Já faz nove anos, mas eu lembro como se fosse ontem.
O Espaço Unibanco apresentou uma amostra de filmes latinos e, para minha surpresa, foi anunciado “Amnesia”. Os filmes chilenos não são muito divulgados por essas bandas e a oportunidade de assistir a um deles, no cinema, foi única. Minha ...Continuar leitura
Já faz nove anos, mas eu lembro como se fosse ontem.
O Espaço Unibanco apresentou uma amostra de filmes latinos e, para minha surpresa, foi anunciado “Amnesia”. Os filmes chilenos não são muito divulgados por essas bandas e a oportunidade de assistir a um deles, no cinema, foi única. Minha companhia de sempre, com quem partilho as atividades culturais de São Paulo, cinema, livrarias e exposições, se dispôs a ir comigo e aproveitar para praticar o seu espanhol. Foi assim que conheci a minha irmã Fátima, filha de portugueses que a vida me trouxe de presente como estudante nas minhas aulas do idioma.
Era um entardecer típico de fim de verão, a chegada do outono se encarrega de suavizar o calor, e os contornos do cinema Espaço Unibanco se vestem de sombras com a luz do dia se assegurando das cornijas dos edifícios. Ir para esses lugares é estar no coração de São Paulo; a Avenida Paulista impera na sua beleza urbana, a Livraria Cultura nos atrai com ímãs invencíveis e as vendas de livros na rua fazem o mesmo, colocando em risco o nosso bolso.
Na sala do cinema se observavam alguns rostos de maçã saliente, moreno pálido, típicos da América Latina. Também não era difícil ler o comportamento das pessoas presentes, desde a modéstia calma ao olhar um pouco perdido na tela com a expectativa do que se avizinhava. Parecia que o cinema levava mais tempo do que o habitual para a exibição do filme e a ansiedade das pessoas que estavam lá começou a se sentir no som das poltronas, tornou-se cada vez mais frequente o barulho da sua inquietação. Com um ar paciente nos dispusemos a sofrer ou desfrutar se fosse o caso.
A magia do cinema trouxe até São Paulo, o bar “Cinzano” da cidade de Valparaíso, onde o personagem dançava tangos suburbanos para aliviar o seu sofrimento, mas também os campos de concentração do deserto chileno. A música alimentava essa dimensão na qual é impossível negar as nossas origens.
Em alguns momentos Fátima pegou meu braço para me trazer de volta à realidade; eu me lembro de acordar, em cada um deles, suando, segurando o braço da poltrona.
Saímos em silêncio, nos perguntando o porque da violência entre os seres humanos, se todos possuem igual capacidade de produzir felicidade.
Essa noite estivemos no Chile dos anos setenta. Então, ao entrar à Paulista pedi a Fátima para sintonizar a rádio Eldorado, quem sabe com a intenção de comemorar dias melhores. Estavam tocando “Construção”, de Chico Buarque, um protesto contra a indiferença à morte de um pedreiro anônimo que cai de um andaime causando caos no trânsito... Depois ouvimos “Sinal Fechado”, cantado por Paulinho da Viola, novamente para protestar contra o mutismo da vida urbana.
Dizem que não existem coincidências, mas o fato é que escutamos no rádio as duas músicas que ouvi logo que eu cheguei a São Paulo, depois de deixar meu país angustiado pela dor, no ano de 1976. Naquele tempo eu não entendia completamente a letra, o meu escasso Português não me permitia essa dádiva. No entanto, essa noite, ao escutar novamente as músicas, as ruas de São Paulo sopravam ao meu ouvido a mesma mensagem de quando eu vim para o Brasil - calma, calma nós já passamos por isso.
Através das artes – pensei – cinema, música, literatura... Os meios que temos para conjurar os demônios que nós inventamos.
(História enviada em fevereiro de 2010)Recolher