P/1 - A gente começou aqui, né, preenchendo a nossa fichinha aqui, então aqui a gente já vai partir de alguns insights do preenchimento da ficha, tá? Então falei aqui da sua data de nascimento, né, falei “nossa, que número cabalístico! 3 do 3 de 65 (1965)!” “pra” gente dar uma desco...Continuar leitura
P/1 - A gente começou aqui, né, preenchendo a nossa fichinha aqui, então aqui a gente já vai partir de alguns insights do preenchimento da ficha, tá? Então falei aqui da sua data de nascimento, né, falei “nossa, que número cabalístico! 3 do 3 de 65 (1965)!” “pra” gente dar uma descontraída também. Mas você nasceu no Rio de Janeiro, preenchi aqui também, mas gostaria que você contasse um pouquinho mais “pra” gente, Celso, de onde você nasceu.
R - É… Eu nasci na maternidade Alexandre Fleming, que é no Bairro de Marechal, Zona Norte aqui do Rio (de Janeiro) e o lugar específico é só essa informação, que é um dado do documento, né? Mas as lembranças que eu rememorei aqui já são daqui [aponta para baixo] desse bairro que eu moro atualmente, aqui em Tomás Coelho. Antes disso, eu tenho memórias - não são minhas, são construídas por primos mais velhos do que eu -... Tem uma foto de uma casa que nós moramos, eu e minha irmã, somos nós dois, né, em Olaria. Então meu pai, que era um funcionário dos Correios, é carteiro, era carteiro, ele morou nessa casa em Olaria, no Bairro de Olaria aqui no Rio de Janeiro. Mas eu não tenho lembranças, assim, eu era muito novo, não me recordo. E meu primo trouxe essa foto uma vez e foi falando desse lugar de residência. Então todas as lembranças que eu tenho assim de infância, a maioria delas são em Tomás Coelho. Eu não sei na época da Maternidade, em Marechal, onde meu pai residia antes, quando… onde o casal residia né, meu pai e minha mãe, e logo depois vem essa imagem de uma infância, que eu devia ter uns 4 (quatro) anos, era bem pequenininho, dessa avenida, e tinha uma vila do Bairro de Olaria. Mas essa recordação eu não tenho. E depois aqui, já com sete, oito, se não me engano, aqui no bairro de Tomás Coelho, onde eu estou atualmente.
P/1 - Então você mora desde então nesse bairro, na mesma casa?
R - Sim. Essa casa aqui, é um conjunto habitacional que os funcionários dos Correios adquiriram, tinham a prerrogativa de comprar, né? O imóvel. Então meu pai comprou essa casa aqui, e tenho vários vizinhos aqui que também trabalhavam nos Correios, né? Correios e Telégrafos, na época. E no entorno do bairro tinha um conjunto habitacional, um conjunto de prédios aqui do lado. E logo a seguir, no conjunto vizinho, tinha uma pedreira, que era o espaço onde a gente… uma pedreira desativada, e a gente ia brincar na pedreira. E a gente ia pra lá [ri]. Tinha caminhão velho, e a gente brincava nos caminhões velhos que tinham lá nessa pedreira e isso tudo nessa faixa etária aí, doze anos. Um monte de colega meu aqui, contemporâneo, com mais de cinquenta (anos) que tem essas memórias também. Então é isso, assim… tinha muito futebol, tinha coisas assim da gente… Aqui em frente à avenida Pastor Martin Luther King, tem o morro do Juramento, e a gente também tinha contato com os moradores da comunidade, então tinha essas relações que passaram pela escola, passaram pelos campinhos de futebol aqui da vila, os outros lugares que tinham na proximidade. Passaram… eram relações também que se apresentavam em clubes, nas festinhas, nos bailes, nas festas religiosas… Eu já fui pegar lá no morro do Juramento sacos de doces em festa de Cosme e Damião. Então os colegas: “Ah, ‘vamo’ lá no morro que tem… tá distribuindo doce” e a gente ia correndo no conjunto habitacional e ia “pra” esse lugar na comunidade, e nos bairros próximos. Então tinha essas questões todas, assim, da infância, que me lembro. E especificamente aqui da casa.
P/1 - Falando um pouquinho aí da sua infância, né, que você contou, né… Dos correios, e contou das pedreiras, assim… Conta um pouquinho mais da sua infância, das suas memórias, com essa turma, né, que… Essa turma tá aí até hoje então?
R - Sim. Tem muitos que permaneceram aqui porque também estão residindo na casa dos pais…
P/1 - Uhum.
R - … São herdeiros e filhos, enfim, que permaneceram no mesmo imóvel. Outros se mudaram para outros bairros, outras casas. Outros saíram e voltaram… O meu caso foi um pouco parecido com esse, assim, também. E essa infância tem um clube, muito em particular aqui, que é o Florença, que era um clube que tinha no bairro da Vila Cosmos, um bairro próximo aqui, que tinha bailes, né, durante a semana. Era um clube social, com quadra de futebol de salão, piscina, e era sempre um grande privilégio a gente ir pro clube, né, tomar banho de piscina, e isso acontecia aos domingos, então sempre ia uma turma pra esse clube e a maioria das atividades sociais eram praticadas ali. A gente tinha um baile lá no final de semana, aos domingos. E na época, tinham bailes, em setenta e pouco, de black music, então a gente era um pouco mais adolescente. Mas eu retorno pra infância. Tinha calça boca de sino, black power, era muito legal. E ajudou muito... Eu fui muito cedo, né, porque uma geração anterior a minha foi o auge. Porque em setenta, eu tava com cinco anos, então 78 (1978), setenta e pouco (1970), cinco oito, quatorze, quinze, então, essa faixa etária aí de adolescente se metendo em festa de adulto. Mas eu era grandão [ri] e passava, a gente geralmente ia pra matinês, tinha essa coisa de matinê também, né. Cinco horas da tarde, o baile, essa coisa toda. E aí tinha isso em comum. As outras questoes também, a escola, que a maioria frequentava a mesma escola. E a escola permanece até hoje aqui no bairro, a escola Maestro Pixinguinha. Então ali eu tenho um retrato da minha turma, foi muito legal também ter tido contato com esse retrato, porque a gente rememorou uma série de... um recorte nosso, né, da vida, e a gente acabou compartilhando aqui com alguns colegas aqui da época que ainda estão aqui, ou que a gente mantém contato. E essa escola brilhou muita memória nossa que... inclusive tinha, um dos colegas né, que aparece, ele faleceu, bastante gente faleceu. E do outro lado ali dessa escola, em frente a Calçada Popular da rua, tinha uma fábrica de óculos. Era a Balchilon, trabalhava com galalite, polímetros, e aí fazia as armaçoes e óculos. E toda vez a gente... tinha um depósito lá, a gente entrava, pulava o muro da fábrica e pegava os pedacinhos [ri]. Pegava lítio para fazer botão, cara! A gente jogava botão de mesa, sabe? E o óculos, eles cortavam aquela parte do óculos para dar forma, o formato, e esse material era posto no lixo. Mas aí servia pra gente cortar e fazer os botoezinhos assim, do jogo de futebol de botão. E a gente ficava, volta e meia, pegando isso, e tinha futebol, tinha campeonato desse futebol de mesa, nossa, era muito legal, assim, todas essas aventuras. E aí a narrativa era essa aventura: "caramba, o fulano pulou e vinha 'peguei aquele galalite assim, bonitão, dá pra fazer...'". Caraca, cara. E a gente sem noção, sabe? Mas tinha também assim, o guarda era conhecido, a gente sempre pensava que "tava"... que ninguém "tava" vendo, mas "tava" todo mundo vendo. Imagina, não tem ninguém vendo! [ri]. E aí o cara permitia, pra fazer brinquedo, essas coisas todas.
P/2 - É, coisa de criança, né? E, Celso, sobre a escola. Como... Assim, quais são as suas lembranças da escola? Você tirava notas boas, você não gostava de ir, gostava de ir, algum professor ou professora que marcou... Como era?
R - A escola... Hoje ela tá deteriorada, né, mas eu tenho lembranças boas da escola. Porque... Antes, um pouquinho antes dessa escola que eu citei, a Maestro Pixinguinha, eu estudei numa escola num bairro bem próximo aqui, chamado Cavalcante, na escola Professor Filadelfo Azevedo, ali foi... [incompreensível]. Uns sete anos, capaz de ter mais, tal. E aí eu lembrei porque tem uma foto, aquelas que tem o nome assim da escola, aí senta-se na mesa e tira a foto. E o que me despertou foi ver a imagem de criança, né? Que a gente quase não... Assim, outras pessoas guardavam esses registros, né. Eu não lembro de ter guardado essa foto. Era uma foto oficial, assim, da escola, que todos os alunos tinham que tirar essa foto na mesinha e tal. Aí, um dia desses minha irmã que me mostrou essa foto. E eu falei "caraca, tem essa foto aí? 'pô'", sabe? E aí eu me lembro da escola, a escola existe até hoje [incompreensível]. Mas eu fiquei muito... E não ter lembranças tanto assim, desse período também, até de colegas do primário. Mas no ginásio, no ginásio não, numa outra, no segundo ano, já aqui na Escola Pixinguinha, a gente tem muita história ali. Porque além de ser colegar aqui do próprio bairro, nós tínhamos futebol contra na quadra. Aí era os meninos lá do morro do Juramento, o pessoal do conjunto, vizinho aqui, e nós éramos o pessoal da Vila. Aí era sempre "vila contra apartamento", "vila contra morro" [ri]. Tinha essas nomenclaturas, assim. Então essas partidas eram legais, partida com torcida, as meninas torcendo... Era muito legal, era muito legal. E eu tenho um negócio legal também, porque lá o contato que a gente teve com a parte artística foi com música [incompreensível]. (...) Uma data comemorativa, uma coisa assim. A gente ficava no pátio, lá, a multidão e tal, essas coisas todas. E as atividades artísticas, a maioria delas, era com música. E aí era homenagem, aniversário do Pixinguinha, e a gente foi tendo contato com choro, através de disco, contato com a obra dele, e isso é uma lembrança que eu tenho muito legal, assim, da escola e do contato com a arte, né? Pelo menos eu fui iniciado ali, tendo percepção através da música, foi mais o que me chamou atenção na escola.
P/1 - E Celso, quando você contou aí que você teve esse contato com a música e tal, vocês... Quando você conta que teve esse contato, conheceu o choro, fala um pouquinho mais, assim, né... Vocês chegaram a aprender um instrumento? Como foi isso? Conta um pouquinho disso daí pra gente.
R - Tinha aula de música, né. E uma das aulas era essa de instrumento [incompreensível].
P/2 - Celso, travou um pouquinho.
R - "Vamo" voltar, né, da parte da escola.
P/2 - A aula de música, é.
R - Então, a escola proporcionava sim essa aula de música, com partitura, né, com leitura de pauta, essas coisas todas de partitura. Mas a minha família, ela tem uma ligação com o samba. Por que que eu tô falando essa coisa do chorinho, que me chamou a atenção? Porque, pela primeira vez, eu tinha visto assim alguma coisa de samba, uma outra sonoridade, e com partitura, né? A ligação da minha família com o samba ela se dá através de uma escola de samba. Tenho um tio que foi fundador de uma escola de samba. Isso tudo por parte do meu pai, né. A família da minha mãe era uma outra vertente. Mas na família do meu pai tinha essa questão de ter contato com o samba, com os fundadores da escola de samba, era uma prática tradicional lá de ala de baiana, de canto, dança, instrumento e gestão de escola de samba. Isso tá muito enraizado na família do meu pai, porque essas funçoes e esses lugares, todo mundo da família acabou ocupando em algum momento. Tinha uma tia minha que foi baiana e depois se tornou presidente da Ala das Baianas. Então isso tudo significa uma liderança nesse grupo, a memória desse grupo [incompreensível]. Então é muito significativo. Profissoes como costureira, bordadeira, uma série de profissoes que vão misturadas com as práticas culturais. Engraçado, assim. Quem sabia fazer fuxico, você identificava como pertencente a um grupo sociocultural. Aprendeu através da mãe, não sei o que, aí normalmente poderia ter vindo de Minas (Gerais), poderia vir do Nordeste, onde a prática do fuxico é mais... é uma experiência que ela já traz dentro. Quem era costureira... Tinha pessoas que trabalhavam na fábrica Nova América, de tecidos, e a primeira profissão de costureira, ensinaram pras filhas, então sabiam trabalhar com máquina de costura, overlock, então tinha a modelagem, e a técnica é diferente do fuxico. Entendeu? Então todas essas... Isso só na Ala das Baianas. Tenho um outro tio também que foi dirigente, de escola de samba, então era gestor... Uma outra, um outro lugar também. Então todo esse universo era diferente do que eu tava vendo na escola, sabe? Com pauta, com partitura... Era um outro lugar. Mas o que foi interessante é que, por ser choro, tinha os elementos do samba, sabe? Então a única coisa que diferenciava era realmente a escrita da música. Porque tinha a pauta, mas lá a gente aprendia de outra forma, na quadra da escola de samba mais clássica, mais tradicional, né? Porque quem toca um instrumento não faz leitura de pauta, normalmente não faz. É o cara que toca surdo, mas ele tem um ouvido apuradíssimo que ele sabe a afinação do instrumento, sabe como o instrumento se comporta na orquestra, na bateria de samba... Não tem a partitura, não há habilidade de execução do instrumento, mas essa coisa de ouvido mesmo, sabe? E aí o choro me chamou muito a atenção lá na escola. Mas eu lembro que também estava confuso, porque a gente... Como eu moro [incompreensível]. Na casa dos meus avós, no fim de semana, aos domingos, durante a semana, eu tinha essa coisa nossa aqui da vila de ouvir a música do rádio [ri]. Então é um outro lugar. E na época, os discos de pré-adolescência, os músicos de pré-adolescência, o Milton Nascimento, o Beto Guedes, o Fagner, era o auge da carreira deles. E aí tinha um movimento também de pré-adolescentes de ir acampar. "Ah, vamos acampar!". E aí era acampamento via essas músicas, do Beto Guedes, que ficava falando de uma paisagem... A gente ia acampar viajando, escutando essas músicas, esperando encontrar esse lugar. Acho que era um pouco isso. E era uma viagem muito... cara, muito viagem [incompreensível]. Era tudo interessante, então eu ficava assim... E tinha um colega meu aqui que era fã do Fagner, aí depois fui pro Gonzaguinha, aí tem uma questão política. Aí descobri Gonzaguinha, descobri João Bosco, descobri Chico Buarque [incompreensível]. Uma outra letra de música, mais engajada, enfim, tudo isso misturado com samba e com baile de black music, que depois você percebe também que tem uma postura política, engajada também. Mas era muito canal, assim, muita informação ao mesmo tempo, só tô conseguindo filtrar agora porque fiquei muito tempo pensando. E agora vocês me estimularam a pensar essas possibilidades, como tô fazendo hoje [ri].
P/1 - Celso, fiquei um pouco... Quer falar alguma coisa, Aninha?
P/2 - Acho que a minha pergunta vai pular pra vida adulta [ri]. Mas depois, se você puder contar só um pouquinho, assim, o que você acredita que toda essa influência tem na sua vida de hoje, assim, sabe?
R - Eu posso caminhar para a adolescência? Essa foi heavy metal [ri].
P/1 - Sim, pode [ri].
P/2 - Sim, pode contar como que a música foi caminhando assim, durante a sua vida até as suas escolhas enquanto jovem, assim...
R - É engraçado isso. Tem uma música do Elton John, que eu não vou saber, depois procuro, mas acho que é Skyland... É uma música clássica, bonita, e tal. Era época de Good Times, em 98, era música que tocava na rádio, aí o locutor traduzia as músicas e tal. Aqui no prédio, nos apartamentos, a gente... Tinha um colega meu que morava lá e... na adolescência, e nós fomos chamar o irmão dele. Porque a gente ia sair, não sei o que, perguntamos "cadê o seu irmão, cara?". Porque a gente ia sair, ia pra algum lugar. Quando a gente foi procurar o irmão dele, ele não estava em casa, estava na casa de alguma outra pessoa do prédio, do conjunto, e nós fomos lá na casa dessa outra pessoa. Quando chegamos lá, a porta tava um pouco entreaberta, e ele tava namorando ouvindo essa música. E a gente "cara..." [ri]. E essa era a minha primeira cena de "o que é isso?". E fiquei com essa música na cabeça, por isso tô falando disso agora. Aí, a partir daí, porque... o que acontece, a gente mais novinho tinha a coisa de baile. Aqui em casa tinha muito baile, festinha que chamava hi-fi. Então a gente bebia cuba libre, a bebida da época era cuba libre, coca-cola com Bacardi, e a gente adolescente bebendo isso. Botava lá, gelo e limão, e tinha música tocando lá. E tinha rodadas de música lenta, tinha as músicas dançantes, e aí "vamo lá, agora uma rodada de música lenta!". Botava Tim Maia... Aí a gente ia dançar junto. Então todos os meninos tinham medo de tomar não das meninas. Todos. Quando um voltava triste, assim, que a menina não queria dançar, eu "encanava" muito. "Caraca, tomou um 'toco'". Aí você... Era uma sala, uma sala. Você ia se esconder aonde? Não tinha... Você fica com aquela cara de idiota no canto assim, na parede, esperando uma próxima rodada pra poder dançar ou uma outra menina pra poder dançar. Então a gente ia com muito medo, assim. Não tinha um menino que não tivesse receio de tomar um não, né? E aí, as meninas de um lado, os meninos do outro... Então essas relaçoes assim, de dança, de bailezinho, a gente acabou... Eu acabei tendo uma namoradinha, a gente acabou namorando, mas eu não tinha tido esse impacto que tive na casa do meu colega, do irmão dele, lá. Não era nesse nível. Aí a partir disso, você acaba... O que acontece, tem um movimento assim, pelo menos aconteceu comigo assim. O homem, a gente vive numa sociedade machista, o homem é muito jogado assim na rua pra descobrir o mundo. E isso, com adolescente, é arriscado, porque a gente não tem noção, não tem entendimento do que é estar no mundo. E aí tinha muito essa coisa da gente ir pra festa, mas não ter noção do que podia acontecer naquela festa. Tinha uma época de descoberta de mundo que eu ia pra ponto final de ônibus, pegava o ônibus aqui e ia pra Caxias. Ia pro ponto final, descia no ponto final, olhava o bairro e voltava. Então fiz isso com vários bairros, assim, da Baixada Fluminense, da Zona Oeste, pegava o ônibus e ia.. Pegava o trem e ia pra Santa Cruz, sabe? Uma loucura, essas viagens, assim. Acho que foi legal nisso. Foram várias descobertas. Primeira descoberta, nesses lugares. Nesses transportes. Fiz isso pra Niterói, atravessando a barca. Então foi muita coisa de descoberta. Muita aula faltosa, matando aula [ri]. Muita preocupação com os pais, porque eles nunca sabiam onde eu deveria estar, mas muita descoberta assim de percurso, de cabine... E aí você vai ouvindo várias nuances, várias histórias, vai ouvindo músicas, a gente vai construindo muita imagem, sabe? De paisagem, imagem de pessoa na cabeça, na memória, assim, na lembrança [incompreensível]. Pessoas, rostos, transportes. E essas experiências a gente acaba incorporando, porque não é literatura, né? É uma experiência mesmo. Você coloca o corpo em ação, em movimento. Aí tem muita coisa dessa que fica registrada, né? E junto disso você sente medo, você sente curiosidade, você sente incômodo, você sente sono, você sente cansaço, sente vontade de voltar pra casa. E isso, esses sentimentos vão todos juntos dessas viagens, né? A partir disso, teve outros acontecimentos dessa época, que eu já vinha escutando Gonzaguinha, Chico Buarque. O que acontece: em 78, houve a Anistia. Como advento da Anistia, começou a ter, um fenômeno, com o guardar das devidas proporçoes, da Pandemia, era algo que acontecia, que estava acontecendo, e que você era atravessado por um acontecimento do mundo. Então, em 78, começou a voltar os políticos que estavam exilados, e a gente empolgado "não, vamo lá!". Eu estava em uma fase de cara pintada [ri], bem anterior, e íamos para a manifestação, mas isso era um espírito de rebeldia, de revolta, coisa da adolescência. Só que em 78 era mais pesado, assim, era mais complicado. E houveram duas cenas, por exemplo. Essa eu compartilho com um amigo meu, e nessa época de adolescente eu não estudava... Eu estava estudando no Liceu de Artes e Ofícios. O Liceu de Artes e Ofícios é uma escola que tem no centro da cidade, na Praça 11, e eu fazia lá o curso técnico de Publicidade [incompreensível]. Foi no segundo grau. Aí, a partir daí, veio o convite da produtora Nunes, do Wilton Nunes, pra lançar um filme chamado "Rei da Vela", com o José Celso, em São Paulo, no Teatro Usina. Eles fizeram o Rei da Vela, o Rei da Vela estava proibida a exibição dele. Aí nessa época eles conseguiram e convidaram estudantes pra fazer a divulgação do filme. Mas era um filme que era proibido, tinha problemas políticos e tal. E o lançamento do filme foi no Cine Ricamar, em Copacabana. Esse lançamento foi uma loucura, assim. A gente... Foram quatro, três colegas do Liceu de Artes e Ofícios, nós participamos lá, da divulgação, era coisa também de adolescente, de empolgação, fazia... Mas era importante, porque a gente tinha diálogo com o nosso curso de publicidade, que era a divulgação de um filme no cinema [incompreensível]. Teve esse lançamento. Bom, o que significou esse lançamento? O Zé Celso fez um despacho antropofágico, aí fugindo um pouco do tema... O que significa o despacho antropofágico? Era um despacho, mesmo, assim, no chão do mezanino lá, do Ricamar, que ele tinha um segundo andar que fazia o coquetel, o receptivo lá do evento. E nele tinha duas ou três mães de santo com frutas, com pipoca, exposta lá. E todo mundo, aquela comemoração, aquela coisa toda, e a gente, os meninos lá do Liceu, a gente não tinha visto isso ainda. Tava todo mundo com a impressão de que seria... Era um despacho antropofágico e tinha toda a coisa de... simbólica, né? Todo mundo com as roupas, vestidos a caráter, tudo, e tiveram os rituais lá e depois ofertavam as comidas. Aí um colega meu: "porra, vai comer isso mesmo?" aí eu "porra, cara... qual o problema?" "pô, mas qual o problema? Sabe lá de onde veio isso?". "Então eu não vou comer." "Caraca, cara...". "pô, tu não vai comer não?" "não, não vou comer". Aí já começou uma interrogação. Acho que não vou comer não. Aí ficou nessa, come ou não come. Cara, só vou pegar um pedacinho daquela melancia ali, a melancia tá maneira. Quando eu peguei a melancia, a mãe de santo olhou pra mim e falou assim "olha, você vai ter que comer a melancia toda" [ri]. Eu falei: como assim? Meus colegas "caraca, falei pra tu não comer". Falei "porra, mas por que vou ter que comer a melancia toda?". Ela começou a falar umas coisas lá que não entendi, e eu fiquei até uma hora da manhã com aquela melancia. Não comi mais nada! Morrendo de medo de fazer outro movimento que fosse, porque fiquei com aquela melancia assim, né? E meus colegas rindo muito, falando "eu falei cara, pra tu não pegar". Falei "cara, mas a gente tava trabalhando. Tô cheio de fome". "Pô, mas tu tinha que pegar a melancia do despacho?!" [incompreensível]. E do outro lado tinha uns outros dois rindo, o cara caindo. "Caraca, cara, vou bater uma foto sua". E aí ficamos nessa, até... Resultado, deu uma confusão no cinema porque... consumo de droga, fumando maconha... O pessoal do prédio, lá em Copacabana, denunciou. E nós ficamos na janela que dá pra Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Bom, não vou lembrar a avenida. A avenida principal de Copacabana, que passa em frente ao antigo Cine Ricamar, que não existe mais. Aí nós ficamos na sacada da janela assim, eu tristíssimo [ri] com a melancia, olhando pra rua, que ali tinha uma cena de cinema, assim... O cara saiu da festa, foi soltar fogos, aqueles fogos que eles colocam na praia, de final de ano. Aí ele foi no meio da avenida, apoiou assim os fogos [faz uma espécie de cabana com dois livros]. A gente falou "cara, vai dar merda isso, porque aqueles fogos ali, do final do ano, ele não ficar em pé. Essa merda vai disparar... É melhor a gente ir embora". Aí o cara falou "ir embora o que, cara? vai rolar uma cervejinha e não sei o que, vai rolar uma bebida, pera aí!". E eu triste com a minha melancia na janela, olhando tudo. Mas aí eu falei pro cara "cara, mas é evidente que vai dar merda, olha o cara lá". Aí ele ajeitando... Pô, quando o cara pegou o fósforo, fez assim no fósforo [sinal de riscar] e acendeu o morteiro... Pô, o morteiro fez "shhhh... pá!'". Aí ele caiu na direção de um táxi, um táxi que estava na porta do cinema esperando os convidados. O morteiro pegou na traseira do carro, assim, estourou o vidro do carro e bateu, ficou dentro do carro do motorista. Se vocês vissem a cara do motorista tentando sair do táxi... E o cara fazia assim na porta [movimento de empurrar], e eu sem palavras... Falei "caraca, porra...". E os fogos assim, daí daqui a pouco "pá, pá", começou a explodir. O cara conseguiu sair, mas arrebentou o táxi do cara. Aí os caras.. Quando ouviram os fogos estourarem né, o morteiro estourar, veio todo mundo pra janela. Aí eu falei "cara, não falei que ia dar merda? Falei pra vocês cara, mas era evidente...". Aí a gente "pô, o cara botou um morteiro daquele, cara, de ano novo cara.". De alvenaria, que o povo coloca na areia, faz um monte de estrutura, o cara botou pendurado num pedaço de madeira, é claro que quando estourasse... E agora? Agora vamo embora. Quando nós fomos descer, fecharam a porta do cinema e nós ficamos presos lá dentro do cinema. Aí os caras disseram "não sai ninguém, vai todo mundo pra cadeira, vamo chamar a polícia". E chamaram a polícia. Aí eu falei "cara, eu falei que ia dar merda...". E eu com a melancia, os caras "caraca, tudo culpa dessa melancia" [ri]. Falei "tem que falar lá com a mãe de santo pra ela liberar, não vou jogar isso fora", e eles "pô cara, joga essa porra fora". Falei "não vou jogar fora, cara". Aí eu vi a mulher lá, falei "senhora, posso falar um negócio com a senhora?". Ela falou "fala, meu filho". Falei "pô, a senhora falou pra eu ficar com essa melancia aqui, cara, não aguento mais essa melancia". Ela falou "eu falei?". Eu falei "caraca... claro que a senhora que falou". "Não, não lembro não, meu filho". Falei "caraca, quem disse...". Os caras falaram "falou com a entidade, a entidade que falou pra tu ficar com a...". Falei "cara, mas não falei com entidade nenhuma, cara, já... minha senhora, posso...?". Ela falou "pode, meu filho, coloca a melancia". Aí coloquei a melancia lá mas a gente não conseguia sair do cinema, porque o cinema ficou fechado. Aí na sacada que a gente estava, meu colega falou assim "pô cara, por que a gente não pula essa janela?". Aí, né... Essas ideias de gente inocente, aí ficou todo mundo olhando... "cara, dá pra pular". Tinha uma banca de jornal embaixo. "A gente pula embaixo da banca de jornal e sai fora", "pô, então vambora". Aí abrimos uma janela, pulamos um de cada vez. Aí "pá", fazia maior barulhão em cima da banca de jornal, "pá", aí descemos. Demorou um minutinho quando o último colega meu desceu, o penúltimo, a polícia chegou. Aí a polícia chegou, "que que tá havendo aí?". "Porra, esse monte de subversivo aí, fazendo lançamento do filme aqui, o Rei da Vela, tá tendo maior confusão, tão fumando maconha, agora estouraram o táxi aí, não sei o que". Aí falei "caralho". Aí a gente "cara, cadê o Cláudio?" [ri]. Era um colega meu. Aí um colega nosso, quando eu deixei a melancia lá, ele lembrou que a gente tinha um amigo em Botafogo e que não tinha comida na casa do garoto. Aí ele foi pegar uma banana [ri]. Daqui a pouco desce o Cláudio pela escada, com um cacho de banana assim, falou "cara, tô preso" e rindo. Aí falei "caraca, como tu vai sair daí, cara? pelo mesmo jeito que a gente pulou?". "Cara, quando eu fui pular os caras fecharam, proibiram, o gerente do cinema disse pra gente que ninguém mais ia pular a janela". Falei "caralho, e agora?" "agora não sei, cara". E rindo, com a banana assim. Aí eu falei "mas cara, você tá do lado de dentro do cinema, com banana, aí tu tá lembrando de mim que tô aqui do lado de fora?". Aí ele "pô cara, como é que eu vou fazer?". Aí ficamos lá um tempão esperando, cara. Aí deu uma confusão, chegou os caras perguntando do filme, falaram com a polícia, aí levou os responsáveis pelo filme pra delegacia, aí foi liberando, aí meu colega saiu. Mas foi assim... Essa foi uma das aventuras, assim, da adolescência. E me meti em outras, também.
P/1 - Nossa, essa aventura aí dá quase um roteiro de filme.
R - [Ri].
P/1 - Você falou "uma das", então teve várias.
R - Teve. Vou falar mais uma aqui rapidinho. Essa... Porque marcou mesmo, assim. Teve o show de Primeiro de Maio, no Rio Centro e eu fui pra esse show. Fui também num show logo depois, que teve apresentação do Gonzaguinha, do Ivan Lins, que era um show do dia do trabalhador. E nesse show teve um atentado, uma tentativa de atentado no Rio Centro. A bomba explodiu no colo de um oficial do exército no estacionamento. E aí a gente tava assistindo o show no Rio Centro, e do nada a gente sente o chão tremer assim. "Caraca, o que é isso?", mas a gente continuou no show, cantando a música dos caras. Aí o Gonzaguinha interrompeu o show, fez um discurso, nossa, metendo o malho lá na tentativa de atentado lá, no espaço, foi a primeira comemoração política da época, o primeiro show do Primeiro de Maio pós-Anistia. E aí foi uma confusão danada, a gente não tinha a menor noção. Aí quando saímos do Rio Centro, a condução é uma loucura. Pegar ônibus pra ir embora, eu vim no ônibus lá, mas eu lembro que foi parado no meio da estrada, ali na Estrada dos Bandeirantes, aquela avenida enorme, em Jacarepaguá. E revistou os passageiros do ônibus, aí depois que a gente foi saber que teve esse... Foi um acontecimento histórico, assim, mas altamente perigoso, assim. Porque os caras colocaram uma bomba no Rio Centro. Então tem essa coisa, a gente faz as coisas e não tem a menor noção do risco, de fato, no momento em que a gente tá correndo. Então depois dessas, assim, fui ficando um pouco mais devagar, mas me botaram na linha também [ri]. "Tá saindo muito, a gente não sabe pra onde tu tá indo, cê já tá pensando que já é homem. Então segura sua onda aí".
P/1 - "Te colocaram na linha" é ótimo. É... Nossa, tô pensando aqui nessa coisa do atentado, assim. Pós-Anistia, devia estar... pensando, construindo aqui na tensão toda, em todo esse tempo. E aí suas lembranças, fiquei pensando no show aqui, né... Depois que você soube que a coisa que tava rolando ali era uma coisa...
R - É. E o impacto maior foi com relação [incompreensível]. A gente tinha a percepção muito rasa... Muito rasa não, menor do que o sentido e o significado que teve, sabe? Mas o impacto de a gente ver primeiro as notícias, no jornal, na TV, e aí eu não falei em casa que tinha ido em show. Eu fiquei quieto. E aí tá todo mundo sentado na sala, assim, "aconteceu isso, isso, isso...". Eu fiquei assim, mas minha cara com certeza me denunciou. Porque meus parentes me conhecem, óbvio, né? Meus tios, meus pais. Ficou todo mundo olhando pra minha cara assim, e eu quietinho olhando pra televisão, assim, mas... Falei "caraca, cara". Aí tem, né, aquela tremedeira que deu no chão, a confusão na saída do ônibus [incompreensível]. Polícia militar, batalhão geral, então ela tinha essa prerrogativa de ter vigilância mais rígida, ainda que não havia shows públicos. O segundo evento maior desse aí, que me recordo, após esse Rio Centro, foi as Diretas Já, sabe? Pra vocês terem noção da... Do imbróglio político que estava na época, né? Que era muita ansiedade de mudanças e aí um movimento com certeza foi as Diretas Já, que tinha [incompreensível], reivindicaçoes, na Candelária, né? Aquela quantidade enorme de pessoas, de políticos... Todos os artistas que participaram daquele comício foram os que estavam no Rio Centro. Gil, Milton, Chico Buarque... Agora, Fafá de Belém... Fafá de Belém eu não lembro. Quem mais eu fiquei foi essa mesmo do discurso do Gonzaguinha depois da explosão da bomba. E aí você vê, é engraçado isso, agora a gente tá conversando aqui e eu tô lembrando desde o início, lá na infância quando eu ouvia esses cantores, essas músicas, como eles foram acompanhando, fazendo o perfil todo até uma parte da minha vida assim. Eu não tinha lembrado, agora que começou... Muito legal, assim, essa coisa da música que acompanha...
P/1 - Legal mesmo. Bom, Aninha, quer conduzir?
P/2 - É, tem uma curiosidade, assim. Você falou que vocês não tinham muita noção do que tava acontecendo, né Celso? Mas você acha que isso acontecia porque você era jovem ou você acha que rolava uma falta de informação geral na época, assim? Como que era pras outras pessoas, sabe?
R - É, eu acho que era os dois, assim. A gente tinha um impulso de ir, né? Como juventude, mesmo. A juventude era o público que se trabalhava, pra poder [incompreensível]. Ir na manifestação política, né? Que é o público que dá gás pra participar de comício, participar de passeata, essa energia do jovem era potencializada, e é um instrumento de mudança, de revolução. Então, essa energia com certeza já estava em nós, e os discursos de alguma maneira criaram esse direcionamento para que a gente participasse dessas manifestaçoes públicas. Mas a construção política que essa geração que eu falei aí dos artistas tiveram, nós não tivemos. Por que? Porque politicamente era um período onde os partidos políticos estavam fazendo rearranjos, que as... Instituiçoes não estavam tão disponíveis assim para ofertar ensino, ensino político, ensino de questoes sociais, de produçoes teóricas, isso não estava disponível, assim. E quando esteve disponível, esteve disponível muito por uma camada social, que tinha acesso normalmente a universidade, onde era discutido Marx, se discutia... Mas o que acontece do outro lado, também, é que eu tinha uma vivência de perceber que haviam coisas que eram injustas, né? Tinha uma certa injustiça. E aí o incômodo não era pela orientação... O incômodo não, a orientação não era política, né? Não era um partido orientando, ensinando pra gente, aquele modelo econômico, educacional, político, seja ele qual for, ele pertencia a um sistema onde nós estávamos excluídos dele. Não, a gente aprendeu na exclusão, sabe? Exemplo clássico, assim: batida no ônibus, batida policial no ônibus. O ônibus com trinta lugares, o cara vai direto em você, nem olha pro lado. Aí você fica se perguntando: "pô, só eu. Por que que o cara veio em cima de mim?". E aí já muda o nosso comportamento, porque quando um ônibus faz isso, um cara faz isso num ônibus, em vários ônibus, em várias vezes, isso já muda nosso comportamento. O cara entra no ônibus, o cara "pô, vai vir em mim de novo". E aí a gente tem que andar documentado, tem que andar com o cabelo cortado, qualquer transgressão tanto da imagem quanto de comportamento, ou seja, a roupa, a cor que eu visto, o cabelo que eu uso, e o comportamento que eu tenho ele vai gerar suspeita na autoridade policial. Então isso é um dado que marca muito a gente, marca. E isso não tá no livro de teoria política. Então a gente não aprendeu pela questão política, e isso aconteceu muito na festa do Rei da Vela, essa do cinema. A gente foi por encaminhamento de curso, a gente entendeu que ia trabalhar com cinema, e era de fato, filme, mas era um filme que foi proibido e que estava fazendo um lançamento de uma fita que foi até danificada pela censura, sabe? Então ela tinha um peso enorme, mas a gente não tinha consciência desse peso político do ato de fazer o lançamento desse filme, sabe? Era um filme que tinha se passado, era... Era um acontecimento que tinha que existir pra ser marco, sabe? Pra marcar, o marco temporal. Olha, lançamos o filme. O filme foi feito em trinta anos, ficou proibido, mas esse filme precisa ser lançado porque é uma questão de resistência política, e a gente precisa lançar esse filme. Nós fomos por outro caminho, sabe? Mas todos esses caminhos que a gente foi atravessando, ele foi ensinando a gente a ter consciência, sabe? Agora, ter essa formação política é totalmente diferente da questão de formação mesmo, teórica, ouvia a parte do político, ouvir a comunidade, também, lideranças comunitárias. Tem vários lugares também, a gente que acabou aprendendo desse jeito, assim. É isso.
P/1 - Por favor, Ana.
P/2 - E aí você fez esse técnico de Publicidade, e depois disso quais foram as suas escolhas de vida, como que foi o desenrolar da coisa?
R - Então. O Liceu de Artes e Ofícios, o que acontecia. No ponto de vista assim, familiar, aos 13 anos a minha mãe faleceu. Então esta casa que eu estou dando essa entrevista aqui hoje, eu saio dessa casa junto com a minha irmã e vou para a casa dos meus avós. E tudo isso que eu te contei na adolescência foi vivido lá, em Jacarepaguá. Bom, o que que significa isso. Significa que foi outra vida fora desse território e do convívio dessas pessoas, e foi a construção de outro grupo social. De um outro grupo de pessoas, de um outro lugar, um outro espaço. Bem no inicíozinho, que faleceu a minha mãe, eu e minha irmã fomos de alguma maneira... de alguma maneira não, de fato, separados, distanciados. A minha irmã ficou com a família, com as irmãs da minha mãe porque ela já frequentava mais, né? Frequentava mais, assim, você tá vendo que todos os meus depoimentos são "de rua". Então ela ficava em casa, ela frequentou mais a família da minha mãe, né? Por parte de mãe. Por que? Porque tinham primas da minha mãe, sobrinhas, que frequentavam aqui em casa. Meus tios e familiares por parte de pai também frequentavam. Mas tinha uma frequência muito grande de primas minhas aqui. E como eu só vivia na rua, minha irmã frequentou muito mais. Então na hora que nós perdemos a minha mãe, ela acabou indo pra casa de uma tia e eu fiquei na casa da minha avó. O que que acontece, na casa da minha avó, meu pai tem doze irmãos. Tinha, alguns já faleceram. Minha avó teve treze filhos. E muito homem. Três mulheres e dez homens.
P/1 - Caramba!
R - Isso. É. E aí, você adolescente, querendo ser homem, no meio de dez homens, não é assim que a fila anda, né? Então, isso, eu acho que foi um pouco também do reflexo da minha permanência na rua, fora do espaço de casa, e dos conflitos que são, que eu acho que é de enfrentamento mesmo, dessa fase vivida, mas com uma forte parede do outro. Pra falar assim "não adianta porque aqui tu não vai arrumar nada assim, então não adianta bancar rebelde, porque o que não falta aqui é homem pra abaixar a tua crista". E eu, coitado, eu fiquei muito triste, muito chateado e culpei durante muitos anos o meu pai porque todo mundo falava, meu pai não falava. E eu ficava revoltado com isso, mas muito revoltado. Mas coitado, meu pai, o que aconteceu com ele. Ele, agora vem os traumas, né, que eu vou falar porque é importante falar isso. Quando minha mãe faleceu, o meu pai ficou um tempo aqui nesta casa, na casa de baixo, porque eu fiz uma construção em cima. São duas casas agora. Minha irmã mora embaixo, onde aconteceu todas essas coisas que eu tô falando e eu fiz uma construção em cima. O meu pai teve um surto, e aí ele ficou muito debilitado, aquela coisa toda, foi perdendo a noção de realidade e foi internado no Hospital do Engenho de Dentro, o Hospital...
P/2 - Psiquiátrico.
R - É, psiquiátrico do Engenho de Dentro. E aí ficou, nós ficamos soltos, né? É... A minha irmã, e isso é uma leitura minha, porque quando eu conversei com ela, talvez ela não queira ainda tratar desse tema dessa forma. Eu já tô tratando desse tema porque eu já tenho revisitado mesmo esse lugar pra curar meus traumas. Eu acho que eu daria muito trabalho para as minhas tias por parte de mãe, porque eram muitas mulheres lá. Por parte de pai, tinham esses dez homens lá, e as três mulheres que tinham lá, criadas nesse ambiente, eram muito fortes, assim. Não adianta também roncar com elas porque elas também tinham o porquê, são dez irmãos que elas conviveram. Então a decisão foi que eu ia pra lá. E uma outra decisão foi que a minha irmã ia pra casa das minhas tias por parte de mãe. Então nós ficamos separados durante eu acho que dois anos. E nessa meu pai ficou internado, nesse período, no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro. E aí, eu devia ter sei lá, quinze anos, dezesseis, dezessete. Acho que dezesseis, dezessete. Essa situação, eu fiquei na minha leitura, sem... Não sei se é sem referência, porque a gente sempre culpa o outro pelo que tá incomodando e que tá machucando a gente, né? A gente não tá comparando hoje com quase quarenta anos depois pra entender como a circunstância, e essa circunstância a gente tem que compreender e entender que ela faz parte da vida. Mas como adolescente não dá pra gente pensar dessa maneira. E aí eu sempre culpabilizei meu pai por esse acontecido e meus tios sempre teve esse enfrentamento comigo de... Engraçado. Uns, em um... E aí, tem um negócio interessante, porque alguns, em alguns momento que você ficava ali relaxado, alguns vinham conversar comigo, né? Com uma ação de acolhimento, de falar, outros falavam com... Tem um tio meu que é compositor de escola de samba, que era, né, um compositor, e aí falávamos através da música. Nossa, eu era apaixonado pelo meu tio, também. E aí [incompreensível]. Histórias, assim, que eles contavam não só das músicas, mas do samba mesmo, né. Como ele fez aquela música, e eu ficava assim, muito fã do meu tio, muito. Tinham as minhas... a minha madrinha e minha tia, que tinham um afeto muito grande, depois que eu fui traduzir que esses afetos assim, vinham através da comida, lanchinho, carinhozinho, sabe? Aí eu falei "é, cara...". É muito engraçado isso, assim, de... E tinha um tio meu que era enfrentamento puro, que ele é fundamental, é meu melhor amigo, meu parceiro assim, mas era o que eu enfrentava assim, né, que dizia mesmo "porra, tu tá pensando não sei o que, tu é pé grande mas tá pensando que é dois?". E aquelas coisas, brincadeira de rua, e aí parece que você tem que engolir porque é teu tio. Aí, mas você tem que engolir mesmo, mais nada [ri]. E aí, essa parte toda, a minha tia do meio, das três, a do meio, ela entendeu que a gente não podia ficar separado, né? Ela vai na casa de uma outra tia por parte de mãe, e traz minha irmã também pra lá, pra Jacarepaguá [incompreensível]. Daí fomos criados juntos nesse mesmo período, essa confusão é tudo na mesma época. Essa coisa política, de Rio Centro, de Cinema Ricamar, significa que teve um momento em que isso me obrigou a ter uma autonomia. Se não está satisfeito com essa condição, mude ela. E aí a primeira iniciativa foi me colocar no quartel. Aí me explica, como um cara que vai participar de comício, de passeata, de Rio Centro, vai caber num quartel? Só que eu não sabia explicar isso pra eles. Aí eu falei "não vou pra quartel nenhum". "Não, tu vai pra quartel". Resultado, eu fui fazer meu alistamento e das três forças que eu fui estudando, pesquisando pra ver, a que eu sabia que não teria condiçoes era a Marinha. Falei, "os caras não vão querer me aceitar na Marinha". Aí eu fui tentar fazer a inscrição na Marinha. Aí disseram "não, não, não, não vai na Marinha não. Vai no Exército" [incompreensível].... Fazer inscrição na Aeronáutica [ri]. Na Aeronáutica, os caras falaram assim "pô, mas tem...". Aí tinha os exercícios pra fazer, um monte de coisa do alistamento. Mas tem umas pessoas que atravessam, assim, sempre tem isso na minha vida. A pessoa atravessou meu caminho lá, e falou "pô, tu quer servir?", falei "não, não quero servir não". Aí o cara "caraca, tu não quer servir não?" "não, não quero não". "Porra, então tá bom". Aí me deram a dispensa na Aeronáutica. Cheguei em casa, todo contente, caraca, fui dispensado do quartel, porque era obrigatório, né, aí tá meus tios esperando lá. E na casa da minha avó, fica todo mundo na sala assim, sabe? Aí você entra na sala, tá todo mundo assim, a televisão aqui, a porta abre, tá todo mundo assim, aquela roda, não tem nem como você... "Oi oi, boa noite, bença pai, bença tio, bença não sei o quê...". "Como é que foi no quartel?". "Ah, eu sobrei". "Sobrou?". "Sobrei pô, tá até aqui o meu documento de dispensa". Aí mostrei pro meu tio, né. Aí eles ficaram, aí fui dormir, né. No outro dia eles queriam me alistar na PM, cara. Falei: "o quê?". "Você vai lá na Sulacap, na Escola da PM, vai fazer o alistamento porque quem sobre no quartel pode fazer alistamento na PM", porque tem muitos primos meus que tem carreira militar. Falei "eu não sou... eu não pertenço a esse...". "Ah não, mas...". "História dele, história dele, não é a minha. Então não tenta me enquadrar, porque não vai dar certo". Resultado, o meu tio se empenhou pra me botar na PM. Aí foi ver inscrição, foi ver um monte de coisa, aí eu falei "cara, preciso sair dessa, eu não vou pra PM nenhuma". E eu pensando em trabalho, pensando em trabalho, fui ser entregador do Jornal Globo. Arrumei uma bicicleta, entregador de assinatura. Aí comecei a trabalhar de madrugada, pedalando, entregando jornal, essa coisa toda, e depois fui parar como vendedor de anúncio do jornal O Povo, isso era do tempo da publicidade lá do Liceu. Eles tavam precisando de estagiário para os classificados, aí imagina vender... Não sei se vocês conhecem o jornal O Povo, é um jornal que tem do Rio aqui que é... Se espremer sai sangue, assim. E eu tinha que vender anúncio pra funerária, pra plano funerário, sabe esse tipo de anúncio assim? E eu... "caraca, cara, esse é o trabalho. Mas vou fazer o que? É esse trabalho que tem". Aí esse meu tio trabalhava na TV Globo, e aí ele viabiliza pra mim um estágio na TVE, e aí fiquei fazendo estágio na TVE, e da TVE fui contratado pela TV Rio. Então isso é uma mudança de vida mesmo, porque ali eu me formo, é minha primeira profissão como radialista, e isso tem trinta anos de profissão.
P/1 - Que legal.
R - Trinta anos assim, na área de televisão, com muito orgulho, e com muito enfrentamento também com ele porque era... fui parar nesse lugar porque ele falou assim "cara, você não pode ficar solto. Você tem que trabalhar. Todo mundo trabalha aqui, então você vai ter que trabalhar. Já que você não quer fazer concurso público...". E isso foi um lance legal porque ele... foi um momento em que ele, acho que ele leu, compreendeu que eu não sou a mesma coisa que meus primos, né? E isso aqui também é leitura minha, eu acho que ele achava que a instituição militar podia dar um "jeitinho" em mim, assim. Dar uma freada nos meus ânimos, mas não rolava, porque não rola, não acontece. Aí ele... Eu acho que a partir do momento em que ele compreendeu isso... Ele já me conhece também, né, então quando ele começa a... desistir, mas quando ele encontra [incompreensível], então ele viabiliza isso e aí eu fico. A história do meu pai, e isso é também outro questionamento que eu tenho revisitado na fase adulta. Foi muito duro a gente na adolescência, porque, quais eram as responsabilidades? "Olha, você vai ter que ir lá no hospital pra ver como é que tá seu pai e dar uma notícia pra gente". Porra! E aí ninguém te orienta, você vai pra um hospital, um hospital psiquiátrico, que é super complicado, assim, e era um período em que o tratamento era eletrochoque, lobotomia. Apesar do hospital de Engenho de Dentro já ter lá o trabalho da Doutora Nise (da Silveira), fantástico. Mas era uma ala separada, quando você entra é muito... Os manicômios né, os hospitais tem muito [incompreensível]. Mas era também, eu acho que fruto do desenvolvimento dos hospitais, os internos estarem mais soltos, no pátio, não tinha ninguém trancado, sabe? Mas era muito duro, é uma imagem que eu vou descrever aqui até hoje não saiu da minha cabeça. Quando eu fui ver meu pai lá, no hospital, eu fui no balcão e no balcão mandaram eu esperar que iam me trazer ele. E aí tem um enfermeiro, enorme, empurrando uma cadeira de rodas, é uma cadeira de rodas de ferro, quadradinha, com rodinha bem pequenininha, meu pai com um uniforme azul-marinho, com aspecto sonolento, assim, distante, e com o corpo debilitado, caído assim, num estado... num estado triste, sabe? Ainda se babando, sem noção, sem... Foi muito triste. E ali eu até perguntei, mas ele não sabia elaborar a pergunta pra levar pra casa pra dizer como ele estava. Eu não sabia descrever como ele estava. Eu só estava com essa imagem muito triste, muito, deixa eu ver uma palavra... Uma imagem de debilitação física, né, de debilitação mental, essa coisa toda. E aí quando... eu nem sabia elaborar as perguntas pra ele, não sabia se ele poderia responder, não saberia se o enfermeiro poderia informar... E aí eu fiquei um tempão olhando pra ele assim, olhando pra ele, e essa imagem me fez entender que ele não é responsável, a culpa toda que eu transferia pra ele não era culpa dele, né? E aí eu fui entender que ele teve, que estava vulnerável, né, então... O ocorrido da perda da minha mãe tinha afetado muito ele, tinha afetado ele assim. Ele não conseguiu lidar com a perda, não estava afetando só a minha e a vida da minha irmã né, tava afetando principalmente a vida dele. E aí que eu fui entender com essa cena, e... Fui entendendo a verdade assim, de perceber que a culpa não era dele porque houve uma pessoa fragilizada, vulnerável, mas eu tô falando hoje de consciência, de que... Do que eu senti, consciência do meu sentimento, não era responsabilidade dele, era uma circunstância. Então aquilo ocorreu, a perda da minha mãe, o falecimento dela foi uma circunstância e que aquilo aconteceu e que o responsável não era ele. Aí fui pra casa, e minha tia do meio, novamente, das três dias a do meio, minha tia Aurora, minha madrinha também, muito parceira minha também, eu falava pra ela mas não conseguia, soluçava pra caramba, e fiquei até hoje com essa imagem na cabeça. Mas isso me deu uma parada pra pensar num monte de coisa, sabe? Num monte de coisa e num monte de responsabilidades. Então isso foi uma mudança, porque eu fiquei preocupado, a responsabilidade começou a gerar preocupação. "Pô, mas e minha irmã, cara?". Aí fiquei com essa coisa da minha irmã. Eu fiquei com essa coisa de... Não de cuidar do meu pai, porque era algo maior que eu, era algo muito maior, saquei que era uma coisa muito grave. Mas que eu tinha que ir visitar, pra procurar entender o que tava acontecendo, pra trazer notícia [incompreensível]. Compreender que essa era uma tarefa, que eu tinha uma missão pra cumprir. Ir lá no hospital e trazer informaçoes sobre o irmão deles, sabe? Isso foi uma tarefa minha, e compreender isso me trouxe conhecimento, sabe? Acho que traz conhecimento pra gente. E aí você descobre, parece que descortina assim um outro mundo, sabe? Um outro.... Passa a coisa do adolescente, né, do ego, de "ah, eu no mundo", acho que foi o primeiro contato mesmo que eu tive com o entorno, né.
P/1 - Só uma pergunta, sua irmã é mais nova ou é mais velho, Celso?
R - Mais nova dois anos que eu.
P/1 - Ah!
R - Eu perdi minha mãe com treze anos, eu tinha treze ela tinha onze.
P/1 - Uhum. Uma menina, né? Quer dizer, vocês dois, né.
R - É, muito jovens, né.
P/1 - É, muito jovens. A sua tia Aurora é a das comidinhas?
R - Sim! Todas elas faziam comida muito bem, mas a minha tia Aurora foi a baiana da escola de samba que eu comentei e era uma pessoa... Era a que frequentava um centro de Umbanda. E aí ela tinha muito essa coisa de cuidado, ah, e ela tinha dois papeis sociais, eram dois papeis sociais dela, digamos. Digamos não, de fato. Ela era a pessoa espiritualizada, na parte espírita mesmo, de Umbanda, e ela fazia uma festa de dia das crianças na casa da minha avó. Não era nem de Cosme e Damião, era dia... Não, era de Cosme e Damião mas ela jogava pro dia 12 de outubro. E aí, nossa, a festa era toda... Tinha toda uma organização dos tios, sabe, cada um de nós, sobrinhos, tínhamos funçoes, e eu sempre fui com ela no Mercadão comprar os doces, no Mercadão de Madureira, no entreposto, num Mercado de comidas e [incompreensível]. E lá que vende atacado, eu sempre ia com ela em Madureira e tal, eu já visitei com ela alguns... Eu frequentava o centro com ela, o centro de Umbanda, ela me levava também. Eu já fui a passeio em cachoeira, também, pelo centro. Então esses lugares criam um [incompreensível]. Ah, e todas as minhas tias, elas trabalhavam em escola, eram merendeiras. Aí elas me levavam pra escola delas, e aí eu ficava lá, assistia uma aula ou outra e tal, mas ficava sempre lá na cozinha com elas [incompreensível]. Acho que elas fizeram com a minha irmã também, um tempo. E esses acontecimentos são importantes, assim, porque essa tia Aurora que reuniu a gente também lá em Jacarepaguá. Por parte da minha mãe, tinha uma tia mais velha que chamava Tia Anita, que é a irmã mais velha da minha mãe. Mas, lá na casa da minha mãe, eram três meninas também. Eram três meninas, minha mãe e mais duas tias e mais dois irmãos. São cinco, isso. Tio João, Tia Josefina. E elas eram muito unidas, minhas três tias por parte de mãe, sabe? E nós criamos relaçoes com nossos primos, por parte de mãe também. A minha tia Alcenira era a que mais frequentava... todas as duas frequentavam aqui em casa, mas os filhos da tia Alcenira eram de faixa etária parecida com a nossa, tinha uma diferença de quatro anos, os mais velhos, a minha prima Cláudia tinha faixa etária minha e da minha irmã, se eu não me engano. E éramos mais próximos, então a gente conversava assim, tinha um diálogo mais próximo. E aí eles cuidaram um pouco mais da minha irmã, mas tinha sempre essa... Então quando minha tia Aurora sai lá de Jacarepaguá pra conversar, porque essa minha tia Anita também, que era a minha tia mais velha, ela também trabalhava, era merendeira de escola, então elas já se conheciam da Prefeitura, né? Essas coisas todas de escola, que as vezes uma mudava, de uma pra outra, conhecia uma diretora, enfim, já se conheciam. Não só por parte profissional, mas também de família, né? De convívio, de frequência e tal. E elas... Isso que eu lembro de comentários de tios mais velhos, alguém se propôs a ir lá e falar com minha tia Anita. Alguém da parte do meu pai, os irmãos decidiram, os irmãos do meu pai decidiram que alguém... Que não tava sendo legal, minha irmã ser criada separado, e que alguém podia ir conversar com a tia Anita e tal, pra ver se podia trazer a Sheila pra junto... Sheila é o nome da minha irmã, pra junto de mim. Né? Manter esse vínculo de irmãos. E minha tia Aurora que ficou com essa missão. Aí ela foi lá, conversou e tal [incompreensível]. Então esse movimento que eu via nos meus tios, quando me foi imposto, eu entendi a responsabilidade que a gente tem, sabe? De ter uma responsabilidade no grupo familiar, seja ela qual for. Desde a tarefa mais simples, até a mais complexa. E isso foi importante porque eu tive que enfrentar o meu trauma, né? Assim... Isso faz parte da sua vida, eu mesmo tô fazendo essa leitura hoje. Então você tem que lidar com isso [incompreensível]. Eu tenho a minha responsabilidade, mas eu também tenho família, tenho filhos, então eu tenho uma outra casa, um outro núcleo pra cuidar. Este núcleo, agora que você tá ficando adulto, quem cuida é você. E aí foi muito dura essa lição, sabe? Foi muito dura. E aí, e depois, o outro episódio foi no enterro também do meu pai, um outro trauma. Que aí eu já tenho mais paz, mais tranquilidade pra pular essa parte do meu pai, porque são traumas também. Falar de coisas mais alegres. Durante o carnaval, meu pai foi pra avenida, que ele também vendia bilhete de loteria, e ele tinha uns restaurantes que ele vendia pra dono de restaurante, que ele conheceu quando era carteiro, né, ele entregava correspondência nesses lugares. No centro ele trabalhava na sede, no centro da cidade, na Praça XV, tinha um prédio enorme ali dos Correios, era o prédio central, e ele conhecia muito o centro da cidade, entrega de correspondência e tal. E no carnaval, ele também fazia venda de bilhetes, essas coisas todas. E ele sumiu. "Caramba, pô, teu pai não voltou pra casa hoje, não sei o que, e tal". Porra. Aí passou um dia, no segundo dia o meu tio veio e falou "ah, vai procurar seu pai cara, vai saber o que aconteceu". Aí eu fui pro centro da cidade, sem a menor noção também de saber por onde começar, por onde... Uma pessoa desaparecida, você né, não tem pista nenhuma. E aí vou pelo óbvio né, vamo pelo Instituto Médico Legal. Aí fui lá, olhei, o cara passou lá... Cenas terríveis também, é um caderno novamente, um caderno preto, ele no balcão vai vendo... "Qual o nome da pessoa? Qual a descrição dele? Assim, assim assado... Não sei, o que tá acontecendo? Nessa área aqui, nessa região que ele estava?". Olhou o nome e não tinha. Aí eu fui no Hospital Souza Aguiar, também no centro da cidade. No Hospital também não estava. Aí ali próximo ao corpo de bombeiros. Aí fui no Corpo de Bombeiros, central, também não tava. Aí procurei, fiquei visitando três ou dois hospitais ali, no centro, depois fui parar no Hospital Miguel Couto, que eram hospitais de emergência, aí não tive mais ideia pra onde ir. Aí voltei pra casa, e no dia seguinte voltei pra refazer esse percurso. Quando eu cheguei no Souza Aguiar, tinha o nome dele lá nesse livro preto. Quando o cara falou assim "qual o nome dele mesmo?" aí eu falei "Celso Honório Teixeira", aí ele falou "ah, ele deu entrada sim. Ele faleceu e tem que fazer reconhecimento de corpo". Olha quanta informação [incompreensível]. Caraca, como assim? "É, ele faleceu de madrugada, falecido e você vai precisar fazer o reconhecimento do corpo". Aí eu fiquei dando um tempo lá no hospital, não sabia nem o que fazer, se ligava [incompreensível]. E aí eu fui fazer o reconhecimento do corpo. "Não, vou confirmar pra ver se... sabe?". Aí fui sozinho fazer isso. Aí o cara me levou lá no necrotério, o cara me abre a geladeira e puxa a gaveta assim e é uma imagem assim que nunca mais saiu da minha cabeça, porque ele ainda estava com os hematomas que foi pego na rua, o corpo transportado e posto naquela condição. E aí eu não sabia... fiquei olhando, "é ele?" o cara falou "é ele?", falei "é, meu pai, meu pai". "então tá bom". Aí "pá", fechou de novo, eu não conseguia nem sair de lá de dentro do necrotério. Aí o cara me levou lá pra recepção, chamou a pessoa que trabalhava lá na recepção, a recepcionista lá e tal, não sei se era assistente social, alguma pessoa que já lida com a questão de maneira mais objetiva, né? Aí perguntou telefone, endereço, se tinha algum documento dele ali, pra fazer a parte burocrática não sei o que, ela falou "não, faz o seguinte, só me dá o telefone, você lembra de algum telefone? Tem algum telefone aí?", dei o telefone do meu tio e aí ele acionou lá, fiquei na minha lá, aí depois apareceram lá. E eu não sabia explicar, "mas o que que aconteceu?" e eu "eu não sei cara, eu vim aqui, passei.." aí eu fui narrando o meu percurso, onde eu fui né, "fui em tal lugar, fui em tal lugar e aí quando eu voltei agora aqui, ele tava aqui, e tal". Aí de lá mesmo tem um primo meu que sempre ajudou nessa coisa de, uma outra função também, ele sempre cuidou desse negócio de morto. Ah, umas funçoes loucas né, que tem na família assim. Os papéis que a pessoa acaba executando. Aí ele desceu, ele foi pra lá e começou a fazer translado pra funerária, cemitério, as coisas práticas, né. E aí foi isso, aí depois eu voltei pra casa sem entender muito isso e com dificuldade pra explicar pra minha irmã o que tinha acontecido, né. Mas eu já tava mais velho, já tava com uns vinte e poucos anos, se não me engano. É, acho que era isso. E aí, depois disso tudo, a gente... Eu senti um vácuo enorme, sabe? De assim... Caraca cara, tanta coisa que eu podia ter falado, sabe? Depois que passa essa questão toda do choque. Aí tu olha pra trás assim "pô, caramba". Eu acusei o cara disso... Rola uma culpa, sabe? E um desperdício de oportunidades. E foi muito incômodo, muito doloroso e ruim, né? Acho que a palavra é impotência, assim. De ter feito outra coisa, mas eu fiz uma escolha de julgamento, de culpa e de, enfim, que me levou pra um outro raciocínio, pra um outro comportamento. E poderia ter aproveitado melhor, compreendido melhor. Mas foi um aprendizado, né, duro, né?
P/1 - Mas também é o seu contexto histórico também, né?
R - Sim.
P/1 - É... Enfim, você estava num contexto histórico ali, essa era a sua interpretação. De certo modo é bom, né? Você fala assim "nossa, que bom que a gente fica mais velho, né?". Porque as engrenagens vão acontecendo, as coisas, você vai... né?
R - Sim!
P/2 - Pode falar?
R - Fala, Aninha!
P/2 - Celso, primeiro sinto muito por isso. E outra coisa que acho que faltam seis minutos pras oito, acho que a gente não vai conseguir acabar hoje, né? E aí você acha que a gente encerra aqui, tem mais alguma coisa de agora que você quer dizer ou a gente pode encerrar aqui e continuar no próximo dia?
R - É, nós podemos encerrar aqui e continuar mais a frente. Porque depois disso, o outro evento, outro acontecimento é a minha saída lá de Jacarepaguá. Mas agora com uma companheira, casado, e aí é uma outra história.
P/2 - Tá bem!
P/1 - Estamos muito curiosas já, né?
P/2 - Já tô curiosa, sim.
P/1 - Não é?
P/2 - Você é um ótimo contador de histórias, Celso [ri].
P/1 - É mesmo.
R - Ah é?
P/2 - E acho que é isso, então. Aí a gente vê um horário, pra ver como vai fazer pra reagendar, não sei... Vai ter uma entrevista parece que na semana que vem.
[...]
PARTE 2
P/2 - Pronto, tá gravando.
R - Bom, nós começamos a conversa falando um pouco sobre as memórias da minha irmã. Nós teríamos um comum a partir, se eu não me engano da nossa moradia lá em Jacarepaguá, lá na casa da minha avó. Bom, como eu retomo essa relação, hoje, né, com a minha irmã olhando um pouquinho mais pra trás e tentando identificar porque... Eu devo ter falado bastante da minha irmã [ri] durante a nossa gravação, né. O que que aconteceu. Algumas semanas atrás, a gente falava de lembranças, de histórias das nossas vidas e acabou... eu partindo pra um projeto de memória antigo, que me movimenta já há algum tempo. E aí, eu não sei se eu havia comentado que ela seria a guardiã dessa memória em comum nossa. O que é esse objeto de memória em comum? São os álbuns de família. E na visita inicial, proporcionada por ela, nós estabelecemos um encontro e a partir desse encontro nós passamos a rememorar uma tentativa minha, particular, de preencher as lacunas, assim, da minha memória. Tinha coisas que eu não lembrava e que o álbum testemunhava, né? Assim, tinha uma foto lá que ela sabia muito mais das histórias daquela foto do que eu, assim. E aí, a partir disso, nós ficamos conversando a beça. Esse encontro me proporcionou, assim, essa aproximação dela, uma complementação das lacunas da minha memória, dos fatos, dos acontecimentos que eu realmente tinha esquecido, e que toda vez que ela abria o álbum de fotografia, contava aquela foto, narrava... Aí vinha me despertando as lembranças, né? E tinham coisas também que eu não sabia, que eram típicas da vivência dela, e que ficaram registradas naquele álbum. Por que eu tô falando do álbum? Porque o álbum é esse objeto mesmo de registro e de materialização, né, na hora que ele começa a me movimentar e criar essa rememoração a partir do encontro com minha irmã, que mesmo eu vendo algo sozinho eu não teria esse alcance, eu precisaria do depoimento, do relato dela sobre o significado daquela foto pra mim compreender ou despertar algum sentimento, alguma coisa que eu tive que rememorar, algo que eu tive que rememorar. Então só o acesso, o contato, o folhear do álbum não serviria, ele tinha que vir acompanhado da rememoração dela também. E aí isso foi muito importante, assim, em todos os sentidos, nesse sentido de comunicação entre nós, entre eu e ela, e essa comunicação proporcionada pelo encontro, eu acho que foi o resultado de tudo o que eu vinha falando pra ela assim, das coisas que eram percepçoes minhas mas que talvez ela não tenha vivido ou foram interpretaçoes minhas da vivência dela, o encontro proporcionou isso de dizer o que de fato aconteceu e o que não aconteceu. O que era algo da minha imaginação e o que era... de fato tinha ocorrido. Então esse encontro foi muito rico, e a partir dali eu me deparei com outras fotografias, né? Eu já fui com outro olhar pras outras fotografias. O álbum dela tinha... A principal lacuna eram os retratos da minha mãe. Eu tinha uns retratos específicos, mas eu tinha, como eu falei... Devo ter falado anteriormente, eu tinha um bloqueio com relação a um trauma, foi a perda dela. Então num período x lá da minha vida eu não conseguia ver imagens anteriores, só da última cena, antes do falecimento dela. E minha irmã ajudou a reconstruir essas lacunas que existiam em função desse trauma da perda, né? Bom, isso me remeteu logo as questoes afetivas, não só da minha mãe, mas também da minha própria história de vida, assim. As relaçoes que eu tive. E aí foram umas relaçoes... A primeira relação que me rememorou foi a relação com a mãe da minha filha, o motivo de eu ter... Um dos motivos que me mobilizaram, que eu saí assim da casa da minha avó e começasse a construir uma outra vida, foi o fato de eu ter saído pra morar com a mãe da minha filha. Então tem pelo menos três movimentos aí, vamo lá: o primeiro movimento, eu estava nessa residência onde estou dando esse depoimento agora, que era a casa dos meus pais, minha mãe falece, meu pai passa um período de muita dificuldade, acaba sendo internado no Hospital Engenho de Dentro, não vou lembrar o nome agora, mas depois posso... E nós, foi eu e minha irmã, eu com treze e minha irmã com onze, morando na casa de familiares. Num dado momento, nós dois fomos pra Jacarepaguá, pra residência da minha avó paterna, então é esse período. A gente sai daqui, fica na casa de alguns parentes, em algumas vezes separados, eu vou pra uns parentes, minha irmã vai pra outros parentes, e nos encontramos de novo na casa da minha avó. Da chegada da casa da minha avó até a minha saída é um período [ri]. Esse período que eu saio da casa da minha avó e vou viver minha vida, ele coincide com o meu relacionamento com a mãe da minha filha. Aliás ele não só coincide como ele é a mola mestra pra eu ir construir uma outra parte da vida, né? E aí, quando eu vou morar com a Denise, nós tivemos um relacionamento, ela também morava no bairro de Jacarepaguá, e frequentávamos alguns lugares em comum. Na Praça Seca tem uma feira, de domingo, e essa feira tem um restaurante chamado "Sorvetão" lá na esquina, da feira, e a gente... Volta e meia a gente parava ali, ia pra feira, na verdade não tinha compra, a gente ia pra curtir a feira, encontrar com colegas, amigos, e era um programa de domingo. E aí parava no Sorvetão pra pedir cerveja e comer pastel [ri]. E numa dessas, eu acabei encontrando a mãe da minha filha, e aí a gente já passou a se conhecer, a ter um contato visual várias vezes no mesmo lugar, e tudo, até que um dia eu me aproximei, conversei com ela, né? Teve aqueles galanteios de.. [ri]. Bom, as coisas de namoro, né? Aquelas coisas antigas, você se aproxima, faz sinais, enfim, a gente acabou estabelecendo uma comunicação e marcamos um outro domingo, enfim. Isso virou um símbolo, que a gente volta e meia, todo domingo, acabava se encontrando lá e conversando, meio que uma aproximação. Logo depois, passamos a ir em algumas festas, geralmente assim, as festas na casa dela, festa lá em casa, na casa minha avó, né? Saíamos pra programas de finais de semana, clubes, bares, chegamos a ir a shows, samba... Aí a família dela também frequentava a escola de samba da minha família também, minha família também frequentava. Então volta e meia tinha ensaio, na escola de samba chamada União de Jacarepaguá, e o tio dela era compositor, foi compositor, vencedor de samba-enredo lá, anos lá na Escola. E era super talentoso e conhecido e respeitado também, na agremiação. E minha família também, tinha integrantes da ala das baianas, tinha tios que eram dirigentes da escola de samba, eu desfilava lá também, enfim. Nós frequentávamos o espaço. E era um espaço familiar, acabava sendo um espaço de extensão das nossas famílias, né? E isso é muito engraçado porque isso deu legitimidade pra mim frequentar a casa dela e deu uma certa tranquilidade pra ela frequentar a minha, não era um estranhamento total. A partir disso, a gente começou a namorar, eu saí de lá, da casa da minha avó, eu acho que com vinte e oito ou vinte e nove anos, se não me engano. Sou péssimo de datas. E a gente acabou indo morar juntos, acho que o primeiro bairro foi na Vargem Grande, alguma coisa assim. Saí da Praça Seca e fui morar lá dentro de Vargem Grande. E a gente morou junto lá, numa quitinete, durante um ano ou dois, mais ou menos. A partir disso, a gente foi mudando porque essa coisa de aluguel, eu trabalhava em televisão e não era televisão estatal, então tinha um período assim em média de cinco anos e, né... Eu trabalhava com frequência, mas daqui a pouco mudava de emprego, e tinha um rodízio muito grande em televisão, né. E tinha oferta de emprego aqui no Rio também, porque as principais emissoras, a Manchete tava aqui, a TVE tava com muita produção, tinha a Bandeirante, o SBT, mas a gente sempre fazia férias, cobria férias dos colegas, acabava que todo mundo se conhecia nessas empresas. E sempre coincidia que saia de um emprego, ia pro outro, a gente se mudava né, "ah, baixou, não tem emprego, então tem que diminuir o custo, a moradia, tem que arrumar um lugar mais viável", então eu residi em vários bairros, assim. Já morei em Guadalupe, já morei em Marechal Hermes, já fui... Já morei na Taquara [ri], já morei em Bento Ribeiro, então eu fiz assim, um circuito no Rio de Janeiro assim, a cada... que coincidia com esses períodos de troca de empresa. E ela sempre me acompanhou nisso tudo, e nesse interim a Denise ficou grávida da Taiane, minha filha que hoje tem vinte e cinco anos. Vinte e cinco anos. Vinte e seis anos, nossa senhora! Vinte e seis... Ela é de noventa e cinco (1995). E aí, nossa, foi o maior presente que eu recebi na minha vida, assim, sou muito apaixonado por minha filha, eu sempre desejei ter uma filha menina, uma filha mesmo, menina, enfim, e isso foi um presente dos deuses que a Denise também viabilizou isso, materializou de fato. Então nós tivemos momentos muito bons, sabe? De parceria mesmo, de relacionamento todos os dias, de proteção, uma rede de proteção um do outro, mas no percurso acabou não acontecendo. Mas isso durou muito tempo, porque nesses vinte e cinco anos da minha filha, pelo menos uns cinco ou seis, nos finais equivalente, ou seja, os outros quinze, vinte anos, foram anos que nós vivemos pelo menos uns dez anos bem, bem mesmo assim, tendo parceria, cumplicidade, mas no meio do caminho o negócio acabou se deteriorando, né? Parece que tínhamos desejos e vontades diferentes e isso acontece, né? E aí começou umas questoes de desentendimento, briga, de opinioes diferentes, e isso ficou maior, muito maior, do que a relação afetiva no sentido de um cuidado maior de um com outro. Tanto da minha parte quanto da parte dela também, segundo o meu ponto de vista, né? Tô falando que essa falta de, essa sensação de não ser cuidado era minha percepção. E também a falta de cuidar que ela percebia e que ela reclamou muito e que eu não tive a atenção devida, não dei a escuta devida as reclamaçoes e insatisfaçoes dela, quando eu fui perceber isso ela já estava num quadro de debilitação física, né, ela já tava muito doente, eu também estava enfrentando uma doença também, e aí a gente não teve mais diálogo no sentido de tentar cuidar um do outro. Eu acho que tinha uma demanda de cuidados pessoais, enfrentamento das nossas dores, né? Das nossas questoes. Então foi muito difícil separar o cuidado pessoal para o cuidado com o outro, sabe? Porque a relação ficou tão desgastada que eu acho que isso também ajudou a nos adoecer fisicamente. Em 2010, eu fui fazer um exame de rotina, porque eu tenho um quadro de hipertensão na família, e fui fazer um exame de rotina, um eletrocardiograma, essas coisas relativas a questão da pressão, da pressão arterial. E nesse... Em um desses exames apontou que eu tinha pólipos no fígado. Bom, mas aí eu não entendi muito porque o cardiologista mandou eu procurar um "gastro" (gastrologista). Aí eu fui ver o resultado do exame lá. "Ué, por que eu vou ter que procurar...?". Resultado: estava constatando que eu tinha pólipos no fígado, tinha que fazer tratamento e tal. E aí isso deu uma baratinada na minha cabeça porque é um tratamento de câncer, né? E a gente receber uma notícia dessa não é fácil. E, por sinal, ela também tinha os problemas de saúde dela. Bom, nesse interim todo, eu ainda tentei... tava trabalhando normalmente, tentei me inteirar o que significava tudo o que estava acontecendo pra minha vida, né? E fui fazer o caminho que o cardiologista indicou, de procurar um gastro, e aí fui fazendo essa peregrinação. Só que você fazer esse caminho de exames, de notícias, da relação com a própria doença e continuar trabalhando, tentando levar uma vida normal com toda a pressão que o trabalho fornece foi muito difícil, foi muito difícil. Tive muita dificuldade de lidar, de tentar administrar e ter equilíbrio, acho que a palavra é essa: equilíbrio. Nesse entorno de acontecimento, né? Então tava muito misturado hospital, trabalho, casa, relacionamento, tava um bolo só, tava tudo misturado. Toda vez que tinha uma provocação, tudo isso vinha a tona. Tudo, assim. Todo esse pacote misturado ele saía. Então foi um período mais difícil, culminou com a nossa separação mesmo, que eram palavras que feriam, que magoavam... E lamentavelmente isso tudo veio ocasionar a nossa separação já... Minha filha já bem mais velha, né? Mas ela vivenciou esse período todo, e meu medo maior era perder a relação com a minha filha. Isso foi um medo que me acompanhou muito, assim. Porque eu era... eu sou muito apaixonado por ela e essa possibilidade de me distanciar, de perder, enfim, de ter uma relação muito ruim com ela me desiquilibra. Do outro lado, a mãe dela cuidou muito bem dela, assim, né? Cuidou dela. Que é o papel mesmo que ela executou lá, com competência, mesmo tendo problema com o pai dela. Então... E aí chegou um dado momento, e aí não é só um dado momento, foi a consequência de uma série de caminhos que eu tomei nesse percurso. Por exemplo: no campo, na área do hospital. No hospital, numa dessas trocas de empresa, na empresa que eu trabalhava o plano de saúde não cobria meu tratamento no hospital particular. O médico do hospital particular me explicou exatamente isso que eu tô dizendo e disse que eu seria encaminhado pra um hospital público, e aí ele ia indicar um amigo e tal, essa coisa toda, especialista, né, no meu problema, e tal. E foi com essa pessoa com que eu convivo até hoje, a descoberta desse sintoma, dessa... O diagnóstico foi dado em 2010, então estamos em 2021\. E eu tenho a companhia do Doutor Bruno durante muito tempo, né? Eu acho que 2015, se eu não me engano, 2013 pra cá ou um pouquinho mais, que eu tô sem a data aqui. E ele foi uma pessoa que, nossa, uma pessoa muito iluminada assim, e eu agradeço sempre porque vários caminhos foram traçados e sugeridos no tratamento, em diálogo comigo, com os colegas dele também, claro. E um deles foi a questão psicológica, principalmente. Ele percebeu que eu tava meio agitado, nervoso, ansioso, aí ele fez o encaminhamento pro psicólogo, fez encaminhamento pra uma nutricionista também. E aí foi cercando dessas funçoes, sabe? Aumentando, ampliando a questão da saúde. Porque até então era ir pro oncologista, ia e saía, ia e saía... E isso tava muito duro. Então quando a gente começa a tratar, por exemplo, com um psicólogo do lado, começa a trabalhar um outro ponto de vista, não só aquele que você tá enxergando... A nutricionista, existiam coisas práticas de alimentação, por exemplo... Como isso era no fígado, eu tinha que parar de beber. Assim, tem que parar de beber. Beber álcool, consumir álcool, bebida alcóolica. E aí, assim, "ó": "tem que parar de beber". Simples assim! E era simples mesmo, porque era uma questão de subsistência, de vida, assim. Ou para de beber, né? Ou vai parar a sua vida, assim, porque você vai estar criando mais problema pro seu fígado debilitado. Aí eu... E aí, tudo o que envolve essa ação afeta o seu corpo, né? Assim, que você vai deixar de consumir lá, pro bem ou pro mal, você deixaria de consumir um produto e teria que refazer o seu hábito alimentar, né, refazer sua própria dieta, os alimentos que você ia passar a consumir desde então, e os que você não ia consumir... Claro que seu corpo vai reagir, né? Então eu perdi muito peso, e aí lidar com aquela imagem, de uma pessoa magra, né, que faz parte do próprio processo... No local de trabalho foi mais difícil ainda, porque quando você vai antes do trabalho, num determinado horário, pro consultório, pra clínica, hospital, você imagina, eu imagino, chegar no trabalho com aquela parte não comentada, não apresentada, né? Escondida, em outro lugar que não era o lugar do trabalho. Mas seu corpo físico está debilitado, então não dá pra esconder, né? Fisicamente. E aí o primeiro aborrecimento por esse acúmulo sai, você verbaliza ele, que demonstra também que é o resultado, que tem alguma coisa acontecendo, né? Para além daquela provocação, daquela piada de mau gosto, daquela... Enfim, alguma coisa que tenha acontecido no lugar de trabalho, que não precisava chegar a esse ponto de uma verborragia de um falar, agressivo, violento, né? Então essas coisas, assim, que aconteciam no trabalho, aconteciam dentro de casa também. Então isso foi um período que não foi muito legal, mas junto com isso foi um período de aprendizagem, de autoconhecimento. Se eu tô falando hoje, é porque eu vivenciei isso e com a ajuda de muita gente, consegui perceber um outro modo de ver, a ponto de eu me conhecer hoje e entender o que tava acontecendo, compreender o sentimento que tava envolvido nesse período da minha vida. Claro que essa mágoa não passou no coração da mãe da minha filha, né? Até porque as escolhas que ela fez e que foram proporcionais, foram outras. A saúde dela ficou debilitada com uma mielite transversa, que é uma inflamação que dá na coluna e que foi provocada por uma baixa imunidade. Então havia um vírus, e com a baixa imunidade o vírus se manifestou. E aí ela ficou paralítica da cintura pra baixo. Nossa, aí foi muito duro, com certeza né? Foi muito duro pra ela. E aí ficou mais complicado, porque as opçoes que eu tive condiçoes de fazer, eu acho que não aconteceu com ela. Eu quero entender que ela optou em vivenciar aquilo, o ocorrido com ela, e que não queria compartilhar mesmo assim, com psicólogo, enfim... Ela acabou lidando com a saúde dela desta forma. Mas chegou um ponto que nós dois não suportávamos as nossas dores, né? Não dava, não dava. A gente não conseguia nem se olhar, assim, foi uma relação muito difícil. E aí eu me mudei de novo pra casa da minha avó. Então tá. Tem uma parte, antes disso tudo... Já vou sair desse drama, tá gente? Antes disso tudo, eu morava de aluguel lá, né, e numa das indenizaçoes... Uma indenização que eu recebi de uma empresa que trabalhei eu construí essa casa que eu tô morando. E aí ela veio comigo, assim, a gente saiu do aluguel, pra mim foi uma conquista muito grande de autonomia, né, de ter o espaço, né, sair desse círculo vicioso de ficar pagando aluguel, essas coisas todas. E aí nós viemos morar juntos aqui no bairro que eu tô, em Tomás Coelho, mas eu não sei se isso foi bom pra ela, né? Mas era necessário pra gente enquanto família. Bom, depois desse período todo, que a gente tava convivendo aqui, e com essa série de problemas, ela resolveu ir pra casa... Eu saí, me mudei pra casa da minha avó. Saí daqui dessa casa que estou morando e fui pra casa da minha avó. Ela ficou com a minha filha aqui e depois ela reclamou que queria ir pra casa da mãe dela, aí eu vim pra cá e ela se mudou pra casa da mãe dela junto com a minha filha, e eu fiquei um período enorme sozinho aqui. Aliás, estou até hoje. Então esses foram momentos muito complicados né, e isso foi até o fim da vida dela, que ela faleceu tem dois anos, e foi muito difícil pra minha filha, penso eu, e pra mim também porque escapou um monte de oportunidades da gente pedir desculpas um pro outro, eu principalmente, já que eu tinha um pouco mais de consciência, ou então já tinha experienciado coisas que... Com apoio. Então caberia a mim ter um jogo de cintura maior e me desculpado das coisas que eu havia dito. Muita coisa que eu havia dito que não tinha necessidade de ser dito. Bom, enfim. E aí eu lamentei muito essa falta de oportunidade de ter feito isso. A minha filha, depois de um tempo, eu pedi pra que ela viesse pra cá, pra gente morar junto, ela escolheu ficar na casa onde ela estava morando com a mãe dela. Bom, a partir disso, dessas decisoes, começaram a aparecer as questoes práticas, né? Agora no relacionamento meu com a minha filha. As questoes práticas da casa, "ah, tem que fazer obra porque tá pingando", "tem que mexer não sei aonde", sabe? As coisas práticas. E aí a gente começou a falar disso e a partir disso teve um movimento muito legal no nosso relacionamento, assim, de imaginar qual então seria a casa ideal pra ficar a vontade, pra ela se sentir melhor e tal, pra não ter as lembranças que ela tinha tido ali do período que morou com a mãe dela, e aí a gente começa a fazer umas... uns desejos, estimular mais desejos, estimular mais sonhos, estimular... Então foi um exercício que eu nunca tinha praticado com ela. E umas besteiras assim "pô, mas vamos colocar um armário aqui" "pô, mas tu pensou em que armário?" "ah, pensei num armário assim", sabe? Então ter feito isso junto com ela nos aproximou e fez a gente exercitar uma... praticar um exercício de efetividade, nossa, fundamental, pelo menos pra mim. Ela não tá aqui pra falar o lado dela. Mas isso me deixou muito próximo dela, assim. E foi legal porque, assim, como eu já tinha vivido essa experiência de construção, eu tava seguro pra dar as informaçoes que ela precisava, que ela tava imaginando, e ela também se sentiu segura. Então, essa segurança, eu acho que foi importantíssima pra ela, pro momento novo da vida dela, né? Que ela ia começar a enfrentar. E pra minha insegurança de distanciamento da minha própria filha. Então essa relação de segurança que nós trocamos um do outro foi fundamental porque ela não falava da casa mas demonstrava estar feliz, sabe? Porque tá conversando com o pai dela, conversas que a gente não havia tido, mesmo que mediado por obra. Então isso eu acho muito fantástico, assim, a gente podendo falar de carinho e de afeto, mas a relação e as conversas, os desejos, eram muito afetuosos, assim, muito carinhosos. E isso foi fundamental, e a gente tá mantendo isso hoje, porque eu acho que foi uma descoberta para os dois e a partir daí a gente começou a falar de coisas mais íntimas entre nós. Distanciados, eu aqui e ela na casinha dela. Mas é importante também que criou maturidade nela, assim. Ela é uma pessoa adulta, com os 26 anos dela, né? Muito madura. As meninas amadurecem muito mais rápido que os homens, né? Isso é óbvio, assim. Os meninos demoram muito. Eles não querem sair do colo da mamãe, entendeu? E aí foi muito bom ver isso, assim, e isso me movimenta muito hoje. E me dá tranquilidade, me dá segurança, a ponto de, quando eu estou um pouco solitário, com uma ou outra questão... Já aconteceu isso umas duas vezes, ela sempre antecipa e liga "pai, pô, tá sumido, não falou nada, como é que tá aí?". Aí eu falei "caraca, tava pensando em você". Isso já aconteceu umas duas ou três vezes, assim, no mínimo. E também acabei praticando isso, pra saber como é que ela tá, e tudo, e calhou, coincidiu de ela estar precisando conversar, ter uma palavra e tal. Então você se sentir assim, se sentir prestativo, colaborador assim com a outra pessoa, pra mim é... Não tem medida, né? Já não tem medida. É muito grande, muito iluminado, é um privilégio, assim, poder ofertar uma escuta pra outra pessoa. Porque a gente acaba recebendo isso. Então, se em algum momento eu tô assim, no ponto de ônibus, eu tô esperando a condução, a outra pessoa já me escuta sem a gente se conhecer, então o mínimo que eu tenho que fazer é retribuir isso, penso eu. Então desejo muito que ela tenha esse sentimento também, mas ela já demonstrou que tem, assim, já verbalizou até, inclusive. Então esse foi... é o maior presente que eu tenho, com relação a minha filha, né? Da gente poder amparar um ao outro. Isso foi uma dádiva que eu ganhei, assim. Nossa, uma dádiva. Falei a beça, agora falem um pouco vocês, perguntem.
P/1 - Aninha, quer...?
P/2 - Ah, queria dizer que eu sou uma menina, mulher, não sei, de 26 anos como sua filha, e que com certeza é uma grande sorte na vida dela também ter você aí pra essa troca que vocês estão tendo. Então fico muito feliz dessa construção, né, que vocês conseguiram fazer assim, e aí queria ver com você, assim, hoje em dia, pra além dessa questão com a sua filha, que mais você conta do seu dia-a-dia, como é a sua rotina, do seu trabalho, da sua família... E é isso. Queria que você contasse um pouquinho pra gente.
P/1 - Ixi, será que travou.
P/2 - Acho que a câmera dele tá paradinha.
P/1 - Ai, eu acho que travou. Que pena!
P/2 - Ah, ele caiu. Esperar ele voltar.
P/1 - Vamos. Ah, acho que ele vai aparecer pra você.
- - - - - - - - FIM DA ENTREVISTA - - - - - - -Recolher