Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Chirley Maria de Souza Almeida Santos
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba / São Paulo),13/10/2022.
Entrevista n.º: ARMIND_HV009
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por ...Continuar leitura
Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Chirley Maria de Souza Almeida Santos
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba / São Paulo),13/10/2022.
Entrevista n.º: ARMIND_HV009
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 - Boa tarde, Chirley. Bem-vinda! Então, nós vamos começar pelas suas origens, essa entrevista. Então fique muito à vontade, tranquila para contar sua história de vida e suas origens. De acordo com aquilo que você sentir e estiver no seu coração. Vai ser muito importante para que a gente tenha esse acervo com a sua história. Então primeiro, gostaria que você falasse seu nome, tanto o nome em português e se você também tiver o nome indígena do seu povo, você também pode falar.
R - Boa tarde a todas, todos e todes! Meu nome é Chirley Maria De Souza Almeida Santos e meu nome indígena é Chirley Pankará. Pankará é o meu povo indígena. É um povo indígena que é do Sertão de Pernambuco, da terra indígena Serra do Arapuá, mas tem também nas proximidades. Há uma retomada na cidade de Itacuruba, em Pernambuco, e tem vários Pankará que vivem aqui, na situação de diáspora, em São Paulo e em vários lugares ali nas proximidades de Floresta, em Pernambuco, e de Carnaubeira da Penha. Então, tem povo Pankará espalhado por estes lugares, neste Brasil, no Sertão, aqui em São Paulo e em outros estados também, não só em São Paulo. Tem em Goiás, tem vários povos da minha família que vivem espalhados por este Brasil, por essa terra indígena chamada Brasil.
P/1 - Chirley, ainda sobre teu nome, nome Chirley. Gostaria que você contasse um pouquinho, quem te deu esse nome, Chirley? Foi escolhido pela sua mãe, seu pai? Eu queria que você pudesse falar um pouquinho dessa escolha do seu nome.
R - Então, o nome Chirley foi o seguinte: nas proximidades de onde meu grupo familiar estava morando, porque a situação dos povos indígenas no Nordeste, é uma realidade muito diferente de outras regiões do país, até pela observação e próprio contato com outros parentes indígenas. Nós, no Nordeste, fomos os primeiros a sofrer o impacto da colonização, ali naquela região. E nós, o meu núcleo familiar, fomos trabalhar em fazendas, terras de fazendeiros. Então, a gente morava naquela casinha lá. Eu nasci numa casinha de taipa, no fundo das terras e trabalhava, vivia ali mesmo. E certa vez, um dos filhos do fazendeiro tinha vindo aqui para São Paulo e se apaixonou por uma mulher chamada Chirley e esse romance não deu certo. Ele foi embora para o Nordeste com essa paixão muito grande dentro dele, dessa pessoa chamada Chirley. E aí ele foi lá, minha mãe estava grávida e ele pediu assim: "Põe o nome dessa criança, quando nascer, se for uma menina, você põe o nome de Chirley. Porque toda vez que eu ouvir chamar esse nome, eu vou lembrar do grande amor da minha vida”. A gente tinha os nomes, os nomes comuns que é sempre assim, Maria. Tanto é que o meu segundo nome é Maria. O nome da minha mãe é Socorro. E vem de uma série de nomes que são característicos do Nordeste. Muitos deles são apegados mesmo na questão do catolicismo, dos santos, da Igreja Católica. E aí ela colocou esse nome que, durante parte da minha infância, da minha adolescência, eu ficava muito irritada, aí eu ficava muito! Teve uma época que eu falava assim: “Ah, meu nome não é Chirley, meu nome é Fernanda”. Também não sei de onde eu tirava esse nome Fernanda, de dizer que meu nome era esse. Porque as pessoas não conseguiam chamar meu nome Chirley, chamavam Chirly, outra hora, Ticha, mas menos Chirley. Era Chirly e outros nomes semelhantes, que tivessem esse chiado aí do “Chi”, menos Chirley. E isso me incomodava muito, porque, às vezes, as pessoas brincavam. Eu olhava e não tinha outra criança com esse nome e aquilo ia me deixando angustiada, de saber que ninguém tinha esse nome. “Um nome igual ao meu, só eu tenho esse nome. Aquelas crianças todas têm o nome parecido, semelhante. É Maria de Lourdes, Maria do Socorro, Maria de alguma coisa. Só eu com esse nome tão diferente!”. Então eu passei um bom tempo triste com esse nome. Depois que eu fui me adaptando, mas aí já foi na minha fase de adulta mesmo. Eu fui me adaptando ao nome e até estou achando que não é tão feio assim não, quanto eu imaginava. Mas a história foi essa, a história da pessoa que queria recordar o nome do grande amor da vida dele. E aí minha mãe colocou. Minha mãe tinha isso com nomes, minha mãe não era muito apegada a ter esses nomes que o cartório queria. Porque na época que eu nasci, os cartórios colocavam os nomes que… não iam colocar Pankará. Não iam colocar o nome Pankará, não iam colocar o nome do nosso convívio ali, da nossa cultura. Esses nomes não eram permitidos. É recente essa luta, uma conquista dos povos indígenas de poder mudar os documentos, de poder colocar, registrar com o nome do seu povo, com o nome da sua cultura. E aí a pessoa chegava e falava para ela: “Coloca o nome aí, tal nome”. Ela colocava. Ela colocou outros nomes também, que outras pessoas foram colocando. Eu acho que por falta dessa acessibilidade, dela não se importar desse nome na língua portuguesa. As pessoas chegavam para ela e ela colocava. Eu tenho um irmão que tem um nome, por exemplo, Suetônio. Todo mundo sempre zoa ele a vida inteira por conta desse nome, Suetônio. Aí tem algumas pessoas que chamam ele assim: “Seu Antônio”. E ele fica: “Ah, seu Antônio!”. Aí, eu para amenizar o nome, falo assim: “Toni”. Chamo ele sempre do Toni. É por isso, então a pessoa falou: “Ah, eu gostei desse nome, você poderia colocar esse nome no seu filho?''. A minha mãe: “Ah, tá bom!”. Colocou o nome que ia registrar no cartório, colocava. Tinha isso, os nomes mesmo que tinham esse grande peso na época que eu nasci, eram os nomes baseados nos nomes cristãos, por conta da influência e do impacto da colonização, da abrangência da Igreja Católica. E os povos indígenas naquela região, fazem seus rituais de Toré, rituais específicos. Mas também frequentam as missas, a Igreja Católica também.
P/1 - Chirley, ainda nessa linha do seu nome. Em que ano você nasceu e como foi o seu nascimento, assim com um grande acontecimento, talvez tenha sido. E se você pudesse descrever como foi esse acontecimento do seu nascimento. Sua mãe te contou?
R - Então, eu nasci no dia 08 de maio de 1974. Diz a minha mãe que eu nasci ali, por volta de dez horas da manhã. Mas naquele período lá, não tinha nenhum papel, a gente escrevia algumas vezes ali em uma árvore, marcava alguma coisa. Era mais na memória mesmo. Não tinha essa exatidão de dizer: foi dez horas mesmo. A gente tinha aquele horário que a gente se baseava pelo sol, período do sol, quando o sol chega ali no meio do céu, quando você observa que o sol está ali, você sabe que ali deu meio-dia, que ali você chegou ao meio-dia. Então, ali você vai fazendo um cálculo, uma base, aproximadamente, de quanto o dia clareou. E o dia no Nordeste, ele clareia muito diferente do dia aqui. No Nordeste, às 5h da manhã, o sol já está apontando. E aí a gente tem uma lógica matemática de calcular essas horas baseadas nisso. Porque não tinha relógio, nascia em um lugar que você não tinha energia elétrica, era candeeiro. E, muitas vezes, a gente não tinha condições nem de comprar o querosene para colocar no candeeiro. Então, por isso, muitas vezes, a gente até se alimentava mais cedo, no período da tarde, no jantar, para ganhar aí, a luz do sol e dormir mais cedo. E aí acordar mais cedo, de acordo com a própria cosmologia do tempo do local, com todas essas especificidades. Quando eu nasci, minha mãe tinha dezessete anos. Minha mãe já havia tido duas meninas, tinha tido um parto de gêmeas. Tinha tido as meninas, mas elas vieram a óbito, nasceram com oito meses, minha mãe estava com oito meses de gestação e elas nasceram. Aí não sobreviveram, só deram aquela respirada. Minha avó identificou que elas estavam vivas, que elas ainda mexiam com a boquinha, mas não. Tanto que naquele período, a minha avó identificou, por exemplo, que elas nasceram com a boquinha "assim", quando elas abriram, estavam com a boquinha aberta, como se elas estivessem pedindo uma comida, alguma coisa. Na identificação dos conhecimentos tradicionais da minha avó, que era uma parteira, rezadeira, conhecedora da medicina tradicional, faleceu tem um ano. Ela faleceu tem um ano, a minha avó, com 89 anos. Ela identificou que foi por causa que a minha mãe desejou comer uma caça e não tinha aquela caça naquele momento. Alguém passou por lá e falou nessa caça: “Ah, eu estou levando um peba aqui”. E ela sentiu vontade de comer aquele peba. Eu acho que vocês conhecem o peba, que é o tatu, tatupeba. E aí ela sentiu vontade de comer e não comeu, com isso as crianças sentiram esse desejo e não tinha essa caça, mas ela sentiu vontade de comer e aí veio isso. E aí depois de algum tempo. eu acho que foi mais ou menos um ano e pouco, ou dois anos, creio que foi isso, eu nasci. O meu parto foi feito pela minha avó, a minha avó foi a parteira da minha mãe. Depois que eu nasci, depois de mim, vieram mais sete irmãos, um total de oito filhos e minha mãe teve dez, com essas duas crianças que faleceram antes de mim. E o parto foi feito pela minha avó, não foi tido em hospital, não teve contato com hospital e todo aquele processo lá de pré-natal, como falamos na cidade, e todos esses cuidados com a parturiente. Foi feito dentro do núcleo familiar, junto com a minha avó, porque minha mãe sempre morou com a minha avó. E foram todos esses cuidados até eu nascer, cuidado com a minha mãe, os cuidados da medicina, de todo aquele processo do parto tradicional. Pegou o meu umbigo, a placenta e enterrou logo ali mesmo, no local. Porque, pra gente, é tão importante essa questão de você poder enterrar a placenta, enterrar o umbigo, tem uma relação territorial, tem uma relação com aquilo, com aquele cuidado com a terra, com aquilo que chama. Muitas vezes, eu sinto uma saudade grande de retornar ao meu território, é o meu umbigo me chamando, que está enterrado lá naquele território. Então a gente acredita muito nisso, no enterrar do umbigo no local. Aí você traz suas referências, elas ficam ali plantadas, dentro daquele local. Então, pode ser que tenha, não vou dar como uma regra geral para todo mudo, mas pelo menos para mim, essa relação funciona muito bem com o território. Toda vez que eu vou lá, uma vez por ano, que eu sinto naquela terra, eu sinto uma força tão diferente. Eu olho e falo que foi o lugar que eu nasci, que foi o lugar que eu enterrei o umbigo. Então tem toda essa relação. E foi assim, a minha avó que fez esse parto da minha mãe. E aí, falando ainda da questão, um pouco da certidão de nascimento, como você falou do nome, eu só vim tirar a minha certidão de nascimento quando eu tinha dez anos, para poder a gente já trazer para aí. Então vivia sem esse acesso à cidade. E aí com dez anos eu fui para a cidade, já havia ido em outros momentos, eu achava aquilo tão encantador, quando a gente ia para a cidade. Eu olhava para aquelas casas de alvenaria, eu achava que aquilo era o pico da modernidade, ficava olhando, eu passava a mão na parede. Eu lembro que a minha mão ficava toda suja de poeira e eu passava a mão, porque eu achava aquilo tão diferente, de ver aquelas casas, não é? Então comecei a ir, a partir dos dez anos, quando eu comecei a estudar. Eu já estudava nas escolas lá do território, mas não era com histórico escolar, essas coisas formais. Eu ia, muitas vezes, para a escola e chegava lá, estava um calor terrível, tinha um pé de umbuzeiro. Aí a gente parava, eu e minha tia, no pé de umbuzeiro e ali nós ficávamos horas. Quando tinha umbu, era chupando umbu, quando não tinha, era procurando cafofa de umbu. E aí quando chegava lá na escola, a aula já tinha acabado, o tempo é outro, o tempo era outro. A gente achava que a gente ia chegar, ia passar o dia todo brincando debaixo do pé de umbuzeiro, procurando cafofa de umbu, chegar na escola e ainda ia ter alguma aula, mas não tinha mais nada. Aí acabou que eu me atrasei um pouco para cursar a primeira série, por conta desses caminhos. Mas foi por aí, a caminhada, a pegada foi essa e sempre foi com a minha avó, com a minha mãe. Todos os partos dos filhos da minha mãe foram feitos pela grande parteira chamada Mãe Bó, o nome dela era Maria Divina, mas ninguém chamava de Maria Divina, chamasse Maria Divina o povo não sabia quem era essa pessoa, falasse Mãe Bó, aí o pessoal sabia, porque ela fez parte de várias outras pessoas, uma mulher muito sábia.
P/1 - Chirley, nossa que história! Bom, você disse que a tua mãe se chama Socorro, é isso? Como você descreveria a sua mãe? E gostaria que você falasse um pouco mais dessa parte da família, do nome da sua mãe Socorro, como você a descreveria e, também, um pouco mais da parte da família da sua mãe?
R - Da parte da família da minha mãe, o nome da mãe da minha avó, que era a pessoa da terra indígena lá da Serra do Arapuá, era Maria do Divino Amor. Então era só assim o nome dela, Maria do Divino Amor. Não tinham esses sobrenomes de Silva, de Souza, também não sei de onde apareceu esses sobrenomes Silva, Souza, não sei. E aí, ela teve a minha avó e faleceu de parto, a mãe da minha avó, que recebeu esse nome, Maria Divina. E aí ela teve esse nome, Maria Divina Filha, porque era filha da Maria do Divino Amor. E minha mãe é Maria do Socorro por isso. Tinha uma santa da Igreja Católica, que se chamava Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e minha avó falou assim: “Vou colocar um nome aí, faz aquelas promessas”. E colocou esse nome na minha mãe, para sempre que fizesse alguma promessa, ter uma cura, fala: “Se a criança se curar disso aqui, eu vou lá e coloco esse nome”. Não sei exatamente se houve um problema sério, para ela ter colocado esse nome, como tem algumas outras famílias que têm nomes assim, Maria das Dores, porque a criança estava com muitas dores, como tinha a Nossa Senhora das Dores, aí para passar as dores colocava o nome na criança, não sei o da minha mãe exatamente, se teve alguma coisa por ter se colocado esse nome, Socorro. Ela nunca contou isso, porque do nome Socorro, se foi só porque ela achou o nome interessante e porque tinha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E aí é isso, minha mãe. Meu pai, eu não tive a convivência. Então, é uma pessoa que, automaticamente, você não vai ver eu falando muito, não foi uma trajetória muito legal em relação a pai. Então, eu não tenho referências de pai, não tenho como te dizer, não tenho o que dizer. Não tive amor de pai, não tive acolhida de pai, não tive o reconhecimento de dizer: “Você é minha filha”. Logo quando meu pai estava perto de sofrer uma parada cardíaca, que levou ele a óbito, eu teimei, já estava aqui em São Paulo e eu estava com 39 anos, hoje eu estou com 48 anos. Estava com 39 anos, aí eu fui lá, já tinha as minhas duas filhas, que eu tenho duas filhas, uma tem 20 e a outra tem 22. E fui lá para o Nordeste e falei bem assim: “Oh, já que é o meu pai, eu vou lá conversar, vou saber essa… pelo menos para ele ver que eu tenho essas duas crianças, essas duas meninas". Eu fui, quando cheguei lá em Belém, tomou um susto, quando cheguei lá nas terras. Aí levantei a minha mão e falei assim: “Eu vim em missão de paz”. E dali fiz, ficamos. Naquele momento ali, eu pedi assim: “Oh eu não tenho nome no meu documento. Eu não tenho nome do pai no documento, você poderia colocar, já que é o meu pai? Não tem como tirar que é meu pai. Então não tem como, se não tem como, você poderia registar? Colocar o nome no meu documento?”. E ele de prontidão, ele falou: “Não, quando eu for na cidade, lá no cartório, vamos nos encontrar lá no cartório, lá na cidade e eu vou lá e coloco”. E ele me registrou. Aí quatro anos depois, ele veio a óbito, teve uma parada cardíaca. E é isso, não tenho outras referências, não posso dizer assim: “Aí, me sentei à mesa, comi, ouvi uma contação de história, ouvi uma caminhada na mata com os ensinamentos”. Não, eu só aprendi no núcleo de mulheres. A minha mãe sempre viveu com a minha avó e aí a gente sempre era uma única família ali, naquele núcleo familiar.
P/1 - Bom, e qual era o nome dele. Chirley?
R - O nome do meu pai?
P/1 - É, você não sabe dizer?
R - Não, era um nome também estranho, Genoviano, o nome do meu pai. Mas eu não sei como eu conto essa relação de pai. Como eu acabei de dizer para você sobre essa relação. Ele era uma pessoa não indígena, ele era uma pessoa que tinha bastante terras. E nós éramos as pessoas que não tinham as terras. Então é uma situação meio de conflitos. Eu não sei, pode ser que não tenham sido conflitos tão intensos, assim, de mortes ou de coisa e tal, mas conflitos. E psicológico sim, porque você sabia que ele tinha terras, era uma casa grande, tinha muita comida, tinha leite, tinha um monte de coisas e a gente morava naquela casinha de taipa e não tinha nada, não tinha nada. Muitas vezes, não tinha o leite para dar para as crianças, não tinha um querosene para colocar no candeeiro, para uma necessidade noturna. Porque a gente sempre deixava, a minha avó sempre deixava um litro de querosene na reserva, porque se uma criança adoecesse à noite e tivesse algum problema, você acendia rapidamente aquele candeeiro para atender as necessidades, que era super mais rápido do que você correr para um fogão de lenha e começar a colocar madeira para acender. O candeeiro seria a modernidade, o candeeiro era a modernidade da minha época de infância. Então você tinha aquilo ali só em um momento muito especial, que você precisou levantar durante a noite e não vai dar tempo de correr. Aí uma criança se engasga, ou outra coisa do tipo, você tem que correr rápido. Mas é isso. E a gente morava nessas terras, na casinha de taipa lá, e servia de trabalho, os afazeres de agricultura mesmo, de carregar água, de plantação, de coisa e tal. E essa relação de pai não tinha, entendeu? Então não tinha essa relação, então não tenho muito o que contar. Lógico que depois de um bom tempo, não adiantava eu criar e nem alimentar uma raiva dentro de mim por conta de abandonos, de negação de filiação. E aí eu fui lá na missão de paz, falei: “Por mim, pode fazer a viagem de volta em paz. Pode fazer o seu retorno em paz, se depender de mim não vou guardar esse ódio, esse ódio tão profundo”. Mas o sentimento de tristeza, de abandono, de necessidades. E teve até uma época que nós fomos expulsos de lá, da terra. E isso, às vezes, uma criança não conseguia entender. Como eu era ali, as pessoas diziam: “Filha da pessoa” das próprias terras e a gente é mandado embora dali, da terra. Às vezes, isso não fazia muito sentido e não fazia tão bem para criança, psicologicamente. Então, ficava algum tempo na cabeça, remoendo isso. Mas talvez seja superado, talvez, talvez eu tenha superado em alguns momentos, ou talvez eu não tenha superado e é isso. Posso fazer o quê? Eu vim, meu núcleo familiar veio com esse destino, veio com essa missão, com isso que teria que passar. Então não tem como reinventar, mudar, ou nascer de novo para dizer: “Não, eu não queria nascer aqui! Eu queria ter nascido em outro lugar, queria ter tido o meu núcleo familiar com pai, com mãe, ou que fosse com duas mães ou que fosse com dois pais, mas que tivesse essa representação de alguém que poderia cuidar, os dois.” A minha avó fez esse papel de avó e de mãe de todo mundo, uma única família, minha avó fez todo esse papel. Mas que fez falta, fez falta, fez, para mim fez.
P/1 - Bom, continuando ainda na família, eu gostaria que você falasse mais dos seus irmãos. Quem são eles, quantos são e como é a tua relação com eles?
R - Os meus irmãos, hoje eu tenho seis irmãos. Teve um irmão meu que faleceu quando ele tinha 33 anos. Hoje, eu tenho três irmãs e três irmãos. Então, a minha mãe tem sete filhos vivos hoje. E aí tem as três mulheres que estão aqui em São Paulo. Tem uma irmã minha que é professora da Prefeitura de São Paulo. Eu tenho uma irmã minha que mora aqui e é advogada. Aí eu tenho um irmão meu que é advogado lá em Pernambuco. E os outros trabalham em outras frentes. E a relação é boa, a relação que eu tenho com os meus irmãos. Eu sempre digo assim: "A gente tem essa relação muito boa, porque a gente é a gente mesmo". Tá entendendo? Então a gente é a gente mesmo, por isso que, quando mexe com um, dói muito. Dói muito quando mexem com um dos meus irmãos, quando você ouve alguém falar: "Ah, um comportamento". Falar mal deles, de um dos meus irmãos, isso acaba doendo, vai gerando uma raiva mesmo! Quando eles me veem chorar, por uma série de coisas, de caminhos que eu faço. Porque eu faço uns caminhos na minha vida, que são muito difíceis. Eu venho por uns caminhos difíceis, eu vivo querendo romper bolhas e eu levo umas lapadas muito grandes, por querer romper bolhas. Eu vivo querendo explorar o mundo, eu vivo querendo fazer mudança, eu vivo querendo fazer uma série de coisas que eu vou numa inocência, falando assim: "Aí, eu acredito tanto na mudança da humanidade, eu acredito tanto na sinceridade, eu acredito tanto na amorosidade". Eu me doou para as pessoas, eu me doou de coração, eu me doou com amorosidade. E aí quando eu vejo as rasteiradas, quando eu vejo que não era nada nada disso que eu estava pensando, aí eu caio em prantos, aí eu choro e eles ficam tristes com isso, ficam tristes de me ver chorar. Às vezes, até a minha filha, quando me vê chorar, ela chega assim, e fala: "Mãe, mas o que foi?" Eu falo pra ela: "Não filha, não se preocupe não. Porque esses são os meus problemas, eu tenho que passar por esses problemas. Fica com os seus problemas, daí você sofre com os teus problemas e eu sofro com os meus". Eu sempre estou falando pra eles assim. Às vezes, eles ficam bravos quando alguém me magoa, porque eu fico triste, chorando. Aí eu falo: "Não, não! Não fique triste não". Eu falo pra eles assim: "Não fique triste não!". Eu sou a irmã mais velha. Então eu já venho com esse cuidado de “irmãe”, eu já venho com o cuidado. Em todo o período, mesmo quando a minha mãe tinha que ir para a roça, eu ficava com eles. Então eu fiz parte da vida deles, cultural, educacional dos meus irmãos. Eu tenho um apreço muito grande por eles, eles são os grandes amores da minha vida. De vez em quando, a gente “treta” um pouquinho, mas é uma “treta” suave, não é uma coisa de malícia, de raiva, de trairagem, de querer o mal de ninguém não. Eu quero que eles brilhem muito, quero que eles sejam muito felizes. Porque, muitas vezes, nas dificuldades, quando a gente estava junto e minha mãe estava ausente, porque tinha saído correndo, procurando trabalho, procurando uma roça para ir, eu ficava com eles. Quando eu via eles tendo uma necessidade de alguma coisa, que eles queriam comer tal coisa e não tinha aquela comida para dar a eles, aquilo ali me doía tanto, tanto que eu sentia. Aí eu ficava tentando estratégias, "O que será que a gente faz? Será que eu falo para o meu irmão ir para casa de outra pessoa, porque lá tem alimentação e ele vai poder se alimentar bem?". Então eu ficava pensando mil formas de como eu iria suprir essas necessidades deles. Aí eu ficava pensando: "Talvez aquela pessoa tenha mais comida lá na casa dela. Então se eu mandasse um irmão para ir para lá, o outro irmão para aquela outra casa, eles não iriam sofrer com as necessidades". Porque o Nordeste, para quem conhece, sabe como é que é o período de estiagem, período de secas, o quanto é difícil. Naquela época, nas épocas dos meus irmãos, a minha irmã mais nova tem trinta anos, minha irmã mais nova, caçula tem trinta e poucos anos. As coisas não eram como hoje elas são. Então, quando eles eram crianças, nós éramos crianças, porque a cada dois anos minha mãe tinha um filho, tinha muita dificuldade. Hoje as coisas estão melhores. Hoje tem uns acessos que eu nem sabia que eu tinha a possibilidade de acessar. Eu nem sabia que eu tinha a possibilidade de acessar uma universidade, não sabia que era possível isso. Então era muito difícil, mas é isso.
P/1 - Bom, eu acho que tudo, todas essas histórias suas, devem ter te marcado bastante. Mas tem alguma especial? Alguma história especial que marcou esse período da sua vida? Você falou bastante da sua família, alguma coisa assim que te chamou atenção, chama atenção que você gostaria de cobrar?
R - Olha, como eu te falei, eu venho de uma longa trajetória de um acúmulo de coisas, que ora elas foram boas, ora elas não foram boas. E aí eu não sei medir exatamente quais foram os graus de que umas foram piores do que as outras. Porque quando chegava um período de coisas ruins, de abandono, de descaso, vinha aquela avalanche de coisas. Mas aí tinham aqueles momentos que a gente se divertia também, brincava com as crianças na mata, em algum lugar. Tinham alguns momentos que a gente tinha quando a gente estava junto, compartilhava, brincava, brigava. A gente tinha alguns momentos que a gente se acolhia, juntos, sabíamos que tinha que se agarrar uns aos outros. Porque ali era, como a vida já tinha sido tão excludente com a gente, se agarrar uns aos outros era uma das coisas fundamentais. Mas tivemos muitos desafios! Os momentos que eu fiquei no Nordeste porque quando eu vim do Nordeste, eu estava com 24 anos. Os momentos que eu vivi no Nordeste foram momentos muito tensos, nós passamos muitas dificuldades. Então, a maioria dos momentos estava tendo dificuldades, nós estávamos em busca. Era o período que eu estava com 24 anos, os outros estavam todos com idades menores. As crianças pequenas que tinham muitos momentos que a gente via, assim, não desesperançosos, porque eu nunca vi, eu nunca me senti na vida, quando eu era criança, um momento que eu podia dizer que eu não tinha esperança de um amanhã melhor. Eu sempre via que o amanhã seria diferente. É tanto que até mesmo quando eu era criança, estava no meio lá do mato, eu contava histórias para eles, eu contava histórias de outra realidade, de outro mundo. Então eu criava umas histórias que ninguém tinha contado ainda. Eu criava umas histórias baseadas, eu sempre tive a mil, a mil por hora, eu sempre fui uma pessoa a mil por hora. E aí eu contava histórias pra eles, “Vamos lá, nós estamos em um lugar, tem um lugar chamado… tem uma cidade mágica”. Sem nem ter contato com a cidade, eu criava um lugar chamado cidade mágica. Nessa cidade mágica, eu dizia: “Olha ali, você vai, você fecha os olhos e a cidade fica embaixo daquela pedra, lá daquela pedra ali, que tem uma cidade, nós vamos sair daqui e vamos para lá. E aí, eu falava para eles: “Vamos fechar os olhos”. Demorava uns minutinhos com os olhos fechados, “Fecha os olhos, fecha os olhos. E aí “bum” nós estamos na cidade mágica”. Então eu falava para eles: “Aqui nós temos muitas comidas, nós temos muitas frutas, nós temos muitas festas legais!” Aí nesse lugar não tinha briga, não tinha desordem, desordem, no sentido de dizer assim, de alguém excluindo outra pessoa. Não tinha esse tipo de sentimento e eu contava isso quase todos os dias para eles. Eles pediam para mim: “Ah, Chirley. Conta aquela história da cidade mágica”. Aí todo dia eu ia lá e contava uma história. E a gente saía e subia em uma árvore, eles falavam: “Vamos para a cidade mágica?”. Eu dizia: “Vamos, vamos para a cidade mágica!”. E dali a gente criava aquilo tudo no imaginário do que seria, de crianças para serem felizes. Então a gente tinha isso. Então eram os momentos felizes. Os momentos quando chegava a chuva, por exemplo, era um sertão tão seco, é um período que a gente comemorava muito juntos. A gente saía pulando dentro de rios, na lama, se embolando lá na lama, fazendo pecinhas de barro, pecinhas de barro baseadas no meu núcleo familiar, que são artesãs, que fazem peças de barro, panelas, potes, pratos, cuscuzeiras. Então a gente se espelhava nisso e ia fazer, ia brincar. Então tinham um monte de brincadeiras, tinham um monte de brincadeiras que a gente fazia também, que a gente criava, inventava. Ia para debaixo das árvores e fazíamos brincadeiras nas árvores. Pegava uns pauzinhos lá, umas folhinhas de mato e varria lá debaixo da árvore, colocava umas pegadinhas aqui. Esses dias eu estava lembrando como eram as minhas bonecas, minha boneca era uma pedra “assim”. Pegava o resto, velhinho de tecido, que a gente não tinha acesso a doações de roupas, nem nada disso, então a gente quase não tinha nada. As crianças eram todas enroladinhas com paninho, quando faziam xixi, era tudo na roupa das pessoas vazava tudo para as roupas das pessoas. Quando você pegava uma criança, pegar um bebê nos braços era sinal que você ia tomar um banho e xixi e não tinha fralda, não sabíamos nem o que era isso de fralda. E aí a gente brincava com essas bonecas e tudo era do imaginário, não era uma Barbie, não era a Barbie que tinha aquele jeito, aquele cabelo, aquela pose da Barbie, era uma boneca de pedra, uma pedra reta, mas no imaginário nosso, aquilo ali, ela estava tudo do jeito de uma criança. Esses dias eu estava pensando, como que as brincadeiras, como que os brinquedos, eles foram se moldando no olhar justamente padronizado pelos meios de comunicação de massa e que, de fato, leva, por exemplo, a exclusão de pessoas. Porque quando você é adolescente, quando você é criança, você olha uma boneca dessa, nesse corpo, naquele estilo de roupa, você se sente muitas vezes, “Poxa, eu não tenho esse corpo, eu não tenho essa roupa, eu não tenho esse jeito”. Então, eu não sei para que muitas vezes serviu esse tipo de brinquedos que, ao invés da gente ser feliz, muitas vezes a gente olhava e comparava que a realidade não era aquela, que a gente não era aquilo. E aí depois disso, as brincadeiras no mato, nós fomos morar na cidade lá na cidade, cidade de Floresta. Porque as nossas aldeias da Serra do Arapuá, elas pertenciam à Floresta, o município de Floresta, mais ou menos, eu acho que uns 20 e poucos anos. Mas talvez, se você procurar por aí, 25 anos. É que eu me perco nas datas. Foi quando o Carnaubeira da Penha, que hoje é o município das Aldeias da Serra do Arapuá, ele se emancipou de Floresta. Porque Carnaubeira da Penha era município de Floresta. E aí nós fomos morar lá. Mas eu já não estava na terra indígena da Serra do Arapuá, a gente já não estava mais lá, já estávamos em outro território, que não é reconhecido como território indígena. A gente estava lá para trabalhar, que é a realidade de muitos indígenas do Nordeste. Se vocês buscarem a história de Floresta Pernambuco, muitas vezes os que chegaram ali, foram pedindo os impostos da terra. Mas quem não tinha recursos nenhum, como que ia pagar impostos? E assim, muitas vezes perdiam suas terras, porque não tinha terra, não tinha terra com documentação antigamente. Na minha infância não tinha terra com documentação. Tinha algumas de quem tinha poder, de quem tinha dinheiro, mas não era comum ter entre a gente, assim, dizer: "Tá ali tantos hectares, tá ali o Incra da terra”. A gente não tinha isso. E por muitas vezes, por não ter acesso do recurso para tirar esse Incra, as pessoas perdiam as terras. E por muitas vezes também, não ter os recursos dentro da terra, tipo, “Tá muito seco”. Quem tem condições de manter uma agricultura, manter a subsistência, era quem tinha os motores, quem tinha acesso ao puxado de água de motor, daquele motor para fazer irrigação das coisas, quem não tinha, não tinha como sobreviver. Por isso, a gente ia buscar em outras terras, quem tinha condições de buscar em outras terras, quem tinha condições para trabalhar. Essa é a realidade de muitos indígenas. E é tanto que muitos de lá, vieram para São Paulo, por conta dessas dificuldades. Hoje como teve a identificação do território, que ainda não está demarcado, ele ainda está em processo, isso ocorreu em 2003. A Terra Indígena da Serra do Arapuá, ainda está em processo, tem uma escola diferenciada, tem uma UBS lá dentro. Então quer dizer, isso foi dando mais um acesso, a gerar renda para aquelas pessoas que estavam ali. E hoje está uma realidade totalmente diferente da realidade que eu vivi na minha infância. Então nós fomos para a cidade e, na cidade, era diferente do que as pessoas dizem de cidade aqui, elas têm uma diferença muito grande. Eu até falei com um rapaz outro dia, falei assim: “Olha você precisava ir lá, para que você pudesse entrar em contato com o que eu estou dizendo na prática. Porque, talvez, se eu ficar falando para você é isso, você vai pensar assim:”. “Ah não, esses aí são os indígenas do contexto urbano, são os indígenas que foram para a cidade, são não sei o quê!”. Quando na verdade, a gente ia para cidade como se fosse tudo parte de nós. Não tinha essa coisa de dizer assim: “Eu tô aqui na cidade, ah tu é da cidade, indígena que veio para cidade”. Nós éramos povos indígenas, em um território indígena, porque as pessoas chegaram depois. Então não teve isso. Lógico que quem tinha mais dinheiro, recursos, centralizou uma parte lá da cidade, que hoje tem umas casas, um modelo bem antigo e tal, que fica lá. E a gente ia lá para aqueles fundões, ficar lá em umas partes do fundão. Mas a gente nunca entendeu como algo tão assim, a gente entrava, a gente vai em um lugar, vai em outro, fazemos nossas festas, nossas coisas não como algo tão estranho. Aqui eu vejo muito isso, muito dividido, ou se você vai em contexto urbano, você é muito discriminado por isso, por estar em contexto urbano, e não, o indígena está ali naquela aldeia. Aí depois a gente fala que o Brasil todinho é território indígena, meio contraditório. Então é cair em contradição quando alguém diz que o Brasil inteiro é território indígena. Então se fizeram tudo isso aqui, se tem os concretos, essas casas, se tem esses monumentos, foram porque engoliram as nossas aldeias, não foi o contrário da coisa. Por isso que o circular por aquela cidade, para a gente, era como algo normal e a gente ia porque de lá, tinha mais acesso às coisas que estão mais perto da beira do rio, onde a gente poderia ir trabalhar de diária nas roças. A gente ficou um bom tempo trabalhando de diária nas roças. Então, não tinha escolas dentro de comunidade, de terra nenhuma, não tinha escola que tivesse ensino médio e a gente já tinha terminado as outras séries iniciais. A gente tinha que ir para a cidade para cursar. E esse que eu fiz, o ensino médio, por exemplo, era na cidade. Então, a gente se desloca e fica ali, mas também passa por uma série de dificuldades, passam uma série de dificuldades ali. Mas ali tinha bastante lugares que iam para a beira do rio, várias terras que as pessoas estavam plantando melão, melancia, tomate e a gente trabalhava com isso. A gente ficava, às vezes, na beira de uma estrada, quando passava um carro, “Vai pra onde?''. “Ah, eu vou lá para à beira do rio colher tomate”. A gente subia no caminhão e ia colher tomate para ganhar uma diária, nem que fosse cinco reais, dez reais hoje, digamos, a gente estava lá em cima desse caminhão para poder colher tomate. Passava o dia inteiro, eu sempre nas minhas metas, corria, trabalhava, trabalhava e falava: “Quero colher 35 caixas de tomate, eu fazia o cálculo, 35 caixas de tomate vai dar tantos reais, então tantos reais vai dar para eu fazer isso, comprar isso, ajudar aqui, ajudar me casa e tal. Aí eu fechava a meta, na hora que eu cumpri as 35 caixas de tomate, aí o resto eu corria lá na beira dos rios e começava tacar pau e brincar nas beiras dos rios. Ia sempre eu, minha irmã, iam mais outras pessoas. E era isso, tinham os momentos de tensão, mas tinha os momentos também que a gente tinha o entendimento de que a gente era fundamental um para o outro, o núcleo familiar, a família. Mas sempre na esperança de dias melhores, sempre na esperança de que as portas pudessem se abrir para que a gente pudesse acessar as universidades, para que pudéssemos acessar alguma forma de viver, não só sobreviver, porque viver é uma coisa, sobreviver é outra. Você sobrevive, você está só pelejando, está pelejando alguma coisa e quando você vive, é viver bem. Viver bem é o quê? Não é ter carrão não, não é tu ter, capitalismo, tudo ter o capitalismo em mãos. E você poder se alimentar bem, é você poder saber que você vai precisar ir em um lugar, você tem como se deslocar. Vai precisar ir em um médico, você sabe como você pode chegar. Quantas vezes, nós precisamos ir ao médico e não tinha um carro para poder levar a gente em uma hora de coisa. Eu já passei por uma situação de doença, por exemplo, que a gente corria atrás de um carro para poder me levar e eu quase morrendo, quase morrendo. Por conta de umas próprias questões espirituais, eu tive umas questões espirituais que não foram entendidas pela medicina tradicional como espiritual, e aí as pessoas me passaram remédios. Eu estava olhando e fugia do meu corpo, o meu espírito saía do meu corpo. Então, ele saía do meu corpo e eu me apertava assim e falava: “Será que eu estou morta? Será que eu estou morta?”. E aí as pessoas identificaram isso como uma loucura, coisa do tipo, eu falava para as pessoas assim: “Eu não estou louca, eu estou bem, eu estou bem!”. Mas as pessoas, “Ah não, está louca! Está louca!”. E aí me passaram alguns remédios, e aí por me passarem alguns remédios fortes e não me ensinaram também, eu só vivia tomando a erva medicinal, sei lá que esses remédios não podiam tomar um com o outro. Peguei e tomei os dois juntos, tomei os dois remédios juntos de uma vez, falei: “Chegou os que sabem, chegou os que sabem, então está dizendo para eu tomar, vou tomar”. Tomei dois, e aí comecei a me encher de câimbras. Eu me encolhia, me encolhia, eu ficava ‘deste tamanho’, eu sou bem pequena, fiquei bem pequenininha, menor ainda, de tanto que as câimbras puxavam. E, às vezes, nesse momento que a gente ia correr atrás de uma pessoa para pegar um carro e levar no hospital. A gente não achava um carro, não tinha um parente que tinha um carro. Então, por isso que quando as pessoas chegam hoje e julgam a gente, os povos indígenas e dizem assim: “Ah esses indígenas aí são de Hilux, esses indígenas aí são os indígenas do IPhone, isso chega a doer tanto também, porque é como se não quisessem permitir a gente de ter acesso às coisas. Então quer dizer, naquele momento, tiveram que correr, correr, foram procurar uma pessoa lá longe para me levar de carro, quando eu já estava nas últimas, o meu pescoço ele já não colocava mais, o nervo tinha puxado tanto das câimbras, porque eu estava envenenada, que o meu pescoço estava ‘assim oh’, eu nem olhava. Até quando eu cheguei lá o médico brincou ainda comigo, ele falou assim, de cara ele olhou e disse assim: “Você está envenenada”. Eu falei: “Eu quero ir ao médico, eu quero ir ao médico gente! Nem que eu trabalhe na roça um monte de dias, mas eu quero ir ao médico!". Que é o médico que entende da ciência tradicional, ele era uma pessoa conhecida na cidade, porque ele tinha esse olhar da ciência tradicional e era formado na ciência, essa eurocêntrica que nós temos, importantíssima, as duas tem que caminhar juntas, as duas ciências têm que caminhar juntas. Aí eu falei: “Eu quero ir nesse médico”. Porque nesse médico é uma consulta cara pra danar, eu digo: “Mas eu quero ir nesse médico”. Aí não deu outra, quando eu cheguei lá, que ele disse: “Você está envenenada”. Eu falei: “Ué, o médico nem sabia que eu tinha tomado os remédios, como é que ele sabe que eu estou envenenada?”. E aí ele foi lá e passou uma injeção para desenvenenar e rapidamente fui voltando, as coisas. Porque eu pensei assim, ele é uma pessoa que lida com as questões espirituais, eu falei: “Eu estou com uma questão, é espiritual, né?” Então eu fui toda envenenada por uma questão que eu estava espiritual. E aí é isso, todo esse ter acesso às coisas, ter acesso ao carro, não é uma espécie de privilégios nenhum de vaidades. Eu senti muitas vezes essa necessidade de ter que correr com parentes, ter que correr com uma pessoa da família e a gente não ter acesso, não ter o carro para ir. Então essa é, mais ou menos, uma história da cidade. Aí ali da cidade eu terminei o meu ensino médio, fiz o magistério, habilitação específica para o magistério, eu estudava a noite e durante o dia eu ia para as roças. Como eu falei para vocês, eu ia para as roças, eu colhia tomates, especialista, assim, colhia tomates, mudar tomates, melão, melancia, era mudar cebola. É tanto que eu conto uma história dessa, não me lembro para quem eu contei, de uma trajetória minha, eu acho que está em alguma coisa do meu doutorado, que eu contei que, das piores plantações que eu fiz, que eu olhava assim, e falava: “Poxa vida, que trabalho duro!”. Era mudar cebola, era plantar cebola. Porque para plantar a cebola, você tem que colocar toda a água, tem que colocar o suco, como a gente diz lá no Nordeste. Tem que encher um quadrado de água, você a pega no dedinho 'assim’, você pega a mudinha e você não pode virar muito, porque ela não pode cachimbar que é uma espécie de cachimbo, ela não presta, a cebola, você tem que plantar bem retinha com o dedo e muitas vezes ali tinham uns pés de quixabeira, e muitas vezes espetava os meus dedos, espetava os meus pés e aí não dava para calçar sapato. Porque você tinha que ficar o dia inteiro com o pé dentro da água e em uma posição super desconfortável, porque você não podia se sentar. Então você não podia sentar e você tinha que agachar sem se sentar, porque aquele lá estava cheio de lama, cheio de água. Aí eu recordo, eu digo: “Esses foram uns pancadões”. Aí a gente mudava a cebola, depois a gente colhia a cebola, cortava, embalava para ir vender para as cidades mais próximas de Recife. Então o tomate ia para uma cidade lá perto do Sucuru, então ia para uma fábrica de tomates, tinha para lá também. As mais maduras iam para a fazer os extratos de tomates e as outras iam para os comércios nas feiras mesmo. Então tinha todo esse rolê. Apesar de que o tomate também, tinha nas folhinhas dela, ela tinha uma tintazinha, coisa que saía, você não limpava por nada, ela ficava escura. E, às vezes, eu ia para a escola à noite e quando eu ia escrever, tinham umas pessoas que falavam para mim: “Olha, ela nem tomou banho, olha como o dedo dela está sujo! Olha!”. Mas aquela mancha não saía do meu dedo, porque você lavava, mas ela não saía, porque ela entrava aqui, nas unhas, era da própria folha, tinha uma tinta na folha. E aí, às vezes, eu ficava escrevendo, assim, com os dedos virados, virando, para as pessoas não verem, porque elas diziam que eu não tinha lavado as mãos, eu tinha lavado minhas mãos, mas fazer o quê. Então é isso, mais ou menos uma história contada desde a minha época de criança, vivendo dentro das matas, junto com a minha avó que me ensinou muito da medicina tradicional, me ensinou muito dessas artes, que eu tenho aqui, que dá para ver um pouco aqui atrás, que são as artes do barro. É uma arte do barro, que eu tenho um livro escrito lá, Nana e os Postes de Barro, que é uma coisa importantíssima que traz a questão da cosmologia, o período certo para tirar o barro. Por que o barro não trinca? Por que a peça não trinca? Não trinca? Não quebra? Porque você sabe o período certo de tirar, baseado na questão lunar. Tem todo um processo de trabalho amassando esse barro, fazendo a coordenação motora, fazendo uma terapia aí com as mãos e uma riqueza com esse trabalho da arte no barro, que foram as formas de sobrevivência nossa e do meu núcleo familiar. Muitas vezes a gente saía para trocar; “Vamos trocar por uma cuia de milho? Vamos trocar por uma cuia de feijão?”. Porque plantava naqueles grandes espaços de terra de milho e de feijão, então a gente trocava. E, muitas vezes, a minha avó falava para mim assim: “Faz uma decoração na boca aí do pote”. Aí eu olhava para as árvores e o que eu via na árvore eu colocava. Tinha uma folhinha, eu fazia aqueles desenhos. Até hoje eu estou doida lá, querendo ver se ainda existem esses potinhos, eu vou procurar se alguém ainda ficou. Porque eu conto muito, uma recordação muito boa; que eu pegava um gravetinho e eu fazia o desenho de acordo com aquilo que eu estava olhando. E eu o colocava e deixava bem decoradinho pra gente vender, pra gente trocar. Que na verdade não era com dinheiro, era com a troca por alguma coisa. E é isso. Ainda a vida no rural, que a gente nunca deixou de ir, que a gente sempre foi, que a gente sempre vai. A gente tem essa vida também dividida aí, entre cidade. E que a gente se mantém e se fortalece também, e que adquiriu alguns meios de sobrevivência também, estudar. E depois do magistério vim para São Paulo, e foi para cá que eu cursei pedagogia, então essa é a caminhada.
P/2 - Chirley, você estava dizendo da sua avó, que te ensinou tanta coisa. Você já contou como ela falava para você colocar o enfeite no pote, e tudo. Você lembra de momentos assim, se puder contar mais do que ela ensinava para você. Tanto dessa parte, desses objetos, ou mesmo da parte espiritual, momentos que ficaram marcados, do que ela falava?
R - Das partes que eu recordo muito da minha avó, essa parte aí que eu estou falando da arte do barro, que aí acabou que a minha mãe também veio fazendo essa arte do barro. Eu faço, não é só para rememorar. Não é só para rememorar. Eu faço isso como algo que eu sinto uma ancestralidade, uma ligação diferente, uma vida, outra coisa. Até quando minha filha fala para mim: “Minha mãe está estressada”. Aí ela fala: “Mãe, vai lá pro Pernambuco fazer panelas de barro”. Ela já sabe, toda vez ela fala isso para mim: “Mãe, vai pro Pernambuco fazer panelas de barro”. Ela sabe que é minha terapia, porque desde o momento que eu vou… e isso foi uma das coisas, grandes coisas, que rendeu o livro. E outras coisas foram as questões dos partos tradicionais, e essa questão da medicina. Então, tem a questão do parto tradicional, que minha avó me conta, me contava, que eu registrei muito do que ela me contou. Como a gente sabe que os nossos mais velhos um dia precisam ir, toda vez que eu ia lá no Nordeste, eu pegava e gravava um monte de áudio com ela, e vídeos. Dela me contando. Mesmo que tivesse que recontar coisas, ela recontava, às vezes, esquecia que tinha me contado, mas ela estava muito, bem lúcida. E ela ia me recontando. Então, umas das coisas que eu gravei muito foi quando ela disse que teve a minha mãe. Ela teve a minha mãe sozinha, então eu falava “Poxa vida, minha avó fortíssima, eu tive as minhas filhas aqui em São Paulo e foi uma dureza terrível dar à luz, sofri, sofri tanto, e minha avó teve minha mãe sozinha”. Então, ela teve minha mãe sozinha. Ela deu à luz a minha mãe sozinha. E aí, ela falou: “Eu fiz um café meio amargo”. Ela disse que não tinha, ela só tinha uma faca velha em casa, aí ela botou um pano na cabeça, ela falou que era um período de junho e estava chuvoso, ela ainda cobriu assim a cabeça, e ela foi na casa de uma vizinha pegar uma tesoura, para poder cortar o umbigo da criança. Então, essas histórias que ela me contou, que eu fiquei marcada, essa força, essa resistência, de uma pessoa. E achar que é normal… achar que é natural, para ela é natural. Ela falou: “O que tive que sair na vizinha para buscar, foi só porque eu não queria cortar o umbigo da criança com uma faca enferrujada, porque poderia fazer mal a criança, a criança morrer, e como eu estava sozinha, alguém dizer que eu havia matado a criança”. Então ela tinha essa preocupação. E todos os cuidados que ela tinha com outros partos, de que ela se destacou nos partos. Tinha uma mulher que estava com dificuldade de ter uma criança, que a criança estava atravessada, e aquela mulher já estava passando por várias outras parteiras, e as parteiras estavam com aquela mulher ali, acho que uns dois dias já tentando, tentando, e a minha avó jovem, naquela época, ela chegou e falou, ela tocou na barriga daquela mulher, pediu permissão para poder entrar, foi convidada pela força dos encantados. Porque quando você chega… você é uma pessoa jovem, você chega no local, que estão ali aquelas parteiras já tão antigas, e ela chegou e falou: “Quero, deixa só eu olhar aqui, só tocar”. E ela tocou na barriga, ela identificou que aquela criança não nascia de parto normal, que ela era uma criança que estava atravessada, que ela precisaria ir pra cidade, aí todo mundo naquele lugar, “Como? Como?”. Aí ela falou: “Se a gente não levar essa mulher pra cidade ela vai morrer”. E aí, levaram pra cidade. Quando chegou lá… aí, minha avó foi junto. Quando chegou lá, “Mas como essa pessoa tão jovem?”. Mas eu esqueço qual foi a idade da juventude. Esqueço qual foi a idade que ela contou. Pode ser que nos vídeos, nos áudios que ela me contou tenha, mas não creio que ela se recorde da idade, ela fala só da juventude, ela fala que ela era muito jovem. E aí, ela foi, realmente, aquela criança estava atravessada na barriga. Então, a partir daquele momento ali, aquelas mulheres começaram a procurar minha avó, outras pessoas começaram a ter uma referência dela como parteira. Porque ela identificava no toque. No toque na barriga ela identificou que a criança não nasceria de parto normal, e dali como a gente já era acostumado com as ervas medicinais, a gente sabe, por exemplo, quais são as ervas que a gente vai passar para cicatrizar depois. A gente também sabe as ervas que a gente lavava os cabelos, não tinha xampu, a gente sabe as ervas que a gente lavava as panelas de barro, não tinha sabão. Então tudo isso é uma coisa. E é uma coisa interessante isso, é uma coisa que eu gosto de lembrar porque toda vez que eu vou lá na minha terra, na casa que eu tenho lá no Pernambuco, eu faço questão de fazer esses mesmos caminhos. Não de partos. Mas, lógico, eu senti muita vontade de ser parteira. Tanto que a minha primeira tentativa de estudo foi Enfermagem, mas como eu não tinha recursos, eu não ganhei uma bolsa de estudos. E aí, eu não, não, não fiz Enfermagem. Mas eu tinha na cabeça que eu queria fazer um projeto sobre os partos tradicionais. E aí, eu ia levar esses partos tradicionais baseados nessas contações da minha avó, e ela sempre contou da forma do tratado com uma mulher, uma forma respeitosa, que nem naqueles momentos não precisava desses exames de toque, que machucava as pessoas. Ela sempre falava assim: “Não dá toque nas pessoas”. Que é o que o povo usa hoje. Tá certo. Se está certo ou não está, eu não sei, não sei. É o que se faz, e não vou discordar de nenhuma forma de ciência de ninguém. Se está dando, se dá certo, beleza, massa. Mas ela sempre falava assim, que identificava as coisas pelo toque suave na barriga. Então ela tinha, as pessoas tinham um apreço muito grande. Porque, às vezes, já existiam naquela época também a forma de toque que se dá hoje, de colocar assim, introduzir os dedos, e ver se a criança está na dilatação tal ou tal. E ela conseguia fazer isso sem precisar fazer isso. E ela sempre falou pra gente, pra gente ter esse respeito que ela tinha com essas mulheres que estavam pra dar à luz. Então, ela era uma pessoa que ela estava antes com as mulheres, durante, e depois, porque ela era rezadeira. Quando as crianças ficavam doentes, as crianças iam pra ela rezar, e as crianças se curavam, as pessoas chegavam lá com a galinha, um ovo, qualquer coisa, porque ela tinha curado com as rezas, então, ela fazia parte da vida dessas crianças o tempo inteiro. Então essas são as coisas que me fazem recordar e lembrar muito da minha avó. Além dela ter sido uma pessoa muito maravilhosa, muito acolhedora, uma pessoa que a gente sente todos os dias a saudade dela. Ontem mesmo eu estava falando, olhei pra fotinho dela que tinha ali e falei: “Ai, que saudade da minha ‘véia’, da minha ‘véia’, né, saudade”. E quando eu vou na minha terra, como eu falei, eu busco fazer algumas coisas desse tipo, que a gente vivia antes, sem precisar desses meios tão tecnológicos. Então, eu acendo o fogão a lenha, me sinto útil quando eu consigo acender o fogão a lenha, quando eu pego lá e eu acendo. Eu me sinto útil quando eu posso lavar uma panela com velame por exemplo, pegar lá o velame, que larga um pouquinho de coisa, de espuma. Eu me sinto útil quando eu consigo chegar ali e pegar um juá, e lavar o meu cabelo com o juá. Então, eu trago isso, vem desses ensinamentos. Então se vem desses ensinamentos é porque são coisas muito boas que ficaram, coisas que eu quero preservar pelo resto da minha vida. Então é isso da minha avó. E de luta e de resistência, que ela foi uma mulher muito forte, de luta e de resistência. Mas são esses e tantas outras coisas. Mas esse foi o que ficou muito na minha cabeça, que ela me contava, ela sempre me contava essas histórias, mas ela tem tantas outras histórias. História de luta e de resistência, essas são as que eu tenho mais apreço, quer dizer, todas, mas essa que ficou mais na minha cabeça.
P/1 - É, Chirley, você falando da sua família, da sua avó, você falou sobre o território no início, e hoje você está na cidade. E ainda, nessa linha, você saiu do território original do seu povo e se mudar para um outro lugar, para um outro território, para uma cidade. Como foi essa experiência sua de mudança, sair do seu território do seu povo, do povo Pankará, e ir para a cidade? Como foi essa experiência de estar na cidade?
R - Você diz, nessa aqui em São Paulo ou…?
P/1 - Isso. É, em São Paulo e antes se você também foi para outro lugar, porque eu conheço a sua história, você chegou em São Paulo, mas você foi para outro lugar também antes. Antes de sair lá de Pernambuco…
R - É. Como eu falei pra você, nós saímos num período, esqueci que ano foi. Porque nós fomos pra cidade, que aquela ideia que a cidade é só a extensão, que tá em Floresta, tá na beira da Penha, então é só a extensão. Eu nem considero de dizer que foi uma ida pra cidade. Até meu pai já morou na cidade, meu pai já morou na cidade, próximo à casa da minha mãe, lá na cidade. E a gente vai pros territórios finais de semana, vai quando precisa passar de semana lá, passa de mês. Mas depois vai e volta pra cidade, por conta de muitos acessos a médico mesmo, as especificidades que não têm tão lá dentro. E porque quer mesmo, não vou nem ficar aqui enchendo linguiça pra dizer “Ah, porque quer estar na cidade só por causa disso”, não! Não é, não. Quer, a gente sabe que quer também. Quer também estar na cidade. Quer também estar na cidade que foi coberta em cima do nosso território, né. Que a gente circula livremente como se tivesse… se for pra dar, for pra botar meu cocar, se for pra dar uma pernada, oh, como se eu estivesse fazendo tranquilo, normal. É diferente daqui que se você põe um cocar ali, e o pessoal pergunta se é dia do índio? E aí, eu vim do Nordeste pra cá, pra São Paulo. Eu vim pra São Paulo, encontrei um parente da minha avó, uma vez que ele foi lá pro lado da Bahia. Que minha avó tem uns parentes na Bahia, que é do segundo casamento do meu bisavô, ali, lá em Paulo Afonso. E aí, os parentes deles foram pra lá, e eu… eu, às vezes, pegava carona dali de Floresta para chegar em Paulo Afonso, ficava pedindo carona. Naquela época as caronas elas eram tranquilas, as coisas não eram perigosas como hoje. Então, a gente pegava carona, qualquer carro que passava, passava o carro dos correios, enfiava dentro dos carros dos correios, pedia carona e se mandava pra outra cidade, pra poder ir pra casa dos parentes, quando a gente sabia que tinha parentes, né. E aí, ele chegou lá e eu fiz amizade, falei bem assim: “Eu quero ir pra São Paulo, arrumar um trabalho lá pra mim, que eu vou lá pra São Paulo”. Aí, ele foi lá, e eu peguei o contato, fiquei mantendo contato, e ele me arrumou um trabalho, foi empregada doméstica. Ele falou: “Ah, tem umas casas precisando, para trabalhar de empregada doméstica”, aí, eu falei: “Tá bom, me arruma aí”. Então, antes de entrar no CECIS como coordenadora geral, eu ia para as igrejas mesmo, fazia parte da Pastoral da Criança, levava minhas filhas na pastoral da criança, para poder fazer alguma atividade. Eu tenho vontade de fazer muitas coisas, eu gosto de fazer muitas coisas. Então eu ia ali, lá eu falava: “Eles vão ensinar a fazer bordado, crochê”, e aí, eu pegava e fazia. E quando eu ia no Nordeste, vendia os panos de pratos pintados, feito barra de crochê. Aquelas toalhas de criança, com nome de criança. Aí, eu me oferecia assim: “Eu posso ajudar na cozinha?”, e eu, às vezes, lavava os pratos da cozinha, para servir aquelas crianças. Porque aquelas crianças iam lá comer de final de semana, iam pesar uma vez por mês, ali no Pastoral da Criança. E aí, eu fui fazendo várias coisas, diarista, aí depois fui diarista, trabalhei em casa de bichinho de pelúcia, e levando minha filha para brincar de final de semana, eu vi a possibilidade de cursar. E aí, eu cursei pedagogia, que eu já vinha do magistério. Como eu disse antes, eu queria ter feito enfermagem, por conta, pra trazer os partos tradicionais da minha avó. Mas eu não tive a bolsa, mas eu também, eu tinha o apreço pela educação também. E aí, abriu essas bolsas de estudos aqui em Mauá. Abriu umas bolsas de estudos, que uma universidade nova tinha chegado na cidade. E aí, parece que tinha um acordo com a prefeitura e tal. E, eles iam dar umas bolsas de estudos baseados na renda per capita. E eu me encaixei nessa renda per capita, porque eu não tinha recursos. E eu acabei fazendo pedagogia, e daí deslanchou. Eu entrei ali em pedagogia, aí eu fui cursar oficinas de teatro, sou cursada em oficina de teatro aqui também em São Paulo. E fui participar de vários movimentos sociais, agenda 21 escolar, apresentava a peça de teatro “A carta da terra”, baseado em Tuíre Kayapó. E ali, levando as questões ambientais por meio do teatro, então a gente levava aquele momento que ela puxava o facão pro engenheiro lá, contra o Belo Monte, eu apresentava aquilo, dentro da peça de teatro, que se chamava A Carta da Terra. E foi isso, minha luta, minha trajetória. Aí, depois eu comecei a ir pra Brasília, pros meus primeiros encontros, em Brasília, ali conheci mais parentes, conheci o Edson Caarapó, em Brasília, falava assim: “Oxe, pega o contato de muita gente”. Aí, eu começava a pegar o contato do povo, e depois eu mandava mensagem. Aí, ele: “Olha, Chirley, vai ter aqui na PUC, vai abrir um projeto chamado Observatório da Educação Escolar Indígena, você quer ir?”. Eu digo: “Oxe, tô dentro”. Corri, fui pra lá. Entrei nesse Observatório de Educação Indígena, já estava lá, e cursei o mestrado lá, no programa de educação ‘História, Política e Sociedade’. E, e aí, eu parei mais de me irritar, sabe. Porque quando eu fui pros lugares, as pessoas, por mais que eu fale rápido, muitas vezes falo alto, muitas vezes, eu dou um trancelim aqui na língua e gaguejo alguma coisa, mas tem chovido de pessoas que tem chamado, pra poder falar, porque tem sido sincero. Por mais que eu tenho, por mais que algumas vezes, a própria língua portuguesa, eu tenho dado uma atropelada bem terrível nela, mas tenho servido de fazer muitas formações de professores, e muitas atividades. E sempre levando para as atividades, que os indígenas não só canto e dança. Porque se for me chamar só pra isso, pra dizer: "Aí, o indígena é só cocarzinho, tadinho, é só cocarzinho”, não. Não é isso não, meu bem. Não é isso, não. Eu posso dar minha derrapada de vez em quando na língua portuguesa, ou na concordância verbal, porque essa língua portuguesa ela foi imposta. Porque eu sou falante do português indígena. Sou falante do português indígena. Por conta da imposição do colonizador. Mas não sou falante do português da norma culta da língua portuguesa, mas não quer dizer que eu não escreva nesse formato, que eu não tenha aprendido a falar assim. Só que culturalmente, algumas vezes, a gente vai falar rápido, se emociona, e acaba trazendo o português indígena. Que não é o errado, é outra forma de falar. Então, quando eu trago, quando as pessoas trazem ‘Oxente’, ‘Cacunda’, as pessoas, “Ah, que estranho”, é um dialeto Nordestino, é um dialeto indígena. E isso tem se perdido, quando você tem procurado. E é isso, meu irmão. E aí, eu tenho cursado, aí depois tenho esse doutorado em Antropologia Social, e aí fui fazendo aquele monte de coisa. E essa foi minha vida em São Paulo. Então foi tudo muito corrido. Tive duas filhas aqui em São Paulo, e não parei. Aí, desse mesmo contato com Edson, que eu tive, que me levou pra PUC, em 2010, 2009. Em 2010 eu fui também pro Xingu, passei um mês lá no Xingu. No Alto Xingu, na aldeia Aiha do povo Kalapalo. E aí, tive várias experiências, que foram surgindo mais conhecimentos, palestras. Teve uma semana acadêmica pedagógica da faculdade que eu estudava aqui em Mauá, que foram convidados uns indígenas pra ir, aí eu me achei, porque eu não tinha achado os indígenas ainda. Eu não tinha achado os indígenas. Eu achava de fato, mesmo, que os indígenas estavam bem longe, eu pensava isso, né. Porque você vai ouvindo das pessoas o estranhamento, um distanciamento, uma coisa que você acaba pensando também, “Poxa, será que estão tão longe?”. Porque você não encontra na rua, não encontrava meus pais, eu também não saia, não tinha condições de sair. Então não tinha acesso a estar nesses espaços. Então, não tinha. Ficava só trancadinha ali, na faculdade e tal. E quando eu encontrei esses parentes, eles militando, fazendo as coisas, participando, aí eu interagi, moleque. Descobri o resto dos parentes todinhos que estavam aqui em São Paulo. Aí, não teve mais jeito. Não teve mais, até agora. Aí, depois disso, Edson, ele estava trabalhando no CECIS, que é o Centro de Educação e Cultura Indígena, e ele passou lá no concurso pra ir pra Bahia. E ele precisava deixar alguém lá, nesse CECIS, nessa época eram uns três CECIS, os dois lá da zona sul e o do Jaraguá, eram uns três. São os três que tem aqui em São Paulo, eu coordenei os três, durante seis anos, e durante oito anos eu fiquei só no Pico do Jaraguá. E aí, ele falou “Ah, Chirley, vou precisar sair, preciso saber se vocês gostariam, é trabalhoso, que é longe e tem que ir, se você concorda em trabalhar”. Porque o CECIS é terceirizado, os recursos humanos ele é terceirizado. Então, a instituição concorre a licitação, e aí pega aquele recurso, uma instituição, e passa a gerir os CECIS, supervia vem da prefeitura, a alimentação vem da prefeitura, essas coisas que vem da prefeitura. Só os recursos humanos que não vem da prefeitura, porque como o CECIS foi criado na ideia de você fortalecer costumes, não é uma ideia de iniciação dos estudos. É para reforçar costumes. Quem tem que ser os professores? Os próprios indígenas, e inclusive os mais velhos. Então, quando eu entrei ali, tinha o seu José Fernandes, que era o pajé, que era coordenador da escola, então tinham essas pessoas, eles não tinham… tinha gente que assinava o holerite com o dedo. Porque são notórios, saber dentro da comunidade. Tinha holerite com o dedo. Eu andava com a pastinha aqui assim, pra levar o holerite, eu andava com aquela espuminha, aquela coisinha assim, de colocar o dedo. Aquela espuminha de pá, colocar o dedo. Porque era a pessoa mais velha, sábia. Quem é que sabe de cosmologia? Quem é que sabe dos cantos tradicionais, do significado daquelas cestarias? Da culinária, do período certo de culinária, de todas essas coisas? Aquela pessoa. Então, aquela pessoa tem que ser a educadora. E aí, como não há essa categoria dentro das prefeituras, para que você contrate esse professor, sem ter essa dita formação acadêmica, adquirida dentro das universidades, que é importante também para nossa juventude. Mas não esquecendo que esse também é um notório saber dentro das nossas comunidades, e que são importantíssimos, são pessoas encantadoras, que me contavam histórias riquíssimas. Então, o Edson falou, eu entrei, e peguei esse desafio, e fiquei seis anos lá em Parelheiros e oito anos aqui no Jaraguá. Aí, em 2018 entrei no doutorado em Antropologia Social, a convite do Emerson. Emerson: “E aí, Chirley, escreve um projeto”. E eu: “Emerson, vou me escrever pra Psicologia”. E o Emerson: “Não, mas escreve, escreve o projeto”. E eu já tinha cursado seis meses de Psicologia, porque as pessoas, às vezes, me procuram muito para conversar, para ter alguma orientação, aí eu falei: “Vou fazer Psicologia, vou fazer a etnopsicologia”. Eu tinha aquela ideia de trazer uma posologia diferente, como a etnopsicologia. Eu tenho uma forma diferente de terapia. terapia coletiva, então, eu penso em umas formas de cura que são diferentes, e eu queria ter levado isso. Aí, eu escrevi. Aí o Emerson falou: “Depois tu vai lá e tu escreve o projeto para Psicologia”. E quando eu escrevi pra Antropologia eu fui aprovada. E, posso dizer a você, que eu amei a Antropologia, viu?! Não sabia que eu ia amar, não. Mas eu amei a Antropologia, eu me identifiquei, era aquilo mesmo que eu estava procurando. Era isso que eu estava procurando. Uma liberdade que me dá de contar, como estou contando aqui pra vocês, eu estou fazendo uma autoetnografia da minha pessoa. Uma autoetnografia que vai fazer parte, muito do que eu falei aqui da minha própria tese de doutorado. Que eu trago tudo da questão da minha avó. Eu trago, como eu falei pra vocês, do início. A força do enterrar um umbigo, e a relação que eu mantenho com o território. Porque eu tenho essa força com o território, porque eu sinto um aperto no coração quando eu passo muito tempo sem ir para o meu território, porque está enterrado meu umbigo. Então, a antropologia me permite contar essa história que é importante. Porque pelo menos nos outros lugares que eu passei, eu não me senti… Eu não tive essa permissão de ser eu mesma produzindo ciência. Porque nós produzimos ciência. Porque se as pessoas constroem muitas ciências, que estão dentro das universidades, foram bebendo a água de nossos saberes. Então, por que não eu trazer os meus saberes? Se nós somos dotados de cosmologia, dotados de relação cultural, territorial, de todas as formas. Nós somos uma enciclopédia ambulante, meu filho. A gente tem coisa pra contar. E eu me vi na Antropologia. Isso eu vi na Antropologia valorizado, tá entendendo?! Que eu sempre quis contar isso, eu sempre quis fazer dessa forma, que muitas vezes quando eu trouxe na educação foi entendido como minhas narrativas, “Ah, não tá muito acadêmico, tá narrativas”. E eu falava: “Poxa vida, será que eu não posso me expressar, então, com as minhas narrativas? Será… às vezes, isso vai fazer tão bem pra academia, vai fazer tão bem pra mim também”. Porque, de certa forma, eu estou colocando algo que você se sente bem, que você se sente valorizado. Porque quando você diz assim: “Poxa, enterrar um umbigo pra você é importante”. Você se sente tão bem com isso, você fala: “Poxa vida, eu produzo ciência”. Então você vê, minha avó produz ciência. Quantos anos ela foi tão invisibilizada, foi tão perseguida, e ela produz ciência. Quando você chega a identificar isso. Então, eu passei a amar a Antropologia por isso. Então esse foi meus caminhos por aqui. Uma série de coisas, uma série de militância, viajei mais cinco países levando temática indígena, então tem uma série de coisas que a gente corre por aí. Mas é isso.
P/1 - Esse fôlego. Chirley, você falou da sua filha, das suas filhas, e eu gostaria também de perguntar a respeito. Você se casou? Como foi? E quantos filhos você teve, filhas?
R - Eu me casei. Eu tive essas duas filhas. Uma das minhas filhas está estudando Ciência da Computação, ela faz lá em Pernambuco. A outra, minha filha, está aqui em casa. Mas não tem muito essa relação com o movimento indígena como eu tenho. Não sei identificar… Algumas vezes eu penso: “Será que é porque muitas vezes eu tive que deixar de cuidar delas, pra cuidar do filho dos outros”. Porque a partir do momento que eu entrei no pé do movimento eu não parei mais. Eu entrei no movimento indígena profundo mesmo. De sair do estado, em 2007. Então, aí eu passei a ir para outros lugares, a viajar para outros lugares e, muitas vezes, elas tiveram que ficar, e se sentiram ausentes. Muitas vezes não podia ir à reunião da escola. Mas eu estava lá defendendo políticas públicas coletivas. Políticas públicas que não eram só para elas, mas que eram para todas as outras crianças. Enquanto eu estava partindo nessa defesa… mas não sei se a criança nessa fase aí, se tem esse entendimento. Então, elas se distanciaram um pouco do movimento indígena, elas não são… elas me admiram. Minha filha mais velha, é mais. Minha filha mais velha admira muito o que eu faço, ela fica orgulhosa, mas ela gosta mais do cantinho dela, tanto que ela fala assim: “Minha mãe é muito de humanas, eu quero ficar mexendo com os computadores. Minha mãe é de humanas”. Aí, eu falo pra ela assim: “Sim, minha filha, você tem todos os traços de quem é, oh, com os pés enfiados nas humanas também. Porque tudo que tu fala, mesmo fazendo Ciências da Computação, tu é enfiada nas humanas”. Tá lá, oh. Fica pesquisando qual é o produto que ela vai usar, que não pode ser testado em animais. Eu digo: “Olha a conscientização que você tem de humanas, de saber que aquele animal ele tem vida, que ele não pode ser sacrificado para fazer um produto para nós”. Então, ela pega coisas que não degradam as questões ambientais. Então ela lê tudo pra saber que tipo de produto ela vai utilizar, se ele não está vindo do sofrimento de pessoas ou animais. Então, eu falo: “Você é enfiada, minha filha, nas humanas também, porque você tem esse mesmo sentimento que a gente tem de humanidade, de amorosidade, de respeito aos visíveis, aos invisíveis, aos animais humanos e não humanos”. Mas é essa relação. E o meu marido também é assim, meu marido também é na dele, gosta de fazer o trabalho dele lá, mas não se antena, uma pessoa que é lá da região Nordeste, Alagoas, mas também não é ligado no movimento indígena, Assim como muitos da minha família, eu sou a única pessoa, que eu sou dessa questão aqui do movimento indígena. As outras pessoas acham bonito, mas elas não vão nem a pau nesse rolezinho aí que eu faço. Eles não vão, não, ficam falando: “Ah, qualquer dia eu vou”. Fazer que nem eu no ano passado, cata o Acampamento Terra Livre. Meus irmãos falam assim: “Qualquer dia eu vou”. Mas não vão. Não vão. E tem seu respeito, seu carinho, mas não como essa entrega que eu tenho. Eu tenho uma entrega 100% ao movimento indígena, então, às vezes, tem pessoas que até se cansam quando eu falo tanto, porque eu, 24 horas estou falando do movimento indígena. As pessoas falam: “Nossa, vamos falar de outra coisa, vamos falar ali de um forró, vamos falar de não sei o que, até vamos falar do forró”. Eu encaixo a questão indígena no forró. Então tenho que tá sempre trazendo essa questão indígena, a militância, a luta. Então eu respiro a militância indígena, eu respiro o povo que está lá no fundão, o povo do fundão, esse é o povo que eu estou junto. Esse é o povo que eu estou junto. Esses são meus grupos de pares, são aqueles que sofreram as mesmas invisibilidades que eu, são aqueles que são invisíveis perante a sociedade, são invisíveis perante os meios de comunicação de massa. É desse povo que eu quero. Quanto mais invisibilizado, eu vou atrás da pessoa, porque eu me sinto igual, ou como eu fui e tive que romper muitas vezes barreiras na vida. Então eu estou com esse povo. Então, eu estou o tempo todo pensando em políticas públicas, “Como que eu vou fazer? Vamos fazer um projeto para isso, vamos fazer um projeto para aquilo?”. Eu sempre pensando. E os meus irmãos pensam: “Ah, tem uma manifestação na paulista”. Aí minhas irmãs: “Ah, eu quero ir com vocês, vou me arrumar pra ir”. E aí, vai, levanta uma bandeira e coisa e tal. É assim. Se for pedir pra minha irmã, por exemplo, que é do direito, “Vamos ler essa peça aqui, vamos ajudar essa pessoa aqui indígena que está com esse problema”. Ela ajuda. Mas eu já quero ajudar, já quero me enfiar lá dentro, já quero ir lá ver o problema de perto. Eu já faço chover no período de seca, que não é nem o período de chover, eu já quero fazer chover. E é isso. Mas cada um dá na sua forma. Eu acho que a minha forma de agitação, eu sou muito agitada, então talvez essa minha forma de ter… Ser assim. Fui criança assim, fui criança desse jeito, agitada assim, fui criança, adolescente, e aí, eu sou uma adulta do mesmo jeito. E tenho vontade de romper bolhas, tenho vontade de adquirir mais conhecimento, mais conhecimento. E as pessoas falam assim: “Ah, mas você não tem vida social”. Eu digo: “O que menino que isso não é vida social, uma pessoa que não sai da [avenida] Paulista”. ‘Tu não tem vida social’, uma pessoa que não sai da [avenida] Paulista, menino, uma pessoa que foi quatro vezes no ano passado acampar lá em Brasília. Isso não é vida social, gente? Que isso. É diferente. É diferente as construções das pessoas, mas elas são todas respeitosas, e são todas as formas… cada uma tem sua forma de amar, e todas as formas de amar são importantes. Desde que ela seja para amar, que ela seja pro bem, para salvar vidas, todas elas são importantes, cada um na sua intensidade, mas cada um dando um pouco de si. E essa é minha família toda, mas eu sou a única pessoa que venho nesse agito aqui. Eles estão na vida tranquila deles, e é ótimo, respeito, maravilhoso, quero que todo mundo seja feliz, né, se tá feliz, ótimo, também estou feliz. E assim é minhas filhas, não se envolvem muito, mas se chamar: “Vamos ali. Oh, tô precisando de você aqui pra fazer isso, tô precisando de chamar essa coisa aqui”. Vai, né. Não vai com essa intensidade louca que eu tô. Que se alguém disser hoje aqui, assim, de noite, “Olha, nós temos que ir lá pra não sei pra onde, pra acampar não sei onde, pra fazer uma coisa”. Eu sem roupa, nada, me arranco daqui e vou. Talvez eles pensem assim: “Não, eu tenho que pensar mais um pouquinho. Não, preciso arrumar minha mochila”. Eu digo: “Não vou arrumar nem a mochila, não dá tempo, não dá tempo. Corre, corre, corre, corre”. É mais ou menos isso.
P/1 – Chirley, uma outra pergunta que eu gostaria de fazer agora, é a respeito da Covid, do Coronavírus. Na sua família teve alguma perda, lá no território. Como foi lidar com esse vírus, que nos atingiu em todos os lugares? Se você pudesse falar como foi.
R - A Covid, nós tivemos pessoas que vieram a óbito aqui em São Paulo mesmo, os Pankará, tiveram umas duas pessoas. E teve pessoas contaminadas aqui também, e teve pessoas contaminadas também lá no Nordeste, mas quando começou, a gente já fez aquele negócio lá no Nordeste de caso, “Quem está na aldeia, fica na aldeia”. Aqueles próprios chamados da APIB, quem estava na cidade não ia. E não teve assim, aquela contaminação tão pesada. Teve um parente meu, ele veio a óbito, mas já foi no final da pandemia, mas ele também não quis tomar nenhuma das vacinas. Não tomou nenhuma das vacinas. E aí, quando ele pegou, ele estava lá quietinho no canto e falou assim: “Ai, não vou tomar, né?". E aí, ele acabou contraindo a Covid e ele veio a óbito, dessa questão da Covid. Um primo legítimo da minha avó. Mas não teve casos assim... teve casos de uma pessoa que também, quando foi para o hospital primeiro sofreu um AVC, aí depois foi para o hospital e de lá se contaminou de Covid, mas já tinha ido com o AVC, já tinha sofrido outras coisas. Então teve esses problemas lá, e teve esses cuidados. Aqui acho que tivemos muita invisibilidade. Em especial, os indígenas ditos em contexto urbano, acho que você acompanhou tantas cartas que nós enviamos aí, junto com o Emerson, com Sassá. Tantas cartas para que a gente pudesse ser vacinado. Eu mesma fui para os ATL sem ter tido acesso a vacinação prioritária, eu me vacinei pela idade. E aí, tiveram pessoas que não vieram a óbito, mas também as que se contaminaram de Covid ficaram com uma série de problemas, devido a esse vírus tão complicado. Eu peguei Covid. Eu peguei Covid acho que em setembro, e eu fico pensando que algumas coisas assim que eu sinto, umas canseiras, umas coisas. Eu fico pensando assim: “Será que foi isso?”. Deu uma mudada assim no meu sistema, foi tão, tão estranho aquilo ali. Quando eu cheguei que fui… tem uma planta aqui... Eu estava com a sinusite. Aí eu tenho uma planta aqui que eu trouxe do Nordeste, alguns conhecem com alecrim do campo, que é diferente daquele alecrim, ou alecrim brabo. Eu estava com a sinusite e lembro que minha mãe e minha avó falavam assim: “Quando você está com a sinusite, faz uma inalação pra cheirar com esse alecrim”. Aí, eu peguei, estava sufocada. Fui lá, peguei o alecrim, apertei assim, na mão, e ele forte, forte. Se você aperta, o cheiro dele vem para todo esse espaço aqui. Coloquei aqui e não sentia nada, eu falei: “Não, não pode, eu não estar sentido o cheiro do alecrim, como que pode uma coisa dessas, um alecrim tão forte desses, a gente chega espirra com esse alecrim, e eu não estou sentindo”. Aí, dali corri e fui fazer o teste e estava com Covid. Então, para nós, nós tivemos uma série de pessoas que foram contaminadas, uma série de corridas que nós fizemos aí e que, muitas vezes, nós não conseguimos. Que foi a vacinação de muitos indígenas em contexto urbano, eles não foram vacinados. Era uma burocracia terrível que se cobrava também, para poder deter, e aí foi um corre terrível. E eu tendo que correr lá, fazer um levantamento dos meus parentes que estavam aqui na região do ABC, pegar nome, ir até UBS, documento, para depois tentar ver na UB para mandar aquela carta que eles pedem de pertencimento étnico, para poder ver. Porque eu fui pegando aqueles que a gente sabe, “Ah, você é primo de quem?”. Porque, lá no Nordeste, a gente sabe do povo por isso, “É primo de tal pessoa”. Até pelo sobrenome a gente sabe quem é a pessoa, “Qual é a sua família?”. “Ah, minha família é Souza, minha família é Silva, minha família é Barros, é tal”. A gente sabe quem é. Se chegar outro sobrenome, a gente fala: “Poxa, vamos analisar, será que se casou com outra pessoa, que não era de sei onde”. Aí a gente faz essa análise. Mas até o momento a gente identifica pelo sobrenome. Quando fala para mim: “O sobrenome tal. Ah, o sobrenome tal e da família tal”. Beleza, a gente vai lá e busca. E aí a gente chega a isso. Tanto que apareceu uns nomes aqui para mim... uns nomes que eu não sabia nem ler. Aí eu falei: “Acho que essa lista veio com algum nome errado”. Mas eu digo assim, não quer dizer errado, porque a pessoa Pankará pode ter casado com uma pessoa tipo, descendente aí de italiano. Aí de repente vem com um nome desse aí todo... um sobrenome diferente. Diferente que eu digo assim, difícil de falar. Não com esses nomes comuns, como os nossos lá no Nordeste, nas terras, que é Souza, Silva, Santos, Barros, esses sobrenomes assim. E é isso. Mas foi muito desgastante, muito sofrimento, eu tive que correr também para dar assistência para as pessoas na questão de cestas básicas, eram os produtos de higiene, máscaras, eu fazia um chamado geral. Então eu corri muito naquele período. Porque eu estava como Co deputada, que foi um mandato coletivo que eu entrei em 2018. Também foi uma das coisas do Emerson, isso é coisa do Emerson também. Que me chamou para concorrer a um mandato coletivo em 2018, e eu saí da escola para concorrer, e no mesmo ano tive duas coisas totalmente diferentes na minha vida: fui aprovada no doutorado em antropologia, e fui. Ganhamos a eleição no mandato coletivo. Primeiro mandato coletivo do estado de São Paulo. E aí, eu tinha todo esse papel da burocracia de uma Co deputada, de enviar ofícios. É tanto que nós enviamos ofícios para FUNAI, “Ah, e aqueles 10 milhões?”. Não sei nem quanto era agora, parece dez milhões, sei lá quanto, “Quanto foi gasto? Foi investido quanto?”. Que é para emergência dos povos indígenas na Covid. E aí, a gente tinha que estar preocupado em mandar papel. Ora mandava papel para as questões da aldeia, ora mandava papel para ver a vacinação das questões dos povos indígenas no contexto urbano. Oras, pedia espaços de referências. Porque o Jaraguá por exemplo, o CECI do Jaraguá virou um centro de tratamento da Covid, das pessoas que foram contaminadas. Isso foi uma carta para o ministério público. As lideranças pediram e oficialmente nós enviamos, e estava lá escrito, “Que enviassem um centro de acolhida”. Porque eu falei bem assim: “A pessoa se contamina com a Covid, aí vai lá para o hospital lá no centro médico, tem que ficar na forma, na cultura da pessoa”. Então eu falei: “CECI tem banheiros, tem banheiros para as pessoas se higienizar, tem a salinha, tem toda aquela estrutura que dá para se tornar um centro de tratamento aí, nesse período da Covid”. E aí, mesmo nisso, eu tinha que correr atrás das pessoas, “Quem vai poder doar cestas básicas, para nós levar para as pessoas que não tá tendo acesso à cidade, para vender seu artesanato? Gente, quem tá produzindo máscara?”. Tinha uma mulher que toda semana eu ia buscar máscara lá no Capão Redondo. Eu ia buscar máscaras para levar para as pessoas. Ela costurava, ela pegava o tecido e tacava o pó no tecido, e dizia assim: “Oh, eu tenho 100 máscaras aqui, eu tenho 200”. E aí, eu corria, pegava essas máscaras, e ia levar para as pessoas. Então, máscaras, produtos de higiene, álcool em gel… ganhei cobertores, porque teve um período que estava chegando perto do frio. Eu falei: “O frio vai atacar mais ainda, as pessoas vão ficar mais vulneráveis no frio”. Então precisava de cobertores, fui para vários lugares. Fui até, para aquela cidade lá, perto de onde seus parentes moram, Braúna, longe, ali foi longe. Mas fui com um carrinho baixinho assim. Peguei meu carro aqui da minha casa. Porque nas burocracias que eu estava enquanto Co deputada da ALESP, não poderia ficar pegando carro oficial, ou coisa e tal, então eu tinha que ir com meus próprios recursos. E como eu sou uma pessoa que faço uma política justa, eu acredito que apesar dela ser uma lástima, e que a gente precisa mudar, e os dados não nos apontarem coisas tão boas, não está nos apontando. Eu ainda acredito que a gente precisa fazer algo justo. Então eu, o quanto que fiquei lá, e que pude fazer, eu só fiz aquilo que estava no regimento, que é permitido no regimento. Então, eu li o regimento da ALESP. E saber o que a pessoa podia fazer. Então acabava pegando meu carro daqui, e eu mesma colocando minha gasolina e saindo, distribuindo para as pessoas durante esse período. E fui lá em Braúna, levar para lá, cobertores, cestas básicas, na caminhada. E isso sem me vacinar. Porque para mim foi negado o direito prioritário, então eu estava colocando a minha vida em risco, para poder salvar vidas. Mas essa é a missão, eu vim com isso. Então, foi por aí. E teve toda essa questão aí, de transtornos psicológicos, porque você vê pessoas morrendo. Você fica apavorado. Você fica, psicologicamente, eu achava, teve uma época que eu estava achando que ia vir um vento assim, sabe. Eu estava tão transtornada psicologicamente de ver as coisas. E tu não vê respostas, e de ver um negacionismo tão grande, e de ver coisas assim, não tendo nada sendo feito para salvar vidas, que eu achava assim: “Meu Deus, daqui a pouco vai vir um vento aí, e eu vou me importunar e morrer sufocada”. E eu falei: “Eu tenho tanto medo de ficar sufocada”. Eu tenho um medo muito grande. Quando começa a me faltar um pouco de ar, assim, eu já fico desesperada. E aí, era trabalhar tendo que lidar com as questões psicológicas, de estar lidando com um vírus, que não estava tendo respostas ainda, que você estava sem saber quanto tempo ia demorar. Então foi um problema muito grande para nós. Mas somos sobreviventes.
P/1 – Chirley, bom, depois de tudo isso, a gente pensando na sua vida, gostaria também de perguntar: quais são as coisas mais importantes para você hoje, seus sonhos, se você gostaria... qual legado você gostaria de deixar?
R – Dos meus sonhos... é, eu tenho tantos sonhos. Eu tenho muitos sonhos, mas não sei dizer qual desses sonhos eram os melhores. Eu também tenho muitas utopias, acho que tem coisas que eu penso, que eu vejo tão distante de que isso chegue assim... porque eu não posso dizer... não vou dizer, também não vou dizer que não é sonho, nem vou dizer que é sonho, nem que não é sonho. Fica no meio do caminho aí. Eu terminar esse doutorado, porque acaba sendo a luta, nossa, de um povo. De acessibilidade e permanência. Mas isso aí, para mim, eu creio que o doutorado é uma consequência daquilo que a gente busca, que a gente vai rompendo os espaços. Não deixa de ser um sonho, mas também não é aquele sonhozão grandão. Mas eu penso no sonho de que a gente pudesse ter um país mais justo. Que não tivessem 33 Milhões de pessoas passando fome. Que eu saísse na rua e não tivessem as pessoas ali, naquela situação, que a gente vê. Porque isso me toca, isso me dói, isso me adoece. Eu saber que tem... que a gente não tem pernas para poder ajudar. Então, os meus sonhos seriam acabar, e que as pessoas pudessem ser felizes, ser felizes. Eu queria ver pessoas felizes. Eu queria ver pessoas alimentadas, porque eu passei dificuldade de alimentação. Então preciso ver pessoas felizes. Eu sei que é ruim passar fome. Sabe que é ruim passar fome. Eu sei que é ruim passar fome. E eu sei que é ruim você não estar num cantinho, alguém estar te tirando do cantinho seu, e você ter que ir para outros lugares. Isso tudo doeu, então isso tudo pesou. Então, é sonhos de que as pessoas possam ter moradia. É sonhos de que as pessoas possam ter alimentação. É sonhos que a gente possa salvar o planeta. É sonho de que as pessoas possam ter uma consciência ambientalmente correta, de saber que o ambiente tá pedindo socorro, que todos os dias está gritando, mas as pessoas não estão percebendo, e a gente está tentando... “Para, gente, vamos cuidar, porque senão nós vamos morrer todo mundo aí sufocado”. Sem ter mais direito a respirar, e a vida, porque as questões ambientais estão gritando aí na porta. É um país menos capitalista, que escraviza pessoas, que mata pessoas para favorecer a um grupo de pessoas. E que as políticas públicas pudessem de fato sonhar que, de fato, as pessoas pudessem escolher para gerir as nossas vidas, pessoas que de fato salvam vidas. Que a gente pudesse ter pessoas humanas, porque nós precisamos salvar vidas. Porque não adianta dizer para mim: “Eu estou aqui de boa feliz, porque eu estou vendo que minha filha se alimentou, que minha filha dormiu, que minha filha está com saúde”. Se o filho do outro, o outro está chorando agora, por conta de direitos básicos, direitos humanos. Então eu sonho com isso. E demais… e os demais sonhos, eu sonho com isso, eu já falei, terminar a minha tese, viver do doutorado, de ter muita saúde, de ter um canto, assim, com muitas árvores, para que eu possa ficar num canto que não tenha tanto barulho ali do lado, tanto barulho aqui. Mas também não é uma reclamação. Porque esse lugar aqui me deu base para correr em tantas coisas. Foi um estágio da minha vida, estar aqui, nessa casa que faz barulho ali, eu agradeço até o barulho. Eu agradeço até o barulho, de vez em quando. Mas assim, eu quero ter um canto assim, para quando eu chegar mais na minha velhice, uns lugares, assim, que eu possa manter uma árvore, poder contemplar as árvores, poder plantar meu próprio feijão, ver minha comida sobreviver ambientalmente correta, essas coisas e tal. Mas eu já tenho minha casa lá no Nordeste, mas ainda não se fechou o círculo por aqui, então eu tenho que militar. E eu, como sou uma pessoa do movimento, e que eu vim com a missão, e o círculo… Círculo, círculo mesmo, circo de circular, tô rodando no círculo, o círculo não fechou. Então eu ainda vou ter que ficar por aqui um bom tempo. Mas são esses os muitos, muitos sonhos, de ver as pessoas felizes, de ver as pessoas com as políticas públicas, tudo bem resolvido, ou pelo menos amenizada, e não a catástrofe como nós estamos vivendo, social e ambiental. Que a gente possa resolver isso. O resto são meus sonhos mais privados, que são meus, e já estão encaminhados, e que eu vou conseguir. Eu quero resolver o problema dos outros, eu quero poder ajudar outras pessoas, porque eu sou do modo coletivo, eu fico feliz quando vejo pessoas felizes. E é isso.
P/1 - Chirley, chegamos na parte conclusiva já, e gostaria de perguntar: como foi contar a sua história?
R - Contar a minha história aqui para vocês, pessoas maravilhosas. Thiago, meu grande colega lá da Antropologia, a equipe do Museu da Pessoa. Contar a minha história é rememorar, é rememorar os momentos que eu superei, momentos que, às vezes, eu não superei também, mas que de certa forma, quando a gente conta, quando a gente verbaliza, quando a gente tem alguém nos ouvindo, é a forma de terapia que eu acredito. Porque quando eu também estou contando para ti, não estou contando só a minha trajetória, não é só jogando as palavras ao vento, eu também, de certa forma, eu acho que em algum momento vocês sentem que eu até me empolgo. Eu estou, também, fazendo terapia. Então algumas coisas que estão até aqui dentro internas, que ainda me causa alguma coisinha, quando você vai a colocando para as pessoas, você vai se colocando, verbalizando, vai de certa forma colocando que aquilo que aconteceu, e acontece com várias pessoas. Aquilo também é uma forma, é uma forma de cura, é uma forma de ser ouvida. Porque uma das coisas que mais cura é quando as pessoas param para te ouvir. E uma trajetória não é só uma trajetória, quando ela é contada para alguém, é uma forma que você se cura de muitas que te aborreceram durante a sua vida. E que te alegra de muitas coisas que você conquistou, de que você trilhou, de vários caminhos. Então há sempre uma forma ancestral, de espiritualidade, uma cura muito grande dentro. Então, é, isso é importante. E me sinto muito feliz desse espaço aberto para essa mulher aqui, Nordestina. Uma mulher que veio para São Paulo, para trabalhar como empregada doméstica. Essa mulher que não tem um estereótipo, fenótipo que as pessoas esperam. Olha um rosto que sofre invisibilidades o tempo inteiro, um nariz que as pessoas chegam até tocar e dizer: “Você não parece indígena”. Então, uma cor de pele que até esses dias mesmo eu ouvi uma pessoa falou para minha tia: “Ai, você é tia dela, mas você não parece, a sua cor é diferente da dela”. Fez um comentário do tipo, da minha tia, diz que ela é diferente de mim, “Ela é tão branquinha”. Não sei qual foi o tipo de coisa. E quando você vê que alguém se interessou, e que vai ouvir aquela história de uma pessoa do Nordeste. Que a primeira região impactada pela colonização. Que se carrega esses traços, carrega esses traços de dores. São os traços de dores, são traços de sofrimento, são os traços que foram abusados, estuprados, e que se chegaram a isso, não foi porque a gente quis. Então, quando as pessoas trazem isso, elas estão ajudando a acabar com o etnocídio, porque etnocídio é quando tu mata uma pessoa, dizendo que ela não tem as características, que ela não interessa para você, porque ela não tem o cabelinho lisinho, como você gostaria que ela tivesse. Mas de onde essas pessoas estão pautadas nesses conceitos, sem conhecer a história do Brasil para falar de povos indígenas. Então para falar de povos indígenas conheçam a história do Brasil, e a resistência indígena. Então, estar aqui, falando com vocês, e ter esse espaço aberto, é um espaço que eu considero de romper bolhas, porque foi rompido bolhas, de trazer essa mulher indígena, Nordestina. Quando a própria literatura nos colocou como extintos, estiveram muitos anos aí extintos em nossa cultura, como ficou folclorizada. Então trazer as trajetórias nossas é de suma importância. Eu agradeço muito. Então, é isso. Um agradecimento do coração, que os encantados de luz possam sempre conduzir vocês. E você, Thiago, essa pessoa incrível, conduzir sempre a dias melhores, a muita paz, a muita amorosidade, e que vamos na fé de nossos encantados, da nossa cultura, de tudo quanto é positivo, da nossa coletividade, daquilo que a gente acredita que é o bem comum, o bem viver, que é o que a gente vem, que a gente traz de raiz. Quando a gente chama para nossas rodas de conversa, tanto para rir, quanto para chorar, a gente tá junto, coletivo. E que isso a gente possa permanecer, com esse coração bom, e é assim que a gente vai salvar o mundo, é assim que a gente vai ter um futuro mesmo indígena mesmo, com pessoas importantes, como você, e como vocês aí que nos assistem, como o pessoal do Museu da Pessoa, e toda essa equipe maravilhosa que teve paciência de ouvir a Chirley Pankará, que é uma chuva de porrada. Mas é isso meu povo, é só gratidão!
[Fim da Entrevista]Recolher