Tecban - Histórias Diversas
Entrevista de Marun Cury Reis
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 29 de julho de 2022
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1262
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:18) P/1 - Bom dia, Marun. Tudo bem?
R - Tudo bem, Genivaldo, e você?
(00:22) P/1 - Tudo ótimo! Então a gente vai começar com as informações mais básicas. Queria que você me informasse seu nome completo, a data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R - Meu nome é Marun Cury Reis. Nasci em 28 de maio de 1988, na cidade de Clementina, interiorzão de São Paulo.
(00:48) P/1 - Contaram pra você como foi o dia do seu nascimento?
R - Contaram mais ou menos. Contaram que minha mãe… Ela sempre foi muito tranquila com relação a ter, a dar à luz. Ela estava ansiosa, nervosa, mas tem muita fé. Minha avó falava muito sobre fé, então: “Não tenha medo, tenha fé!”
Para a hora do parto, a levaram para Birigui. Na verdade, nasci em Clementina, oficialmente, mas eu nasci em Birigui, que é uma cidade do lado, bem maior, porque eles não acreditavam muito no hospital de Clementina, então eles foram para um lugar um pouco mais bem estruturado.
Segundo a minha mãe, ela estava tranquila, o parto não foi… Não demorou muito tempo, algo em torno de quatro, cinco horas em trabalho de parto intenso. Ela sentiu as primeiras dores pela manhã e foi dar à luz a mim umas quatro e meia da tarde, um pouco mais do que isso. Mas intenso mesmo [foram] umas quatro, cinco horas no hospital de Birigui.
Meu pai não pôde entrar para assistir, é tudo que eu sei. Ele subiu em uma árvore do lado de fora para ficar assistindo (risos), coisas que aconteciam nos anos 80. Mas é tudo que eu sei sobre meu parto (risos).
(02:07) P/1 -
Bom, então falando sobre sua família, eu queria que você começasse pela sua mãe e pelo lado materno da família. Como você descreveria sua mãe e também o lado materno da família?
R - Minha mãe é uma pessoa incrível, acho que é a melhor forma de descrição. Ela é extremamente amorosa, isso vem justamente do lado familiar dela. Minha mãe é filha de duas pessoas que se amaram muito e tiveram outras cinco filhas. Meu avô, nos anos 50, teve seis filhos - sete, na verdade, porque uma faleceu nenenzinha ainda, mas [foram] seis filhas mulheres e as criou no interior de São Paulo.
Era um homem que tinha uma cabeça um pouco diferente da cabeça dos homens da época. Ele trabalhava como eletricista, trabalhou com um monte de coisa, na verdade, e era casado com a minha avó, que era a mais doce que eu já conheci, que dizia que gostava muito de mim porque se identificava muito comigo, porque ela também era moleca quando era criança, então eu levo isso no peito com muito carinho.
Era uma relação muito legal, com relação aos meus avós. Eles sempre tiveram muito amor, então minha mãe foi criada nesse ambiente em que todo mundo se amava, todo mundo se cuidava muito. Eles tinham pouquíssimo dinheiro, então para se sustentar uma ajudava a outra. As irmãs mais velhas foram se formando, uma virou professora, aí começou a ajudar a pagar a educação da outra, até que todas conseguissem de fato estudar, então já é uma família que vem com essa ideia de que a educação era fundamental, em um ar, de novo, de muito, muito respeito e muito amor, o que diz muito sobre a minha mãe.
Minha mãe é uma pessoa que tem dificuldade às vezes de entender algumas coisas que são relacionadas às novidades do mundo. Ela não é uma pessoa idosa nem nada do tipo, minha mãe tem 65 anos, oficialmente é idosa, mas se você a vir você não dá 45 para ela; ela é uma pessoa super jovem, no jeito, na aparência também. Ela tem algumas dificuldades de entender coisas novas, mas não tem medo de aprender sobre essas coisas, então por mais que no primeiro momento ela estranhe, depois ela vai atrás de entender. Isso é muito bonito de ver, é uma coisa que eu respeito muito e que admiro muito também.
Ela protege os filhos de um jeito, menino, que você não tem ideia. Protege de todas as formas possíveis e imagináveis. Às vezes acerta, às vezes erra, mas tá sempre tentando proteger. Nunca é uma coisa que a gente sente acuado de um jeito ruim,
sabe? Às vezes a gente não curte muito o jeitinho dela de fazer as coisas e a gente chega, senta, conversa. Esse diálogo sempre existiu, ele existe, isso é muito bonito de ver. É uma grande amiga, minha mãe é uma grande amiga pra mim.
(05:34) Agora eu queria que você fizesse o mesmo em relação ao seu pai e o lado paterno da família. O que você sabe?
R - Meu pai também vem de uma família grande, ele também tem cinco irmãos - não cinco irmãos homens, ele tem duas irmãs e os outros são homens. Ele é o homem mais velho; tem uma irmã mais velha do que ele, vem ele logo na sequência. Ele vem de uma família que também tinha muito amor, mas não era tão bem estruturada assim. Meus avós tiveram diversas questões. A forma como o meu pai foi criado era diferente, meu avô tinha uma coisa bem mais machista na forma de lidar com as coisas.
Meu pai é um homem do fim dos anos 50, 58, então ele aprendeu várias coisas sobre o que é ser um homem, qual a função de um homem. São coisas que ao longo dos últimos anos, principalmente, ele vem desconstruindo, mas que foram bem difíceis. E ele vem de uma família que era um pouco mais livre em muitos sentidos, porque quando eu falo da família da minha mãe ser muito cheia de amor, também é uma coisa muito pautada em religião católica, uma coisa um pouco mais quadradinha, e do meu pai não tinha isso, não tinha essa coisa mais quadradinha. Eles tinham mais liberdade de viver coisas diferentes, de explorar o mundo de forma diferente, mas também não era uma coisa muito estruturada.
Quando o meu pai se casou com a minha mãe, ele começou a colher da família dela as relações e começou a construir na família dele algo bastante parecido. Hoje, por exemplo, a festa de Natal é feita do lado da família da minha mãe, e a festa de Ano Novo é feita do lado da família do meu pai; são festas semelhantes e junta todo mundo, todo mundo é muito próximo, então acabou que no fim das contas uma família meio que ajudou a estruturar a outra de certa maneira, o que é muito legal.
Meu pai era um cara muito fechado quando a gente era criança. Muito, muito fechado, muito bravo. Ele era o tio bravo, sabe? Todo mundo tem um tio bravo. Era o meu pai, ele era o tio bravo. Ele mudou o jeito dele mais ou menos quando eu tinha uns dezesseis anos; costumo falar que ele caiu da cama e bateu a cabeça num belo dia de sol, e aí a coisa mudou, sabe? Tipo, “virei um fofo de repente”, mas na verdade eu acho que não, acho que em determinado momento deve ter caído a ficha de que para conseguir respeito das pessoas ele não precisava ser mala, ele podia simplesmente ser uma pessoa amorosa e elas iam respeitar muito mais, respeitar pelo que ele era e não pelo medo dele. A coisa mudou, e aí a relação com os filhos ficou muito melhor, mas muito melhor, em um nível absurdo.
Ele é um cara que fala pouco, mas quando fala também fala coisas... Ele não sabe entrar na conversa, às vezes ele joga um assunto assim… Ele não sabe como lidar, ele joga o assunto e fica meio sem saber (risos) como lidar. Ele fica tentando lidar com a coisa assim, mas quando ele quer conversar mesmo, ele senta e conversa, ele tenta, e isso é legal demais de ver também. É um cara extremamente amoroso, eu sou super filhinho do papai, super, mimado para caramba! Sempre fui mimado por ele, então é isso, eu sou de uma família de margarina, nasci em uma família de margarina.
É tão raro hoje em dia, né?
(09:19) P/1 - Você sabe como os seus pais se conheceram, Marun?
R – Sei (risos). É o seguinte, os meus pais... Meu pai estudou com o meu tio... De novo, vamos lá, só estruturar as coisas. Minha mãe tem uma irmã que se chama Silvana. Minha tia Silvana fazia faculdade de engenharia em Lins, cidade que tem ali perto de Clementina. Na Faculdade de Engenharia de Lins minha tia conheceu o futuro marido dela, meu tio Silvio, ele fazia faculdade com ela. Um dos colegas do meu tio Silvio era meu pai, que fazia Engenharia na Escola de Engenharia de Lins, aí por um acaso do destino, eu não sei como aconteceu, o meu pai começou a namorar a prima da minha mãe, uma prima; não sei mesmo como isso rolou, tá? De onde eles se conheceram, o que foi…
Meu pai estava namorando essa prima aí, só que minha tia meio que achava… Pelo que eu entendi, ela achava que não era uma coisa que tinha muito futuro, sei lá. Não sei por que minha tia resolveu tentar fazer uma junção da minha mãe, que estava solteira, com o meu pai que namorava a prima. Enfim, eles foram viajar, foram para uma praia. Minha tia ia para a praia no feriado, falou para minha mãe que ia uma galera; eu não sei se ia mesmo, mas de qualquer forma, se ia, a galera desistiu e minha tia não avisou a minha mãe, e aí ela foi com a “galera”. A galera era o meu pai, (risos) e lá eles se conheceram de fato e se envolveram.
Meu pai terminou o relacionamento, que segundo ele não fazia o menor sentido, e aí eles ficaram juntos desde então. No casamento, a prima não foi.
Eu contando as histórias da família… Minha mãe vai me matar (risos).
(11:20) P/1 - Você tem alguma história da sua infância que é inesquecível para você? Que você se lembra até hoje?
R - Eu lembro da minha infância inteira, bicho. Eu lembro de coisas assim, muito boas no geral, muito ruins outras, mas eu tive uma infância muito feliz, então eu nem sei te responder essa pergunta. Vivi muita coisa…
[Na] minha infância eu fui criado… Imagina com a quantidade de tios que eu tenho? Imagina a quantidade de primos que eu tenho? São onze de um lado e quinze do outro - não precisa imaginar, eu estou contando, é muito primo! A gente cresceu… Todo mundo da mesma idade, praticamente.
Uma imagem feliz que eu tenho é a gente na cada da minha avó materna, vó Zefina, brincando no quintal, subindo na jabuticabeira; os primos todos lá, enchendo o caneco de jabuticaba até ficar entupido e não conseguir usar mais o banheiro. Sempre assim, todo verão - todo verão, nada, a gente ia a cada dois meses para lá. Hoje que é mais raro, que vai duas vezes por ano, mas ia muito, então era fim de ano, férias… Putz, era muito bom. Acho que no geral, [são] as lembranças com os meus primos, que foram criados como irmãos, então são muitas (risos).
(12:50) P/1 - E do que você mais gostava de brincar quando você era criança?
R - Futebol. Sempre gostei de brincar de futebol, de inventar história, de teatro, de jogar qualquer coisa em geral. Sempre fui dos esportes, gostava muito. Queimada eu adorava, nossa! Gente, eu gosto de brincar até hoje.
Eu tenho coleção de pião (risos), eu tenho real oficial, tenho uma coleção de pião. Todas essas brincadeiras mais antigas, gostava muito.
Eu nunca fui dos videogames, sabe? Até tive acesso nos anos 90, quando era uma puta novidade ainda, gostava, mas nunca fui tipo: "Nossa, que coisa impressionante!” Gostava mesmo de brincar, rolar no chão, essas coisas.
(13:48) P/1 - E tinha alguma comida predileta da sua infância que até hoje você gosta?
R - Tem. O creme de milho da minha mãe. Hum, rapaz, o creme de milho da minha mãe é uma loucura. Pra você ter uma noção eles fazem no fim do ano, na virada; fazem leitoa assada e o creme de milho. O creme de milho eles fazem só por minha causa, né? (risos) Aí todo mundo vai e pega. Super combina leitoa com creme de milho. (risos) Eu pego um pedaço de leitoa com creme de milho, aí eu repito creme de milho com um pedacinho de leitoa, aí depois eu largo mão e saio repetindo o creme de milho mesmo.
Eu sei que parece uma coisa super simples, mas é tão bom, é tão bom que não tem… É isso, é o creme de milho da minha mãe, muito específico.
(14:33) P/1 - Você se lembra da casa onde você passou a sua infância?
R - Eu passei a minha infância… A primeira infância, até os três anos, eu não me lembro. Foi em Clementina mesmo. A gente morou em Clementina até eu ter três anos. Nesses três anos minha mãe teve três filhos, e de lá a gente foi para Itatiba. Em Itatiba eu passei até os meus seis ou oito anos, acho que oito anos, numa casinha no bairro.
Era uma rua sem saída e não dava muito para brincar. Eu brincava na rua, mas não dava muito para brincar na rua, porque Itatiba é uma cidade que tem tanto morro e era no alto do morro, então não dava, por exemplo, para brincar de bola, porque ia morrer correndo atrás da bola toda hora que a bola caía, descia.
Eu lembro de fazer amizade com vizinho, um senhorzinho que estava construindo a casa do lado, então a gente ficava brincando na construção. Olha que seguro! A gente ficava brincando na construção do cara, para cima e para baixo. [Tinha] uns ferros, areia… A gente ficava lá, olha que loucura!
Foi um período bem legal, muito bom. Mas também era o que eu considero a primeira infância. Eu lembro pouco nesse sentido. Lembro da casa certinho, tenho as imagens,
mas fui viver mesmo em uma outra casa em Itatiba que a gente foi. Era numa rua muito movimentada, mas ela tinha um jardim enorme, tinha dois pinheirões e um coqueiro. Minha casa era grande e era alugada, não tinha nada, nada combinava com nada, dos azulejos com o piso. (risos) Eu me lembro do desenho, só Jesus amado, quem que teve essa ideia horrorosa? Mas era uma casa enorme, e aí dava para brincar para caramba.
Brincava na varanda, ficava subindo nas coisas. Não subia nas árvores, porque os pinheiros eram realmente gigantescos e é pinheiro, é difícil de subir, mas todo o resto, nossa! Brincava na casa inteira, para cima e para baixo, então eu lembro bem dessa casa.
Nessa casa meus pais ficaram até 2006. Eu já não era mais criança, já estava no primeiro ano de faculdade. Então foi isso, essas três casas que a gente morou.
(16:52) P/1 - E a sua relação com os seus irmãos? Vocês brincavam muito juntos ou brigavam juntos, como era?
R - As duas coisas, né? A gente tinha basicamente a mesma idade. Eu, para o meu irmão do meio, são um ano e oito meses de diferença; do meu irmão do meio para o outro é um ano e quatro [meses], então a gente cresceu muito com a mesma idade. Brigava para caramba, brincava o tempo todo, brigava brincando e brincava brigando, era isso.
Na hora que chegou na adolescência, aí foi mais chato, porque uma coisa é eu ter quinze anos, o outro ter doze e o outro ter onze, aí fica difícil, sabe? Eles querem sair juntos, aí eu queria… Esse tipo de coisa, bem adolescente, mas tirando isso foi ótimo.
Passada essa fase de adolescência foi melhor ainda, porque hoje eu tenho uma amizade com os dois que olha, só por Deus mesmo! É muito legal, é muito bom!
Eu lembro quando fui comprar meu apartamento - fui comprar com “paitrocínio”, né, então tinha todo um esquema de comprar e aí eu pago para ele como se fosse aluguel, essas coisas. Eu lembro do cara que foi vender, ele falou assim: “Mas vai ficar só no nome? Você tem irmãos?” Eu falei: “Tenho.” “É melhor deixar muito claro então que você está colocando no nome desse filho, porque depois acontece alguma coisa com o senhor, Deus me livre! Vai virar uma briga na justiça”. Eu fiquei imaginando aquilo e falei: "Gente, eu não consigo imaginar nenhum cenário em que isso seria uma questão para mim e para os meus irmãos”. Então é uma relação muito boa, principalmente depois de adultos.
(18:42) P/1 - Avançando um pouquinho, eu queria que você comentasse um pouco sobre as suas primeiras… As lembranças que você tem de ir para a escola.
R - De ir para a escola… A primeira vez que eu fui para a escola era uma escola que se chamava Brinquelândia. Eu lembro de pouca coisa, tenho imagens do jardim e só. Aí eu fui para uma outra, que era a escola… Aí eu já lembro do cheiro, o cheiro da cantina, que é um cheiro muito específico, eu não consigo definir. Eu senti de novo recentemente, quando entrei em uma escola infantil e tinha aquele cheiro de comida, sabe? Uma coisa muito, muito específica; minha memória olfativa é muito forte.
Lembro da professora. Eu tenho uma lembrança que não é minha, que é da minha mãe. Eu era muito quieto e a professora achou estranho, ela achou que tinha alguma coisa errada, porque eu não falava nada, não respondia nada, ficava quieto. Aí ela chamou a minha mãe e perguntou se estava tudo bem em casa, se tinha questões, se eu apanhava em casa. Minha mãe falou: “Não, pelo amor de Deus!” E foi lá falar comigo, perguntou assim: “Porque você não está falando nada na escola?” Eu respondi: “A professora falou que era para ficar quieto, não era para dar um pio, aí eu não dei um pio”. (risos) Eu era muito obediente quando eu era criança, depois não mais (risos).
Nessa escola eu conheci um menininho, foi o primeiro menininho que eu me apaixonei. Fui para o SESI, no pré, com cinco anos de idade, aí eu já lembro mais. Lembro de aprender a escrever, a ler, na verdade; com cinco anos de idade comecei a entender as
letras todas. Fiquei no SESI até a oitava série, que hoje é o nono ano, então ali eu desenvolvi toda a parte da infância, com os amigos, com tudo.
Fui um nerdzinho que sentava na frente da cadeira até a quinta série. Na quinta série, uma professora teve uma brilhante ideia, de trocar e colocar a galera do fundão para a frente e, consequentemente, a gente para trás. Eu, que fui para trás, me apaixonei pela parte do fundão e aí a coisa mudou completamente. Era tipo nerd, notas máximas, pessoa super… Não é que eu deixei de ser, mas na quinta série eu fiquei de recuperação em matemática, por exemplo, e aí eu comecei a ver que o meu conhecimento de exatas era bem ruinzinho. Foi uma coisa que eu fui levando ao longo da vida com alguma dificuldade. Mas sempre fui um bom aluno.
Aprendi a falar, fui desenvolvendo essa parte. Antes eu não falava, eu ficava quieto, então fui descobrindo que na real eu tenho uma facilidade de comunicação muito grande ali, a partir daquele momento que ela, sem querer, querendo resolver o problema do fundão, acabou mandando o nerd para o fundão (risos) e arrumou outro problema.
(21:52) P/1 - Tinha alguma matéria ou algum professor que te marcou por algum motivo ou algo que você gostasse mais de estudar? Já sei que não são exatas, né?
R - Não, pelo amor de Deus! Deus me livre! Deus me livre, exatas! Isso que a gente nem está falando de colegial ainda, né, de ensino médio, socorro, química! Mano do céu!
Matérias que eu gostava… Eu sempre gostei muito de estudar português, muito, muito mesmo. Não gramática, eu costumo brincar que o meu irmão do meio é todo exato, e eu sou o oposto. O André, ele é nerd para caramba em todas as matérias, só que ele é nerd de uma forma exata, então [se] ele vai bem em português, é gramática; não pede para ele interpretar um texto. [Se] ele vai bem em geografia, é física, não pergunta de geopolítica que ele não sabe. O meu é ao contrário, entendeu? Eu não sei nada de gramática - quer dizer, sei porque eu tenho que trabalhar com isso, mas gramática é sempre um bagulho que eu fico olhando e: “Aí, o que é a regra mesmo?” E vai, e olha e checa, sabe essas coisas? Mas interpretação de texto, leitura, [sim], sempre li pra caramba, gostava pra caramba de ler e isso acho que foi fundamental.
E Educação Física. Quando eu estava na sexta série eu decidi que eu ia estudar Educação Física na faculdade. Não deu certo por outras questões, depois, mas eu tinha decidido isso. Era uma coisa que eu gostava muito de fazer - a interação social, a coisa toda, então eram essas as duas matérias que eu gostava mais.
E professores? Eu tive algumas. Tive uma professora de ciências no SESI, se chamava Janete. Foi a primeira professora que falava abertamente sobre feminismo, discutia educação sexual, sabe? Na sétima, oitava série isso, e fez toda a diferença, porque nossa! No SESI de Itatiba os professores estavam lá fazia um século, sabe? Então era aquela galera que era muito mais antiga na forma de educar. Tinham muito conhecimento, ensinavam muitas coisas, eram muito bons professores em sua maioria, não estou… Em sua maioria eram bons professores, só que tinha aquela coisa, escola tradicionalíssima! O cara falando na frente, os alunos na carteira, ninguém pode olhar para o lado. Eles tiravam o boné das pessoas na hora que elas entravam, porque era uma falta de respeito entrar com chapéu na escola, sabe essas coisas? É disso que eu estou falando. Era muito tradicional.
Aprendi a marchar, na aula de educação física tive aula de marcha, que por ironia do destino eu estou usando na peça que eu faço agora, porque as coisas, aparentemente… A gente nunca desperdiça nada do que aprende, né? Então eu aprendi a marchar, era uma escola que ensinava até isso.
Tinha Estudos Sociais, tinha um monte de coisas assim, que eu estava vindo… Eu comecei a estudar no SESI em 94, mas tinha muita coisa ainda que vinha dessa coisa do fim da ditadura militar, então é interessante pensar nisso. Aí veio essa professora, que era uma professora jovem, que sabia falar sobre sexo, que sabia falar sobre feminismo, que sabe discutir as coisas. Apesar de ser uma professora de Ciências, que era uma área que nunca me chamou muito… Gosto, mas nunca quis estudar nada relacionado a Ciências. Ela foi uma professora que me marcou bastante nesse primeiro momento de escola.
(25:22) P/1 - Você tinha falado sobre ler, que você sempre gostou de ler. Você se lembra de algum livro dessa época, que você leu e guarda na memória até hoje?
R - Sim, dois. O menino do Dedo Verde, não sei se você já leu. É um livro infantil lindíssimo! De um menino que mora em uma cidade que se chama Mirapólvora, a cidade tem uma fábrica de armas e ele… Eu acho que o pai dele, se eu não me engano - faz tempo que eu li, não muito porque eu sou jovem, mas faz tempo que eu li. Tem uma coisa do pai ser o dono da fábrica e esse menino, ele tem… Tipo o Midas com o toque de ouro. Ele tem um dedo verde, então onde ele encosta vira planta, as plantas crescem e aí ele consegue transformar a cidade em Miraflores. É lindo esse livro, é lindo! O Menino do Dedo Verde.
E o outro, que é O Meu Pé de Laranja Lima, que eu lembro que eu li criança de tudo. Achei legal, aí dei para a minha irmã - tenho uma irmã também, falaremos sobre ela. Eu li para a minha irmã, dei para a minha irmã. Ela chorava horrores. Eu falei: “Ai, que frescura! Tá chorando por que, gente? É cada uma!”
E aí, acho que uns anos, uns três anos depois dela ter lido, eu peguei para ler e acho que é isso, existe uma percepção muito diferente quando a gente perde alguém e quando a gente não perdeu ninguém ainda, o que é a noção de morte, o que não é a noção de morte. Eu já tinha perdido alguém, aí a hora que eu li, nossa! Eu chorei tanto, eu chorava horrores! (risos) Não parei de chorar por muito tempo e me marcou muito nesse sentido, também.
É um livro lindíssimo, em que um menino extremamente pobre acaba conhecendo um cara muito ranzinza, um português muito ranzinza. Ele descobre uma coisa de carinho nesse homem, esse homem descobre uma coisa de carinho nele. Eles se tornam amigos, enfim, só que ele é muito mais velho, o português; o português acaba falecendo, então ver essa coisa da perda, nossa senhora! Que dor! Chega a dar um negocinho.
(27:46) P/1 - Nessa época, você disse que pensava em fazer Educação Física na faculdade. Isso foi mudando quando você entrou no ensino médio?
R - Não, continuou sendo o meu objetivo até o segundo colegial. Quando eu descobri… Primeiro, tinha um acordo com os meus pais desde o início, que eles pagariam o colegial, mas não pagariam a faculdade, então a gente teria que se virar. Segundo eles, inclusive, eles pagariam até um ano de cursinho, não seriam dois, e a gente teria que passar na escola pública, colégio público. E aí eu fui estudar sobre as coisas, sobre o curso que eu queria fazer, e descobri que em todas as faculdades públicas, para se formar em Educação Física, você tinha que ter aula de anatomia com um corpo de verdade, e aí eu não consegui. A ideia de mexer com corpos me bloqueou completamente a possibilidade de estudar Educação Física.
Eu não sei se hoje isso seria uma questão. Acho que não, sinceramente, não tenho nem certeza, mas acho que não. Na época, isso me deu uma coisa assim, do tipo: “Não! De jeito nenhum!” Eu tinha uma questão muito séria com a morte, eu demorei muito para aprender a lidar, e até hoje eu não sei lidar muito bem, mas aprendi um pouquinho a lidar com ela, sabe? Então a ideia de mexer com o que já foi um ser humano me cortou essa ideia.
Aí eu me vi no segundo colegial, depois de… Desde a sexta série, então dos meus doze? [Dos] onze anos até no colegial, com dezesseis, eu tinha esse plano, e de repente eu não tinha mais plano nenhum. Eu falei: “Nossa! E agora? Agora ferrou, né, galera? Agora já era!”
Eu tenho uma tia, Sirlene, [que] tem uma empresa que chama Vox Mundi - tinha,
vendeu, mas ela falou assim: “Você sempre escreveu bem. Faz letras, se especializa em tradução e talvez você venha trabalhar com a gente”. “É um plano, já é alguma coisa.” Porque eu não queria dar aula, eu nunca me achei capaz de dar aula, por nada além disso… Imagina você enfrentando aqueles alunos que gostam muito de provocar professor, que gostam de fazer perguntas que a pessoa não vai saber responder? Ai, eu não tenho saco para essas coisas, aí eu falei: “Não, não vou.” Letras não era uma possibilidade, porque eu só pensava na possibilidade de dar aula depois, então na hora que ela falou desse plano eu falei: “É um bom plano, é um plano legal, vamos para isso!”.
Olhando os manuais… Eu prestei Letras na USP, prestei Letras na Unicamp e prestei… Eu estava olhando os catálogos da Unesp e da UFSCar. Da Unesp tinha Letras, e na hora que eu virei a página tinha Letras - Tradutor. Eu falei: “Olha só, gente, existe o curso de tradução”. Em São José do Rio Preto, que era onde morava a minha avó paterna. “Parece que é feito para mim.” E aí eu fui, prestei e de todos eu só passei na Unesp, na verdade, o que é interessante, porque eu tinha certeza… Não, tinha 32 vagas, eu passei na Unesp. Na USP tinha 1000… oitocentos vagas, eu não passei, fiquei em milésimo segundo; por mais que rodasse não ia passar a lista, mas na Unesp passei, aí eu fui estudar o curso, que se chama Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor. Olha o tamanho desse nome! Foi isso, foi assim que eu fui parar na produção.
(31:25) P/1 - E a partir do momento em que você entra na faculdade, como foi o impacto disso para você, porque é outra coisa, né? Não é mais o ensino médio, as pessoas são diferentes, o curso vai ter um monte de matérias que você não estudou antes. Como é que você se sentiu na primeira semana, o impacto que teve isso em você?
R - O impacto foi gigantesco, por vários motivos. Primeiro, não existiam mais exatas na minha vida. Olha que delícia, cara! (risos) Não tem mais aula de matemática, que legal! Segundo ponto: eu saí da casa dos meus pais. Tinha dezessete anos e saí, em um primeiro momento, para morar com a minha avó e com o meu tio. Mas mesmo assim foi muito diferente, porque minha avó não tinha essa coisa que os meus pais tinham.
Eu lembro que saí a primeira vez para ir em um bar com uns amigos; eu estava lá fazia duas semanas, nem isso, e aí eu falei assim: “Vó, eu vou sair”. Já com todo o discurso pronto para falar, eu falei assim: “Vó, eu vou sair hoje”. Ela falou: “Tá, leva a chave”. Eu fiquei… Aí eu falei assim: “Eu vou com tal pessoa, tal pessoa, tal pessoa. A pessoa está de carro, mas não vai beber porque está de carro, tá? Então vai me trazer de volta, a ideia é voltar até tal hora porque eu tenho prova amanhã, então não vai… Eu tenho aula amanhã cedo, não se preocupe que não vai ter problema, tá?”. Aí ela olhou para mim e: “Tá, leva a chave”.
Ela não tinha essa coisa que os meus pais tinham: “Não, mas como assim? Você vai sair com quem? Que horas você volta? Onde vocês vão? Quem está dirigindo? Não vai beber, você não tem idade para beber!” Não tinha isso, não tinha de jeito nenhum, então já mudou muito a minha noção de liberdade, das coisas. Eles me deram uma chave, eu não tinha a chave da casa dos meus pais; uma vez, aliás, meu pai me sacaneou - essa história eu vou contar aqui para ficar registrado, para ele, se algum dia vir essa entrevista, ele saber. Ele virou para mim um dia, pegou a chave de casa e falou assim: “Isso aqui a gente só entrega para quem tem muita responsabilidade, tá?”. Eu falei: “Tá bom”. Ele: “Por isso você ainda não vai receber”. Guardou e foi embora, é mole? Na maior cara de pau, fazia só para me sacanear.
Eu zoei com ele uma vez, porque imagina, a gente não tinha nem grana para isso, nem a possibilidade de ter grana para isso. Eu falei assim: “Se eu passar na faculdade pública você me dá um carro?”. Bem coisa de madame, né? Era zoeira mesmo. Ele falou assim: “Meu bem, se você passar em uma faculdade pública você vai estudar, porque senão, nem isso”. E era isso, sabe? Essa era a minha relação com os meus pais.
Mudar para Rio Preto mudou tudo. Fiquei dois anos com a minha avó, depois eu fui para uma república, fui morar com outras duas meninas maravilhosas, mais perto da faculdade, porque minha avó morava do outro lado da cidade. Rio Preto é uma cidade grande, quente para um diabo. Que cidade quente é aquela, gente? A média é de trinta graus no ano - média, imagina? Tem dias que bate quarenta graus, e quando faz frio é tipo 25 graus, sabe essas coisas?
Eu tinha liberdade para fazer tudo, e aí comecei a explorar coisas de fato, conhecer pessoas diferentes. Eu não conhecia nenhuma pessoa homossexual até ir para lá, olha só! Descobri depois que, na verdade, o meu tio era uma pessoa homossexual, e que o amigo dele, na verdade, era o marido dele. A gente não tinha essa noção, em Itatiba não existia homossexualidade, sabe cidade do interior? Hoje, acho que faz uns três anos [que] teve a primeira parada LGBT.
Eu ampliei a minha visão de mundo de um jeito muito grande e muito rápido. Gostei muito disso e nunca mais quis voltar. Meus pais também não queriam que eu voltasse; apesar de serem muito protetores, eles sempre incentivaram que a gente saísse de casa, os três. Sempre incentivaram muito, muito mesmo.
Eu falo os três porque eu tenho uma irmã, tenho uma irmã mais velha, que é a Sandra. Na verdade, a Sandra, ela era… Quando a gente nasceu em Clementina, ela era babá. A Sandra tinha doze anos quando eu nasci, filha de… Dona Natalina e o seu China, que era gente boa também, mas conheci pouco, conversei pouco com ele; dona Natalina está viva ainda. Eles tinham onze filhos, eu acho, contando com a Sandra. Naquela época, trabalhava-se desde muito criança, e aí a Sandra foi trabalhar como babá lá para a gente.
Quando os meus pais mudaram para Itatiba, eles viram aquela situação toda lá e perguntaram para os pais dela se tudo bem ela ir junto, porque ela não ia mais trabalhar, mas ela ia estudar. Levaram ela para estudar e ela não trabalhou mesmo mais não, só estudou lá e virou nossa irmã mesmo, a ponto de brigar por causa de lavar a louça, brigava por causa de arrumar a cama, enfim… E ela é mãe da minha sobrinha, que é a coisa mais gostosa desse mundo. A Sandra acabou fazendo é… Como fala? Magistério, na época ainda existia o magistério. Ela fez o magistério, começou a dar aulas como professora substituta, e aí depois de um tempo ela conseguiu se organizar para fazer faculdade de Pedagogia e é uma professora sensacional de criança!
Tem um metro e cinquenta e seis, a bicha é “braba”, é um metro e cinquenta e seis de muita potência ali (risos), maravilhosa! E mora lá em Itatiba. Na verdade, nós três já tínhamos saído e ela ainda estava lá, com meus pais. Depois que ela casou (risos), então ela acabou… Foi a que ficou mais tempo lá, porque ela foi fazer faculdade em Itatiba mesmo. Ela não fez pública, quis fazer particular e trabalhou para pagar a particular, que era o combinado - se quisesse fazer faculdade particular, beleza, contanto que pagasse. Era isso (risos). Então acho que é isso, acho que eu falei.
(37:43) P/1 - Continuando nessa linha da faculdade, o que mudou nos seus gostos? O que mudou, por exemplo, no tipo de música que você gostava de ouvir? Ou foi aí que você começou a ter contato com o teatro? Me conta das duas atividades fora da faculdade. O que você gostava de fazer?
R - Contato com o teatro eu tive [quando] criança. Com nove anos de idade eu assisti uma peça aqui em São Paulo, se chama Buster, O Enigma do Minotauro. Eu não lembro muito da peça, mas eu lembro da sensação que ela me causou e eu lembro de olhar e falar que eu queria fazer aquilo com as pessoas, queria causar aquilo nas pessoas, então…
Eu não pensei em fazer faculdade de teatro, porque mesmo com nove anos… Acho que aqui, desde criança, você aprende o quanto é impossível viver de teatro no Brasil, não é? É muito difícil, essa que é a realidade, então a minha ideia era começar a pagar as contas, depois voltar, sabe? Depois focar no teatro. E foi o que eu fiz, então não foi na faculdade que eu tive contato com isso.
Na faculdade, os meus gostos musicais não mudaram muito, não, vou te falar, porque é difícil, o meu pai é muito chato com música, então ele não deixava a gente ouvir nada que não fosse os gostos dele, que por sorte são bons, eu acho. Gosto é relativo, né? Mas é MPB em geral, samba, essas coisas. Em Rio Preto só se ouve sertanejo e pagode e aí ou você se acostuma a ouvir sertanejo, ou você fica irritado em todas as festas, então eu acostumei, mas não gostava não. (risos) Continuo não gostando.
Eu tenho o que eu chamo de dom e maldição ao mesmo tempo, que é a capacidade absurda de guardar músicas na cabeça, principalmente letras de músicas que eu detesto, então todas as músicas que rolavam de 2006 a 2010 no cenário sertanejo, você começa a cantar, eu vou saber cantar. É irritante, mas é isso.
Na questão de música, não mudou muito, não. Eu acho que eu gostava de sair para tomar um sorvete, obviamente de sair para tomar cerveja. Era muito quente, então tudo relacionado a coisas que aliviam o calor eu gostava muito, sabe? A gente fazia churrasco para caramba, lembro que não tinha grana para comprar carne, então juntava dez reais de cada um, dez pessoas, comprava dez reais de asinha de frango pra dar um cheiro na churrasqueira e o resto era cerveja, entendeu? E era isso, bem universitário, assim mesmo.
A gente foi para muito Interunesp, que é a junção… Como fala? Quando tem aqueles jogos universitários, que ninguém vai para jogar. Eu ia para jogar, jogava, brincava, até ia nas festas, mas sempre achei meio “nhem-nhem”, sabe? Eu não gosto de balada, essas coisas.
Comecei a ter vivências com pessoas não-heteros, ainda só com gente cis, na época, mas não hetero, então isso me abriu um outro caminho também, uma outra visão nesse sentido. E aí comecei, ia para as baladas GLS - eu ia para as baladas LGBT’s, né? Denunciei a idade! Ia para balada LGBT e conheci gente desse meio muito bem resolvida consigo. Isso mudou muito também, porque antes eu tinha aquela coisa do estigma do: “Ah, o gay sofre”, sabe? “O gay, ele está sempre correndo risco”. Era o medo que as pessoas punham.
Eu nunca tive [ideias do] tipo: “Não, a pessoa está errada de gostar de homem”. Não era preconceituoso nesse sentido, jamais fui, mas era essa coisa do tipo, “Nossa!” Eu descobri que um amigo meu era gay, a minha preocupação era: “Meu Deus! Será que ele está bem? Ele sabe disso faz tempo? Ele acabou de descobrir? Ele corre algum risco? Ele já apanhou?” Sabe essas coisas?
Descobri que, na verdade, a vida é muito mais tranquila. [Estou] tomando todo o cuidado do mundo para falar isso. É muito mais tranquila do que pintam, em muitos sentidos. Tem um risco absurdo, em muitos sentidos, mas varia muito de onde você está, de quem você é, da cor da sua pele, um monte de coisa que influencia nesse risco.
O que mais? Participava dos jogos todos, estava sempre lá. Eu era amigo de todos os meus professores - quase todos, tem um mala, mas os que eram legais eu era amigo de todos, sou amigo até hoje.
A faculdade, acho que foi isso, ela me trouxe amigos e mais tranquilidade nesse sentido de experienciar a minha capacidade de comunicação. Acho que foi ali que eu vi que realmente era uma coisa que eu podia usar. Usar profissionalmente? Não sei, eu nunca tenho muito isso, sabe? Eu não vou em um lugar fazer networking, eu não faço um bagulho pensando no que isso vai render para o meu trabalho; eu vou fazendo as coisas que tenho vontade de fazer, e consequentemente aprendo coisas que eu acabo usando na minha vida no trabalho, tipo marchar - aleatório, mas é, entende?
Aprendi muito na faculdade. Na faculdade eu tive a chance de pegar uma bolsa para estudar um semestre dela na Espanha, aí foi uma outra abertura de mundo, aí sim, de mundo mesmo, de entender o quanto o meu conhecimento era reduzido, a minha noção era reduzida. Nesse sentido. Sair de Clementina, que é uma cidade que tem hoje sete mil habitantes; ir para Itatiba, que tem cem mil; de Itatiba pata Rio Preto, que tem quatrocentos mil; de Rio Preto para Santiago de Compostela, na Espanha, que eu não sei quantas pessoas tem, mas é do outro lado do Atlântico, no meio da Europa, e ir para São Paulo na sequência, essa cidade gigantesca. Acho que isso é um bom resuminho do que aconteceu na minha cabeça, de abertura mesmo, e de visualização do resto todo, de como é que funciona o mundo.
E hoje em São Paulo, eu tenho plena consciência de que eu não tenho noção de muita coisa, e tem muita coisa ainda que eu preciso conhecer, sabe? E aprender. Então acho que a faculdade foi esse passo grande no sentido de ampliar, de crescimento mesmo, de noção.
(44:32) P/1 - Me conta então como foi esse semestre na Espanha. Que recordações você tem?
R - Tenho muitas. A primeira coisa: o semestre na Espanha foi um amigo meu que tinha ido, uma amiga tinha ido no semestre anterior. Eles explicaram qual era o caminho para conseguir esse esquema pela faculdade. Eu já trabalhava, então a bolsa que eles deram, na verdade, foi estudar na USC, que é a Universidade de Santiago de Compostela. Fui estudar na USC, mas eles não pagavam para isso; eu tive que pagar tudo do meu bolso, então lá eu tive que fazer duas matérias.
Era muito fácil, na real - não o sistema em si, nem pagar as coisas ganhando em real. Pagar as coisas em euro, isso era difícil para caramba, mas estudar lá e conseguir nota em duas matérias em um semestre, cara, na boa, foi muito mamão com açúcar, muito fácil.
No semestre anterior eu já aproveitei e corri com todas as matérias para terminar. A Unesp de Rio Preto não funciona por semestre, ela funciona anual, então eu fiz uma parte do ano em Santiago. Como eu só ia fazer duas matérias lá, eu fiz todo o resto do ano em um semestre, e aí foi um caos, mas terminado isso eu fui tranquilo, fui de boaça, não sabia nada.
Eu tenho alguns anjos que me levaram nesse esquema. Esse meu amigo que tinha ido um semestre antes, ele foi me buscar em Madri, porque imagina, eu nunca tinha entrado em um avião, nunca! Aí eu entrei em um avião e fiquei doze horas dentro desse avião. Tinha uma grega do meu lado, ela falou assim: “Você tem medo de avião?” Eu, “Não sei”. Ela: “Você não sabe?”. Eu: “Não sei, não tenho a menor ideia se eu tenho medo de avião”. Ela: “Ah, não olha para fora, então”. “Deixa eu ver se eu tenho medo de avião? Não, não tenho!” (risos)
Conversei pra caramba com ela. Ela me falou muito sobre o mundo, sobre as coisas, sabe? Era uma pessoa já muito viajada, então acho que isso também é uma coisa marcante da viagem. Ela é feita de encontros, encontros superaleatórios, coisas que mudam tudo.
Eu cheguei, fiz uma conexão na Suíça. Na Suíça eu já tive que trocar dinheiro; troquei
mais dinheiro do que devia, depois fui trocar de volta, porque era só uma conexão, e a moça só trocou porque ficou com dó de mim, porque ela não poderia trocar aquela quantidade, sabe? (risos) Eram moedas, ela trocou para euro, (risos) devolveu. Quase saí errado na Polícia Federal, eu não tinha ideia do que eu estava fazendo. E aí cheguei em Madri, esse meu amigo foi me buscar; ele tinha já escolhido o hostel, então me levou.
Eu fui indo assim, fui indo. Não sabia ligar o chuveiro, o chuveiro tem um jeito diferente de ligar, não tinha ideia.
Eu lembro de chegar em Compostela. Cheguei, olhei aquilo e falei: “Nossa! Olha que…” É um lugar muito diferente, a estrutura arquitetônica é outra, então você chega, você já sabe que não está no mesmo lugar, mas é um ambiente muito gostoso, desde o início. Fui morar com esse meu amigo e com mais duas moças, uma italiana e outra brasileira também, em um apartamento, então já estava tudo muito bem estruturadinho para eu chegar lá. Isso me ajudou muito, sou muito grato a essas pessoas.
Eu tinha uma noção zero de localização. É menos dois minha noção de localização; me giraram, eu não sei mais onde eu estou, e aí isso teve que se desenvolver muito rápido. Eu lembro que o Mow, que é esse meu amigo, ele me levou num dia, cheguei em casa e dormi. Imagina, muita informação, né? Aí no dia seguinte ele me levou para conhecer uma parte da cidade e no outro dia eu fui sozinho. Dei a volta no quarteirão e não sabia onde eu estava, aí comecei a falar: “Vou andar, o que pode acontecer?”. Isso eu estou falando de 2009, tinha já celular, mas era uma coisa cara para caramba para ligar para alguém. Não existia WhatsApp, então mandar mensagem de texto… Você comprava os pacotes de coisas e já vinha com a quantidade de SMS que você podia mandar! (risos) É um rolê muito… Parece que faz um século, olha que coisa louca!
Comecei a andar e abrir o olho para as coisas. Eu lembro que reparei que tinha um fotômetro. Isso é muito comum lá em Compostela, eles colocam as fotos das carinhas de todo mundo de uma turma de formação da faculdade e aí você vai andando pela faculdade e tem vários quadros com essas carinhas. Bati o olho em uma loja e vi esse carômetro, falei: “Eu já vi isso”. Meu cérebro falou: “Você já viu isso ontem”. Eu falei: “Então eu já passei aqui.” Comecei a me localizar assim, e hoje eu tenho uma noção de localização ótima. Fui desenvolvendo lá, assim, putz!
Eu já falava espanhol, mas eu aprendi muito mais lá, [com] a quantidade de gente que eu conheci. Compostela é uma cidade de peregrinos e de estudantes. Pra você ter uma noção, já ouviu falar do Rally Paris-Dakar? Já? O Rally Paris-Dakar é um rally que começa em Paris e vai até a cidade de Dakar, é um rally com nome de carro. Lá existia o “Rally Paris-Dakar”: tinha o primeiro bar, que se chamava Paris, e 36 bares depois você tinha o Dakar. Você tinha que entrar de bar em bar - 32, eu acho. Você tinha que entrar de bar em bar, tomar pelo menos uma caña de cerveja, um chopp, e ir carimbando, para você completar o “Rally Paris-Dakar”. Tentei, mas nem, não cheguei nem perto, imagina, ainda que o meu fígado fosse jovem. (risos)
Tinha isso também, eles usavam o que eles chamavam de credencial do peregrino para dar esses carimbos de bar em bar. O peregrino, quando ele está fazendo o caminho de Compostela, de cidade em cidade que ele chega ele toma um carimbo para poder ir ficando nos hostels mais baratos, nos albergues mais baratos ou de graça. Eles usavam isso também, era como se fosse uma credencial do peregrino, só que é para você ficar indo de bar em bar. Era um sacrilégio, uma coisa maravilhosa! (risos).
E [tinha] amigos, amigos que eu sabia que provavelmente a hora que terminasse aquilo eu não veria nunca mais, então foi o começo de lidar com essa ideia de morte que eu não sabia lidar. Por mais que não morressem, essa coisa do “fim, acabou”, me ajudou muito também. Desde o início eu conhecia pessoas incríveis, que eu sabia que talvez e muito provavelmente eu não veria nunca mais, e isso é foda, isso é difícil de lidar. Aprendi a lidar com isso também.
Voltei com outra cabeça e com uma capacidade de aguentar tequila absurda, basicamente foi isso que eu adquiri na Espanha. (risos)
(51:37) P/1 - Na sua volta você veio direto para São Paulo ou você ainda tinha o curso para finalizar?
R - Não, eu tinha o curso para finalizar. Eu tinha mais um ano, porque quando eu entrei na faculdade tinha que escolher o idioma que você tinha que estudar. Você tinha duas possibilidades de idioma principal e tem o idioma secundário. As possibilidades de idioma principal eram inglês e francês; de idioma secundário, espanhol ou italiano. Eu escolhi inglês e espanhol, só que eu entrei na lista de espera; não tinha mais o lugar no inglês, então me colocaram em uma turma de francês. No fim daquele primeiro ano, liberou uma vaga no inglês e eu já estava trabalhando com tradução, sabe? Ainda não [era com] tradução audiovisual, era mais tradução de texto, mas tradução de inglês. Eu não tinha interesse naquela época, não gostava da forma como eram dadas as aulas de francês, então eu voltei um ano. Entrava no segundo ano do espanhol e no primeiro ano do inglês, então naquele momento ficou determinado que eu faria cinco anos de faculdade.
A Unesp de Rio Preto - não sei se todas são assim - é muito mais parecida com o colegial do que uma USP, por exemplo, que você pode escolher matérias, selecionar matérias. Não existe isso lá. Lá você tem uma grade horária e é isso: tal horário é português, tal horário é inglês e tal horário é química, é a mesma coisa. Uma aula de inglês no primeiro ano batia com algumas aulas do segundo ano, então eu não consegui terminar em quatro anos, fiz em cinco.
Eu estava no meu quarto ano quando eu fui para a Espanha e aí voltei para fazer o último ano de faculdade mesmo. Voltei, me formei e já vim para cá. Eu me formei em 2011 e mudei aqui para São Paulo.
(53:25) P/1 - E teve algum motivo para essa mudança? Foi profissional? Foi uma escolha querer morar em São Paulo?
R - Eu fiz de tudo para não vir morar em São Paulo, eu odiava São Paulo! Eu vinha para São Paulo, só de férias e era sempre assim: um puta trânsito do cão, o cheiro do Rio Tietê, e gente para todo lado, a cidade cinza. Era tudo que eu não gostava ou o que eu achava que eu não gostava, né? Mas eu estava trabalhando desde o meu primeiro ano de faculdade para uma empresa aqui em São Paulo, e aí era natural.
Eu tentei fazer pós em outros lugares, sabe quando você tenta? Eu tentei mesmo não vir para cá, e aí vim porque não tinha jeito.
Eu era muito insistente em não gostar de São Paulo, demorou duas semanas inteiras para eu me apaixonar pela cidade, duas inteiras. Foi muito chato o começo, por quê? Porque eu sou exatamente o que essa cidade é: eu gosto do caos, eu gosto da bagunça, eu moro perto e isso faz toda a diferença. Na verdade, gostar de São Paulo é a possibilidade de morar perto de onde você trabalha. Eu não tenho carro, não preciso de um carro aqui, sabe? Isso é um puta de um privilégio, é o que faz toda diferença de fato, de gostar daqui ou não.
Poder sair daqui de vez em quando é ótimo também, mas
eu gosto de morar aqui mesmo, nesse caos, nessa bagunça, nessa variação de gente absurda, sabe? Eu acho engraçado, às vezes, quando eu vou para o interior e alguém passa com o cabelo diferente. As pessoas comentam: "Olha o cabelo daquela pessoa". Eu falo: " Meu Deus do céu! Vocês juram que ainda estão comentando esse tipo de coisa? Caramba, mano! Caramba! Precisam andar um pouquinho na Paulista, em dois minutos andando na Paulista você vai ver gente muito mais esquisita e muito mais interessante."
Acho que de certa forma eu me vi nesse povo esquisito. E aí é isso, sabe? Eu entendi que eu não sei se saio daqui não. Acho que não.
(PAUSA)
(55:38) P/1 - Retomando a nossa conversa, Marun, a gente estava falando sobre trabalho e aí eu queria que você comentasse sobre o início da sua trajetória profissional. Você se lembra do que você fez com o seu primeiro salário? Aquela coisa que você pensou assim: "Finalmente agora eu tenho grana para comprar isso aqui que eu quero".
R - Eu me lembro sim, tão bonitinho! (risos) Eu levei minha família para jantar. Eu achei, na minha inocência, que os meus 175 reais, o meu primeiro salário, daria para pagar um jantar para todo mundo. Eu levei eles para o restaurante, a gente pediu e todo mundo comeu. Na hora que eu fui no banheiro o meu pai tinha pagado a conta. (risos) Eu falei assim: "Não, mas eu que tinha convidado". Ele: "Não, você paga a sobremesa". E eu paguei a sobremesa de geral. Na hora que eu vi a conta eu falei: "Ah, tá bom". Não teria nem como. A ideia era pagar o jantar, mas eu paguei a sobremesa para a galera. (risos) Levei eles em um restaurante bom, sabe, essas coisas assim? Muito sem noção, muito sem noção das coisas. Então esse foi o meu primeiro salário, 175 reais inteiros, foi isso.
(57:00) P/1 - Você falou que durante a faculdade trabalhou como tradutor. E quando foi que surgiu o ator e dublador aí nessa história?
R - Uma coisa meio que foi complementando a outra, em alguma medida. A minha ideia era me sustentar para poder fazer o teatro, que era o que eu queria fazer desde criança - aquela coisa de hobby, meio que sim. Queria que fosse profissional, mas nunca achei que eu fosse me sustentar com teatro, então não se enquadra no hobby, mas se enquadra mais ou menos.
Comecei a trabalhar com tradução no meu primeiro ano de faculdade. No meu segundo ano de faculdade comecei a trabalhar com tradução audiovisual para dublagem na Vox, que é uma empresa audiovisual. Ainda era uma empresa pequena, ela foi crescer depois que a Álamo fechou, aí a Vox acabou absorvendo boa parte dos trabalhos da Álamo. Não lembro em que ano que foi isso, acho que em 2012, talvez um pouquinho antes disso.
Trabalhei com isso, fui me especializando em tradução para dublagem. Na hora que eu vim para São Paulo eu já tinha uns cinco anos de experiência com tradução para dublagem. Dali para frente só fui me especializando mais, conhecendo mais coisas, aprendendo mais coisas; me considero hoje um bom tradutor para dublagem, com dezesseis anos de experiência nisso.
Como eu já estava pagando as minhas contas, na hora que eu vim para São Paulo eu falei: "Agora é o momento de investir no teatro", que era o negócio que eu queria fazer. Fui estudar, fui fazer teatro na escola Macunaíma; me formei lá, amei! Eu lembro que [quando] eu fui para a primeira aula não sabia o que esperar. Eu não fiz teatro ao longo da minha vida; não fiz na adolescência, não fiz na faculdade, esperei para fazer aqui. Fiz e amei em um nível que eu não sei te explicar - sei sim, sei explicar. Eu nunca gostei de estudar nada. Por mais que eu fosse nerd, por mais que eu estudasse, por mais que eu tirasse nota, eu não gostava de estudar, e eu gostei, fui atrás daquilo, sabe? É nesse nível de gostar da coisa mesmo, de ler coisas. Enfim, eu me encontrei ali de um jeito que lá no fundo sabia que ia me encontrar, mas na real não tinha como saber, só indo mesmo.
Comecei a fazer teatro, me formei em 2014. O pessoal fala assim: "Ah, mas você fez teatro, você tirou o registro, né?” Porque a gente se forma e tira o registro de ator, o DRT que eles chamam. Na verdade, DRT significa Delegacia Regional de Trabalho, mas é o registro da delegacia, então você tem um número lá que te permite trabalhar profissionalmente como ator. Todo dublador é um ator na essência, então todo dublador tem que ter o DRT para poder trabalhar, e eu tirei o DRT - não porque queria ser dublador, eu tirei porque eu quero ser ator de teatro. E aí as pessoas me perguntaram, “É natural, né? Você está fazendo teatro para dublar? Você já trabalha na área de dublagem.” Eu falei: “Por que não? Por que não tentar?”
Eu era muito ruim. (risos) Eu era ruim dublando, num nível que eu não sei te explicar. O meu primeiro trabalho de dublagem foi um pato, eles me chamaram para dublar um patinho, e eu estava do lado do [Orlando] Viggiani, que é um cara que tem quarenta anos de experiência com dublagem. Era um vozerio, éramos eu e ele os dois patos, e eu tinha que rir igual a um pato. Quem disse que eu ria? Eu não conseguia, eu não conseguia projetar no microfone o volume, de nervoso.
É muita informação, dublagem é muita informação; é atuação também, mas ela é completamente diferente da atuação de teatro. No teatro você tem meses de construção de personagens, você estuda textos, você sabe a história inteira. Quando você vai dublar, você não sabe nada, você não viu o filme. Ninguém vê o filme, você vê as suas cenas; o diretor viu o filme e ele vai te falar o que você tem que fazer. Naquele caso era um pato, e aí você vai falar. Você tem que falar no time code, no momento que a pessoa começa realmente a falar; você tem que entrar nesse mesmo momento. Você tem que interpretar igual, tem que respirar igual. Você tem que fazer uma voz de pato, uma voz, a sua, que seja, mas fazer tudo isso, além de tudo, interpretando.
Com a quantidade de técnica que você tem que desenvolver, no começo a minha interpretação ficava em segundo plano, e é ruim. Você vai assistir e é ruim.
Demorou para eu me apaixonar pela dublagem, viu? Eu meio que fui levando nesse esquema de tipo: “Ah, é um negócio a mais aí, não é o que eu quero fazer”. Até eu encontrar um… Mandava teste, fazia teste, fazia um monte de coisa. Raramente pegava alguma coisa, aí o Wendel Bezerra - que é o cara que faz a voz do Goku, do Bob Esponja; ele tem um estúdio de dublagem aqui em São Paulo, que é o UniDub -
me pediu um registro de voz de menino. Desde o início a Cirlene, que era a dona da Vox, ela falava que eu tinha voz de menino, que eu sabia fazer voz de menino; isso era muito interessante, por que: “Como assim, né? O que é fazer voz de menino? Não sei!” Minha voz é essa, agora ela está um pouquinho diferente por causa da testosterona, mas ela está pouquíssimo diferente. Era basicamente essa mesma voz, um pouco mais aguda, e ela falou: “Não, você faz voz de menino”.
Eu fui desenvolvendo o que era voz de menino. Contratei uma fonoaudióloga para me explicar, ela me explicou uma coisa que eu achei muito interessante, bem compatível com as pessoas que eu acho interessante, que menina fala mais esticadinho, sabe? E o menino, ele fala mais duro, ele termina a frase e pontua. (risos) Se é verdade, não sei. Comecei a usar, gostaram, então assim aprendi, fui aprendendo a fazer voz de menino - uma voz confortável, uma voz… Coisas que ninguém pensa também: você faz um teste mudando tua voz, você pega o teste, e aí para fazer a voz de novo um mês depois? Você não lembra, então… Sei lá. Entendi o que que era uma voz confortável para mim, e aí quando eu passo no teste peço para ver qual era o teste, mas sempre tento manter dentro do confortável, até para não machucar a corda vocal.
O Wendel pediu um registro de voz de menino e eu mandei. Não peguei, sei lá pra quem foi que ele mandou tudo aquilo, mas eu não peguei. Demorou meses, passou,
então não foi. Meses depois eu recebi uma mensagem da Unidub - eu tinha trabalhado pouquíssimo para Unidub - marcando quatro horas de escala. Quatro horas de escala é escala pra caramba, eu falei: “Nossa!” E aí me ligaram… Ele me mandou mensagem e falou assim: “Você pegou um jogo aqui. A gente mandou o teu registro de voz, eles pegaram o jogo.” “Hum, jogo é legal, hein?” Jogo paga mais, paga valor triplicado,
então achei mais legal ainda.
Eu tinha feito um jogo em que fui um personagem sobre o qual eu não falo muito, porque na hora que eu assisti pronto eu achei ruim, que era o Horizon Zero Dawn. Eu tinha feito um personagem secundário em uma crash secundária do Horizon Zero Dawn. Primeiro que fica repetindo, tipo você grava uma vez a frase, mas no jogo fica… A minha personagem repetindo a frase, chata pra caramba, não para de repetir a frase.
Quando a gente dubla jogo não tem a imagem, você só tem o áudio. Você tem uma tela de Excel com a frase e você tem o áudio; termina de ouvir o áudio e você grava. Eu, com pouca experiência, fui gravar um negócio desse; o sync
ficou horroroso, tá fora [de sincronia].
Aí cheguei para gravar esse segundo jogo aí. Quatro horas de escala. Cheguei lá, a moça virou para mim... Tinha um cliente. O pessoal todo me conhecia como tradutor, estava começando a dublar, e aí na sala de espera o pessoal falou assim: “O que você veio fazer aí? Você está traduzindo?” Falei: “Não, eu estou dublando.” Todo mundo olhava assim, falando: “Nossa, legal!” E eu lá, todo me achando. Peguei o teste, não sabia nem o que que era, nem que voz que eu tinha mandado para o técnico, não lembrava, e aí uma moça chegou. Cliente acompanhando, vai vendo, chegou e falou assim: “Oi, tudo bem? Então, é o seguinte, Mah: a gente vai gravar League of Legends”. Eu fiz assim: “Hum!”. Sabe o que é League of Legends? Porque eu não tinha ideia… Caguei, não tinha a menor ideia, então ok, eu falei assim: “Ah legal, legal! Que bom!”. Ainda bem que eu não tinha ideia.
Pedi para me mostrarem o teste. Graças a Deus era uma voz confortável para mim. Fui gravar o personagem.
Eu não tinha realmente noção do que era, gravei as quatro horas e marcaram mais três horas na semana seguinte, então foram no total sete horas de gravação do Nunu do League of Legends. Na hora que eu saí da primeira gravação, peguei o celular e escrevi “League”; o celular completou “of Legends”. Eu falei: “Opa, parece que é importante!” Estava lá, LOL, e eu: “Nossa, LOL eu já ouvi falar.”
Liguei para o meu irmão e falei: “Toti”, meu irmão mais novo, “LOL é grande, é um jogo grande?” Ele: “Orra, tem campeonato mundial disso aí”. Eu falei: “Então, eu acho que eu fiz uma coisa importante, tenho quase certeza que isso é bem importante”. E aí foi isso.
Fiz na sexta, na segunda-feira lançaram o trailer do campeão, do Nunu. Lançaram o trailer do meu personagem e de repente eu tinha haters, de repente eu tinha fãs. Minha carreira fez assim, vupt! Quem é Mah Reis? Ninguém sabia, então obviamente eu não tinha feito nada; de repente eu estava em League of Legends? O quê? Então mudou, começou a mudar ali.
Mudou bem porque eu fui muito bem dirigido, fui dirigido por duas pessoas muito boas na direção, Marco Aurelio Campos e o Marcelinho Campos, que não são primos e nem irmãos, mas têm o mesmo sobrenome. Eles me dirigiram em dois momentos, o Marco Aurélio nessas primeiras quatro horas e o Marcelinho nas três horas seguintes, que era com a outra skin do personagem. Agora eu sei todas as palavras, skin, mandar o WE no personagem, porque depois de um tempo eu fui jogar isso. Depois eu conto direito essa história.
O meu primeiro personagem, de fato, foi o Nunu de League of Legends e com ele… Aí eu abri o meu Instagram, porque eu tinha Instagram, mas era fechado. O meu irmão falou assim: “Não, seu trouxa. Vai lá, coloca o seu Instagram aberto, usa isso como uma coisa profissional”. Comecei a usar para isso e foi muito importante, foi um negócio que realmente mudou a minha forma de ver a dublagem.
Isso foi em 2018. Comecei a dublar em 2015 e até 2018 eu não fiz nada importante, aliás, não dei muita bola para dublagem mesmo. Se for ver o que eu fazia antes era tipo: “Ah, vamos lá fazer umas pontinhas”. Fui me ambientando com o estúdio; eu já conhecia muita gente de estúdio, já conhecia os estúdios, mas dublando mesmo, não,
então em 2018 teve essa mudança de chave. Em 2019 eu comecei já a pegar umas coisinhas um pouquinho mais legais.
Em 2020 [veio a] pandemia, e ela permitiu que a gente dublasse em casa, eles permitiram que a gente criasse home studio. Tem uma diferença muito grande de você estar em um estúdio com técnico e um diretor do lado de fora do aquário - a gente chama de aquário porque parece um aquário, tem uma coisinha de vidro para eles te verem dentro do estúdio com o microfone. Você está dentro do aquário e do lado de fora tem o diretor e o técnico; ele pode fechar o microfone, então às vezes a pessoa fecha o microfone e fica conversando do lado de fora. Pode estar falando de abobrinha, você tem certeza [que] estão falando mal de você; é natural, até porque alguns falam mesmo, então eu já conhecia, sabia como funcionava. Eu já tinha visto muito diretor falando mal da galera que está dentro do aquário sem a pessoa ouvir, aí eu ficava com essa nóia na cabeça.
Só que aí veio a pandemia. Eu estou na minha casa, o técnico está na empresa ou na casa dele, o diretor está na casa dele, então são três pontos diferentes. Se essas três pessoas estão conversando, esses dois não conseguem conversar sem eu ouvir, então relaxei. Primeiro, tenho a minha casa, é calor pra caramba dentro do estúdio, então estou dublando de cueca, mais tranquilo do que isso não tem! E aí a coisa começou a avançar.
Isso se juntou ao meu entendimento pessoal de gênero, se juntou a muitas coisas que fizeram com que eu ficasse mais tranquilo com relação a um monte de coisa, sabe, então meio que as coisas caminharam juntas. O lado pessoal foi evoluindo para o lado profissional evoluir junto. A partir de 2020 eu comecei de fato a ver na dublagem o caminho que eu queria seguir, sim, e ficar bom nisso. Eu não estou bom nisso ainda não, ainda quero ficar bom nisso, quero aprender muito sobre isso ainda; acho que é o tipo de coisa que você aprende sempre, nunca está 100%, nunca está bom mesmo. Eu quero ficar muito bom nisso, vai um tempo ainda, então me mandem trabalho. Manda trabalho gente, que a gente vai praticando e vai ficando bom, olha só que coisa boa!
(01:10:51) P/1 – Você citou a pandemia, eu queria te perguntar isso. Esse período de pandemia que não acabou ainda, mas enfim, pelo menos o período mais duro da pandemia, em 2020 e 2021, como foi para a sua saúde mental? Que impacto isso teve para você?
R – Em 2020… Eu tenho a Sandra, a minha irmã, ela tem uma filha pequena, então ficou trancada na casa dela com o marido e com a filha. Tenho um irmão do meio que mora na Inglaterra com o marido, então estava na Inglaterra. Meu irmão mais novo é casado com uma médica que estava desde o início do processo na linha de frente no combate à covid, e eu? Estava aqui no meu apartamento, onde não bate sol, e os meus pais em Itatiba, aqui do lado. Eu estava com o meu namorado cearense, e a família [dele] no Ceará; os dois aqui, a gente falou assim: “Como é que a gente faz?”
O Heitor, meu irmão mais novo, falou assim: “Você sabe que você vai ter que ir para Itatiba, né? Você vai ter que ir e ficar com os pais, porque eles precisam de você. Eles precisam de alguém, não podem ficar sozinhos”. Eu lembro que eu fiquei mal, chorei horrores. Eu chorava e falava assim: “Eu estou chorando porque as minhas plantas vão morrer.” Ficava nisso, depois eu me sentia mal porque estava chorando por causa de planta, e aí o meu boy virou para mim e falou assim: “Você não está chorando por causa de planta. Você está chorando porque vai sair da sua casa, você vai voltar para o canto do seus pais, as plantas são uma parte disso”. Aí eu peguei as plantas maiores e levei, porque eu senti um lado de mim chorando por causa das plantas, sim, e aí eu levei para Itatiba.
A gente passou seis meses lá. Eles tinham visto o meu namorado uma vez e a gente foi morar com eles. Eu já não morava com eles desde os dezessete anos.
Foi bem menos traumático do que poderia ser, do que a gente esperava que seria. Nesses seis meses, nem eu e nem os meus pais saímos de dentro de casa. O Rê, que é o meu boy, é quem ia no mercado, e aí tinha todo aquele batalhão de coisa, de… Fazia compra para uma semana ou duas semanas. Chegava, a gente abria caminho, ele largava as compras do lado de fora, tirava sapato e saia correndo para o chuveiro, enquanto a gente higienizava tudo, tudo.
Tem um lado meu que ficou saudável por causa disso, dessa coisa de estar com eles ali, de ter esse contato. Era difícil trabalhar, primeiro porque o mundo estava acabando, segundo que, cara, estando de casa, não adianta. A minha mãe, ela acha que eu não estou fazendo nada; por mais que eu esteja trabalhando, ela quer que eu vá fazer alguma coisa, e aí ferrou. E aí eu olhei tudo, que todo mundo tinha que se ajudar, ajudar nas coisas na casa. Falei: “Eu vou cozinhar então, porque Deus me livre de limpar a casa”. Detesto limpar a casa, detesto! Me põe para fazer qualquer coisa, mas não me põe para limpar a casa. Então eu fui cozinhar, era responsável por cozinhar as coisas, o que é uma puta responsa, porque se tem alguém que cozinha bem nesse mundo é dona Bete, viu? Cozinha bem pra caramba a minha mãe, nossa senhora! Então eu fui ensinar uns pratos diferentes, umas coisas que eu fazia, umas coisas vegetarianas - eu não sou, mas eu adoro. Aí eu esquecia de descongelar a carne, para desespero do meu pai, então eu fazia vários pratos veganos. Eu falava: “Segunda-feira sem carne, pai.” Ele: “Hoje é quarta!”. Eu falei: “Mas na segunda você comeu carne!” (risos). Então a gente foi se divertindo assim.
Uma semana antes… Na semana que as coisas fecharam foi o ensaio, eu lembro que foi o último ensaio que eu fui na quarta-feira. Saí do ensaio e fui para casa do meu irmão, estava a minha cunhada lá e eu falei assim: “E aí, e essa pandemia?” Ela falou: “Vai parar tudo, estou te avisando que vai parar tudo, e vai parar tudo até pelo menos setembro”. Isso era março, e eu falei: “Nossa, setembro?” Ela: “Pelo menos”. Na minha cabeça, o que eu entendi? “Vai ter pandemia até setembro”. Então quando todo mundo surtou porque não voltou depois de quinze dias… Aliás, quando parou e falou: “A gente volta em quinze dias”, eu tinha certeza que não ia voltar. Por isso também eu estava chorando, porque eu falei assim: “Eu vou ficar pelo menos até setembro, pelo menos seis meses”. Na minha cabeça era isso, seis meses, sabe? Tinha um lado de mim que falava: “Com seis meses isso já se resolveu”.
Fiquei de boa até setembro. Na hora que chegou setembro e não tinha resolvido nada, aí eu comecei a ter o surto que todo mundo teve com vinte dias de covid, aí eu comecei a ficar mal. Em novembro as coisas começaram a abrir de novo, porque diminuiu o número de mortos. A gente não tinha vacina, não existia, estavam falando em desenvolvimento, só notícias terríveis, do tipo “a vacina mais rápida foi desenvolvida em cinco anos.” É muito louco falar disso agora, porque parece que faz muito tempo e ao mesmo tempo não!
Aí dezembro veio, janeiro veio… Aliás, eu não fui nem para o Natal e nem para o Ano Novo, pela primeira vez na vida. A gente fez em casa, lá na casa dos meus pais, então isso foi muito marcante. Tentamos fazer, fizemos amigo secreto à distância com os primos todos, com a família; foi legal, mas era isso, era um paliativo, sabendo que com certeza em breve estaríamos juntos de novo. Em janeiro [veio] a notícia da vacina. Chorei horrores. “Tem vacina! vai ter vacina!”
Ligaram para a minha cunhada, falando assim: “Olha, a data da sua vacina é tal”. Médica, né? “A data da sua vacina é tal, você vai tomar em fevereiro”. Falei: É isso! A gente vai se vacinar!”
Daqui a pouco passou, aí veio a segunda onda. A gente entrava no site do governo para ver quando a gente iria se vacinar, e a data da minha primeira vacina era fevereiro de 2022. Eu olhava aquilo e falava assim: “Eu não vou conseguir”. E nessa segunda onda, as pessoas que morriam não eram as velhas, era a galera da minha idade. Eu não perdi ninguém diretamente, perdi uma tia, mas eu vi gente da minha idade indo embora, muita gente e aí eu tinha certeza que eu ia morrer. Isso é muito maluco, porque não era uma coisa do tipo: “Olha, eu posso morrer.” Isso eu tinha desde o começo. Eu tinha uma preocupação maior com os meus pais, essa coisa de noção que a gente tem de que só os idosos que vão acabar levando, é menor a chance, então a gente já se exclui dessa chance, não vai acontecer com a gente.
Na hora que aconteceu isso, eu tive a certeza absoluta que eu ia morrer de covid, não sei por que fiquei com isso, e aí eu fui para um buraco difícil de sair. Tentava trabalhar, tentava fazer as coisas, mas na cabeça… Fui tentar me ocupar com outras… Caí num golpe de WhatsApp, sabe essas coisas? Você fala: “Ai, mano! Se eu tivesse com a cabeça boa não tinha caído nessas coisas”. Caí no golpe do WhatsApp e perdi uma grana, aí fiquei trabalhando para recuperar essa grana. Fiz um trampo muito legal que ainda não saiu, então não posso falar sobre ele, mas foi um trampo muito legal, e fiquei tentando ocupar a cabeça, mas a realidade é que absolutamente tudo que eu fazia era pensando assim: “Eu vou… Eu preciso fazer algumas coisas, porque isso vai acontecer. Eu vou morrer”.
Eu saía de casa com duas, três máscaras, com luva, me preparando para evitar o que eu achava que era inevitável, na verdade, e aí teve um momento… Eu morei em Compostela, como eu te falei. Quando eu fui para lá, as pessoas falaram assim: “Você vai fazer o caminho de Compostela”. Eu falei: ‘Gente, óbvio que não. São oitocentos quilômetros, quem é que anda oitocentos quilômetros? Por que alguém anda oitocentos quilômetros? Não faz o menor sentido”. E aí eu cheguei lá e eu vi. As pessoas chegavam no caminho e elas chegavam com um negócio que não tem nome, eu acho. Eu trabalho com palavras e não acho um nome para isso. Elas chegavam diferentes, tinha alguma coisa nelas que era diferente, [em] todo mundo que fazia esse caminho. Conversei com algumas; algumas eram religiosas, outras não, então não era uma coisa do tipo religião, saca?
E aí eu mudei o jeito de fazer a pergunta: o que leva alguém a andar oitocentos quilômetros? Tem que ter alguma coisa, e aí eu percebi que seria muito rico se eu fizesse o caminho e perguntasse para as pessoas que eu encontrasse no meio do caminho o que elas estão fazendo lá. “Oi, tudo bom, querido? Por que você está andando tudo isso? Conta pro tio aqui”. Sabe, esse tipo de coisa.
Decidi, naquela época, em 2009, 2010, que eu ia fazer em algum momento, mas aí a vida, né? Você vai empurrando com a barriga, fazendo as coisas e tal. No ano passado, nessa coisa da covid, eu falei: “Se eu não morrer eu vou, tomar vergonha na cara, parar de empurrar com a barriga e vou fazer o caminho que eu quero fazer, que eu falo que eu vou fazer. Daqui a pouco eu estou já mais idoso mesmo e não vou conseguir fazer, vai ser um puta de um trampo, então hoje eu estou bem, vou fazer!”
E aí veio a vacina. Em vinte de julho do ano passado tomei a primeira dose. Chorava, mano, chorei tanto a hora que a moça me vacinou… Porque ali, naquele momento, eu entendi que eu não ia morrer, sabe?
Foi ali que eu falei: “É isso, não vou morrer! Caramba, ok!” E aí passou essa sensação. Fiquei seis meses sentindo um negócio atrás aqui, sabe?
Na segunda dose tomei a Corona Vac, a segunda dose tomei em agosto, aí fiquei bem - me protegendo ainda, mas bem, um pouco mais tranquilo. Em dezembro tomei a terceira já, da Pfizer. Fui pegar covid em abril desse ano, já mais descuidado, me apresentando já em teatro. Em 2020 estava para estrear a peça quando fechou, então não entrava em teatro desde 2019. A gente estreou a peça no fim de semana; na semana [seguinte] metade do elenco estava com covid, então aí parou tudo e voltamos só na outra semana. Não perdi nem olfato e nem paladar, nem nada; fiquei descansando porque eu estava cansado, fiquei em casa. (risos) Um cansaço absurdo!
Acho que no primeiro momento teve um impacto, principalmente no teatro eu vejo isso;
eu não sabia mais como movimentar o meu corpo, era essa sensação. Fiz teatro on-line ao longo da pandemia, mas eu chegava lá e não sabia o que fazer com os braços, sabe? Isso depois da vacina que de fato passou mesmo, aí eu me joguei, voltei a ter o corpo para cena, e é isso.
Eu não acho que eu estou traumatizado para além do que seria o esperado, sabe? Não perdi ninguém próximo de verdade, não… Aguentei bem as pontas na medida do possível. É mais um ódio do governo mesmo, que agora precisa ir embora. Foi isso que me sobrou.
(01:22:58) P/1 – Eu queria retomar aquela questão que você estava falando sobre você ter avançado na carreira de dublador ao mesmo tempo que você foi entendendo também a sua sexualidade. Queria que você contasse um pouco como foi esse processo antes de você se descobrir um homem trans, não-binário, como isso foi se encaixando para você.
R – Antes, muito antes, em 2007 eu me entendi bissexual - essa bandeira linda que está aqui atrás de mim. No primeiro momento eu achei que ninguém tinha nada a ver com isso, então fui vivendo a minha vida sendo um bissexual feliz, até o momento que eu fui dar a mão para a minha namorada na época, e eu fiquei com medo. Tinha uma galera na rua olhando estranho, e eu percebi ali o que eu acho que a gente vai percebendo em todas as medidas ao longo da vida, que eu não conseguiria viver minha vida livremente se eu não lutasse por isso naquele momento, entendeu?
Eu acho que é uma coisa geral, mulheres passam por isso desde sempre, a gente aprende… Eu fui socializado como mulher, então me incluo nisso facilmente. A gente aprende desde sempre como se comportar para evitar risco, que roupa usar para sair na rua, onde você está, até que horas andar sozinha ou não andar sozinha, esse tipo de coisa. Andar com a chave na mão… A gente acha o quê? Vai fazer o que com aquela chave? Enfiar no olho da pessoa que te ataca? Eu não sei, mas ando com isso desde que eu tinha doze anos de idade, eu ando com isso na mão, com a chave na mão. A gente meio que vai se moldando nas coisas, isso é muito comum, de ir aprendendo a se moldar à sociedade.
Com a bissexualidade eu estava fazendo a mesma coisa. Falei: “Ah, não preciso fazer isso na frente das pessoas. Pode ser uma coisa mais intimista, ninguém tem nada a ver com isso”. Ninguém tem a ver com isso e eu quero andar com a minha namorada na rua, e aí? E aí? Como é que eu lido com isso? Então eu comecei, entrei para militância do movimento LGBT. Entrei mesmo e ali descobri que dentro do movimento o que existe de bifobia não está escrito, galera acha que bissexual não existe, que está em cima do muro, a pessoa ainda não entendeu o que ela quer, que é modinha, então eu já estava acostumado com a rejeição da comunidade LGBT+, isso em 2007.
Em 2016 eu descobri a existência do gênero fluido. Acho legal explicar um pouquinho antes como era para mim na infância. Eu nunca me enquadrei no que é ser mulher, mas a noção que a gente tinha de transgeneridade é que uma pessoa trans é uma pessoa que não gosta do próprio corpo e isso é uma noção tão errada, é um desserviço tão grande falar isso! Não tem a ver com o corpo, tem a ver com o que a gente é, o papel na sociedade. E não só o papel, o que a gente é, como a gente se sente. Eu não tinha nada contra o meu corpo, então pra mim a transgeneridade não era uma questão, não era uma possibilidade. Não queria ter um pênis, nunca quis ter um pênis, então se eu não quero ter um pênis eu não quero ser um menino - não é assim a lógica simplista pra caramba das coisas?
É isso, fui socializado como mulher; aquela coisa da Simone de Beauvoir que eles falam: “Não se nasce mulher, torna-se”. Aprendi a ser mulher, aprendi a como me comportar de uma forma bizarra como a gente aprende a se comportar diferente em um restaurante chique, se aprende como se portar com os talheres, qual é a postura você tem que ter na mesa, onde colocar o guardanapo no restaurante, que você não vai usar na lanchonete. Aprendi a me portar de formas diferentes em sociedade como uma mulher, porque eu vi que era essa a única possibilidade que eu tinha. Eu brincava com os moleques, eu era parte dos moleques na infância inteira, até o momento em que eles se deram conta de que eu não era um moleque. Sabe quando as pessoas começam a perceber, entram na pré-adolescência e começam a se separar? Eu não era moleque e eles me afastavam, e eu ficava lá, tentando com as meninas ter algum tipo de interesse semelhante aos delas e eu não tinha, a realidade é essa, eu sei.
Cara, já adulto, fui em um churrasco. Eu fui casado, então eu fui em um churrasco com o meu ex-marido, um churrasco hetero. Eu estou acostumado a sair para os lugares de todo mundo, os LGBT’s, e eu chego lá no churrasco hetero da empresa. Você chega, tá lá o churrasco, estão os caras na frente da churrasqueira falando daquelas coisas óbvias, estereotipadas que homens falam, “Vamos falar de carros, churrasco e futebol”. E não falam de mulher porque eu estava do lado, sabe? E aí as meninas, do lado da piscina, falando sobre cabelo e maquiagem. Uma coisa tão rasa, tão rasa que eu fiquei lá com os meninos, porque por mais idiota que fosse o assunto, pelo menos eu gosto de futebol, então eu estava conversando com eles. Aí eu percebi que eles estavam visivelmente incomodados com a minha presença ali. Parei, entendi e falei: “Ah, então tá bom!" Aí eu fui para o lado das meninas e fiquei lá conversando sobre qualquer porcaria que não me interessava em nada, para que as pessoas não se sentissem desconfortáveis. Fiz isso a vida inteira.
É igual no teatro. Como eu falei, a gente cria o personagem e esse personagem tem um passado, tem um presente, tem uma ideia de futuro. Você cria um personagem de fato, só que na hora que você termina a peça você tira a maquiagem e vai para a sua casa, entendeu? É você, não é mais o personagem. A real é que eu criei um personagem feminino e eu não tirava ele, era aquilo. Eu fazia os meus personagens, no teatro eu era louco, toda vez que ia fazer algum personagem que eu podia escolher fazer, eu criava um personagem masculino, porque era uma coisa onde eu podia brincar com o que de fato eu queria, entendeu?
O interessante é que pós-transição eu não tenho mais questão nenhuma em fazer personagens femininos, faço numa boa; fiz as pazes com a minha feminilidade, sabe? Porque antes era um bagulho que eu tinha que fazer forçado, tinha que engolir aquilo, tinha que fazer. Ah, saco!
Eu não entendia o que acontecia, achava só que eu era uma pessoa... Eu me esforçava tanto para ser feminina, tanto, e as pessoas tinham certeza que eu era sapatão, mesmo eu me esforçando muito para ser feminina. “Mah casou com um cara.” “Como assim? Como assim casou com um cara?” “Eu falava: “Gente, eu fico com homem desde que eu era adolescente, eu sou bissexual desde que sou adolescente”. “Ah não, mas bi? Você tem uma preferência, né?” Mesmo eu me esforçando muito, aprendendo a andar de salto - eu sei andar de salto - mesmo me esforçando muito eu era visto como uma sapatão, entendeu? E eu estava com um cara porque não queria assumir que era sapatão, estava com uma mina porque eu tinha finalmente entendido que eu era uma sapatão, saco!
Em 2016, traduzindo um programa, apareceu a palavra gênero fluido no programa - são duas palavras, mas uma identificação só, aí eu fui lá no gênero fluido, o que é isso? Gênero fluido, joguei no google e li, básico assim, sabe? No Wikipedia da vida. li e falei assim: “Nossa, isso é interessante!” Não batia 100% com o que eu era, mas mesmo as coisas mal escritas sobre gênero fluido, no Wikipedia, em 2016, diziam muita coisa sobre mim, sabe? E aí ferrou, porque aquilo fica na cabeça e eu fiquei com aquilo ali.
No fim do ano, em novembro, um amigo me convidou para fazer parte de um grupo de narrativa queer, um grupo de narrativa focado na galera queer e aí eu fui, falei: “Vou fazer”. Estava com bloqueio criativo, não estava conseguindo escrever. Fui e lá eu só conhecia esse meu amigo, não conhecia mais ninguém; me apresentei como uma pessoa de gênero fluido, as pessoas ficaram com vergonha de perguntar o que era. Ainda bem, porque eu não saberia explicar, não tinha a menor ideia, e aí eu fiquei com isso, “sou uma pessoa de gênero fluido, não sou uma pessoa cisgênero”. Eu sabia que não era uma pessoa cisgênero, né, mas daí a entender e dizer que eu era um pessoa trans, não era uma realidade, eu ainda não entendia isso. Eu me entendi como gênero fluido, falei isso.
Lá tinha uma pessoa que era não-binária e se identificou, falou: “Eu sou não-binário, meus pronomes são masculinos.” Eu parei e falei: “Não-binário!” Fui jogar no Google de novo depois, e aí sim, aí fez todo o sentido, porque o não-binário, na verdade, ele é um guarda-chuva maior né, é uma pessoa que não é nem homem e nem mulher. Dentro do não-binário você tem várias possibilidades, entre elas o gênero fluido, que eu não era, na verdade. Existe uma fluidez aqui dentro, mas não era o foco da coisa, meu foco era não ser.
Se eu tivesse a possibilidade de escolher quando era criança ser um menino, eu teria escolhido ser um menino, mas eu fui socializado como uma mulher e para mim é impossível pensar o gênero masculino, excluir do gênero homem, da definição do homem, o machismo. Eu não quero fazer parte disso. Por mais que eu queira o visual masculino, me entenda melhor com o visual… Nada contra o meu corpo, de novo. É igual quando as pessoas falam assim: “Você não tem nada contra o seu corpo e está mudando?” Falei: “É, a menina colocou silicone e ninguém falou que ela estava no corpo errado antes, gente!” É a mesma coisa, eu estou fazendo isso para me sentir bem, e entendendo o que eu quero e o que eu não quero, entendeu? Não tenho obrigação de nada com ninguém, eu estou fazendo isso da minha vida, do meu corpo, das minhas coisas. Tem essa possibilidade hoje de mudar algumas coisas, estou mudando o que eu quero mudar, mas a ideia de ser um homem não faz sentido para mim hoje por causa disso, porque eu não consigo excluir uma coisa da outra, não dá, pensando em gênero como criação, dissociando gênero de genitália. As pessoas associam como se fosse a mesma coisa - a mulher, porque tem vagina, tem vulva, homem porque tem um pênis. Não, você tem um sexo, biologicamente você tem um sexo, uma genitália, é isso que significa. Isso não deveria implicar em muita coisa, não.
Na forma de reprodução sim, agora qual é o papel na sociedade, o que uma pessoa pode ou não fazer da vida dela, como ela deve ou não se comportar, isso tudo é cultural e histórico. Isso não é genitália, não é genitália que define, não é o hormônio que define, e se é cultural, como é que você tira o machismo do homem? Você não tira se é cultural, e se é algo construído, então eu vou construir algo que me caiba, que não é uma mulher e com certeza não é um homem.
Hoje eu sou trans masculino não-binário e estou muito bem no não-binário, em não ser nenhum dos dois polos, sabe? Esse entendimento começou a acontecer em 2016, como eu falei, aí eu guardei isso para mim. Na verdade, eu conversei com o meu ex-marido, que foi... É interessante, porque a gente é amigo até hoje. Tinha uma coisa de tentar explicar o que é muito difícil explicar; hoje eu estou explicando aqui para vocês, putz! Estudei pra caramba para falar sobre isso, falo sobre isso, sou ativista, entendeu? Mas naquela época, como é que você explica? Tipo, “Eu não sou mulher, mas eu também não sou um homem''. E ele, me conhecendo, olhou pra mim e falou assim: “Faz sentido, te conhecendo faz sentido o que você está dizendo.” E de fato é isso, faz sentido; se você me conhece, você vai entender.
Desde o início ele sabia. A gente ficou junto até 2019. Em 2019 eu fui fazer uma terapia focada nisso e aí encontrei a minha terapeuta, maravilhosa. Ela estava fazendo o doutorado dela sobre transgeneridade, e aí alguém me indicou. Na verdade, joguei no Google, procurei, mandei e-mail para algumas pessoas, e aí um dos e-mails uma mulher respondeu e falou assim para mim: “Tem tal pessoa que está fazendo um doutorado sobre o assunto.” Falei: “Legal, da hora”. Mandei mensagem para ela, ela falou: “Vem aqui, a gente faz uma triagem”. Na triagem ela basicamente estava trabalhando com pessoas trans, e aí eu falei assim: “Bom, não vou passar. Não sou trans”. Mas era terapia de graça, se eu passasse… Eu falei: “Ah, também não custa eu ir até lá fazer a triagem.”
Eu fiz a triagem, conversei com ela, troquei altas ideias, e aí eu passei. Aí ferrou, né, porque você passa e isso significa o quê? Eu perguntei para ela: “Isso significa o quê?” E ela falou: “Significa que eu quero estudar a sua situação”. Eu: “Mas isso significa que eu sou trans?” Ela: “Isso só você que vai saber.”
Falei: “Ah, filha da mãe!” Detesto isso nos psicólogos, não falam as coisas né, a gente tem que ficar inferindo tudo (risos), mas foi.
Lembro que eu falei para o meu marido na época, eu falei: “Olha, Lu, é o seguinte: eu passei na triagem, não sei bem o que isso significa.” Ele falou: “Olha, vai ser feliz, vai fazer tuas coisas. Vai descobrir o que você é, o que você quer”. Eu lembro dele falar também: “Eu sou hetero. Pra mim, a ideia de você transicionar, ter um corpo masculino, assusta. Eu não sei como isso seria. Mas vai, vai ser feliz, não vai ficar por causa disso”. E eu fui, fiz seis meses de terapia. Nesses seis meses comecei a tratar outras coisas, entendi que desde de sempre tinha uma questão relacionada à monogamia, que é uma outra questão, e aí por causa disso terminei o meu casamento. Não tinha muito a ver com a transição o fim do casamento, mas terminando o casamento, eu comecei… Ali eu me entendi, ao longo da terapia; eu percebi isso, que uma pessoam quando ela não é cisgênero, até pela essência, ela é trans, na essência da palavra mesmo. Ou você é cis ou você não é, e se você não é, você é trans. Foi uma descoberta interessante, porque aí eu me vi nesse outro lugar, no lugar que eu achava que eu não ocupava; mesmo sabendo desde 2016 que eu era não-binário, eu não achei que eu ocupasse esse lugar de transgeneridade, e ali eu percebi que eu ocupava. E aí vai abrindo o mundo. Conforme você vai desenvolvendo coisas, dando passinhos, o mundo vai abrindo um pouco mais. Você vai conhecendo gente da comunidade, conhecendo pessoas, que tem, putz, uma quantidade absurda de semelhanças, de história de vida, de tudo, e se desenvolvendo nesse sentido também.
Fui falar abertamente sobre isso em 2020, um pouquinho antes da pandemia. Em janeiro de 2020 eu comecei a falar sobre não-binariedade no Instagram, e as pessoas não tinham a menor ideia. Eu comecei a falar sobre isso, aí me perguntavam: “Ah, mas você gosta de mulher agora?”
Falei: “Gente, para, para de apagar a minha bissexualidade, caramba!”. Em 2020 eu comecei a falar disso, comecei a me entender melhor nisso; fui me sentindo melhor comigo, parei de performar uma feminilidade que não tinha nada a ver comigo. Comecei a experimentar coisas que eu não sabia se ia gostar ou não.
É muito estranho você, com 31 anos de idade, não ter um estilo de roupa. Não tinha um estilo de roupa, eu não tinha roupas, sabe? As pessoas vão construindo estilo ao longo da vida e eu não tinha, passei a minha vida como mulher meio que me escondendo. Eu usava roupas muito apagadinhas - tirando festas, que aí eu arrasava, uns vestidos maravilhosos, um saltão, andava bem pra caramba, mas na vida eu andava apagadinho, e aí eu percebi que eu não queria mais ser apagadinho. Comecei a usar umas camisas floridas, fui desenvolvendo o estilo. Hoje sou ‘mó’ bonito, ‘mó’ estiloso; estou com o cabelinho meio amassado, mas sou ‘mó’ bonito, ‘mó’ estiloso, e uso aqui, ó, bandeira para caramba, mostro e falo sobre isso, e isso foi me abrindo outros caminhos.
Eu não achei que [isso] fosse fechar [caminhos], porque eu já estava há muito tempo trabalhando com tradução. Não imaginei, por exemplo, que eu fosse perder trabalhos de tradução por isso. Talvez no teatro, mas não entendendo ainda muito bem como. Achei que isso pudesse afetar de alguma forma os personagens ou qualquer coisa do tipo. Não pensava em me hormonizar, demorou dois anos e pouco para eu decidir me hormonizar mesmo, então é muito recente. Tem quatro meses que eu estou me harmonizando, cuidando de um passinho de cada vez, lentamente, mas eu também não imaginei que fosse abrir portas - e abriu, abriu um monte de portas.
Acho que o momento acabou sendo bom. Mesmo eu não tendo pensado no momento, nem sair do armário abertamente sobre isso, mas foi um momento bom, de saída,
porque as pessoas estavam… Os projetos audiovisuais, a gente tem streaming hoje em dia, então a gente tem um monte de coisas de vários países que tratam do assunto. É um assunto que está em voga, é um assunto que se fala muito hoje em dia. Fala-se muito em transgeneridade, não-binariedade, LGBT em geral, então meio que as pessoas começaram a buscar essa representatividade, o que é um processo pelo qual eu luto também. Não por eu estar no projeto, acho legal, ótimo para minha carreira ter um projeto, lindo! Mas não sou eu, eu já estava na dublagem antes, estou na dublagem desde 2015.
Quantas pessoas trans querem trabalhar com isso e não têm essa chance? É esse o ponto que eu quero atacar. Hoje a gente tem, que eu saiba, aqui em São Paulo, quatro. Tem dois amigos meus que são abertamente trans, que eu conheço e que estão na dublagem há mais tempo também. Tem uns cinco caras trans masculinos, no Rio de Janeiro tem uma ou duas atrizes trans, são poucos; é pouca gente e a maioria já estava no mercado, então a gente precisa focar em formação de gente, em abrir mercado para essas pessoas. E ali que eu atuo no ativismo - tem mais uma profissão aí, que é o ativista, dando palestra, tentando fazer as coisas. Então me chamem para as coisas, mas não sou eu o foco; o foco é como a gente vai abrir o mercado de dublagem, como a gente vai abrir o mercado em geral para pessoas que não tem acesso a isso. Hoje é uma das minhas preocupações.
Nossa, falei para caramba, né? Desculpa!
(01:43:31) P/1 – Imagina! Faz parte da sua resposta, faz todo sentido. E falando sobre isso, você tocou num ponto onde eu queria chegar. Em algum momento você viu que pessoas, profissionalmente ou pessoalmente, das suas relações pessoais se afastaram nesse período?
R – De entendimento?
(01:43:56) P/1 – Sim! Não conseguiram lidar com aquilo e se afastaram. Houve algum conflito nesse aspecto profissionalmente e também nas suas relações pessoais?
R – Não. Eu acho que teve algumas questões que foram lidadas, bem lidadas; pessoas que realmente importavam, não. Teve muita gente que quis surfar no hype, quis se passar por muito amigo, ainda mais que agora saiu o papel do Elliot Page. O que teve de gente: “Ah, não, Mah, a gente sempre foi amigo”. Eu: “Gente do céu”. Faz qualquer coisa, mas não baba meu ovo, senão você vai perder completamente o respeito que eu tenho, saca? Não baba meu ovo, não faça isso, ainda mais à toa assim, ainda mais uma coisa que não tem nada... Você não está elogiando o meu trabalho, você está elogiando a visibilidade que teve o negócio, única e exclusivamente por causa da transgeneridade. Não faça isso.
Mas no geral não, no geral não teve isso. As pessoas que eram realmente importantes, elas seguiram aqui. As que têm alguma dificuldade em relação à família, elas estão tentando, e as que não estão tentando, elas são importantes demais para não tentar e eu deixar quieto, então eu pego no pé. E é isso, não perdi ninguém assim, não vou deixar, não.
(01:45:23) P/1 – E o que você acha que a sua experiência pode contribuir para pessoas que estão passando por esse momento também?
R - A minha experiência? Eu falei disso abertamente no Instagram, porque quando eu estava procurando referências, eu não encontrei, não tinha referência. E aí eu comecei a falar de coisas que eu já sabia que não eram muitas, tanto que os primeiros stories que eu gravei…. Depois teve alguns que eu tirei dos destaques. Eu falei: “Ah, isso é bobagem. Não penso mais dessa forma, não acho que seja isso”. Eu fui falar de coisas que eu já tinha entendido ali sobre mim, que faziam sentido naquele momento, que eu achei legal compartilhar, justamente para trazer para essas pessoas. Eu acho que quando a gente tem alguma visibilidade - é uma coisa que está começando a acontecer comigo, ter alguma visibilidade - a gente pode ajudar. É função de quem tem alguma visibilidade ajudar.
Eu tive, além de visibilidade, uma puta sorte de ter uma família extremamente estruturada, de ter tido educação de qualidade, então eu não levo como obrigação porque eu não acho difícil, não acho ruim. Mas é uma obrigação, cara, é o mínimo que eu posso fazer, chegar e falar sobre as coisas que fazem sentido ali, e trazer esse conhecimento para gente que quer conhecimento, que não fica enfiando as coisas nos outros, forçando a barra, mas gente que quer saber sobre as coisas e não tem essa informação.
Acho que a única - não é a melhor - a única forma da gente rebater preconceito é com educação. Preconceito é medo, medo vem da falta de informação, simples assim. Você acha que aquilo que não conhece vai afetar você de alguma forma negativa, vai afetar a tua família, vai afetar tuas coisas, ou vai fazer com que você libere algo sobre algo que você não quer falar, que você não quer liberar. Acha que aquilo vai acabar te afetando, por isso que o ódio vem ao outro, às pessoas. “Ela é livre e aí eu…” Não pode ser livre, ser feliz, entende? Então como combater isso? Com conhecimento.
Tudo que eu posso aprender eu vou aprendendo, tudo que eu posso passar eu vou passando. Acho que eu já vivi bastante coisa, está longe de ser tudo que eu vou viver ainda, mas eu vivi bastante coisa, então eu vou colhendo coisas de pessoas que já estão vivendo essas coisas há mais tempo que eu, vou aprendendo e passando pra frente.
Da forma como... Quando o Elliot Page se entendeu trans, falou sobre isso abertamente… Alías, antes, quando tinha se entendido uma mulher homossexual, ele mais do que falar que é gay em Hollywood, “Ah, sou lésbica”. Em Hollywood, que já era uma questão quando aconteceu, ele foi atrás de discutir o assunto no mundo, veio entrevistar o desgraçado que está na presidência agora no Brasil - vou nem falar nada, não, está guardado, Deus me livre! Na minha entrevista não. [Ele] veio entrevistar, veio tratar sobre o assunto da homofobia no mundo inteiro, então foi uma pessoa que tinha visibilidade e fez esse trampo, se entendeu trans e continuou fazendo esse trampo pela comunidade trans. [Ele tem] muita, absurdamente, muita mais visibilidade do que eu; eu tenho uma visibilidade muito pequena, vou fazer para a galera que está aqui e é isso, é assim que a gente vai se fortalecendo. Conhecendo gente, descobrindo coisas e passando a informação pra frente.
(01:49:23) P/1 – Como você entende a diversidade, Marun, diversidade em geral, no mercado de trabalho? A representatividade, como você entende a importância disso?
R –
Ah, é fundamental. Além da dublagem tem um monte de gente que não sabe nada do assunto, não entende realmente de dublagem, que bate numa tecla que a princípio é muito óbvia: voz não tem cor, voz não tem gênero. Você só precisa de uma voz que encaixe no personagem, mas quando você cai no mercado, o mercado é todo branco e heterossexual, então existe uma cor, existe gênero, existe sexualidade certa para você estar dentro do mercado.
Por que é que não existem quase negros na dublagem? Eu fui parar para pensar nisso quando saiu o Pantera Negra, e um amigo meu, que é do movimento negro, ele veio me perguntar, falou assim: “Como é que funciona a escolha de vozes?” Falei: “Ah, vai pela voz mesmo. Voz mais grave, voz mais aguda, mais parecida com a voz original, eles vão colocando. Mandam testes e as pessoas são escolhidas”. Ele falou assim: “Mas por que não teve nenhum dublador negro no filme Pantera Negra?” Eu falei: “Não sei, acho que eles não passaram no teste”. Ele: “Tem muitos dubladores negros?” Falei: “Não, não tem”. Por quê? Porque para você ser dublador você precisa ter DRT. Pra você ter o DRT, você tem que estudar teatro. Para você estudar teatro, você tem que, no Brasil, ser alguém que tenha capacidade de parar o que você está fazendo, não trabalhar ou trabalhar um período e estudar outro período, uma loucura, para conseguir tirar o seu registro e ser ator - pensando que, sendo ator, você vai ter todas as dificuldades do mundo para, depois de trabalhar no geral, entrar no meio da dublagem, que é um meio fechado, que leva um tempo para você conseguir alavancar a carreira, para você conseguir de fato pagar as tuas contas. E nesse período quem está pagando as suas contas? Quem está te sustentando? Quem tem essa capacidade de ter outra profissão, enquanto está estudando teatro, porque já tem uma formação acadêmica em outra área? Quantas pessoas negras têm essa possibilidade? E aí você bate no mercado: por que a gente não tem quase dubladores negros? Porque essas pessoas estão sobrevivendo, estão tentando sobreviver e quem está lutando para sobreviver dificilmente vai atrás de fazer uma faculdade de teatro. Você vai fazer outra coisa, você vai trabalhar, então o meio, ele… entende? Como? Então é isso, por que os negros não se interessam por dublagem? Gente! Existe uma coisa óbvia aí, óbvia, de formação cultural e que vem da falta de grana, de onde estão essas pessoas, que possibilidades essas pessoas têm de entrar no mercado. Então quando a gente abre e fala assim: “Ah, mas precisa ter representatividade”, eles vão e colocam pessoas negras para dublar sem ter experiência, e fica ruim. “Ah, chocante!” As pessoas não sabem fazer e fica ruim.
Não é abrir espaço e enfiar as pessoas lá a força e falar: “Aqui, temos uma representatividade”. De novo era o que eu estava falando, você tem que formar as pessoas. Você tem que fazer um serviço de base de formação, que é uma coisa que eu tô vendo agora.
Eu estou no mercado de dublagem desde 2006 e estou vendo isso desde 2020. A coisa começou a se movimentar ali, um pouquinho antes do Pantera Negra; acho que 2018 que começou a [se] levantar essa lebre de: por quê? Aí o povo fala assim: “Então para dublar um elefante, tem que ser um elefante”. Falei: “Mano, quando a gente precisar de um burro para dublar você já está lá, né?” [Era] nesse nível. Que raio de argumento de merda é esse, entende?
Precisa abrir espaço, mas não é abrir espaço e enfiar essas pessoas, é abrir espaço e ensinar essas pessoas a trabalhar e dar espaço para elas estarem no mercado. Isso está acontecendo por causa do movimento que veio de um projeto, que foi o primeiro projeto da Marvel ali de fato, um dos primeiros projetos do mundo a de fato lidar com a questão da negritude sem ser num contexto de violência, sabe? Um contexto, violência da Marvel né, aquela coisa... Não é um contexto de violência que as pessoas normalmente colocam… Como que chama aquele [filme]? Ai meu Deus, esqueci o nome do filme agora. O Cidade de Deus. O protagonismo negro, calma, não é nesse lugar, é em outro lugar. A partir do momento que você tem protagonismo negro no filme da Marvel, um super-herói, e aí você chega na dublagem e não liga a mínima para isso… Eu não acho que as pessoas fizeram isso, sinceramente eu não acho que o estúdio falou assim: “Ah, não vamos por ninguém, porque não queremos negros”. Não, não passou pela cabeça dessas pessoas que precisava ter uma representatividade na dublagem.
A gente está falando de 2018, que foi ontem. Hoje isso já se pensa muito, o cliente exige. Se o cliente exige representatividade, até os estúdios que acham que isso tudo é uma grande bobagem são obrigados a ir atrás, e sendo obrigados a ir atrás, eles precisam formar, senão fica ruim, então tem gente formando pessoas. Essa importância da representatividade… Não só essa. Uma pessoa, uma criança LGBT, trans, uma criança negra que olha e admira um dublador que é famoso, sabe que pode chegar ali. Pode, ué, hoje é possível. Quer dizer, ainda não é, mas está sendo, vai ser mais acessível, sabe? Então a representatividade é tudo, gente, é tudo que a gente precisa.
Sim, é claro que uma pessoa negra pode dublar uma pessoa branca, é claro que uma pessoa branca pode dublar uma pessoa asiática, claro que um asiático hetero pode dublar uma pessoa gay, na essência pode, mas existe espaço para essas pessoas que estão representadas na tela, e se existe o espaço e todo mundo saísse do mesmo lugar, não teria problema nenhum. É voz, mas não sai do mesmo lugar, e se não sai do mesmo lugar, então precisa equilibrar. É esse o ponto da representatividade.
(01:56:20) P/1 – Agora a gente vai para o último bloco de perguntas, Marun, elas são um pouco mais pessoais. Eu vou começar pelo seu grupo de apoio. Quem é o seu grupo de apoio, quem segura as suas pontas quando você precisa?
R – Minha família, namorado, meus amigos. Eu tenho muitos amigos. Em questões mais relacionadas à transgeneridade, eu tenho apoio mais de gente da internet, que está mais comigo. Alguns amigos aqui de São Paulo também, a quem posso correr e recorrer. Eu sei que posso correr primordialmente para a minha família, eles são primordialmente meu grupo de apoio.
(01:57:08) P/1 – E quais privilégios você acha que você carrega?
R – Não entendi.
(01:57:14) P/1 – E quais privilégios você acha que você carrega?
R – Todos, né? Branco, classe média, meus pais fizeram faculdade. Eles tiveram grandes dificuldades financeiras, porém tanto do lado materno quanto do lado paterno os meus avós insistiram muito para que todo mundo estudasse. A partir do momento que os pais já tem uma educação universitária - minha mãe era dentista, agora ela se aposentou; meu pai [é] engenheiro eletricista - putz, a chance de ter um trampo melhor, um emprego melhor e consequentemente dar uma vida melhor para família é enorme. Foi o que aconteceu, então a gente não teve grandes dificuldades financeiras. Tinha dificuldades, não era uma família de gente rica, longe disso, mas não tinha também questões primordiais, do tipo “não tenho grana para pagar comida”. Não existia isso.
A gente estudou em escola boa, fez escola particular no colegial, estudei em escola pública, o que mais… Acho que educação é a principal delas. E cor da pele. Por mais que eu tivesse essa coisa toda de ser LGBT, visualmente até, de visualmente as pessoas acharem que eu era - até mesmo antes de eu entender a bissexualidade, já tinha essa coisa - não foi uma coisa que afetou tanto assim. Afeta, claro, afetou negativamente. Ser mulher afeta muito, ser mulher na sociedade é uma puta dificuldade, dificulta muita coisa, mas dentro da minha casa não, dentro da minha casa não tinha uma diferenciação do que os meus irmãos faziam e que eu fazia, da forma como... Nem isso.
Eu tive toda essa facilitação em situações em que o trampo estava mal e eu não tinha como pagar contas. Na Espanha, por exemplo, aconteceu isso; meu pai podia me ajudar. Quando eu estava aqui e decidi comprar um apartamento, eu não tinha crédito para comprar o apartamento, então ele comprou no nome dele. É uma facilitação financeira, de uma família de classe média, uma facilitação de cor de pele e uma facilitação de educação, que fez toda a diferença.
Hoje o que acontece é que eu sofro homofobia. Ando de mão dada com o meu namorado na rua, as pessoas acham que é um casal gay, de máscara ainda. É diferente de antes, quando eu estava com uma menina; a forma como lidam é outra, tem uma coisa de desejo muito grande entre duas mulheres e em dois caras tem uma coisa violenta que vem em cima, que é muito diferente. Eu tenho hoje mais tranquilidade para andar na rua do que eu tinha antes, até o ponto em que me reconhecem como trans. Eu tenho essa passabilidade masculina que me coloca em uma posição de poder masculino, que cai por terra e vai pro chão, para debaixo da terra, quando as pessoas veem que eu sou uma pessoa trans, e aí o risco de eu apanhar na rua, de sofrer agressão, é muito maior. Já aconteceu.
Existe muita facilitação, mas não é fácil. Mas sem dúvida é muito mais fácil do que é para muita gente, sem dúvida.
(02:00:55) P/1 – E quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R –
Eu acho que a liberdade de ser, sabe? Liberdade de poder de fato parar e olhar para minha vida e entender o que é verdade, o que eu quero e do que eu não quero, se estou fazendo coisas porque eu quero ou porque falaram que eu tenho que fazer. Acho que isso é o que faz toda a diferença, na real, é muito mais fácil lidar com a minha verdade assim, sabe? Isso é fundamental. E respeito, eu acho. Acho que respeitar as pessoas é uma máxima para mim, então eu tenho uma dificuldade muito grande de entrar em embates. Isso já foi até ruim em alguns pontos, sabe? De evitar coisas que eu precisava discutir, porque eu não queria bater de frente, mas eu percebi ao longo da vida que você não precisa bater de frente, quase nunca; você pode só conversar de uma forma que você deixa claro as coisas que estão acontecendo, ou que um incômodo aconteceu, respeitando as pessoas, primordialmente. É fundamental. Eu vou atrás dessa liberdade minha, essa coisa minha de discutir, de trazer as coisas que eu penso, a forma que eu penso. Então acho que hoje o fundamental é isso, é não mentir mais para mim, ser livre de fato para escolher o que eu quero.
(02:02:34) P/1 – E quais os seus sonhos pessoais para o futuro?
R – Ah, cara, eu vou vivendo as coisas. Para o futuro, eu estava com um plano de ir para Compostela em setembro. Tive que parar, porque eu fui chamado por uma outra companhia de teatro, então eu estou em outra companhia. Vou fazer o caminho em maio.
Meu sonho é poder de fato viver de teatro, sabe? Ter aquela coisa do sim, continuar
traduzindo, talvez continuar com o cargo que eu tenho lá na Vox, de coordenação, mas são coisas que me encantam menos. Poder trabalhar com dublagem e com o teatro, eu acho que seria… É isso, não adianta, é o que eu realmente gosto de fazer. Poder trabalhar com isso sem fechar as portas para outras coisas é um bom plano de futuro. Mas eu vou levando as coisas, vai aparecendo uma coisinha, aí eu faço, aí isso abre outras portinhas, eu vou entrando e é assim que eu vou indo nas coisas. Sem excluir nada, só angariando coisas.
(02:03:48) P/1 – E que legado você gostaria de deixar?
R – Eu quero deixar um mundo mais fácil para as pessoas LGBT’s em geral. Acho que isso hoje é um foco também, poder mostrar que a gente vai além dos estereótipos do que é ser trans, também do que uma pessoa trans é capaz de fazer, ou o que é de fato ser trans, enquanto uma pessoa que não necessariamente quer fazer qualquer modificação corporal. Tem muita gente que é assim e as pessoas não conseguem entender: “Trans o quê? Não quer nem cortar o cabelo e vai cortar…” Porque não tem a ver com o corpo. Esse tipo de coisa obviamente não estou fazendo sozinho, mas vendo e fazendo parte da mudança no meio pequeninho da dublagem já é alguma coisa, então eu já fico muito feliz com isso. Sem dúvida o legado é esse, ir embora desse mundo tendo visto as coisas mudarem muito, muito mesmo.
(02:05:02) P/1 – E vamos para a última pergunta. O que você achou de contar a sua história para a gente hoje?
R – Ah, eu achei divertido, achei interessante. Faz pensar nas coisas.
Às vezes a gente vai levando as coisas no automático e não pensa muito no caminho todo pra chegar aqui. É um caminho ‘mó’ bonito, fico feliz de poder contar dessa forma. Estou ansioso por tudo, acho que a vida é muito curta para tudo que a gente vai viver, tudo que a gente tem para aprender, então eu fico sempre ansioso para aprender coisas novas, para viver coisas novas, mas é legal olhar para trás.
Achei interessante também ter alguém interessado na minha vida. “Tá bom, vamos lá, bora lá então, vamos contar”, então foi muito divertido. Quero agradecer vocês pelo interesse, pela paciência, pela troca, por tudo!