Projeto: Indígenas pela Terra e pela Vida
Entrevista de Reginaldo Aparecido Alves (Awá Nimboadjú)
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba / Tomazina), 09/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV012
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 − Boa...Continuar leitura
Projeto: Indígenas pela Terra e pela Vida
Entrevista de Reginaldo Aparecido Alves (Awá Nimboadjú)
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba / Tomazina), 09/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV012
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 − Boa tarde, parente! Seja bem-vindo! Já quero começar perguntando sobre as suas origens. E a primeira pergunta é qual o seu nome, em português? Qual o seu nome indígena? Se puder falar o significado também?
R − Boa tarde! Agradeço o parente pelo convite. Me chamo Reginaldo Aparecido Alves, nome indígena Awá Nimboadjú, que significa aquele que tinha que amadurecer. Tenho 48 anos, sou casado, tenho três filhos e atualmente sou o Cacique aqui da Terra Indígena Pinhalzinho. E, também, atuo dentro do Núcleo de Direitos Étnicos e Coletivos do estado do Paraná. Fui liderança desde os meus vinte anos, fui liderança, fiz parte um bom tempo do movimento indígena no Brasil, fui vice-coordenador da ARPINSUL, junto com o coordenador Marciano. E estamos aí na luta.
P/1 − A outra pergunta é, como o nascimento é uma data muito especial, significativa na vida de uma pessoa, eu gostaria que você contasse um pouco de como foi o seu nascimento, o que os seus pais te contaram? Como foi esse dia?
R − Então, eu nasci em setembro, dia 18, em 1974, no estado de São Paulo, na cidade de Salto Grande. Não tem terra indígena lá, mas dentro do histórico de estudos, essa região que pegava de Cambará, Salto Grande, Piraju, Ourinhos, era todo um território que eram os Tekoas Guarani Nhandewa, dos Kaiowá que frequentavam essa região. Na época, antes do meu pai se casar com a minha mãe, os meus avós tinham sido expulsos da Aldeia, porque não podia se pegar nada ali, só se fosse com autorização da FUNAI. E o pai do meu pai pegou um cacho de banana, coqueiro, para trazer para as crianças e o chefe do posto expulsou ele da Aldeia. E o meu pai saiu junto com meu avô e minha avó, que hoje são falecidos, o avô e a avó, meu pai também é falecido. Faleceu de Covid esse ano. Aí quando ele foi para Salto Grande, ele conheceu a minha mãe, porque eles estavam morando por ali. E eu nasci, vim para o Laranjinha, Terra Indígena Laranjinha, segundo o meu pai, com um mês de vida. Daí fui para casa de reza, para fazer o Nhemongaraí para eu ter um nome indígena. Segundo o meu pai, quando fomos para casa de reza, na hora de dar o nome indígena, foi, tipo assim, errado. E eu comecei a ficar doente, daí no outro Nhemongaraí que teve, veio o meu nome indígena Awá Nimboadjú e o meu espírito foi amarrado nos índios mais velhos, tanta minha avó, como eu acho que a sua avó Tiago, também, disse que ela foi, eu costumo a chamar de madrinha. Então, a madrinha Júlia, a madrinha Lourdes, tia Terezinha, a madrinha Lica, todas essas pessoas, o meu espírito foi amarrado nelas, porque eu tinha que amadurecer, foi todo amarrado nesses mais velhos. Então, se eu tenho a vida hoje, eu devo muito a esses mais velhos, porque foram eles, o Espírito deles amarrado junto ao meu, que me sustentou até agora. Essa é a minha história, um pouco.
P/1 − Você falou a respeito dos mais velhos. Eu gostaria também de te perguntar a respeito da sua mãe, quem foi ela? Como você descreveria a sua mãe? E a origem dela?
R − A minha mãe, ela não é indígena ‘pura’, ela é mestiça. E ela é uma pessoa que sempre lutou dentro da casa de reza, depois que ela veio para a aldeia, para a terra indígena com o meu pai, a vida dela foi dentro da casa de reza. Então, hoje, ela sabe fazer artesanatos, sabe fazer as comidas tradicionais. Ela teve quinze filhos, e até hoje a gente não pode dizer que houve uma discussão entre nós, irmãos, crescemos juntos, do mesmo jeito, quando a gente se reúne entre os irmãos, sobrinhos, nunca houve uma discussão até hoje. Isso ela e meu pai ensinaram a nós muito bem, de como se comportar, se respeitar, respeitar o outro. Então a minha mãe, ela foi rígida, ela foi rígida mesmo, ela sempre chamava atenção na hora certa, ela forçou a gente a trabalhar, forçou a gente a entender o outro ser humano. E hoje somos em treze, porque dois faleceram, somos em treze irmãos, mas esses irmãos seguem essa mesma visão, de respeito aos mais velhos, de respeito desde a criança, então é isso. Talvez, esse jeito dela me educar, foi o que fez com que eu fosse liderança, desde 1994. E agora sendo Cacique aqui na terra indígena Pinhalzinho.
P/1 − Ainda na linha da família, gostaria que você também falasse do seu pai, quem foi ele? Como você descreve a origem da parte do seu pai?
R − Então, meu pai é Guarani Nhandewa, ele nasceu ali mesmo na Laranjinha, filho do Januário, da Dona Cecília. Ele foi Cacique por um bom tempo no Laranjinha, desde 1984, mais ou menos. Ele foi Cacique, ele participou da primeira reestruturação da FUNAI, quando a sede saiu de Bauru e foi para Brasília, teve todo aquele conflito de tirar o general da cadeira ali em Londrina. Quando a regional da FUNAI chegou em Londrina, sentou um General, e ele, você conhece também o finado Vicente, os dois tiraram o General a ponta de estilete, da cadeira. Sofreu um processo ao longo do tempo, mas conseguiu escapar. Então, ele foi um cara de muita luta. Ajudou as lideranças indígenas a derrubar o Villas-Bôas na época, que escravizavam os indígenas, exploravam os territórios. Essa é a história de luta dele. E, também, a dar mais liberdade, tirou aquela ganância da FUNAI de ter só monocultura, criar aqueles “fomentos”, que era para construir moradia, então desmatavam. E ele ali, como Cacique na época, junto com o Mário Jacinto, conseguiram quebrar isso na FUNAI. E depois ele veio para o Pinhalzinho, foi para a cidade durante um ano e voltou aqui para Terra Indígena. Antes disso, em 1986, mais ou menos, ele liderou o movimento no Laranjinha, pegou os guerreiros e veio para retomar aqui a Terra Indígena Pinhalzinho que, na época, estava toda na mão dos posseiros, era de funcionária do SPI, irmão do funcionário do SPI. Então, juntou esse movimento no Laranjinha e veio para cá, veio Jacinto, Valdeir, eu não sei se o seu pai veio na época, mas são os guerreiros da época que o meu pai contava, que vieram para retomar o Pinhalzinho. Eles conseguiram em 1989, 1986, conseguiram retomar o Pinhalzinho, fizeram a demarcação. Aí depois, ele veio morar no Pinhalzinho, saiu um ano, voltou para o Pinhalzinho de novo e aqui ele se tornou Cacique. Aqui foi outra briga, porque teve que brigar com a justiça, porque tinha demarcado, tinham tomado as terras dos posseiros, mas não tinha ‘desintrusado’ eles. Aí foi outra briga, quando ele assumiu de Cacique, outra briga. Em 2009, foi ‘desintrusado’ a última família daqui. Então, teve todo esse processo de luta de território, e eu fui aprendendo com ele no dia a dia, como que se trabalha uma liderança, como que se organiza um movimento. Tanto é que eu ajudei a retomar o Posto Velho, na época, era líder no Laranjinha. Então, eu tive uma escola com o meu pai e com todos esses outros guerreiros. Com seu pai, especialmente também, que eu aprendi muito com ele, inclusive no Barãozinho, fui eu, o seu pai, e o Vircinio na época, quando veio, a primeira vez, terra lá. Então, eu tive uma boa escola, com os guerreiros que hoje não estão mais entre nós. E hoje, esse ano, por causa do Covid, em março, ele faleceu. Aí, um mês antes, eu já tinha assumido de Cacique, porque ele já estava adoentado, entregou o cargo. Me elegeram para ser Cacique aqui. Então, eu estou Cacique aqui até agora. Essa é um pouco da história de luta do meu pai.
P/1 − Você também falou a respeito dos teus irmãos, da educação deles, eu gostaria que você falasse quem são seus irmãos, sua relação com eles, contasse um pouco da história deles?
R − Então, somos treze irmãos hoje, sete irmãos e seis irmãs. Tem dois que moram na cidade, que decidiram escolher a vida, acharam melhor viver na cidade. Tem um irmão que mora no Apucaraninha, tem outros que moram aqui, tem outros que moram no Laranjinha, outros moram em Maringá, que estão fazendo universidade. E eles não se destacaram na vida, são membros da comunidade, ajudam em tudo, mas não tiveram esse perfil de liderança, a não ser a minha irmã, que é esposa do Vice Cacique do Laranjinha, ela lidera lá, lidera a parte da Cultura, ela vai sempre para as lutas. Os outros não, os outros ficaram mais na deles, se casaram, construíram família, mas não tem todo esse processo de luta. Tivemos problemas, como qualquer família, eu tenho irmão que se envolveu com drogas, se envolveu no mundo da criminalidade, então sabe, quando ele foi para a cidade, achando que a cidade era melhor, ele acabou se envolvendo nesse mundo, mas hoje não, hoje ele se recuperou, mora na Terra Indígena Apucaraninha se casou com uma indígena Kaingang, e ele faz da vida dele lá. Mas a experiência mostrou, deste irmão que foi para a cidade, que a cidade não foi feita para a gente, porque ele pagou um preço muito alto para ele viver ali e quando ele viu que não tinha jeito mesmo, que não era o mundo dele lá, ele voltou para Terra Indígena, se casou. E hoje ele é novo, tem trinta e poucos anos e teve um derrame, por viver nesse mundo, esse foi o resultado dele sair da terra indígena e ir morar na cidade. Então, os meus irmãos são desse jeito, são casados, moram em terra indígena, mas envolvido na luta mesmo, só tem essa minha irmã, que é esposa do Vice Cacique de Laranjinha.
P/1 − Bom, você falou bastante desse período com familiares, desde o seu nascimento. Eu gostaria que você contasse um pouco do seu tempo de criança, tempo da infância, como foi esse período?
R – Então, a minha infância sempre foi, no meu tempo, não tinha nada na Terra Indígena, não tinha televisão, não tinha nem luz elétrica, não tinha casa, então a minha infância foi brincar na terra indígena, ir para casa de reza a noite. Eu vi muita coisa acontecer na casa de reza, eu aprendi o que é espiritualidade, os nossos ancestrais frequentando a casa de reza. Vi, por exemplo, isso é comum aqui entre nós, que quando ia para casa de reza, trazia sementes, trazia todas essas coisas. Então, eu acompanhei todo esse período, em que a nossa espiritualidade e a dos nossos ancestrais, era muito forte, não tinha mistura de línguas, não tinha comidas diferentes, tudo era seguido à risca, todos os rituais, para poder fazer o Nhemongaraí, eu cresci nesse universo. Toda vida estudei na aldeia, ali no Laranjinha e a gente, sempre quando saía da aula, quando nós éramos mais crianças ali, íamos para o rio nadar, ou, às vezes, caçar passarinho, eu gostava muito de caçar passarinho. A minha infância foi desse jeito. E o meu pai sempre forçava. Meu pai sempre me forçou muito a ler, entender um pouco, viver na cultura indígena, mas entender o que acontecia no mundo do não indígena, para que isso não afetasse a gente, isso meu pai sempre obrigou. Mas a minha infância foi isso, foi sempre dentro da casa de reza, por isso que eu hoje respeito, frequento, tenho toda essa visão do que é ser um líder dentro de uma terra indígena.
P/1 − Você falou, tocou num ponto, sobre formação e escola. Eu gostaria também que você pudesse falar dessa sua formação, da escola, da lembrança que você tem dessa escola, desde criança e depois você seguiu, estudando. Contasse um pouco dessa sua formação, cultural e escolar.
R − Eu comecei a estudar com seis anos, na Terra Indígena Laranjinha, era uma escola de tábua ainda, era no período da ditadura, a gente tinha todo aquele ritual ditatorial, que quando a professora entrava na sala, você tinha que se levantar, saudar o professor, se sentar. Então, eu cresci muito nesse período da ditadura, estudando as minhas séries iniciais. Mas eu tive o privilégio de ter uma professora que, mesmo no período da ditadura, que tinha ali um viés ditatorial, quando ela entrava na sala, tinha que se levantar, mas ela era uma professora, que tinha uma visão muito futurista da educação, então ela conseguia envolver toda a comunidade com a escola, ela conseguia envolver os pais com os alunos, conseguia, tudo isso ela conseguia. Ela sempre fazia festa nas aldeias, fazia algumas comemorações nas escolas, onde os pais eram todos envolvidos, mesmo na época da ditadura, ela tinha essa visão futurista da educação, o que era uma utopia na época. Então, eu estudei as minhas séries iniciais dessa forma. Ela fazia a gente, por exemplo, ela trabalhava com a gente na produção da horta para a escola, nossos próprios alimentos, a gente ia cedo molhar a horta, depois ia para a sala de aula. Eu lembro que a cantineira que fazia comida, buscava lenha nas costas, para poder vir, acender o fogão a lenha, buscar água na mina, para poder fazer a comida. Então eu cresci vendo a educação dessa forma na aldeia. E era tocada pela FUNAI, ela era funcionária da FUNAI. E quando eu peguei as séries finais, eu fui para cidade, da quinta série a oitava série, eu fui para a cidade. Foi muito difícil, porque eu não conhecia a cidade, não conhecia ninguém na cidade, não saía da Aldeia para ir para a cidade. Quando eu cheguei na cidade, o bullying foi forte, porque eu peguei uma sala, eu tive o azar de pegar a sala que era só elite do município, filhos dos fazendeiros que, hoje, o pai está no Posto Velho. Eu peguei toda essa elite de Santa Amélia na mesma idade, estudando, e o bullying foi muito forte. Mas eu tive uma diretora, que ela sempre percebia isso, e chamava atenção, dava suspensão na época, chamava os pais. Então, ela percebia esse bullying muito forte que tinha. Mas superei, eu via que eu tinha que, não tinha que ser igual a eles, eu tinha que ser diferente. Eu lembro que, na quinta série, eu reprovei e voltei no outro ano para a quinta série. E quando eu peguei a quinta, a sexta, na sexta série eu avancei. Minha mentalidade abriu e comecei a liderar a sala de aula, ali começou já o meu espírito de liderança, liderava as matérias que eu me destacava, aí sim, aquele bullying que tinha acabou. Eles viam como ajudava eles, essas coisas. E foi dessa forma. Depois eu fiz o Ensino Médio. Iniciei o Ensino Médio no Santa Amélia, eu fiz um pouco em Guapirama. E depois eu fiz o EJA. Dentro do EJA eu me formei no Ensino Médio. Aí o EJA, em parceria com o Instituto Federal, ele formou, deu dois tipos de formação, para a gente se formar advogado popular, que, hoje, fundamos aí, o Núcleo de Direito Étnico e Coletivo. A minha transição escolar foi isso. Voltando um pouco atrás, fui professor do Laranjinha também, acho que você lembra, quando eu era professor do Laranjinha. Depois fui professor no Posto Velho. Aí aqui no Pinhalzinho não, porque eu vi que a sala de aula não era pra mim. Era mais para fazer embate mesmo, no movimento, lutando. Porque na sala de aula, eu achava que me prendia muito numa visão, que muitos professores se prendem hoje, que é só a visão entre quatro paredes dentro da sala de aula, e não sai daquilo. Então, aquilo não era para mim. Mas essa foi a minha formação escolar.
P/1 − Bom, eu tô seguindo aqui uma linha do tempo, mas você trouxe assim, porque o mundo indígena tá muito assim, não tem essa divisão de infância, adolescência e período adulto. Mas eu gostaria que você falasse também da sua mocidade, dos amigos, da comunidade, como foi isso? Tinha festa? Não era só trabalho, né? Como era esse período?
R − Então, eu lembro da minha mocidade, que tinha festa do Dia do Índio, normal, a gente não via quando chegava as festas do Dia do Índio. Tinha futebol, dia de quarta-feira, na terra indígena, onde ia todo mundo jogar bola. Tinha baile para gente dançar. Então, essa mocidade foi construída aí, comigo. Mas eu nunca fui muito de sair de casa, então eu ia pouco para as festas. Mas para jogar futebol, pescar com a rapaziada ali do Marcílio, aquela turma ali, a gente sempre ia, para pescar. Caçar também, eu fiz muito isso na minha mocidade. Eu vivia essa vida na aldeia. Então, para mim, a vida era aquilo que eu estava vivendo naquele momento, e que eu gostava de fazer aquilo, jogar futebol de domingo, Marcilio treinava a rapaziada ali. A gente ia para jogar futebol. Então era isso, eu nunca fui de ir para cidade, não tinha o hábito de ir para cidade. A minha mocidade não se contou de ir para cidade. Quando eu comecei a frequentar a cidade, como jovem, foi quando eu estava no terceiro ano, fazendo o terceiro ano, porque daí eu tinha que ir lá participar das festas, arrecadar dinheiro para formatura, essas coisas. Mas para dizer que eu ia mesmo para festa se divertir, eu não conseguia sair da Aldeia. Eu sempre fiquei preso na aldeia, e como eu sou até hoje, difícil, a não ser que eu saio para os movimentos, para reunião, mas fora isso, nem na minha cidade aqui, eu vou comprar as coisas. Às vezes, a minha esposa vai, meus filhos vão, mas eu fico aqui, eu sou muito difícil de sair da terra indígena. Mas a minha mocidade foi assim! Mas todas essas festas que tinha na Aldeia eu participava, eu participava junto buscar lenha, eu participava junto para assar, participava junto, para nós era uma festa, tudo isso é uma festa esperada. Então envolvia todos os jovens para fazer isso. A minha mocidade foi fazendo isso.
P/1 − E agora vindo para um outro momento da sua vida, falar um pouco de casamento, dos filhos, como foi isso? Casou-se uma, duas vezes? Como é esse período da tua vida?
R − Então, faz 21 anos que eu sou casado, minha esposa não é indígena. Eu tenho três filhos, dois meninos e uma menina. O meu filho mais velho está fazendo História, na UEM. E os outros, a minha menina não conseguiu passar no vestibular. O meu menino está no Ensino Médio. O meu casamento foi normal, do mesmo jeito, de viver na aldeia, ela veio para aldeia, se acostumou, se adaptou na aldeia. E eu me casei com 26 anos, então, vai fazer 21 anos já, já fez 21 anos, me casei em 2000, sou casado. E estamos aí, tentando, levando a vida, sei que é difícil, criar filhos. Meus filhos, uns tiveram problemas de saúde. Eu tenho uma menina que tem problema de saúde, que foi muito na casa de reza para ajudar a restaurar ela, que teve que ir para o hospital muitas vezes, até hoje ela é meio ‘adoentadinha’ ainda, mas graças a Deus, graças a Nhanderu, conseguimos criar nossos filhos, para que hoje eles tenham o caminho deles. O que eles decidirem, eles estão preparados para seguir o caminho. Então o meu casamento foi isso. Me casei com ela em Santa Amélia, morei no Laranjinha, no Porto Velho e vim para cá. Ela é minha companheira que me ajuda, que ajuda não! Ela que criou meus filhos muito mais do que eu, porque quando eu me casei com ela, eu era a liderança, aquelas lideranças que, naquela época, não paravam, eu viajava muito. Teve uma época que eu fazia uma ponte aérea, Paraná, Brasília, era essa ponte aérea duas vezes por semana, então durante aí uns dez anos mais ou menos aí, quem criou os meus filhos, de fato, foi ela. Ela que conseguiu dar educação, conseguiu fazer todas essas coisas, mas eu não deixava ali também a minha autoridade de pai, minha forma de educar. Mas o momento mais de educação, quando eram crianças, foi com ela, tanto é que quando meu menino nasceu, a gente estava naquela briga em Bauru, que eu estava em Bauru com o Vircínio, naquela confusão toda. E o meu menino nasceu, eu estava na luta, eu fui ver ele depois de um mês de nascido, então não vi ele nascer, depois de um mês que eu fui ver ele. Então na luta diária de liderança, não vi nem meu filho recém-nascido, depois de um mês que eu fui conhecer ele, então, eu agradeço muito a ela por ter sido essa companheira que conduziu os meus filhos até agora.
P/1 − Bom! Uma outra pergunta, a respeito de trabalho. Eu sou professor, e aí quando pergunta, você trabalha? Alguém fala, “não, ele é professor!” Então quer dizer que professor não é trabalho. Ou, às vezes, pensa que liderança também não é trabalho. É um trabalho também. Mas eu gostaria que você falasse de outros trabalhos, além de ser liderança. Como foi o primeiro trabalho? Pudesse falar um pouco disso também.
R − Bom, isso é verdade, sempre falam que professor não é um trabalho. E a minha primeira carteira registrada, foi como professor, da _____________, quando nós estávamos iniciando lá em 1994, começando a construir a educação diferenciada no Paraná. Então eu fui professor.
Começamos a trabalhar, aí tivemos a formação, fui professor. A minha primeira carteira assinada, foi como professor. E de fato, a turma perguntava, você trabalha? Não! Eu dou aula! E o professor… por isso que ele é desvalorizado. Levando a mentalidade de que ser professor não é trabalho. E ao contrário, é o professor que vai conduzir essa nação, que vai preparar os jovens para conduzir essa nação. Vai preparar o jovem indígena para ser guerreiro, vai preparar os jovens indígenas para defender os seus territórios. Então eu fui professor no Laranjinha, depois fui para o Posto Velho, aí também fui professor lá. Mas trabalhei no Laranjinha também para mexer com gado, depois que eu deixei de ser professor, eu me casei. Aí eu continuei trabalhando no Laranjinha mexendo com vaca de leite, no Laranjinha. Depois, nós retomamos o Posto Velho, e daí eu fui contratado como professor novamente, me contrataram como professor lá. Nossa missão lá de professor, era restaurar, revitalizar a língua, investimos muito em energia na época na revitalização da língua indígena ali e o fortalecimento da cultura. E nós propomos para o Estado, que a gente tinha que ser livre para fazer as nossas lutas, além de estar na sala de aula, a gente tinha que ser livre para fazer as nossas lutas. E aí o Estado aceitou, era o Estado progressista, então ele aceitou que a gente atuasse dessa forma. Fui eu, o Claudinei, o Wanderson, o professor Wanderson, fomos nós que tomamos rédeas da situação da educação ali no Posto Velho. Em 2007, eu vim para o Pinhalzinho, eu vim até a convite mesmo, para fortalecer a cultura aqui. Em 2012, eu fui contratado para fazer Gestão Ambiental, dentro do Projeto Básico Ambiental. Fiz um curso de um ano, Gestão Ambiental Territorial e Ambiental, em terras indígenas, que quem promoveu o curso foi a PNGATI, junto com ICMBio. E de lá para cá venho fazendo esse trabalho, de Gestão Ambiental também, de recuperação de área degradada. Fizemos nossa cartografia social, na época, para crescer o nosso território, tirar daquele mapa que as escolas apresentam, que parece que não tem nada, só mato. E quando a gente fez a cartografia social tinha muita riqueza aqui, inclusive. E essa cartografia social dá muita força para defesa do território, porque você vai mostrar, no papel, como é organizado o Tekoá, como é feita essa gestão. Então eu fiz a cartografia social, trabalhei na Gestão Ambiental até 2019/2020, fim de 2019, trabalhei com a Gestão Ambiental. E aí depois eu saí, chegou a pandemia, eu saí, por causa da pandemia. Aí, assim mesmo, a gente ainda faz esse trabalho da Gestão Ambiental. Então meu trabalho foi sempre voltado para a comunidade, nunca trabalhei empregado lá fora, na cidade, então nem sei como é trabalhar lá fora. Nunca trabalhei lá fora! A minha esposa trabalha na escola, ela é zeladora da escola. Então é isso, a minha vida de trabalho na terra indígena, foi isso. Fora, nesses intervalos é na lavoura, que a gente trabalhava. E, também, a gente trabalha muito aqui para produção orgânica, a gente tem o Tekoá 100% orgânico, o MdA deu até licença para vender os produtos como orgânico. Pelo menos, tem esse reconhecimento. Então a gente tá trabalhando nisso. Aí depois, em 2019, eu fiz o curso de Audiovisual, 160 horas presencial para Audiovisual. Aí entrou a pandemia, fiz outros cursos online. E daí eu gostei mais desse lado do Audiovisual, achei mais interessante esse lado do Audiovisual, que é um trabalho que, às vezes, eu venho fazendo, não assim direto, mas eu faço. Às vezes, eu faço algumas edições de vídeo institucional, mas o meu trabalho focado mesmo é pelo bem da comunidade.
P/1 − Só isso, né! (risos). Você começou falando da luta pelo território, teu pai, teu professor, outras lideranças. E agora a gente entra nessa questão sobre o território. Como tem sido sua militância na luta pelo território? Você que tem uma relação bastante próxima com os Tekoá aí da região. Laranjinha, Ywy Porã e Pinhalzinho. Se você pudesse contar dessa luta pelo território, tanto aí local, mas também a nível nacional.
R − Então, sempre a luta foi pelo território mesmo. Eu tenho uma visão de nunca deixar o meu povo 100% no assistencialismo, eu não concordo muito com essa ideia de que o índio vive naquele assistencialismo, no paternalismo, eu tenho ideia de que ele tem que ser o protagonista, então meu trabalho sempre foi focado nisso, para ele ser sempre protagonista, para ele ser líder da sua própria vida, então estou sempre trabalhando nisso, e sempre defendendo mesmo, que a nossa cultura, a nossa língua, nossos direitos não se acabem. E os trabalhos que a gente fez aqui em grupo, isso lá desde o começo, foi de união. Vou pegar um exemplo, aqui do Norte, os Kaingang e os Guarani, não se davam muito bem e, quando surgiu a liderança de movimento, eu consegui, que hoje nós trabalhássemos juntos. Eles até falam que eu consegui “guaranizar” os Kaingang, porque hoje eles pensam da mesma forma que a nossa e contam com a gente para direcionar eles, porque os Kaingang são mais da luta mesmo, de ir mais para o embate na hora. E nós, Guarani, somos mais estratégicos, então quando precisa de estratégia, eles se aproximam muito dos Guarani para que se monte a estratégia. E Graças a Deus, que nem eu falei, eu tive bons professores, Claudemir, meu pai, Mario Jacinto, são essas pessoas aí que foram uma escola para mim, de luta, de resistência. Então eu tive muita escola com esses guerreiros. E eu aprendi com eles, como que se valoriza os nossos Tekoá. E é uma luta diária, porque o que há de forças contrárias para desqualificar o nosso território, tirar da visibilidade, essa é uma luta diária que a gente tem, de defesa do território. Mas graças à Nhanderu, sempre tive bons companheiros de luta também, que vieram junto. E quando a gente observa o perfil das lideranças que lutam hoje, é sempre porque os pais foram liderança, você tenta observar um perfil das lideranças e ver o histórico delas, porque os pais foram liderança. Então é porque teve escolas boas, que hoje tem lideranças. Os companheiros de luta que eu tenho aqui hoje, por exemplo, que lutam mesmo, tanto do Posto Velho, Laranjinha, Barão, São Jerônimo, Apucaraninha, a gente vê que são muitos na liderança. E vai ver o histórico, são todos filhos dos pais que já foram lideranças. E a gente tem sempre esse objetivo, de lutar na preservação do nosso território, brigar mesmo para a defesa, brigar quando ele está sendo “intrusado”, para não deixar ficar “intrusado”, cuidar dos nossos jovens para que não se percam lá fora. Por exemplo, aqui mesmo tem uns dois jovens, três, que dão trabalho, porque se envolveram em drogas. O alcoolismo mesmo, uma alcoólatra mesmo, aqui dentro. A gente faz muito esse trabalho mesmo, de preservar o território, dar direcionamento de como ele pode viver naquele território, usufruir do território, e é claro, sempre lutando para que os nossos direitos não se diminuam. Então a nossa luta foi isso. A minha luta foi dessa forma e a minha escola foi com esses mais velhos, que hoje não estão mais entre nós.
P/1 − Verdade! Ainda nesse tema território, desses três Tekoá, eu sei que o Yvy Porã é uma retomada. Como está a situação do Yvy Porã? Se você pudesse contar um pouco dessa história.
R − Então, a Terra Indígena, Yvy Porã, foi uma luta de tentar retomar lá em 1986, quando o Cacique Nicolau, na época, era Cacique. Ele mandou um documento para a FUNAI, pedindo o Posto Velho de volta, o território Posto Velho. Aí quando ele faleceu, passou um tempo, a terra Laranjinha ficou superpovoada. E um dia o Albani, em Brasília, descobriu esse documento, que tinha em Brasília, que o Nicolau tinha solicitado pegar o Posto Velho de volta. E daí o Albani trouxe para nós, nós éramos lideranças, nos reunimos, daí se formou um grupo para fazer o estudo, Juracilda, toda essa turma, veio, fez o estudo. E daí foi-se o tempo, fazia o estudo, mas não saia nada, não era declarado como Terra Indígena, não acontecia nada. E quando foi em 2005, na liderança do Marinho, que era Cacique, ele chamou a gente numa reunião e falou: “o que a gente faz?” Daí eu propus: “o único jeito é a gente retomar, mas antes vamos fazer uma pressão aqui no Laranjinha para dar subsídio para que a gente consiga retomar”. Foi quando a gente fechou o Laranjinha para dar uma pressão. Aí veio a imprensa, tudo, nós explicaremos que precisava daquele território. E daí conseguimos fazer alguma coisa. Em 2005, o Marinho, o Mario Rolim, ele falou assim, “nós temos que ocupar o Posto Velho”. Daí reunimos, no dia 05 de dezembro, descemos para o Posto Velho, era meia noite, daí ocupamos o Posto Velho, enfrentamos uma dificuldade, os fazendeiros contrataram jagunços para atirar na gente. E esse foi o processo, de retomar. E, de lá para cá, as coisas pioraram, a gente não tinha comida, não tinha água encanada, não tinha casa, não tinha banheiro, não tinha nada, foi uma dificuldade muito grande. Mas, em 2006, o Ministro da Justiça declarou Terra Indígena Yvy Porã, como Terra Indígena, teve a declaração. E daí a luta foi para demarcação. Em 2007, eu vim para o Pinhalzinho, mas acompanhava a luta deles lá, não me desvinculei de lá, vim para o Pinhalzinho, mas não consegui desvincular. E quando saiu, o presidente Lula autorizou que fosse demarcado, eu estava numa reunião lá em Faxinal do Céu, aí o antropólogo quebrou o contra laudo daquele antropólogo Hilário, acho que é Hilário. Então, ele fez um contra laudo contra os indígenas, e daí esse antropólogo da Universidade Federal, quebrou lá o laudo dele, que foi o que deu subsídio para a FUNAI fazer o processo de demarcação física. Eu estava na reunião com ele, ele me chamou e falou assim, “Estou tentando comunicar o Posto Velho, mas eles não estão me ouvindo, a FUNAI deu o direito da demarcação física, mas não vão conseguir “. Porque judicialmente foi pulado uma instância, ela foi julgada na 4ª Regional, sem ser julgada na primeira instância, então eles não vão conseguir, se os fazendeiros descobrirem que não foi julgado na primeira instância, eles vão entrar com uma ação e conseguem barrar a demarcação. E os fazendeiros, na verdade, já sabiam. E com essa carta na manga, quando chegaram para demarcar o Posto Velho, que chegou os agrimensores, a Polícia Federal e tudo. O advogado dos fazendeiros esperou eles fazerem o primeiro buraco para fincar a placa, quando fizeram o primeiro buraco o advogado tirou o documento, “vocês não podem demarcar aí, que não foi julgado na primeira instância ainda”. Daí a FUNAI recolheu o dinheiro que era para demarcação. E eles estão lá até hoje sem demarcação física. Daí entrou um novo governo, que era contra isso, aí não deu brecha para nada mesmo. Então o Posto Velho está nessa situação aí, esperando a demarcação física. Mas eles vivem na mesma situação ainda, naquele espaço de três hectares, apesar de que, hoje, tem uma escola, que dá curso para aquela Terra Indígena, tem um espaço para saúde. Então, hoje, ela já está mais estruturada ali, mas assim mesmo eles sofrem o problema de não serem reconhecidos legalmente, então eles não têm o endereço, dentro das estruturas do poder do nosso país, eles não têm o endereço. Então como diz o outro, não tem terra ali, e que na verdade ela já é declarada Terra indígena. E aí, os fazendeiros plantam lá, passam veneno, o veneno invade a sala de aula com as crianças dentro da sala de aula, invade o postinho de saúde deles, vai veneno para o reservatório, eles vivem nessa situação. E foi uma das ações, que quando, construíram um Núcleo de Direitos Étnicos e Coletivos, chamei no Posto Velho, junto com a Defensoria para forçar os fazendeiros a fazer alguma coisa, numa ação, o defensor conseguiu que o fazendeiro fizesse a barreira, uma rede de contenção do veneno, ele fez uma barreira grande de Napier, aí ficaram mais livres. Aí quando esse novo governo assumiu, em 2018, ele teve a força de derrubar tudo e o veneno continuou invadindo ali. Então, eles estão num processo bem complicado. Vamos ver se agora vai.
P/1 − Eu comecei essa pergunta contextualizando a tua relação com esses três territórios. Mas eu gostaria que você também pudesse falar um pouco do território onde vocês está agora, descrever um pouco de como está a situação aí, se é demarcado, não é demarcado? O tamanho da área, como que se dá o seu Tekoá?
R − Então, o meu Tekoá, tem 360 alqueires, ele é demarcado e, durante toda a vida, ele foi “intrusado” por não indígena, era funcionário do SPI, então não tinha mato, não tinha nada, tinha pouco mato na beira do rio. E quando eles conseguiram “desintrusar” tudo aquilo, em 2009, um dos trabalhos que a gente fez, é isso, foi tentar fortalecer o nosso Tekoá. Quando a gente foi observar, os nossos xeramõi não conseguiam fazer os rituais direito, porque não tinha todas as matérias-primas necessárias, não tinha semente de Avatí Kyry, não tinha esses milhos. O _________ era pouco, o cedro, as madeiras, tudo era pouco. Em 2011, eu pedi, eu tinha necessidade de ver como a gente ia conduzir esse território. Meu pai era Cacique, mas eu o ajudava. Em 2011, fizemos um levantamento da sociobiodiversidade, para entender como estava o Pinhalzinho, chamamos os técnicos do Instituto Federal e veio, fez o levantamento da sociobiodiversidade. E a gente viu mesmo o que precisava. Esses elementos sagrados para a gente estavam muito em falta. E aí surgiu a ideia de a gente fazer a primeira feira de sementes, feira de sementes indígenas, ficou Feira de Semente Crioula Indígena Y Mãu, a gente deu o nome. E acabou se tornando um calendário da Aldeia. E na primeira feira de sementes, a gente conseguiu recuperar aí, mais de dez variedades. Mas tinha muita dependência ainda do preparo da terra e a gente começou a lutar, para restaurar esse ambiente que estava degradado, não tinha mato, erosão muito forte. Denunciamos um arrendatário que tinha aqui dentro, que criou erosão, ele foi multado, para mitigar. Inclusive esse ano que saiu a decisão final, para ele mitigar os espaços que foram estragados. E depois, fizemos também um projeto para recuperar 21 alqueires de mata, que estão num estágio bem avançado de recuperação. Fizemos um projeto para recuperar toda a beira do rio das Cinzas, porque ela estava toda desmatada, era só pasto, só tinha acho que uns vinte alqueires de mata, o resto era tudo pasto. Então a gente está nesses trabalhos ainda de reinstalação desse Tekoá. Daí pegamos a ideologia de quê, veneno, essas coisas não são bem-vindas aqui. Aí a escola virou parceira, super parceira. Em 2011, fizemos toda a mudança dentro da escola, foi uma briga, porque naquele tempo os professores não indígenas, corromperam o indígena, compravam, tivemos que enfrentar uma batalha muito grande em cima disso. E houve briga de indígena com indígena, a gente não teve medo, a gente encarou, para a gente pegar na educação e aplicar da maneira que a comunidade queria. Em 2011, a escola abraçou essa causa também, de recuperação do nosso território, e começou a fazer um trabalho super interessante de entender o Tekoá, eles deram até um nome, “Nossa casa, nós conhecemos”. E daí as crianças foram para campo mesmo, não ficavam na sala de aula, foi entender as divisas, os marcos, as histórias de luta. Eles participaram juntos da feira de sementes e abraçaram a ideia de construir um sistema agroflorestal. E o que culminou isso é que a escola foi premiada em segundo lugar, dentro do estado, com reconhecimento de uma escola sustentável, ela ganhou um prêmio. Foram dois alunos defender a tese da agro floresta para escola e conseguiram um prêmio de R$8.000,00, que era para aplicar no projeto deles. E daí começou esse trabalho, de recuperação do território. A gente ainda tem partes bem devastadas no nosso território, não está bem estruturado,100%. A nossa comunidade ainda é muito dependente de ajuda externa. E nesse período que passou dos quatro anos aí, a gente não teve ajuda externa nenhuma. E culminou numa situação muito difícil, que hoje, quase ninguém planta aqui dentro, são bem poucos. Então, a gente vai ter que, agora com esse novo governo, tentar fazer um trabalho que, de início, tire desse paternalismo, porque você se acostuma num paternalismo, lá para a frente muda o governo, vai sofrer de novo. E a gente está nesse trabalho desse território. Conseguimos tomar a escola da mão do não indígena, colocamos a direção, pedagoga, professores indígenas. Nós temos professores não indígenas ainda, porque não temos pessoal para compor o quadro completo, a gente tem professores não indígenas ainda, mas cada professor que se forma aqui, cada aluno que se forma em determinada matéria, a gente já tira o não indígena e coloca ele, isso os professores sabem, quando vem trabalhar a gente fala, deixa claro que eles estão trabalhando até formar um aluno, eles não são definitivos. Então, quando forma um naquela área a gente o contrata. A gente está fortalecendo isso, a escola está fazendo esse trabalho de fortalecimento do território, fortalecimento dos xeramõi, dos nossos mais velhos. Então, esse trabalho está sendo fundamental para ajudar a gente, porque daí, trabalhando com uma criança você consegue chegar nos pais, porque os pais vêm com velhos hábitos, é difícil de conter aquela barreira que eles já criaram, mas a criança com escola consegue, fazer os pais enxergarem de uma maneira diferente. Então um jeito que está dando certo. Daí conseguimos, junto com o MdA, o direito de vender nossos produtos orgânicos. A gente só não pode vender para o consumidor, para o supermercado, para o Ceasa, mas para o consumidor final, a gente pode vender como orgânico, tem a licença do MdA, começamos com um grupo de oito. Esse ano, a gente já conseguiu aí como associação, estamos nos associando com uma associação da cidade, a gente conseguiu mais quinze pessoas, quinze famílias que aderiram a venda dos produtos orgânicos. E, com essa associação, a gente já conseguiu 1.200 por ano. Mas na associação uma coisa a gente fez, vai sair de graça para os indígenas, vai ser de graça, não vai ter a taxa de associação. A gente usou a associação porque eles já têm pronto. E daí como é indígena, vai ser fácil ganhar as cotações do município, então os produtos que forem produzidos aqui já vão ter onde entregar, já pode entregar direto para o Ceasa, essa associação já tem uma van refrigerada para pegar os produtos e entregar. Então o que a gente está trabalhando no território é isso, tornar ele sustentável, se tornar tradicionalmente indígena, mas garantir essa sustentabilidade e dar um pouco dessa segurança alimentar para a comunidade. Mas é um território que ainda tem conflito, tem intruso, tem dois pedaços que tem aqui, estão “intrusados”, está na justiça, ainda não conseguimos “desintrusar”, nosso território aqui é cercado por pasto e eucalipto, as minas secaram quase todas. A gente vai começar a fazer um trabalho de recuperação de nascente agora. Aí tem umas minas que secaram, o rio desce poluído, porque tem plantio de lavoura em torno do rio, de soja, milho, transgênico, essas coisas, de vez em quando acha peixe morto dentro do rio. O rio que corta a nossa terra indígena desce junto poluído, então ainda tem esses conflitos que a gente tem que trabalhar. Mas a gente luta, na medida do possível, para garantir o nosso território seguro para o nosso povo e tentando mostrar, de fato, que ele é um território indígena.
P/1 − É uma luta infinita. Entra governo, sai governo, a luta pelo território, pela alimentação, pelo meio ambiente, mas a gente também luta pela vida. E você iniciou falando da morte do seu pai, que foi por COVID. Eu gostaria que você contasse como foi esse momento de pandemia, como vocês fizeram para se proteger aí na comunidade, além do seu pai, se você pudesse contar também como foi isso, a COVID pegou seu pai. E os impactos que a pandemia trouxe para a comunidade?
R − Então, quando a pandemia chegou na Terra Indígena, alguns já estavam meio que preparados. Porque o nosso xeramõi, um ano antes, chegou um dia em casa e disse dessa forma, “eu tive na _______ ontem e os ______ me mostraram que vai vir uma doença muito forte que vai atacar o mundo inteiro. Então, se nós nos prepararmos na casa de reza, ele não vai entrar forte na terra indígena, na aldeia, mas vai vir essa doença muito forte”. Aí eu passei para um grupo que frequenta mais a cultura e ficamos preparados. Em 2020, 2020, 2019, 2020 estourou a pandemia. E quando estourou a pandemia foi aquele clima de medo, clima escuro, clima nebuloso e eu tinha que proteger a comunidade de qualquer jeito. Uma decisão radical que tomamos foi fechar tudo mesmo, não saiu indígena e não entrava nem equipe de saúde, não entrava para trabalhar na terra indígena, isolamos mesmo, só saia para fora quem tinha, por exemplo, o Romarildo, que é veterinário, tinha sua clínica na cidade, ele saía para ir trabalhar, mas os demais ficavam presos. E sofremos algumas coisas, porque teve uma família, que a mulher começou a desobedecer, ia para a cidade, voltava, ia para cidade, voltava e começou a gerar aquela revolta na comunidade. Até que ela foi expulsa. Aí ela nos denunciou por cárcere privado, que a gente tinha segurado ela. Ela nem é indígena, denunciou, até esse mês passado ainda fui responder na Polícia Civil sobre esse assunto, do cárcere privado. Daí eu expliquei que a gente estava amparado em leis, estávamos amparado em decreto, amparado na orientação da Organização Mundial de Saúde, na orientação da Fundação Fio Cruz, que tinha feito todo um estudo do sistema imunológico indígena, que não resiste ao vírus. Então apresentei toda essa defesa, mas estamos sofrendo esse processo durante um tempo. E a primeira pessoa que pegou COVID aqui, porque ele era motorista da saúde e foi levar um paciente e pegou, mas pegou ele bem fraco, não tinha nem surgido a vacina ainda. E o povo ficou fechado. Quando surgiu a vacina, que o povo tomou a vacina, teve um grupo que achou: “bom, estou vacinado, estou livre! Tô vacinado, tô livre!” E deu errado, então foram quinze membros da família deles, mais ou menos, que pegaram COVID, depois da vacina. Uns ficaram bem ruins, outros não, uns foram internados. E conseguiu passar esse processo da pandemia. E a gente sempre ali conversando, eu não tinha liderado direito ainda. E o meu pai, ele começou a fazer uns exames, no ano passado, no final do ano passado, ele começou a fazer uns exames. E aí na fila do hospital, ele pegou COVID. Mas ele é aquele índio, que nunca, nunca, nunca, tomou uma injeção na vida. Mas a do coronavírus ele tomou, mas assim mesmo ele pegou COVID. Mas ele não acreditava que matava, ele não acreditava, para ele era uma doença comum, que ia pegar e ia passar. E ele não se medicou direito, não se preocupou com isso, quando ele foi internado já era tarde, já tinha perdido 80% do pulmão, aí não teve jeito, em março, ele faleceu. Mas foi o único que a gente perdeu aqui dentro. Mas teve que fazer esse trabalho mesmo, de proibir entrada, de proibir saída. Aí a complicação foi arrumar alimento para essas pessoas que não saíram, não tinham como trabalhar, a não ser aqueles que trabalhavam numa escola, que estavam trabalhando remoto. Mas tinha o seu salário no fim do mês, a equipe de saúde. Mas os demais não tinham de onde tirar, quem trabalhava, às vezes, de pedreiro, de servente lá fora, fazia qualquer outro serviço, não tinha como sair da Aldeia. E a FUNAI não concedia cesta básica. E daí eu fiz uma denuncia, como eu sou do Núcleo de Direitos Étnicos e Coletivos, fiz uma denúncia, fiz uma denúncia e o juiz acatou a denúncia, aí foi acho que em junho, julho de 2020, o juiz chamou a FUNAI com a sentença, para negociar com a gente. E nós precisávamos mesmo da cesta básica, enquanto durasse o período da pandemia, enquanto o presidente da FUNAI não suspendesse a portaria do isolamento, FUNAI tinha que manter. Mas ela demorou, primeiro foi a ação judicial para mandar as cestas básicas, ela demorou um pouco. Aí eu tive que buscar algumas instituições, que somos parceiros, por exemplo, eu faço parte do Mutirão do Bem Viver, o mutirão que tem no Brasil, que trabalha só nessa área mesmo, na área agroecológica, essas coisas, eu faço parte do audiovisual ali dentro do mutirão do Bem Viver. E o mutirão do Bem Viver, estava trabalhando em todos os territórios, aí eu puxei a ação deles para o Pinhalzinho, porque precisavam ceder as cestas básicas também. Aí fizemos outra parceria, que é a ABAI, Associação Brasileira de Amparo à Infância, que também contribuiu muito com a doação de cestas básicas. Até que a FUNAI começou a mandar as cestas. Nós tivemos a parceria com a Pastoral, nós tivemos que fechar umas parcerias para que os indígenas, que as famílias tivessem seguros aqui dentro, para não serem contaminados, tivessem alimentos, porque senão eles tinham que sair para trabalhar. Então, foi muita luta para segurar esse povo aqui dentro, mas conseguimos, graças a Deus! Perdi só um, mas conseguimos controlar a situação da pandemia aqui dentro.
P/1 − Que bom parente! Depois de você contar praticamente, assim, quase toda a sua história, quase todo mundo tem muita coisa para contar. Mas hoje o que você considera mais importante para você? Quais os seus sonhos? Que legado você gostaria de deixar para as gerações?
R − Então, eu tenho um sonho de ver a minha terra indígena ser protagonista, de frente de várias coisas. Na educação, Pinhalzinho já é protagonista, tanto é que quando o estado vai fazer uma ação, própria SEEDE, ela fala, “vai no Pinhalzinho primeiro, se passar no Pinhalzinho, passa nas outras terras indígenas. Então ela tem um protagonismo de educação diferenciada, de fato, de aplicar educação diferenciada. Igual eu falei, esse projeto a reestruturação do território, fortaleceu que a educação fosse diferenciada. Mas eu ainda tenho vontade de deixar um legado assim, deixar o território completamente, um território Guarani, fortalecida a cultura, fortalecida a língua, que a gente sabe que está longe disso, mas é um sonho que a gente tem. E que ele seja protagonista mesmo da sua própria vida, sem deixar de ser índio, eu sempre prego um lema aqui, que ele lute para ele ter o que ele quer, sem ele deixar o que ele é, que é ser índio. Ele pode ter um carro, pode ter o que ele quiser, mas não deixa as origens, não troca. Porque é muito caro trocar uma cultura, por uma coisa tão superficial, que com o tempo acaba. Então é isso! Qual que é o meu planejamento agora, a curto, médio prazo, é fazer inclusão digital, fazer com que os jovens entendam esse mundo digital, estou formando um grupo de jovens que estão mais a fim de aprender mais a língua ainda, formar um grupo de estudos, e ali já preparar eles para luta, começar fazer todos esses trabalhos com os jovens. Trabalho com uma liderança, Graças a Deus, que sabe pensar. Na minha liderança, tem liderança que age mais na radicalidade, outro age mais já para apaziguar, tem outros que já são mais estratégicos para projetos, essas coisas. Então eu mantenho o grupo de liderança dessa forma, para que a gente, de fato, tenha a visão do que a gente quer para o nosso Tekoá para o futuro, e a gente quer um Tekoá com todos os nossos direitos garantidos, mas independente do mundo lá de fora, e não mostrar para a sociedade que o nosso futuro é atrasado, depende do paternalismo. Porque nenhum indígena, por mais que a cultura, por mais que ele viva dentro dos seus costumes tradicionais, ele não quer, por exemplo, não ter um banheiro digno dentro da casa, ele não quer viver essa vida mais, porque isso é necessário hoje. Então que a minha terra indígena se torne dessa forma. Uma educação bem fortalecida, uma comunidade bem consciente do que é o território, na luta de preservação, entender como que funciona essa dinâmica de respeitar crianças, respeitar os jovens, respeitar os mais velhos, trazer os mais velhos para junto da discussão, sem isolar eles no canto, porque eles são nossa fonte de sabedoria. E eles sabem o caminho que passaram e que a gente dá para evitar. Então esse é o meu sonho de futuro, que o Tekoá Pinhalzinho seja protagonista das próprias vidas aqui dentro.
P/1 − Com certeza vamos estar vivos para ver esse protagonismo. Bom, nós estamos chegando na reta final, fiz várias perguntas, não quero te deixar amarrado nessas perguntas. Você gostaria de acrescentar mais alguma coisa, alguma história que eu não te perguntei nessa entrevista?
R − O que eu vejo assim, para acrescentar, que a gente está diante de um quadro político meio favorável para a gente, está na hora de sentar todas essas lideranças, formadores de opinião, que tem um pensamento melhor e construir algo palpável para o nosso povo. Então eu vejo que precisa criar esses grupos de discussões. Aqui, no Sul, a gente está criando um grupo de discussão que vai de frente com isso. Mas precisa a nível de Brasil, a nível nacional, que se construam grupos de discussão, para a gente forçar esse sistema capitalista, de não fazer, da gente, um processo extrativista. Porque o que a gente vê é um processo extrativista hoje, que tira emprego de um, tira suor de um, em benefício das grandes empresas. Então eles traem a mão de obra, uma mão de obra barata, uma mão de obra escrava. Construir uma educação que também, que ela não seja integracionista, que faz dos jovens também formadores de opiniões, para garantir a segurança do seu Tekoá. Eu vejo que a gente está num momento para isso. Então tem que juntar essas cabeças que sabem pensar, que são formadores de opinião e juntos construir propostas de país mesmo, para as nossas terras indígenas. Que nem eu falo, tirar desse assistencialismo, fazer uma proposta de país, que fortaleça nosso Tekoá, que garanta demarcação, que tem uma saúde de qualidade, uma alimentação garantida, não precisa ser na dependência da cesta básica, porque os nossos territórios são capazes de produzir alimentos, que se construa políticas em cima disso. Respeitando, é claro, nossa cultura, nossa língua, nossa maneira de ver o mundo, respeitando o meio ambiente, aquilo que a gente é acostumado a respeitar dentro do Tekoá, Então, eu vejo que os anseios meus são esses, é sentar com essas cabeças, formadores de opiniões e construir uma proposta de país, para gente não ser só coadjuvante e sim protagonistas da nossa história.
P/1 − Bom, então acho que chegamos ao final. E a última pergunta que eu gostaria de te fazer, como foi contar a sua história?
R Sabe que é bom! Porque a gente não para relembrar esse processo de luta da gente, então passa um filme na cabeça da gente, para mim foi gratificante relembrar, ainda mais do tempo que eu era criança. Porque na luta do dia a dia, a gente acaba esquecendo desse processo, a questão da oralidade, a gente esquece do processo de oralidade, que é passar para os jovens. E olha, o trabalho de você está de parabéns, isso seria importante criar um projeto em cima disso, até dentro das escolas, de construir mesmo, porque eu sempre falo, os professores não indígenas chegam na sala de aula, somente para ficar lá na frente, tipo um coronel, aplicar aquilo que ele sabe, deu a hora ele vai embora. Não se cria uma relação de vida com a criança, eu vejo assim, que isso é o projeto que deve ser disseminado para outros setores da área de educação, para que mantenha viva a nossa história. E quantas histórias não tem por aí, que se a gente for se sentar para ouvir... E vocês estão de parabéns mesmo, eu não esperava que tinha um projeto desses. É só gratidão!
[Fim da Entrevista]Recolher