Conheci Célia Maria em março de 2010 enquanto se apresentava, com muitas pompas, no palco do Teatro Arthur Azevedo, em São Luís. Naquela noite, fui surpreendido com a sua voz de canto potente e performance dramática que me remeteram ao estilo das cantoras de rádio dos anos de 1950 e 1960. O mo...Continuar leitura
Conheci Célia Maria em março de 2010 enquanto se apresentava, com muitas pompas, no palco do Teatro Arthur Azevedo, em São Luís. Naquela noite, fui surpreendido com a sua voz de canto potente e performance dramática que me remeteram ao estilo das cantoras de rádio dos anos de 1950 e 1960. O modo como Célia Maria impostava a voz, articulando falsetes e vibratos, me fazia deslocar não apenas para um tempo diferente como também para uma escola de canto nada habitual no cenário da indústria fonográfica contemporânea. Senti que estava diante de uma grande cantora, cuja história passou a ser meu interesse de investigação no curso de graduação em Ciências Sociais/UFMA.
Célia Maria, também conhecida como “A voz de ouro do Maranhão”, tem sua trajetória de vida marcada por deslocamentos geográficos, inadaptações, dificuldades financeiras, lutas para manter uma agenda de shows regular, além da busca pelo reconhecimento de sua arte. Certa vez, passando pela Av. Getúlio Vargas, uma informante apontou para rua estreita que separa a Escola Santa Terezinha do Centro de Ensino Fernando Perdigão e me disse que Célia Maria morava num apartamento muito pequeno nessa rua. Dei-me conta, então, de que a imagem da artista glamourosa que havia criado a partir do que vi no palco poderia ser muito diferente fora dele. Essa passagem marca um momento de quebra de expectativa, mas uma abertura ainda maior para curiosidade que me conduziu na busca pela compreensão dos acontecimentos da trajetória da artista, que perpassam diferentes vetores da vida social.
Célia Maria nasceu e cresceu na rua Retiro Natal no antigo bairro Areal, atual Monte Castelo. Filha de pais católicos, Raimundo Sousa - marceneiro e um afamado violonista de seresta - e Luísa Bruce, que se dedicava aos cuidados da casa e dos seis filhos. Aos finais de semana, a família Bruce costuma passear pelas rádios da cidade, num período em que a participação dos ouvintes também se dava presencialmente, com a ocupação dos auditórios. Célia me conta, em detalhes, que “todo mundo se vestia, fazia aquelas roupas e ia todo mundo pra [Rádio] Difusora pra ver o programa do Lima Júnior, Domingo é Nosso”.
A experiência da escuta radiofônica, portanto, era algo compartilhada, ao vivo, estimulada pela família e consumida face a face. Os referenciais de leitura e troca nesses espaços não eram simplesmente subjetivos e individualizados, mas partiam de um convívio coletivo e socializante, integrando não apenas Célia Maria e sua família, como também seus vizinhos, amigos e os muitos profissionais envolvidos.
Foram espaços como esses que não apenas formaram a artista Célia Maria, mas também que, de alguma maneira, a inventaram. Em torno de 1955, incentivada pelos vizinhos a se apresentar em um programa de calouros para crianças na Rádio Ribamar, Maria Cecília, com medo de levar gongo - caso desagradasse terrivelmente jurados e plateia - adotou o nome que seu pai gostaria de lhe ter atribuído ao nascer. Célia Maria, portanto, cria gosto pelo passatempo e após esse episódio, no qual é premiada, passa a frequentar assiduamente esse tipo de programa nas rádios de São Luís.
A performance da cantora-mirim assumia, nesse primeiro momento, contornos sob influência e simulacros de artistas como Maysa, Elizeth Cardoso, Angela Maria, que eram referências compartilhadas em casa, pelo Seu Raimundo, e que carreiras foram alavancadas pelas ondas de rádio. A brincadeira de criança ficou séria, aos poucos a diversão se transformou em fonte de renda para a família e, anos mais tarde, em trabalho. Aos 12 anos, Célia Maria é contratada por Raimundo Bacelar para se apresentar nos programas da Rádio Difusora, sem que isso a impedisse de também se apresentar nas Rádios Timbira e Ribamar.
Com o incentivo dos pais, Célia Maria começou a projetar planos futuros para sua carreira. Adentrar os “submundos” das corporações do setor de radiocomunicação fez com que o desejo de “fazer sucesso” - tal como as \"cantoras do rádio” - se arvorasse em direção ao centro-sul do país. Seu Raimundo e Dona Luísa viam em Célia uma maneira pela qual toda a família Bruce poderia ascender socialmente
Aos 16 anos, Célia Maria se muda para o Rio de Janeiro, onde havia familiares que a abrigaram nos anos iniciais da sua estadia. Ao passo que a vida de artista estava quase estagnada, Célia Maria foi obrigada a empreitar-se nos serviços domésticos e cuidados com idosos para ajudar nas despesas de casa. Em um desses espaços de trabalho, Célia, que costumava cantarolar enquanto realizava as tarefas, chamou atenção da sua patroa que, com alguma frequência, passou a levá-la para se apresentar no Clube Botafogo aos finais de semana.
A partir desse momento, Célia Maria começa a participar da vida cultural carioca, interagindo com outros artistas e participando de programas de calouros no rádio e também na televisão, que, em pouco tempo, assume a importância que a radiodifusão exercia como veículo de grande alcance. Nesse período, Célia Maria frequenta o famoso restaurante Zicartola (1963-1965), onde conheceu e estreitou laços com Jackson do Pandeiro e sua esposa, Almira Castilho, que durante o período que estiveram no comando do estabelecimento, concederam espaço para a maranhense se apresentar.
Célia Maria participou do programa de calouros de Renato Murce, na Rádio Nacional, no qual, anos antes, havia projetado artistas como Alaíde Costa, Roberto Carlos e, sua principal referência, Angela Maria. Célia também frequentou os programas da Rádio Mayrink Veiga, realizou trabalhos com o cantor Wando e integrou o projeto “Nilo Amaro e os cantores de ébano”, com o qual fez turnê em alguns estados do Brasil e países da América Latina. No âmbito dos espaços televisivos, Célia Maria se apresentou algumas vezes no programa de Flávio Cavalcanti, na extinta TV Tupi, e, anos mais tarde, participou, como júri, do programa Cassino do Chacrinha.
Os anos foram avançando e a carreira de Célia Maria não “decolava”, ficando cada vez mais tortuosa sua realização num cenário que se transformava velozmente. Os familiares, preocupados com a honra e estabilidade financeira da artista, passaram a pressioná-la para o casório. Célia Maria, que pernoitava entre casa de amigos e casa de familiares, cede às pressões da família e, em pouco tempo, arranja um pretendente, com quem se casa em 1973, aos 25 anos, na cidade de Niterói.
No ano 2000, Célia Maria desembarca em sua cidade natal com objetivo de restituir carreira e angariar meios de sobrevivência. Seu retorno foi motivado por uma crise financeira que se instaurou após a morte de seu marido.
A sequência de acontecimentos que envolvem o deslocamento da artista para o sudeste e do sudeste para o Maranhão revela, a todo instante, a disposição de Célia em reavivar as expectativas de um reconhecimento pleno de sua arte e os conflitos para se manter viva no campo.
O retorno de Célia Maria ao cenário musical local ocasionou um feito, até então inédito, que foi o lançamento do seu disco homônimo (2001) produzido via lei de incentivo à cultura do governo do estado do Maranhão. O trabalho teve uma rápida aceitação por parte da crítica musical de São Luís e dos apreciadores da música popular brasileira. Célia Maria ganhou prêmios e circulou, numa pequena turnê, por outros estados do país. Foi nesse período que Célia passou a ser conhecida como “A voz de ouro do Maranhão”. Esses acontecimentos marcaram positivamente a sua carreira, embora não tenham sido suficientemente necessários para manter uma agenda regular de trabalho.
Em 2022, Célia Maria completou 74 anos, apresentando condições físicas e vitais para continuar exercendo seu ofício, porém, o exerce com certa limitação. As maneiras pelas quais Célia Maria elabora a produção da sua arte atualmente, apontam para modelos de engajamento anteriores, no período em que Célia estabelece os primeiros contatos com o universo da indústria fonográfica, ocasionando, hoje, uma espécie de conflito entre a artista e o seu sistema social. Portanto, as condições objetivas que lhe dificultam a dinamização no meio artístico são da ordem social e não, como poderia supor o etarismo, uma limitação biológica.
A vida de Célia Maria nos conta uma história maior sobre o papel integral que instituições ligadas à produção de bens simbólicos desempenham em famílias de baixa renda e sobre as maneiras como os processos sociais afetam o curso da vida e da morte, ainda que simbolicamente.
Seguir as palavras e o enredo de Célia Maria foi uma forma de desenhar diferentes espaços sociais, institucionais e não institucionais, em que a vida dessa artista ganhou complexidade. Observei que as dimensões subjetiva e objetiva ora caminharam lado a lado, provocando a sensação de realização e sucesso, ora em descompasso, provocando uma inteira sensação de esquecimento e morte social.
Avaliei que a estética do canto de Célia, assim como o modo de cantar, foram apreendidos a partir de uma minuciosa “observação da escuta” ainda criança, com o incentivo dos pais e vizinhos, no contexto das rádios dos anos de 1950 e 1960, no Maranhão. Incorporou dessa fase, como também da sua socialização por os meios e os modos de produção da música comercializada no Brasil, em contextos do Rio de Janeiro e São Paulo, na segunda metade do século XX. Todos esses acontecimentos da vida da cantora, encontram-se em uma dimensão simbólica do “olhar da época” presente na escala subjetiva e nas pretensas formas de agenciar sua arte.
As mudanças no mercado da música provocaram prejuízos financeiros, psicológicos e sociais, uma vez que as disposições de toda uma vida em busca do sucesso se tornam defasadas com as transformações do modo de consumo e dos agentes que fomentam esse mercado. Entretanto, atualmente, a presença de Célia Maria no circuito da música em São Luís e o reconhecimento de sua arte são relacionais, assim como os meios e os modos de produção que a cantora utiliza em seu engajamento. Embora não atue de forma efetiva no mercado hegemônico da música, a artista circula em um segmento específico, voltado para um público que prestigia e consome o gênero musical comum. Nesse sentido, a compreensão do devir biográfico se dá como produto da interação dialética entre a determinação das estruturas e a ação dos indivíduos.Recolher