu Aziz, como o senhor falou da viagem, eu queria que o senhor contasse para a gente se o senhor tem lembranças do navio, da viagem...?

R - Eu viajei até 60...

P/1 - Não, na primeira vinda, quando o senhor tinha 16 anos, que vocês vieram de lá para cá, o senhor se lembra da viagem de navio?

R - Eu lembro bem, filha, por uma razão muito simples. Porque nós éramos nove, e uma moça da cidade cujo irmão morava aqui, e os pais mandaram conosco, porque estava meu pai, minha mãe, todos, ela podia fazer isso. E a viagem de lá nos levou mais ou menos quase 60 dias. Porque nós tivemos que ir até lá e de lá pegar um trem para ir até Beiruth. Então nós saímos, ficamos em Alepo três dias, até minha irmã aprontou os seis, pegamos o trem, fomos até Beiruth. Chegamos até Beiruth. E lá, naquele tempo, como eu falei, não tinha porto, quem levava tinha que levar de barco ao navio, de barco. Para ir até o navio, tinha que ir de barco. E nós saímos de lá, nós trouxemos tudo o que tínhamos, até uma pedra para fazer o kibe, nós carregamos ela de lá para cá. Então nós tínhamos dez fardos desse tamanho, com isso aqui, para carregar tudo isso. E os marinheiros daqueles barcos eram piores do que chofer naquele tempo, porque hoje o chofer melhorou. Tratei com um, que era três barcos para levar eles, e com muito pouco dinheiro, dinheiro contado, como se diz. Na hora que chegava no meio do mar, chegaram dois: "Não, eu sou antes dele." Começaram a brigar. E eu tinha 17 anos. Então eu falei: "Olha, eu não tenho dinheiro, meu pai não tem dinheiro, e nós vamos aqui, de maneira que... vocês vão brigar e eu vou até a polícia. Não tem outro caminho. Vocês querem ficar? Você vão as nossas coisas aqui."

P/1 - Eles não queriam embarcar a bagagem?

R - Não, queriam uma parte a mais deles, da bagagem, para custo deles. Depois nós chegamos até lá. Nós chegamos à Marselha, nós passamos por Alexandria, depois fomos à Marselha. Chegamos à Marselha, o navio nosso tinha saído. Então esperamos 21 dias em Marselha, para ir e voltar até Argentina. Depois viemos até aqui, nós levamos mais ou menos... nós saímos em fevereiro, em fim de fevereiro, começo de março, nós chegamos aqui dia 23 de abril, dia de São Jorge.

P/1 - Chegaram em Santos?

R - Em Santos. E era véspera... sábado de aleleuia. Então foram me receber lá em Santos, foi meu irmão, foi meu cunhado, a minha irmã não pôde ir porque já tinha dado à luz um filho, que até agora é um artista e um diretor, chamado Fauzi Arap, que é filho da minha irmã. Então nós vimos até aqui, subimos até aqui, passamos a viver. A vida aqui, entre a colônia, era boa, porque se vivia entre si. Por exemplo, na rua São Caetano, como morávamos perto, tinha uma tia que morava, todo sábado e domingo ia para lá, homens, velhos, crianças, todo mundo.

P/1 - Iam comer?

R - Ia comer, jogava aquela... que é chamado o _____nosso, aquele de jogar, hoje tem um nome...

P/1 - Carta? Jogo de carta?

R - Não, é um jogo que joga entre dois... gamão. Agora que eu lembrei o nome dele, gamão. Então eu conversava, passava o tempo, viviam tudo junto.

P/1 - Que dia da semana que era que vocês se reuniam?

R - Sábado. Até tem um fato, porque lá, como nós festejamos a Páscoa, Pasquela, Pascoalina, dormi, veio segunda-feira de manhã, meu irmão: "Levanta!" "Para que?" "Nós vamos trabalhar." "Mas essa terra não é terra de cristãos?" "É cristão." "E nós vamos trabalhar na Pascoalina?" "Aqui não tem nada disso. Só domingo." (riso)

P/1 - Era diferente?

R - A vida, filha, parece uma piada. Eu estou aqui há 63 anos, já fiz, e parece que foi ontem. É que a gente, quando é moço, pensa que não vai acabar. Eu tive um caso em Bauru, eu fazia Noroeste, e saí de Araçatuba para Bauru, cheguei doente, cheguei com calor, numa temperatura alta, até eu ficava em um hotel em Bauru, chamado... não sei como chamava, a dona dele era uma senhora muito boa. Falou: "Aziz, você se queixava da cabeça, da garganta. Então vai no médico." Fui no médico no segundo dia. O médico me examinou, falou: "O senhor vai fazer exame de saliva e me traz ele já." "Muito bem." Eu fui lá. Quando voltei, cheguei, estava parado assim, na frente dele, olhou, voltou para trás uns três metros, falou: "Não chega perto de mim, que eu tenho filhos." "Mas o que eu tenho?" Ele falou: "O senhor tem crupe." Crupe, se dá em criança, em geral mata. Ele fecha a garganta e mata. Em um homem é ainda pior. "E o que?" "O senhor tem que entrar em uma quarentena", lá no hospital Beneficência Portuguesa, se eu não me engano, em Bauru. "Isso não pode". Naquele tempo levava de Bauru a São Paulo oito horas, viajando de trem. Avião não tinha, e automóvel muito menos. Eu estou contando isso porque, filha, quando a gente é moço não tem medo da morte. Eu falei: "Eu vou tentar chegar." "Está bom." Eu saí de lá, tinha um amigo lá, que eu sempre gostei... hoje, infelizmente, cortaram esse elo entre os moços e os velhos. Na hora que falaram que jovem é para frente e velho é quadrado, não chega um no outro, e nós fomos criados para pedir conselho especialmente para os velhos. Eu fui lá e falei: "Olha, a situação é assim, assim, assim. O que o senhor acha?" Ele falou: "Não, filho, vai lá internar-se, porque esse que sai desses pus que tem na garganta comem a sua garganta. Daqui a pouco você começa a falar..." Isso me assustou mais do que a palavra do médico, que eu não sabia se chegava lá ou morria no caminho. Eu voltei, me internei, no quarentena, fiquei 28 dias, perdi 25 quilos. E depois voltei para São Paulo de trem também, porque não tinha jeito. Estou contando a história não é pela minha doença. É que o médico me falou que talvez não chegava, eu não me assustei, porque era jovem, tinha quanto? Tinha mais ou menos 23 anos, e o conselho do velho me salvou. Disse: "Não, você tenta chegar, você escapa." Chega, talvez teria morrido, chegado morto aqui, ou morrer uns dias depois. Mas o conselho de velho... eu contei o caso para contar que essa ligação entre velho e moço está voltando agora, inclusive nas grandes empresas, hoje, estão às vezes pegando conselheiros velhos que viveram. Porque a teoria na prática é diferente.

P/1 - O senhor acha que esse dado era um dado mais presente na cultura do senhor do que na cultura brasileira?

R - Não, os brasileiros naquele tempo era isso.

P/1 - Os velhos tinham uma relação com os jovens?

R - Isso só começou agora, do tempo desses cantores, da turma Tremendão, jovem para frente e velho quadrado.

P/2 - E o senhor ficou sozinho em Bauru?

R - Eu fiquei sozinho, porque meu irmão trabalhava aqui, mas eu tinha três ou quatro amigos que me visitavam. E Deus ajudou a mim, mandou uma enfermeira que trabalhava lá, não lembro do nome dela, era de uma cidade perto de Bauru, chamada Pederneira. Eu dei, quer dizer, ela era muito simpática, mas eu dei para ela tudo que podia, para ela me atender. E ela me atendeu maravilhosamente bem. Inclusive no dia da folga dela ela voltava para me ver. Porque eu não desejo isso para o meu pior inimigo. Que vos fecha isso e você, para beber uma gota d'água, você já viu uma galinha engasgada com o negócio? Você tinha que mexer a cabeça, o pescoço para a água descer. Aí em geral eles abrem aqui, abrem a garganta, para poder respirar. Não chegaram a abrir e escapei.

P/2 - Quantos dias?

R - Filho, eu vou falar uma coisa que é muito importante, eu repito ela desde que estou aqui no Brasil: melhor do que o povo brasileiro não existe. Não estou falando porque está sendo registrado, eu falo isso desde que tinha mais ou menos uns dez anos aqui, que o povo brasileiro, com uma mistura de raças de diversas partes do mundo, ele tem, além da boa índole, ele é aceitável. Eu vou contar um caso para vocês verem como é. Por exemplo, nós voltamos para a Síria e todos que imigram voltam. Quando voltamos, nós somos estranhos lá. Por que estranho? Aqui você pode fazer um brasileiro um amigo, que você encontra com e é apresentado para ele. E vive com ele mais ou menos uma semana, dez dias, uma viagem. Você se torna amigo e ele corresponde à sua amizade. Na Europa toda, no Oriente todo, e além, no mundo inteiro, você, para conquistar um amigo, precisa de seis meses. Essa é a qualidade do brasileira, esta extroversão que existe nele. Isso é qualidade muito, muito importante, em mim todo mundo está percebendo ela. Alguns julgam ela fraqueza, eu julgo ela força. Porque você não está aqui, mas você se torna amigo. Eu entrei em sociedades, trabalho em sociedade mais ou menos uns 50 anos. E sinto isso todo dia.

P/2 - E para conhecer a sua mulher, foi fácil também?

R - Foi fácil por uma razão. Eu, como fiquei único, minha mãe dizia: "Você vai casar com uma patrícia."

P/1 - Ela queria que o senhor casasse com uma patrícia?

R - No fim, quando eu resolvi, eu escolhi com ela, porque eu acho que melhor do que a minha mãe eu não podia escolher para minha esposa. E eu casei e fiquei muito feliz, nós somos casados há 45 anos, e nós estamos apaixonados até hoje. Nós apaixonamos depois que casamos.

P/1 - Ela é patrícia?

R - Ela é patrícia de pai e mãe, conterrânea minha, e a minha mãe e a avó dela são primas. Nós tivemos um filho e três filhas. O filho é Bechara, porque como nós perdemos o filho Bechara, no dia em que nasceu o meu filho, eu fui até meu pai. Porque ele que tem o direito de dar o nome, porque ele é o dono do nome. Então eu perguntei, ele falou: "Olha, filho, ainda estou vivo." Dá o nome de seu irmão se vier outro menino coloca meu nome. Não veio outro, veio três meninas. Então o mais velho Bechara, depois vem Miriam, depois vem Samira, e depois vem Salma, porque Salma, minha mãe é Salma, minha sogra é Salma e minha filha é Salma. São três Salmas em casa que nós temos. Todos eles... Bechara é um arquiteto, Miriam era professora, casou com um senhor que hoje tem um restaurante desses Sirva-se. A Samira casou com um médico, tem duas filhas, a outra tem um filho e uma filha, a mais velha, a Samira. E Salma casou com um dentista, até de Londrina. A minha última filha nasceu em 1964. A minha senhora é de 1929.

P/1 - Todos os seus genros e nora são descendentes de árabes, não?

R - Não, meu filho é casado com uma brasileira chamada Carmem, ela nasceu numa cidade perto de Araçatuba, chamada Bilac. Agora, o meu primeiro genro e o segundo, os dois primeiros genros são patrícios. A terceira casou com um brasileiro, descendente de italiano.

P/1 - E tinha alguma restrição por parte do senhor e da sua esposa dos sus filhos casarem-se com brasileiros?

R - Não. Eu criei eles aqui na realidade brasileira. Porque essa viagem que eu vivi, convivi mais com brasileiro do que com patrício. Eu continuei viajante de 1940 até 1963. Quer dizer, 23 anos. No princípio, passava de 500 quilômetros para cima, depois passei a fazer aqui Sorocaba, Campinas, tudo. Mas eu saía toda semana. Então a amizade, o povo lá, eu não tive nada com isso. Eu deixei elas escolherem, e elas, graças a Deus, até agora está sendo bom, falha um, porque isso é assunto deles. E eu hoje não mexo, não banco o pai de lá. Eu sempre vivi em liberdade, respeito a deles. Existe entre nós um certo carinho e uma certa liberdade. Elas se abrem comigo, por exemplo, se querem fumar, ou querem fazer alguma coisa, eu fumei muito tempo, e parei. Parei porque o médico falou que se não parar... eu tive uma pneumonia há questão de uns 15 anos, mas nós vivemos na nossa casa... Filho, tem um fator que eu quero tornar claro: eu acho que um dos imigrantes que mais se adaptaram ao Brasil é o sírio, o libanês, o iraquiano, o palestino. Porque nós chegamos para ficar. Isso só depois da Segunda Guerra. Chegou aqui, todo mundo começou a trabalhar para ficar, e casar. E o casamento entre sírios e brasileiras, depois da Segunda Guerra, cobriu tudo. Quer dizer, hoje eu posso... o meu filho ter casado com uma filha de patrícia, mas isso não é o que era antigamente. Antigamente era lei. E eu tive oportunidade de ver patrícios casados com brasileiras de 1910 ou 1915, que ela aprendeu árabe, filha de italiana.

P/1 - Incorporou o espírito árabe.

R - Ela se incorporou. Então nós chamamos... houve muita... nosso povo é um povo simples, as nossas tradições são muito antigas, e elas se adaptam a qualquer lugar do mundo. E, hoje, melhor do que o povo brasileiro, para viver, não tem. Pode não se ganhar bem.

P/1 - A sua esposa veio de lá para casar, ou ela já estava?

R - Não, a mãe dela veio para casar. A mãe dela, quem trouxe ela como noiva para o filho, foi a sogra. A sogra vinha para lá, falou para ela: "Traz para mim uma noiva."

P/1 - E o senhor lembra quando a sua mãe, enfim, escolheu a esposa para o senhor, o senhor já a conhecia, não?

R - Eu já conhecia.

P/1 - O senhor gostava dela, tinha simpatia?

R – Sim. Eu estou falando isso sinceramente, eu, até hoje, nós vivemos apaixonados, brigamos, discutimos, fazemos tudo, mas nós somos apaixonados E eu tenho 80, ela tem 72.

P/1 - Seu Aziz, e como é hoje em dia na casa do senhor? Vocês comem comida árabe? A religião?

R - Não, na casa de todo mundo depende. Nas casas dos ricos, o que a cozinheira resolve, eles comem. Mas eu vou ser sincero. Eu na minha casa eu como comida síria. Por que? Porque eu cheguei aqui e passei 23 anos comendo em hotel. E até hoje podem dizer o melhor restaurante do mundo, eu prefiro comer de arroz com lentilha na minha casa, um pouquinho de coalhada em cima, e não quero saber de nada. Um kibe cru, depois disso pode apresentar o que tiver, não quero. Então eu ensinei ela, eu exigi dela isso e ela se adaptou. Então ela cozinha, cozinha todo dia, cozinha comida síria, e os filhos que vêm lá comem. Agora, na casa deles, o que eles comem, como comem, não quero saber. Na minha casa até agora está isso. Mas não quer dizer, porque... é que eu, se talvez eu tivesse... porque, filha, você não faz idéia, quem come comida de hotel, que aprende a saber todo dia o que vai comer, que nem pensão. Aquilo acaba com a gente. Então eu comia o suficiente. Hoje aprecio a feijoada, bacalhau eu comecei a comer depois de 15 anos de Brasil, um português que me levou, insistiu para eu provar e eu provei, comecei gostando lá. E o resto eu como, agora como fora, também às vezes estou lá fora, aprecio tudo. A viagem, filha, ensina. Eu não quero saber o que eu vou comer. Hoje, por exemplo, eu saí, não quero saber o que ela vai fazer, só na hora que chegar. E como de tudo. Isso de dizer não gosto, não admito. "Prova, se você não gosta, está certo", mas dizer "eu não gosto" antes de provar é uma certa ignorância. E todos os países têm comida, o sujeito olha: "Eu não gosto." "Mas você provou?" Você, aqui a comida chinesa é super aceitada, o japonês, esse sushi, outras coisas também, é gostoso! Então a gente tem que provar. Agora, hoje tem gente que, por exemplo, os meu fazem isso: "Eu não gosto." "Mas você provou?" "Não, não gosto. Então não como."

P/1 - Seu Aziz, e essas esfihas que a gente come na padaria? Isso não é uma esfiha árabe?

R - É árabe sim.

P/1 - O senhor acha que a esfiha brasileira é...?

R - Porque, filha, a comida, ela entrou hoje no Brasil, especialmente em São Paulo, porque é o prato mais sadio e mais barato. Esse Habib's cobra 35 centavos, certo? Se você come três, quanto dá? Um real. Se você come seis, dá dois. Em quatro reais, você comeu doze. Você já calculou digerir doze esfihas dessa aqui, quanto é? É maior do que um almoço! (riso)

P/1 - Mas o senhor não acha que tem diferença no jeito de fazer?

R - Não.

P/1 - É o mesmo gosto?

R - É a mesma coisa, porque lá eles fazem ela no forno. Agora, se é forno elétrico, forno de lenha, é a mesma coisa. Aliás, isso é a mãe da pizza também. Que eu não sei se vocês souberam outro dia, porque existe uma idéia de que quem trouxe o macarrão para a Itália, Marco Pólo, trouxe ele da China. O Estado de São Paulo, há questão de dois meses, não sei se vocês viram, naquele Caderno Dois, mostra por A+B que o macarrão não veio da China, ele veio do Mediterrâneo, veio da Síria, para a Sardenha, para a Sicília. Porque lá, os árabes, até 1918, ainda existiam. Até hoje na Sicília você compra moedas antigas, de um lado em latim, do outro lado em letras arábicas. E é de fato, porque o chinês e o japonês vive na base do que? Na base de arroz. Agora o Mediterrâneo inteiro, o que vale lá é o trigo. Nós não... arroz lá é dias de extra-festa. Nós comemos só trigo, esse trigo que é de kibe, mas não é igual de kibe, é mais grosso. Eles cozinham ele que nem arroz, e nós comemos ele. E é um prato... Hoje estão fazendo ele, em muitos restaurantes eles fazem ele com frango. Então tem isso.

P/2 - E além da esfiha, do kibe, da coalhada, o que mais é a comida árabe que o senhor gosta?

R - Tem o arak hoje, que está fabricando a bebida árabe, é a pinga síria. Porque o sírio toma arak, mas nós fazemos ela, além de passar pelo alambique para sair a pinga, que nós chamamos ela, eles voltaram e passaram ela outra vez com erva doce. Você viu? Nunca provou ela? Fica branca. Você nunca provou ela?

P/1 - Não.

R - Se um dia vocês quiserem ir na minha casa, você provam.

P/1 - (riso)

R - É muito gostosa ela, viu? E sobe bem. Você vê, por exemplo, a cachaça síria, a cachaça brasileira é uma das mais gostosas do mundo. Mas você nem sempre pode tomar a cachaça, que a cachaça fede. Você toma ela na hora do almoço, até o segundo dia na hora do almoço ainda está na sua boca. Eu, por exemplo, eu aprecia vodca. Não é porque é vodca, mas porque ela não tem cheiro, porque na origem é a mesma coisa.

P/1 - E o arak não tem cheiro?

R - Não tem cheiro não. É gostoso, viu? Tem além do que eu falei, por exemplo, que você falou, duas coisas que vocês conhecem, mas tem beringela recheada, tem abobrinha recheada, tem carneiro, tem bode, que chama cabrito. Tudo isso é comida síria.

P/1 - Seu Aziz, eu gostaria de fazer uma perguntinha para o senhor: e o café?

R - O café, filha, nasceu lá. O café, a origem dele é do Iêmen, Iêmen, na Arábia, no Sul da Arábia Saudita. E vem de lá um café chamado iemenita, muito gostoso. Então nós somos apaixonados por café. Eu sou apaixonado. Eu tomo, por exemplo, hoje saí de manhã, tomei café, mas quando desço, o primeiro lugar que hoje tem máquina, que eu sei que é boa, eu tomo uma xícara, não da grande, dessa pequena, que a deles é um pouquinho maior, puro, sem açúcar, já começou o dia. E até a hora do almoço eu tomo umas duas ou três, às vezes quatro. Nós gostamos do café. E nós fazemos o café estilo... vocês já sabem como é, nós não coamos. O café, para quem não toma ele com açúcar, faz ele sem açúcar. Mas você coloca água no bule, coloca o café e coloca o açúcar, mexe. O café não ferve, sobe, que nem leite. Então na hora que ela sobe, você tira ele do fogo, ela assenta, volta, ela sobe uma ou duas vezes, ou três vezes, depende do gosto de cada um. Leva ele na torneira, e faça passar umas dez gotas de água, não mais, pouca água. A água fria é mais pesada do que a água quente. Ela vai para o fundo e leva todos esses cafés que estavam boiando lá no meio, você coloca ele para sentar um pouquinho, depois pode servir.

P/1 - É o pó?

R - É o pó.

P/1 - E não tem uma tradição entre as mulheres sírias, de ler a borra do café?

R - Tem.

P/1 - Como é que é?

R - Eles falam "ler na xícara". Isso é uma coisa tradicional, vem, deve ter uns 2 mil anos, ou mil e 500 anos, eu não sei quanto. E as mulheres, por quê que elas não gostam da sorte? As mulheres, em todo lugar, a primeira coisa ela quer saber, porque ela quer saber o que vai acontecer amanhã, se vai continuar com o namorado, se o namorado está gostando, como todos os homens são traidores, nunca confiam em nós e nós não podemos confiar nelas. (riso) Então elas querem saber. Aqui tem mulheres que anunciam. Eu tinha uma prima, que não sei se ainda... Ela lia. Quando nós vamos visitar, a primeira coisa, a minha mulher não toma café, apesar de ser santista, mas a primeira coisa que ela faz: "Você vai ler a minha sorte hoje." (riso)

P/1 - E como elas fazem, tecnicamente?

R - Não, filha, você despeja na xícara, então toma, sempre fica um caldo, um resto escuro de pó na xícara. Então ela pega aquilo, mexe ele um pouquinho, e vira ele no pires. Espera. Quando ele seca, conforme você olha, aquilo fica um desenho, arabescos lá dentro, de todos os lados. Então ela lê naquele negócio lá. Vai ter bom negócio, vai casar sua filha, ou vai se casar, essas coisas todas. Esse assunto é tradicional...

P/1 - A sua mulher sabe?

R - As mulheres adoram isso.

P/1 - E as suas filhas aprenderam?

R - Não, até agora não. Minha mulher gosta. E elas, quando vão às vezes... eu não sei, porque isso faz durante o dia, quando vão, elas devem perguntar para ler. Porque isso é humano, filha. Porque o ser humano, até agora, não tem o dom de saber o futuro. Nós sabemos até esse minuto que nós estamos vivendo.

P/2 - A sua mulher acerta?

R - Você sabe que você chega para qualquer pessoa e diz: "Você vai ter um desastre." Quem é que viveu na vida e não teve um desastre? Essa pergunta, essas respostas que servem para qualquer lugar, você pode aplicar elas.

P/1 - Seu Aziz, e homem não lê xícara?

R - Não, tem gente que acredita, mas isso, não sei, é uma coisa humana, não depende. A maioria das leitoras são mulheres. Então as mulheres frequentam mais lá. Mas tem homens que ficam, porque tem homens... Tem gente de consideração e posição política que vai no negócio para saber como é que vai ser, como não vai ser. Isso é uma transferência de responsabilidade.

P/1 - E outra prática? O senhor falou do gamão, tem outros jogos que vocês...?

R - Baralho. O sírio, em geral, gosta de jogar. Você não lembra talvez, nem você, no tempo dos cassinos, o que sustentava aquilo mais era sírio, japonês e chinês. Isso está na raça. E, olha, isso é uma das maiores doenças do mundo. Porque o jogador inveterado vende a mulher dele e entrega ela. Não é não entrega, porque às vezes pode vender e não entregar. Mas ele vende e entrega.

P/1 - E o que mais ficou da tradição para o senhor?

R - Filho, a tradição é uma parte da personalidade, o sujeito não pode fugir dela. Eu estou aqui há 63 anos, vim com 17 anos, não posso deixar de ser sírio. Eu sou brasileiro, eu sou assim, há 45 anos naturalizado. A minha vida toda é aqui. Mas não posso deixar de ser, você não pode esquecer a sua terra. Pode viver 100 anos, você continua, se incorpora ao brasileiro. Esses que estão imigrando estão sentindo a mesma coisa que nós estamos sentindo. O que eu lembrei agora que eu estranhava, na nossa terra lá, nós plantamos a nossa terra há 5 mil anos. E nunca tinha visto ser terra abandonada porque não estava dando. Eu fiquei chocado aqui. Que eu cheguei numa cidade e falaram que o cara plantou a terra durante 15 anos e deixou ela, foi comprar outro lado. Aquilo, para nós lá, é uma blasfêmia. Você está xingando Deus. Aqui, como é tão abundante... você sabe a peça da abundância, não? Diz que Deus, na hora que criou o mundo, criou os Estados Unidos, criou Rússia, criou tudo, a cada um dava uma parte sim, uma parte não. Quando chegou o Brasil, deu tudo uma parte sim. Então a turma: "Mas por quê que o senhor deu tanto bem aqui?" Falou: "Espera, deixa criar o povo, depois você reclama." (riso) Filha, a vida aqui, a gente trabalhou, ganhei, perdi, porque essas inflações que vieram acabaram com muita coisa. Hoje eu sou uma pessoa de classe média B, eu tenho uma aposentadoria, minha senhora era sócia comigo, eu tive... eu trabalhei, depois que larguei a casemira, eu fui montar uma indústria de tecidos, pequena. Trabalhei, depois de trabalhar uns dez, 12 anos em tecidos, um belo dia eu fui fazer um desconto para pagar uma duplicata, eu voltei, paguei, sentei e fiz o cálculo. Eu e mais 100 homens, 100 mulheres e homens que estavam trabalhando na fábrica, que tinha 40 teares, nós estávamos trabalhando para pagar os juros, naquela inflação.

P/1 - Que época isso?

R - 76, 77.

P/1 - E onde ficava a sua fábrica?

R - A fábrica era na Avenida Zelina, 320. Era um cinema, eu comprei o cinema, esvaziei ela, abaixei o teto e coloquei meus teares.

P/1 - Que bairro que era?

R - Vila Zelina. Eu vendi, saí limpo, graças a Deus, meu nome limpo, eu não devo nada para ninguém. Ela é aposentada, eu sou aposentado, tenho uma casa alugada, estamos vivendo. Casamos os filhos e estamos vivendo a nossa vida. Porque eu tinha construído quatro casas em Rio Claro. O Plano Collor levou todas. Quando acabou o Plano, o valor delas não dava para comprar uma janela.

P/1 - Seu Aziz, antes de fechar, eu gostaria que o senhor dissesse um pouco se o senhor tem algum sonho, que o senhor gostaria de realizar ou de ver realizado.

R - Olha, os sonhos dos velhos são grandes, filha. E em geral eles sonham mais do que a vida. O meu sonho é ver esses países todos que são a nossa pátria serem unidos todos, porque somos um povo só. Porque você veja um sujeito do Extremo Norte casado com Extremo Sul, que nem aqui. Mas um é sírio, o outro é palestino. Depois outro é transjordânio e outro iraquiano, outro libanês e outro sírio. Somos todos a mesma coisa. A turma fala, fala, fala, é a mesma coisa que nós dissermos: "O nordestino é diferente." O que tem o nordestino diferente? Porque tem um sotaque diferente, ou porque o nordestino vive diferente? Não. Não deixa de ser brasileiro. O sonho dos velhos é realizável, é num tempo futuro, talvez, 500 anos, 200 anos, ou 100 anos, eu não sei, mas já que você perguntou do sonho, esse é um sonho. O resto... os velhos, o que desejam? Você sabe que um desses metidos perguntou para uma velha saindo da Igreja: "O que a senhora foi pedir para Jesus?" Ela: "Eu não fui pedir nada. Eu fui pedir para os meus filhos saúde, para os meus netos saúde, e para mim saúde, só pedi isso." Então o assunto é esse. O sujeito que começa a falar em muitos sonhos, é porque ele sonha muito, filha. Os sonhos devem ser realizáveis. Pode não ser no nosso tempo, mas os outros humanos podem realizar. Porque o que está hoje, o que a gente encontra, eu sou contra, por exemplo, esses meninos, de meus netos, e outros netos, os heróis deles são esses bandidos americanos, que atiram para matar, e sobe no ar, sem asas, sem nada, e desce e dá um soco, e derruba uma cidade, e faz isso. Por causa disso que eu não estava vendo essa transferência disso. Porque hoje os filhos... na minha infância, e da minha idade, nós tínhamos brinquedos da infância, e nos vivíamos a infância. E nós vivíamos uma coisa chamada pureza na infância. Hoje não tem isso. Hoje, você veja, uma menina pequena perguntando à mãe uma coisa que a mãe fica vermelha, não sabe responder para ela. E o filho às vezes fazendo uma coisa lá, e ele imita outro, e dá soco. Isso está derrubando, isso não está criando felicidade para as crianças, está tornando eles nervosos, está transformando...

P/1 - Seu Aziz, só para fechar a entrevista, eu gostaria que o senhor dissesse o que o senhor achou da experiência de ter contado um pouco da sua vida para a gente, de ter narrado a sua história.

R - Filha, eu estou satisfeito, porque nós dizermos que o saber não é dividido, não é ultrapassado para os outros, é igual à ignorância que não é usada. Nós precisamos, eu sinto que essas coisas faltam. Porque, por exemplo, o japonês tem um museu e tem o Museu da Imigração. Nós não temos, infelizmente, isso. E nós temos, eu quero tornar claro, a nossa imigração deve ter começado para os lados de 1840 ou 45, por uma razão muito simples. Nós temos um filólogo aqui, brasileiro, que em 1938 já existia como um bom filólogo, está morto hoje, chamado Said Ali Nana. Ele foi da Academia Brasileira de Letras. Esse homem é nascido em 1851. Quer dizer, se em 1851... Então tudo isso já podia, por exemplo, você obter uma amostra. Nós podemos, tem muita gente que está procurando, mas uma pessoa não faz. E nós, eu sou apaixonado por livros. No dia que você for em casa, eu tenho uma biblioteca respeitável, uma biblioteca que ocupa essa parede, essa parede e essa parede. E eu estive pensando outro dia: em geral, quando morre um marido e tem uma biblioteca, ela chama o primeiro carroceiro que passa na rua e vende por dez reais. Porque eu já comprei livro de gente fina, livros bons, por 50 centavos, de cruzeiro, não é de reais. Então eu estava falando outro dia com a minha mulher, eu estive em Sorocaba, tem uma fundação chamada Fundação Ubaldino Amaral, que é dono do jornal Cruzeiro do Sul e dono de outras entidades lá. Eu falei que, se você não querem, eles são dos meus filhos, quem quiser comprar fica todos. Mas se não querem ficar todos, não quero que vendem nem quero que joguem fora. Eu falei para eles lá que depois de morrer eles mandam buscar tudo. Porque ele tem muitas entidades beneficentes e o jornal era uma. Então assim você não perde, porque é duro você lutar por uma vida quase, porque os velhos são visitas. Eu posso estar com você hoje e amanhã me enterram. Eu penso desse jeito e vivo desse jeito, que os velhos são visitas. Eu posso viver 20 anos, e já estou na defasagem, como vocês falam. A defasagem é diminuitiva, não é acrescentativa. Então nós vamos até lá, e eu não tenho nada ____, sou uma pessoa normal, comum, simples, igual a esses milhões de brasileiros, que hoje são mais brasileiros do que sírios. Mas a gente não pode fugir de si mesmo, filha, quem chegou de lá já tem ao menos... quase maior, não pode fugir. A pessoa que foge, só se for um ignorante.

P/1 - Está certo, seu Aziz. Então a gente encerra aqui a entrevista. Gostaria de agradecer a sua colaboração, e agradecer pela entrevista também, como todas as suas experiências.

R - Obrigado, filha. Eu me sinto feliz, o que vocês acham que deve... porque isso é uma história de um... é a minha história, não tem nada de extraordinário. É a história de milhões que vieram aqui.

P/1 - O que é isso? Está ótimo.

P/2 - Obrigado.