Entrevista de Tiago Henrique de Oliveira Camilo
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 21/08/2022
Projeto: Inclusão e Diversidade - Ernst Young
Entrevista número: PCSH_HV1223
Realizado por: Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Tiago, pra começar, queria te agradecer novamente pela presença e queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R - Primeiramente, muito obrigado pelo convite! Me sinto honrado de participar desse projeto tão importante, tô muito feliz. Eu me chamo Tiago Henrique de Oliveira Camilo, eu sou nascido no dia 24 de maio de 1982, interior de São Paulo, Tupã.
P/1 – E, Tiago, te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não. (risos) Não, eu, assim, minha mãe... acho que quem tem mais curiosidade são minhas filhas, que perguntam mais: “Como foi, pai? Que horas que foi?”, né, mas eu não tenho muito... na verdade, acho que eu nem perguntei pra minha mãe sobre isso. (risos)
P/1 - E do seu nome, você sabe como foi escolhido?
R - Boa pergunta! Eu acho que quem... a família da minha mãe era assim: a minha mãe escolhia os nomes dos filhos das irmãs e as irmãs davam sugestão pro nome dos filhos, e assim o pessoal ia fazendo. Mas tem muita relação com os nomes bíblicos, então o Tiago veio do apóstolo.
P/1 - E qual é o nome da sua mãe?
R - Maria Cristina de Oliveira Camilo.
P/1 - Como você a descreveria, o jeito dela?
R - Ah, carinhosa, sentimental, preocupada. Tem aquele sentimento de que os filhos não cresceram (risos). Minha mãe é assim. Eu saí de casa muito cedo, mas a gente tem uma relação muito forte até hoje, a gente se fala semanalmente, minha mãe, meu pai. Enfim, é uma pessoa muito presente na minha vida.
P/1 - E seu pai, qual é o nome dele, o jeito dele, assim?
R - Luiz Francisco Camilo. Meu pai é um pouco diferente da minha mãe, minha mãe é mais sentimental, meu pai é mais prático, mais direto, até pela criação que ele teve também, teve que trabalhar muito cedo. Mas por trás do jeitão durão dele, também tem um coração muito bom, muito carinhoso, muito preocupado com os filhos, faz de tudo pra gente ser... nós sentimos um amor incondicional deles por nós, então todo mundo tem essa parte sentimental, não tem jeito, mesmo que aparenta ser mais durão, mas por trás sempre tem um sentimento envolvido.
P/1 – E, Tiago, você sabe como eles se conheceram?
R - (risos) Olha, não sei. Não sei também. (risos) Mas é uma cidade pequena. Assim, todo mundo... acho que os pais dos meus pais se conheciam. Uma cidade... Tupã, antigamente, devia ter o quê? Uns cinquenta mil habitantes, eu acho. Hoje é maior, mas era uma cidade pequena, então todo mundo se conhecia, todo mundo ia pros bailes juntos. E aí meu pai conheceu o meu avô, meu avô tinha uma... era muito conhecido na cidade, tudo, e tinha várias filhas, então... (risos) e aí todo mundo... assim, meu pai começou a paquerar minha mãe e tal, enfim, aí começaram a namorar.
P/1 - Seus pais são de Tupã, também?
R - São, nascidos em Tupã.
P/1 - E o que eles fazem ou faziam?
R - O meu pai... a minha mãe é agente de saúde, ela é funcionária pública da cidade de Bastos. Na verdade, eu nasci em Tupã, mas sempre morei em Bastos, que é uma cidade próxima, de vinte quilômetros, uma cidade pra outra. O meu pai é cartorário, oficial de cartório e minha mãe é agente de saúde, os dois trabalham em Bastos.
P/1 - Você tem irmãos?
R - Tenho dois irmãos: um mais velho, Luiz Francisco Camilo Júnior, tem o nome do meu pai, e o mais novo, o Rafael Bruno de Oliveira Camilo. Os dois foram atletas, o mais velho foi judoca também e o mais novo começou no judô e depois foi pro tênis. É uma família de atletas.
P/1 - E como é a sua relação com eles?
R - É uma relação assim, de irmãos. A gente… obviamente o meu irmão ficou... é que é assim: eu saí Bastos com catorze anos, fui pra, morei em São Paulo, depois fui pra São Caetano, depois fui pra Porto Alegre e aí, depois, a gente começou a morar em cidades diferentes. A gente sempre foi muito próximo, a gente morou junto, eu e meu irmão mais velho. Aí, depois, a gente acabou se distanciando um pouco na questão da geografia, ele ficou em Porto Alegre e eu estava viajando bastante ainda, competindo, tudo. E hoje ele mora em Santos, tem a família dele, tem a filha dele, minha sobrinha. O mais novo jogou na Espanha, morou na Espanha, voltou pro Brasil tem uns dez anos, eu acho, jogou mais um pouco profissionalmente e hoje abriu uma academia de beach tennis. Então a gente tem... (risos) todo mundo está envolvido com o esporte, ainda.
P/1 - E seus pais, também são ligados ao esporte?
R – Não. Meu pai sempre quis praticar esporte, ele era apaixonado pelo Pelé. (risos) Na época todo mundo era santista, os antigos, e ele gostava muito, só que não podia, uma família muito humilde, teve que começar a trabalhar muito cedo pra trabalhar e ajudar em casa e depois ele se viu numa possibilidade e numa condição de poder oferecer pros filhos o que ele não teve. Então ele sempre acreditou muito nessa construção da escola com o esporte, meu pai sempre gostou muito, sempre foi muito curioso e pesquisou muito. Ele gosta muito do modelo americano, que a escola e o esporte caminham juntos, e aí ele colocou a gente no judô, em 1987 e ele sempre incentivou muito, investiu muito, não só em mim, mas nos meus irmãos também, pra que nós tivéssemos, obviamente, toda a possibilidade, toda a estrutura, pra poder se desenvolver.
P/1 - Tiago, e seus avós, você sabe um pouquinho da história deles?
R – Então, meu avô... os meus avós por parte de pai, o meu avô italiano veio pro Brasil, os meus bisavós vieram pro Brasil. A parte da minha avó, mãe do meu pai, espanhóis, vieram pro Brasil também. Imigrantes. O Brasil tem essa história de receber os imigrantes. Da parte da minha mãe, Portugal, meu vô, minha avó da Paraíba. E assim: vieram sem nada pro Brasil. As pessoas vieram pro Brasil tentar a vida, começar uma nova vida, trabalhar no campo, é uma história de trabalho. Assim, nossos avós, nossos bisavós que começaram essa história no Brasil, de ganhar a vida, de construir, então... e os imigrantes tinham essa questão de... não tinham nada, então eles se agarravam muito nessa chance, nessa possibilidade de começar uma nova história no Brasil.
P/1 - E você conviveu com eles?
R - Eu convivi mais com os pais do meu pai, porque meus pais, quando casaram, todo mundo morava junto, então moravam na mesma casa. Minha mãe morou com meu pai na casa dos meus avós. Na verdade, meu pai comprou uma casa pros meus avós e eles moraram nessa casa muito tempo e aí, depois, meu pai construiu uma outra casa, que aí nós fomos morar nessa casa. Mas era vizinho, meu pai comprou o terreno do lado. Então eu sempre convivi com os pais do meu pai, sempre essa relação, mesmo os pais da minha mãe morando numa cidade vizinha, de vinte quilômetros, a gente ia a cada quinze dias ou nos finais de semana pra Tupã. Mas no dia a dia eu vivia com os pais do meu pai.
P/1 - Tem alguma história que você se lembra com eles, na infância?
R – Nossa, meu avô (risos) era alfaiate e muito caprichoso, muito detalhista e ele era o vô que fazia pipa pra gente, então (risos) a gente soltava pipa na rua e ele que fazia a pipa. Então aprendi a fazer pipa com meu vô, meu pai também, um pouco. E meu pai tinha dado um telescópio pro meu vô e ele gostava de ficar vendo as estrelas, tudo, e ele desenhava muito bem, então meu avô tinha essa parte da... assim, de ser artista, de costurar muito bem, todos os empresários da cidade faziam com ele, ele pintava muito bem, desenhava muito bem. E minha avó era mais ‘guerreirona’, assim. Meu vô era mais sossegado, mais tranquilo e a minha vó sempre foi mais guerreira. Meu pai falava: “Nossa, tua avó era uma guerreira. E meu pai era sossegado, está tudo certo pra ele, está tudo bom” (risos). Mas, assim, são... e a minha avó, ela sempre falava: “Ó, filho, vai lá no paletó do vô, pega um dinheirinho lá pra você comprar um sorvetinho. Vai lá, pega uma mesada pra vocês”. Sempre deixava um dinheirinho no paletó do meu vô. Então, são histórias bacanas assim, que no dia a dia eu carrego com muito carinho. Não só eu, mas meus irmãos também.
P/1 – E, Tiago, tinha algum costume muito específico da família de vocês? Tipo comemorar alguma data especial, alguma comida que vocês sempre gostavam, tinham o hábito de comer juntos.
R - Olha, minha avó, inclusive eu falei essa semana para as minhas filhas, minha vó fazia um charutinho de repolho que era uma delícia. E sempre quando ela cozinhava o repolho, eu ia pra casa dela comer, e meu pai: “Você não tem comida em casa, não? Come aqui em casa”, ficava bravo que eu ia comer na casa da mãe dele, ficava bravo. (risos) Mas ela cozinhava super bem. Na verdade, a minha mãe aprendeu a cozinhar com a minha avó, ela cozinhava muito bem e eu fui criado com essas comidas, assim: rabada, dobradinha, carne de panela, cozido, que era comida simples, antigamente, e a minha mãe aprendeu a cozinhar com a minha avó, mas a gente não tinha costumes específicos, comemorativos, a gente comemorava as datas normais, festivas, do Brasil. Mas sempre quando a gente, eu podia, eu ia na casa da minha vó comer esse charutinho, que era uma delícia.
P/1 - E como era essa sua casa de infância, que recordações você tem dela?
R - Era uma casa simples, né? Depois o meu pai fez uma edícula atrás dessa casa, antes de ir pra casa maior, que é a casa do lado, da minha mãe hoje. E era uma casa assim, simples, mas eu tenho boas recordações, assim, de como eu aprendi andar de bicicleta, que eu jogava bola na rua, que a gente brincava de taco, que a gente chamava de bets, soltava pipa, brincava de pião, pegava manga no pé. A gente estava o tempo inteiro na rua, eu tinha a minha rotina de escola de manhã, à tarde eu ia pro cartório, meu pai pedia pra fazer banco, correio, ajudar a limpar o cartório, outras coisas que são importantes pra mim até hoje, eu acredito, e depois eu ia pro judô. Mas eu estava o tempo inteiro ali, na frente da minha casa, então eu tenho uma recordação muito legal desses momentos de simplicidade. Porque, no fundo, no fundo, a gente precisa de coisas simples. E essas recordações que ficam, essas recordações da vivência. Não dá conta, assim, do que você tem, mas o que você viveu, esse é o que mais fica marcado na nossa vida.
P/1 - Essas brincadeiras na rua, juntava a vizinhança?
R - É, tudo os amigos vizinhos e a gente ficava todo dia, todo dia tinha essas atividades de juntar os amigos, jogar bola, soltar pipa, assim, sempre... obviamente que tinha épocas, no meio do ano ali, que ventava mais e tal, que não soltava mais pipa, mas a gente todo dia, assim, não tinha ficar em casa, ia pra rua, ficava na frente de casa ali, brincando.
P/1 - E nessa época, menino ainda, você pensava no que você queria ser quando crescesse?
R - Não. Assim, eu comecei o judô com cinco anos... com sete anos... na verdade o meu pai levou meu irmão mais velho pra fazer judô primeiro, tinha oito anos, eu fui só assistir no primeiro dia e meu pai falou que eu fiquei incomodando-o o tempo inteiro, porque queria entrar também. No segundo dia entrei no judô, na teimosia. E aí eu comecei a treinar, com sete anos eu cheguei à primeira experiência competitiva, mas assim, eu não tinha essa clareza do meu futuro, não sabia que: “Eu quero ser atleta olímpico. Eu quero ser atleta da seleção brasileira”. Isso surgiu mais tarde, em 1996, quando eu tinha catorze anos. Até então participava das competições ali da região, do estado, até a competição nacional, mas assim, não tinha esse objetivo claro de ser um atleta olímpico. Era muito novo, tinha dez anos, doze anos, então ainda não estava, acho que não tinha condições ainda pra... nem maturidade pra decidir sobre isso.
P/1 - Não sei se é possível, mas você consegue dizer o que, pequeno, te encantou, te fez querer começar a participar do judô?
R - Olha, lá na minha cidade, Luiza, tinha assim: a minha cidade era uma fazenda, na verdade, chamada Fazenda Bastos e o governo do Japão comprou essa fazenda e ele entregou essa fazenda pros imigrantes do Japão começarem a vida no campo e hoje a cidade de Bastos é a maior produtora de ovos do Brasil, são trinta milhões de ovos por dia, que produz na cidade de Bastos, uma cidade de vinte mil habitantes. Então tem muito japonês e eles trabalham muito no campo, até hoje. E o meu professor, o meu primeiro professor, veio do Japão, japonês, a família veio, se instalaram em Bastos, nessa grande família, nessa grande comunidade que se instalou na região, ali, e começou a vida, aí ele abriu uma academia e em 1987 eu comecei no judô. Depois a gente tinha alguns acontecimentos da academia, por exemplo: a gente tinha o treinamento de inverno, que acontecia sempre em julho, que a gente acordava às quatro e meia da manhã e ia pra academia, treinar de madrugada, tudo, e tinha o treinamento de verão, que acontecia em janeiro, e tinha o Tsukinami Shiai, que é uma competição mensal, que acontecia na academia. Então tinha bastante alunos e o sensei organizava um festival interno, então foi nesse festival que eu fui identificado como talento, numa competição da academia. Então, começou assim: meu professor... eu competia com sete anos, o meu professor falou pro meu pai que eu tinha talento, que eu tinha facilidade de aprender e aí meu pai começou a me colocar nas competições. Foi assim que surgiu toda essa história.
P/1 - E queria te perguntar sobre a sua escola, que lembranças você tem, marcantes?
R – Escola? Que eu fui alfabetizado pela minha tia, (risos) primeiro ano foi a irmã da minha mãe que foi minha professora. Puts, era muito legal a escola. Estudei em escola pública, até quando eu saí de Bastos, escolas públicas. Não tinha... depois até veio uma escola particular e acho que foi o Anglo que veio, mas ia pra escola particular quem ‘bombava’ na pública, porque a pública era difícil pra caramba e ia pra particular pra passar de ano. Você vê como as coisas (risos) mudaram hoje em dia, né? E os meus amigos, assim, do intervalo, de jogar bola no intervalo, de me reunir com os meus amigos no intervalo, do aprendizado. Foi muito legal, eu tenho boas recordações das escolas. Tive boas professoras, na maioria japonesas também, rígidas, firmes, a gente tinha uma disciplina muito grande na escola, todo mundo respeitava os professores, eles entravam, todo mundo ficava de pé; eles sentavam, todo mundo sentava. A gente respeitava muito os professores. E eu lembro também que tinha que levar o boletim pro meu professor de judô, (risos) o professor de judô também via o boletim dos alunos, porque não fazia nenhum sentido formar judocas que iam mal na escola, então a gente também tinha que levar o boletim no judô, porque ele se preocupava também com essa questão do desempenho escolar.
P/1 - Como você falou, seu pai já era ligado com a escola e com esporte e você viveu isso também na educação, né?
R - Bastante.
P/1 - E teve algum professor muito marcante, pra você?
R - Não tive um professor assim, marcante, todos eram assim, bons professores. Deixa eu ver... o professor de Matemática... Português e Matemática eram bons professores, agora não vou lembrar o nome. Eu fazia Kumon também, então eu fazia Matemática também fora e isso me ajudava bastante na Matemática na escola, então eu ia super bem em Matemática. Mas eu não tenho um professor assim, que: “Ó, esse daqui era o professor!” Eu tive bons professores, de verdade.
P/1 - E com catorze anos você mudou de cidade?
R - Isso, mudei pra São Paulo.
P/1 - Como foi essa mudança? Você veio sozinho?
R - Não. Começou com... na verdade, os Jogos Olímpicos de Atlanta, antes eu já tinha ganho as competições estadual, nacional, regional... regional, estadual e nacional. E em 1996 eu estava assistindo os Jogos Olímpicos de Atlanta em casa e eu lembro que naquela semana o judô durou... são sete dias, são sete categorias de peso, então é uma masculina e uma feminina todos os dias, e naquela semana eu decidi que era isso que eu queria, foi nessa semana, em 1996, tinha catorze anos. Eu falei: “Pai, eu quero um dia lutar os jogos olímpicos”. E aí ele falou: “Que legal! Vamos atrás do seu sonho, então”. Só que eu era muito novo, eu tinha catorze anos. Meu irmão mais velho tinha dezessete. E aí meu pai começou a ver qual era o melhor local pra gente treinar, pra gente poder se desenvolver, já pensando nessa carreira de alto rendimento. E aí as pessoas indicaram aqui em São Paulo, o Ginásio Ibirapuera, que tinha um programa chamado Projeto Futuro, que é mantido pelo governo do estado, e hoje está em São Bernardo. Nós mandamos o nosso currículo, fizemos o teste e fomos aprovados e aí, no início de 1997 nós nos mudamos pra São Paulo. Aí meu pai falou: “Você não vai sozinho, porque você é muito novo”, meu irmão também estava competindo, tudo, ele veio também pra São Paulo. Então, a minha... um divisor de águas na minha vida, em termos de competição, foi em 1996, assistindo aos Jogos Olímpicos de Atlanta e essa mudança pra São Paulo.
P/1 - E como foi essa nova experiência ainda menino, numa cidade imagino que bem diferente. Como foi?
R - Ah, primeiro foi o contraste grande em termos de cidade, porque eu morava numa cidade de vinte mil habitantes e eu estava mudando pra São Paulo. Então, isso já era um contraste muito grande. Aí, depois, tinha a questão da família. Deixar os meus pais; meu irmão mais novo, o Rafael; deixar meus amigos da escola, os amigos da academia pra trás e viver um sonho que é incerto, porque eu não tinha certeza que isso ia dar certo. E aí, depois, tinha a questão do alojamento, porque eu era calouro, foi um ano sendo calouro, varrendo quarto de veterano, fazendo massagem em veterano. Enfim, foi um ano bem difícil assim, foi um ano bem difícil.
P/1 - Nesse alojamento têm alguma história bem marcante, pra você?
R - Nossa, muitas! (risos) A gente morava num quartinho, sem brincadeira, acho que era o quê? Uns três por três, eu acho, todo mundo morava num quarto assim, muito pequeno e a cama de alvenaria, de tijolinho, a cama, uma madeira e o colchão em cima. E era muito, assim, simples. É um prédio do lado da piscina do Ginásio Ibirapuera, ali tem um ginásio redondo, aí tem a piscina, aí do lado da piscina tem um predinho bem estreito, bem fininho o prédio. É ali que eu morei. E o prédio, assim, o Projeto Futuro, a gente… o pessoal falava que era Deus cuidando do mundo, a outra mão só no Projeto Futuro (risos), porque ali era pra ter acontecido muita coisa. Era judô, atletismo, natação e vôlei. Não era só judô, eram muitas modalidades, muitos atletas, masculino e feminino. Então era um local cheio de jovens, cheio de atletas buscando seu sonho, muitos de origem humilde, do interior, de vários lugares do Brasil, tentando a vida ali. E era muito legal, porque os atletas que moraram comigo, a Maurren Maggi morou comigo, foi campeã olímpica; o Jadel Gregório, triplista, que foi campeão mundial, morou comigo, vivia no meu quarto; o Rafael Silva, o Baby, foi medalhista olímpico do judô; o Kitadai foi medalhista olímpico, passaram por ali. Era uma referência o Projeto Futuro e ali acontecia de tudo, das brincadeiras de jovens, de trote, enfim, saudável, de brincadeiras, enfim. Mas, assim, foi uma lição de vida pra mim, não só de esporte, que foi importante pra eu poder também, obviamente, lapidar e seguir minha carreira, mas foi uma história de vida, foi uma lição de vida, de não desistir, de persistir, de saber que você precisa conviver com as pessoas, que você precisa respeitar as pessoas, independente do que ela pensa, do que ela acredita. Foi uma lição, uma escola na vida, o Projeto Futuro é uma escola da vida.
P/1 - E como foi ter seu irmão perto?
R - Um alívio (risos), porque ele me protegia. Assim, muitas das tarefas de calouro ele fazia pra mim, porque aí eu... “Fica tranquilo que eu faço”, porque enfim, todo dia, um ano, a gente tinha que fazer algumas coisas no projeto, mas eu vejo assim: como a gente tem que pagar o preço pra conquistar nossos objetivos e o preço que eu tinha que pagar era aquele, eu tinha que morar ali, era o melhor lugar pra se treinar, então eu não podia ir pra outro lugar, eu precisava suportar aquilo. Então era como que o preço que eu tenho que pagar pra atingir o meu objetivo, pra... né? E isso me moldou, assim, a encarar as dificuldades que surgiram depois, já medalhista, com lesões, com frustrações, com derrotas. Eu acho que tudo que aconteceu depois foi fácil, porque aquele ano foi uma história de perseverança, de não desistir dos seus sonhos e acreditar e acreditar e dar uma chance pra você. Quantas pessoas passaram por ali, desistiram, que poderiam ter sido medalhistas olímpicos, porque não suportaram. Então ali foi importante pra mim.
P/1 - Quanto tempo você ficou lá?
R - Quatro anos. Eu fui medalhista olímpico em Sydney morando ali, eu morava no Projeto Futuro, no alojamento, quando eu fui vice-campeão olímpico.
P/1 - E como era o dia a dia de vocês?
R - Então, a gente treinava dois períodos, a gente treinava das oito às dez da manhã e das oito às dez da noite. E à tarde a gente ia pra escola, então pegava o circular ali na Brigadeiro Luís Antônio e aí eu ia com o ônibus até a Avenida Bandeirantes, tinha uma escola ali chamada Manoel de Paiva, uma escola estadual, se não me engano, e eu estudava ali. E como eu era calouro, então, assim, tinha veterano, e aí eu tinha que chegar sete horas no tatame, não era às oito. Chegava às sete, aí eu o ajudava no treino individual dele, caía pra ele, depois eu começava a treinar às oito, com o grupo das oito às dez. E alguns dias da semana, depois das dez, eu ia pro parque correr, Parque do Ibirapuera. Aí voltava, tomava banho pra escola. Aí voltava da escola e treinava, das oito às dez. Foi praticamente um ano assim, nessa rotina: treinava às sete, das sete às oito, com o meu veterano, depois das oito às dez, depois às vezes eu corria no parque, e depois ia pra escola e depois, das oito às dez da noite.
P/1 - E sua juventude, que recordações você tem desse período? Você se divertia como? Como eram os amigos?
R - Assim, eu não tive muita... não tive muito tempo pra diversão, porque eu já estava nesse processo de treinamento, estava viajando já, pra Europa, pro Japão, porque eu fui muito precoce, fui campeão mundial juvenil júnior em 1998, com dezesseis anos, então não tinha muito tempo. Final de semana, meu pai, ou estava em São Paulo, ou a gente ia pro interior. Então sexta-feira, no último treino, acabava o treino, a gente saía correndo, pegava o ônibus e ia pro Terminal Tietê pegar o ônibus, ia pro interior e chegava sábado de manhã em casa, ficava sábado, domingo à noite pegava o ônibus pra estar segunda-feira de manhã em São Paulo pra treinar já às oito horas da manhã. Então isso foi combinado no primeiro ano: ou meu pai estava aqui no final de semana, ou a gente ia pro interior, porque final de semana não tinha treino, então a gente ficava solto ali. Obviamente que tinha, o projeto fechava às dez horas da noite, porque tinha muita gente ‘de menor’ ali, mas adolescente, você sabe como é, então tinha uma preocupação muito grande do meu pai. E eu não tinha idade pra ir em festa, pra ir em balada, então eu não podia sair, então eu ficava no Projeto Futuro, ou eu ia pra casa, no final de semana. Então, isso foi até... 1997, 1998, 1999. E aí 2000, quando eu fiz dezoito anos, aí eu já estava num outro momento, assim, de treinamento também. Então, obviamente que eu me divertia, saía algumas vezes com os meus amigos, saía mais durante o dia, no sábado ou no domingo. Mas, por exemplo, eu não pulei um carnaval, eu nunca fui em carnaval, porque começo do ano sempre eu estava na Europa, o tour do judô começava sempre em janeiro, então a gente passava dezembro treinando, porque no comecinho de janeiro a gente estava viajando, já. E aí ficava janeiro e fevereiro fora, normalmente. Então eu não lembro de ter ido pro carnaval, não fui, não curti carnaval na minha vida, porque não batia com a agenda e com a minha rotina.
P/1 - Tiago, teve alguma competição muito significativa? Imagino que várias, mas assim, se você puder nomear, contar um pouquinho pra gente uma, até os dezoito, muito marcante pra você.
R - Até os dezoito? Tirando os dos jogos olímpicos, acho que os Jogos Mundiais da Juventude. Na verdade, é uma olimpíada da juventude. Foi em 1998, em Moscou. Foi marcante, na verdade foi muito marcante, porque a gente foi de FAB, Força Aérea Brasileira, Sucatão. Não sei se você já ouviu falar no Sucatão. E aí eles adaptaram o avião militar com aquelas poltronas e a gente foi pra Rússia com esse avião, e foi pingando, gotejando, ficava muito frio nesse, no voo. Eu cheguei lá, minha garganta atacou e tive amigdalite. Eu fui na abertura, na própria vila, passei mal, fui pro departamento médico do Brasil e tive que entrar no antibiótico e os médicos falaram que eu não tinha condições de lutar, porque eu estava muito mal, eu estava doente, doente, doente. E eles me apelidaram de “amarelinho”, porque eu estava amarelo, eu cheguei lá quase desmaiando, vomitando. E aí quando eu fui campeão, o técnico: “Ô, doutor, lembra do amarelinho? Amarelinho foi campeão!” “Não é possível, o amarelinho ganhou! Amarelinho foi campeão! Ele estava doente há uma semana!" (risos) Então foi uma competição muito legal pela diversidade, e porque foi a primeira competição que não era só o judô, eram todas as modalidades. Então marcou bastante. E foi numa vila olímpica, a gente foi no Circo de Moscou... nossa, foi muito legal essa viagem, essa experiência da primeira competição mais importante pra mim, então foi muito especial.
P/1 - E como foi desenrolando sua vida, já na maioridade?
R - Aí no mesmo ano fui campeão mundial Sub 21, com dezesseis anos, em 1998. Aí, em 2000, eu fui vice-campeão olímpico, com dezoito anos. Aí minha vida meio que abriu, assim, já não era mais uma promessa, um jovem e tudo, já era uma realidade. E aí, depois de 2000 eu tive um problema cirúrgico, na verdade eu tive uma infecção, eu fiz uma cirurgia no joelho, bursite, eu tive uma complicação cirúrgica e eu fiquei um ano afastado do judô, um ano com infecção, mais ou menos. Um ano, vai. E aí, depois, quando eu voltei a competir, eu não conseguia mais, eu engordei quase vinte quilos, porque eu fiquei um ano parado, infecção, quase não fazia nem atividade física e aí eu mudei de categoria. E aí eu fiquei um grande período sem ter bons resultados, porque eu mudei, eu era até 73 quilos, em Sidney, categoria leve, e eu passei a competir até 81 quilos, categoria meio médio. E aí surgiu uma rivalidade também entre eu e o Flávio Canto. Foi bem conhecida no Brasil. E eu fiquei sete anos sem ter um grande resultado, sete anos. Então, assim, eu saí de casa em 1996, 1997 fui pra São Paulo, 1998 fui bicampeão do mundo, 2000 vice-campeão olímpico, aí depois eu fiquei sete anos perdendo, praticamente. Então foi um período difícil, mas depois as coisas voltaram a acontecer, fui campeão mundial, fui campeão nos Jogos Pan Americanos, conquistei minha segunda medalha olímpica, depois fui tricampeão dos Jogos Pan Americanos. Enfim, aí minha vida foi direcionando cada vez mais para uma profissionalização e viver ainda mais focado, 100%, no alto rendimento.
P/1 - Nesses sete anos, você pensou em desistir, em algum momento?
R - Desistir não, eu sempre fui muito teimoso, sabe? Depois do Projeto Futuro, aí eu mudei num apartamento do lado do ginásio, fiquei um ano ali, aí depois eu fui pra São Caetano do Sul, aí eu morei de 2000 até 2006, quando recebi a proposta pra ir pra Sogipa, clube de Porto Alegre, e aí lá eu morei de 2006 até 2008, e lá eu fui campeão mundial, campeão dos Jogos Pan Americanos e bronze olímpico. E nesse período de sete anos que eu te falei, além de ter ficado fora dos Jogos Olímpicos de Atenas, que foi muito difícil pra mim, porque eu perdi a vaga pro Flávio faltando dois segundos, numa punição que não existiu, na verdade, né, a punição não existiu, enfim. E aí eu fiquei fora dos jogos olímpicos e foi bem, assim, foi bem pesado, porque eu tinha acabado de ser medalhista olímpico nos jogos anteriores e no próximo eu estava fora dos jogos. E o ápice desse momento foi em 2007, eu acho, no começo do ano, meu pai me ligou um dia e falou: “Filho, eu tô indo pra Porto Alegre, pra te buscar". Eu falei: “Como assim, pai, ‘estou indo pra Porto Alegre’ pra me buscar?” “É, porque você já está há bastante tempo, são sete anos. Eu sei que você está sofrendo, os resultados não estão acontecendo, tudo e vamos estudar”. Eu tinha vontade, lá atrás, de fazer medicina. Aí, depois de medicina, eu fiz Direito três anos, eu tranquei Direito. Aí meu pai: “Volta a estudar, volta pro Direito." Enfim, eu queria fazer medicina, meu pai tinha pólio, eu falei: “Não, pai, eu não posso largar agora". E aí ele falou assim: “Amanhã eu tô aí”. Ele pegou o carro e dirigiu mil e trezentos quilômetros, no outro dia ele estava lá. E aí a gente conversou dois dias, assim, choramos muito naqueles dias, e eu falei que tinha alguma coisa dentro de mim que falava que eu precisava de dar mais uma chance pra mim. Eu falei: “Pai, tem alguma coisa dentro de mim falando pra eu não desistir, eu preciso dar mais uma chance pra mim” “Ai, filho, mas já são sete anos”. Aí eu falei: “Pai, eu sei, mas eu não sei, eu preciso de mais um tempo, eu preciso de mais um tempo. Alguma coisa dentro de mim está falando pra continuar”. Um mês depois fui campeão do mundo. Então, às vezes é muito assim: a vida é muito louca, porque como as coisas podem virar de um de um momento pro outro, as coisas viram e a gente não tem controle das coisas. E aí, nesse mundial, que foi no Rio, eu fui considerado o melhor atleta de judô do mundo. Então, pelo desempenho, porque foram sete lutas e eu ganhei todas as lutas por ippon, que é o nocaute, o golpe perfeito. E aí era uma coisa praticamente impossível de acontecer, eu ser campeão do mundo, no Brasil, enfim. Mas foram sete anos assim de recomeços, na verdade, porque a gente precisa aprender... na verdade, eu precisei aprender a perder, e aprender a recomeçar, que a nossa vida muitas vezes não é um ponto final, é uma vírgula, né? Então, eu sempre, a segunda-feira era o melhor dia pra mim, porque eu perdia o final de semana e aí as segundas-feiras eram os melhores dias, porque era quando eu recomeçava, retomava o treino, porque ficar sem treinar era uma tristeza pra mim, perder também era uma tristeza, então... e as competições aconteciam nos finais de semana, então segundas-feiras eram os melhores dias, porque eu voltava a treinar e era onde eu ficava o final de semana pensando, replanejando como que eu podia melhorar, e na segunda-feira é onde eu começava a colocar em prática. Mas foi legal, assim, eu até falo que o que aconteceu nesses sete anos foi o meu maior presente, porque o que aconteceu fez com que eu me tornasse o melhor do mundo. Então, é engraçado, porque às vezes a gente critica as coisas, a gente acha que as pessoas estão ‘pegando no nosso pé’ ou criticando, e às vezes a gente esquece que aquilo é uma forma de você melhorar, de você tentar melhorar como pessoa, tentar melhorar como atleta, porque é difícil a gente olhar pra gente, a gente sempre coloca culpa no outro, quando acontece alguma coisa e eu passei a não colocar culpa em ninguém, nesse período. Eu falei: “Pô, se está dando alguma coisa errada, a culpa não é do técnico, a culpa não é da comida, a culpa não é do meu sono, a culpa não é do suplemento, eu preciso melhorar alguma coisa”, aí eu ia pro tatame e tentava melhorar. E isso foi me moldando e eu fui aprendendo que as derrotas não são somente derrotas, elas têm um significado nas nossas vidas, as derrotas, né? Da gente melhorar, da gente evoluir, da gente amadurecer e a gente ser melhor na próxima vez.
P/1 - Como foi essa virada pra você, de se tornar campeão do mundo? Como foi essa sensação, de ter todo esse reconhecimento, melhor atleta do judô? Enfim, como foi, você lembra da sensação?
R - Nossa, lembro! Eu lembro como se fosse hoje, porque as pessoas, assim... o atleta, a gente tem uma vida muito ingrata, porque você é campeão numa competição e depois você perde e as pessoas falam como se você não tivesse sentimento, como se você fosse uma máquina, como se você... e aquilo que as pessoas falam de você te machuca. Então, por exemplo: “O Tiago já era pro esporte; o Tiago já não tem mais chance; o Tiago não vai dar mais resultado, nunca mais; o Tiago já acabou com o esporte”, cansei de ouvir isso. Cansei, cansei, cansei, cansei de ouvir. Cansei. Muitas vezes, não foi uma, nem duas. E na jornada, assim, analisando assim, Luiza, vendo, fazendo uma análise, poucas pessoas vão falar que você consegue na vida, muitas pessoas vão falar que você não consegue. E quando eu fui campeão do mundo, eu lembro que eu agradeci no tatame, eu lembro de ter levantado assim, olhando pra cima... até me emociona, assim, porque foi tão forte aquele momento, que parecia que Deus estava olhando pra mim, aquele momento assim, sabe? Parecia que eu estava olhando pra Ele, assim. Eu falei pra Ele: “Obrigado, obrigado por esse presente”, porque foi muito marcante ganhar um mundial na minha cidade... assim, no meu país, no Rio de Janeiro. Não na minha cidade, no meu país. E com tudo que tinha acontecido, os anos, da minha lesão, passou muita coisa, muita, muitas coisas. Quantas e quantas vezes eu fui chorar atrás do ginásio, sozinho, sentado, na Europa. E são coisas que ninguém vê, as pessoas não veem isso, os bastidores, ninguém vê o que acontece nos bastidores. E aí eu lembro das pessoas - quando acabou o mundial - que me criticaram, depois, sabe: “Pô, Tiago, vamos comemorar”, porque existia uma comemoração, um jantar pro atleta que era medalhista aquele dia e tal. E eu falei: “Não, não vou, vou ficar no meu quarto. Vou jantar no hotel e vou ficar no meu quarto, porque eu preciso descansar”, sabe? Eu precisava de um momento pra mim, pra eu agradecer, refletir. Foi um momento meu, foi legal (risos).
P/1 - Aprender a ganhar também, né? Que é isso: tem que aprender a ganhar e perder.
R - É! Sim, sim. Porque a gente, você pode contar com poucas pessoas na vida, e quando eu estava no ‘fundo do poço’, lá embaixo, assim, perdendo, perdendo, perdendo, você pode contar com a família só e poucos amigos. E quando você ganha, aí você tem que compartilhar e dividir com as pessoas que estavam com você, não com as pessoas que querem só desfrutar daquele momento, porque você ganhou. E aí eu falei: “Não, eu não quero andar com essas pessoas agora. Desculpa, não quero. Eu quero estar com as pessoas que falaram que eu podia, que eu conseguia conquistar de novo aqui, voltar a ter resultado". Essas pessoas que eu queria estar. E, enfim. (risos)
P/1 - E como foi seguindo?
R - Aí depois eu fui pra... aí, depois do mundial, em 2007... aí em 2008 eu fui bronze olímpico em Pequim, eu tenho o segundo jogos olímpicos. Aí já estava, já tinha voltado pra São Paulo, estava no Pinheiros. Depois de Pequim, voltei pra São Paulo, aí segui minha carreira, já estava assim, no meio pro final da minha carreira. Depois de 2008. Aí 2012 eu lutei Londres, fiquei em quinto, perdi a semifinal pro coreano e perdi na disputa de bronze pro grego. Em 2011 eu fui bicampeão dos Jogos Panamericanos, em Guadalajara. Em 2012 eu fundei a instituição, o Instituto que leva o meu nome e hoje a gente completa dez anos, e esse ano completou dez anos. Depois, 2016 foi meus últimos jogos olímpicos. Aí antes, 2015, eu fui também campeão dos Jogos Pan Americanos, fui tricampeão e aí já estava me despedindo do esporte, em 2012. Eu já sabia, depois de 2012, que seria o meu último ciclo olímpico, em 2016, eu já estava no meu quinto ciclo olímpico, bastante tempo, meu quarto jogos olímpicos se eu lutasse no Rio, aí já estava mais direcionando minha vida pós carreira, o que eu ia fazer, me preparando, me programando. Enfim, eu já estava mais, estava me preparando, o que eu ia fazer também depois, hoje, assim.
P/1 - Tiago, queria só voltar uma coisinha: você comentou que teve um momento que você não era mais promessa, você deixou de ser promessa e aquilo se tornou realidade. Que mudança de chave aconteceu? O que ‘rola na cabeça’, nos sentimentos, assim? Como é isso?
R - Eu... assim, na verdade, quando eu conquistei a medalha olímpica, eu nem tinha noção do que significava uma medalha olímpica, porque eu já tinha visto atletas, já tinha visto os atletas competindo, ganhando medalha, tudo, mas assim, comigo, com dezoito anos. E aí foi uma mudança, acho que não como eu encarava as coisas, mas como as pessoas me viam, acho que isso que mudou, porque eu não era mais um atleta revelação, era um atleta promessa, desculpa, é uma realidade, um atleta medalhista olímpico, fui vice-campeão olímpico com dezoito anos. Então, foi difícil pra mim, assim, lidar com tudo isso também, faltou um pouco de maturidade também, muitas pessoas se aproximaram, como eu falei, enfim. Meu pai fala que deveria ter ficado um pouco mais próximo de mim, mas estava também longe, a seiscentos quilômetros. Mas eu aprendi. Foi difícil, mas eu estava aprendendo. Eu precisava aprender. Meu irmão me ajudou bastante também, mais velho. Mas é uma gestão de carreira. É que antigamente tinha muito... hoje o esporte está mais, não vou falar profissional, mas está mais estruturado, eu acho. Eu acho, hoje, que as pessoas até têm mais mecanismos pra se capacitarem, pra lidar com as situações de conquistas, vai. Antigamente era diferente, é muito do self-made man, de você fazer sozinho, de você construir sozinho. E aí você... isso te deixa mais descoberto. Acho que hoje o esporte está mais estruturado, permite com que os atletas tenham acesso a mais informação, a mais profissionais, a equipe multidisciplinar, enfim. Mas foi, mudou. Assim, mudou, porque eu sempre fui muito simples, não me preocupo muito com as coisas assim: “Ah, eu sou isso, sou aquilo”, porque ser medalhista olímpico não me faz melhor que ninguém, não me faz maior que ninguém. Então eu sempre procuro trazer a simplicidade interior comigo, simplicidade de como eu lido com as minhas coisas, minhas relações, como eu construo as minhas coisas. E de repente você vira vitrine, você é um atleta, é o atleta olímpico. E eu era, do judô masculino, o mais jovem da história do judô, a conquista da medalha olímpica em Sydney, então isso mexeu um pouco comigo, assim: “Nossa, tão rápido! Tão novo!" Mas não tem como mudar o passado, só ficou o aprendizado.
P/1 - E agora, dando um salto em 2012, como foi a decisão, o que fez com que você quisesse montar o Instituto [Tiago Camilo]?
R - Tá. O meu primeiro contato com o terceiro setor foi em 2000, quando eu voltei de Sydney, eu voltei pra minha cidade, interior de São Paulo, fizeram uma festa, um receptivo muito bacana pra mim e a associação onde eu comecei estava passando por uma dificuldade, e o meu pai, junto com outros professores, antigos professores da associação, levaram o projeto pro prefeito e foi pra Câmara e aprovou o projeto de lei, até hoje está esse projeto em vigor, e a prefeitura ajuda a associação com recurso mensal, até hoje. Então, essa foi a primeira experiência com o terceiro setor, com projeto social. Depois, obviamente, da conquista olímpica, da medalha olímpica, eu comecei a viajar bastante com a confederação, ou com o Comitê Olímpico, pra visitar alguns locais, visitar alguns projetos, algumas regiões carentes e levar, contar minha história, falar sobre judô. E eu tinha feito algumas ações pontuais, vi quimono, recursos próprios, ajudei, fiz uma vaquinha com os amigos, ajudamos em alguns projetos. E eu falei: “Pô, acho que eu deveria fazer isso de uma forma mais organizada e consistente”. Organizar melhor uma ação social, um projeto de impacto. E aí eu comecei, em 2012, meu primeiro polo foi em Paraisópolis. Você é de São Paulo? Então, a comunidade de Paraisópolis foi nosso primeiro polo, e ali a gente começou um trabalho com as crianças. Então eram 150 crianças, em 2012. E foi um projeto assim, que não era pra mim, porque quando você faz um projeto social, ele tem muita questão pelo outro. E as pessoas falam: “Não tem nada mais egoísta que você pode fazer do que ajudar o outro”, porque a sensação é tão boa que você quer fazer aquilo sempre. E era pras crianças, né? Então, na verdade, o Instituto tem uma função clara de levar a esperança pras crianças, levar acesso ao esporte e obviamente transformar as minhas conquistas em outras conquistas pras crianças, essa é a nossa missão no projeto. E parece pouco ainda, porque a gente vê as crianças, assim, sempre pode fazer mais. Então a gente começou com um projeto esportivo em 2012, hoje a gente está em cinco estados, a gente atende mais de duas mil crianças hoje, a gente está oferecendo bolsa de estudos, a gente está oferecendo curso de inglês, a gente faz ação de corte de cabelo, a gente leva as crianças pro teatro, a gente leva as crianças pro cinema. A gente deixou de ser só um projeto de judô pra ser um projeto de formação humana, de levar essa questão do esporte. Porque o judô tem muito da questão da cultura japonesa, do respeito, da disciplina, do coletivo, não é o ‘eu aprendo, eu ganho’, é ‘nós aprendemos, nós conquistamos, nós evoluímos’. Então, o judô tem muito desses ensinamentos e tem feito, uma diferença grande pras crianças. A gente, na pandemia, distribuiu quase sete mil cestas básicas pras famílias. Então a gente apoiou uma vez, depois apoiou os outros meses. A gente fez muita coisa bacana pro projeto. Não sou sozinho, tem muitas pessoas que ajudam, tem os conselheiros, têm as empresas, os professores, todo mundo é engajado aí, nessa construção do amanhã.
P/1 – Então, eu queria só te perguntar quais são os desafios e os aprendizados de fazer esse tipo de trabalho e poder ver as transformações causadas no dia a dia desse pessoal?
R - Quando você vai na comunidade, você vê o olhar das crianças, os sorrisos, você vê que tem a gratidão, que tem... parece que é assim: “Você se preocupa comigo”. Isso é legal demais, assim. E isso é nossa energia, a nossa força, porque a gente passa por inúmeras dificuldades, a gente trabalha só com lei de incentivo, a gente tem o projeto de execução de doze meses, então capta, executa e presta conta, depois capta, executa, presta conta de novo, todos os anos esse mesmo mecanismo, mas quando a gente vê o resultado, as crianças aprendendo judô, as crianças levando o judô pra vida, saindo melhores de lá, tendo a oportunidade de não ir pra um caminho, que a gente sabe que é um caminho sem volta pra eles, a gente sabe das realidades dentro da comunidade. Enfim, são caminhos construídos no projeto que nos deixam felizes, todos, porque a gente pode melhorar as crianças, a gente pode melhorar o amanhã. Só que a gente tem que investir, a gente tem que construir e precisa de tempo pra isso. Quando eu era atleta, eu tinha menos tempo, agora tenho mais tempo dedicado ao projeto, eu tô mais presente, tô mais... tô acompanhando mais o desenvolvimento das atividades, eu vejo quanto é importante, quanto faz a diferença. E quando você vê o relato da família, dos pais, dos avós, a gente vê que faz a diferença, porque a gente fala: “Ah, é só uma aula de judô”, mas não é só uma aula de judô, ali uma criança se diverte, entendeu? Ali é um momento de felicidade dele, a gente tem a última sexta-feira do mês, a gente faz os aniversariantes no mês, então eles vão lá, tem o bolo, a festinha, as famílias se organizam, eles organizam a festinha, é muito legal, muito legal.
P/1 – E, Tiago, quais foram os principais motivos que te levaram a trabalhar com inclusão, com pessoas e crianças com Transtorno de Espectro Autista?
R - Ótimo. Quando eu fui... tem um projeto que acontece, desde 2012, mas quando eu deixei de competir, em 2017, eu abri uma academia aqui na Vila Nova Conceição, abri uma academia. E aí eu já estava no processo de desenvolvimento da metodologia, tem um processo metodológico, comecei lá atrás a desenvolver, e a gente recebeu uma criança autista aqui na academia, acho que foi em 2018, 2017, 2018, o Tonico. O Tonico está até hoje com a gente, aqui. Eu sempre falei: “A gente tem que ser academia de portas abertas”, porque o Espectro, assim… muitas pessoas falam muito, mas é muito pouco, não divulgado, acho que hoje é mais divulgado, mas eu acho que os diagnósticos estão aparecendo muito mais hoje do que antigamente, então consegue ter mais diagnóstico hoje do que antigamente. E pouco se falava sobre o desenvolvimento do judô dentro do Espectro. Como que a gente pode desenvolver uma criança autista dentro do judô e quais são os benefícios dentro do Espectro, causados pelo judô? Então a gente começou com o Tonico, assim, eu sabia muito pouco, fui ler, fui estudar pra ver como que a gente conseguia melhorar a vida, melhorar a vida da criança. Então no médio prazo a gente começou a ver, Luiza, melhora no comportamento auto lesivo, hetero lesivo, melhora no contato visual, porque eles não olham nos olhos, estão sempre olhando pra baixo. Então quando: “Olha pro sensei, olha pro sensei”, eles olham pra você, olham pra gente.? Diminuição de ecolalia, diminuição de medicamento controlado, porque tem um gasto energético. Aí a gente foi recebendo mais crianças, mais crianças, a gente chegou a ter trinta crianças na academia, dentro do Espectro. Trinta crianças autistas praticando judô, na academia. E aí desde uma aula personalizada com professor, até uma criança que já passou por esse processo de dez aulas e foi incluída no grupo. Então eu sempre quis ser uma academia de portas abertas. Quem chega aqui e quer aprender judô, a gente tem que ensinar judô, independente da condição, independente das dificuldades, independente da condição social, a gente tem que receber essa criança aqui, receber esse aluno. E aí a gente foi aprendendo, a gente desenvolveu um material pedagógico, economia de fichas, _____, material de apoio visual, a gente foi melhorando o nosso programa, nosso projeto para que mais crianças fossem incluídas, e a gente conseguisse, obviamente, entregar pras famílias um resultado efetivo na vida delas. Há um mês uma mãe chegou aqui e ela falou que foi chamada pra ir numa escola particular, porque o filho dela, na sala de aula, tem um amiguinho autista, ele começou a ter uma crise dentro da sala de aula, ninguém sabia o que fazer, e o meu aluno aqui da academia foi lá e o abraçou. Abraçou e a criança se acalmou, porque quando você abraça, eles se acalmam. E aí a mãe foi chamada pra ir na escola: “Mas por que ele fez isso?” “Por quê o quê? Eu não tô entendendo” “Não, é que tinha uma criança autista, aconteceu isso” “Ah, não, mas é porque ele fez isso no judô, porque no judô, na turminha dele tem criança autista".
Então, o que ele fez? Ele repetiu o que ele aprendeu no judô, ele foi lá e abraçou a criança, acolheu a criança, porque no grupinho dele, na turminha dele aqui, tem criança autista na turma. Então, olha só como isso impacta não só as crianças autistas, mas as crianças também típicas, que não estão dentro do Espectro, mas que aceitam essas crianças e sabem que todas, que todos nós temos dificuldades, o que muda é que são as dificuldades diferentes, distintas, mas todos nós temos nossas dificuldades. Eu sempre falo pros pais, aqui, das crianças... “Tiago, mas meu filho está se desenvolvendo? Ele está aprendendo? Ele está avançando? Ele está acompanhando a turminha?” “Tá, está melhorando, dentro das dificuldades dele, está evoluindo”, como tem outras crianças que têm outras dificuldades também e estão avançando. Então tem criança que não consegue ficar sentada, tem criança que não consegue fechar os olhos, que a gente faz a meditação no final do treino, por trinta segundos, tem criança que tem comportamento agressivo. Então todo mundo tem um desafio, tem uma dificuldade. A gente está aqui no judô trabalhando isso, melhorando isso e colaborando, contribuindo pra melhora das crianças.
P/1 - Tiago, tem algum ensinamento, aprendizado do judô, filosofia, valor, que você leva pra sua vida, fora dos tatames?
R - (risos) É, na verdade tem dois... até tenho dois quadros aqui na minha academia, que fica no... a gente tem lá o costume de deixar no meio o Sensei Jigoro Kano, que foi o criador do judô, ele é considerado, no Japão, o pai da Educação Física, foi Ministro da Educação e aí eu tenho dois quadros que foram: um foi o que ele falou e outra é um termo japonês. Um é Jita Kyoei. Ele falou que no judô… resumindo, vai, prosperidade mútua, então eu e você crescer juntos. Então, Jita Kyoei é muito do coletivo, não é eu, nós fazemos juntos. Eu falo: “Nós começamos a aula juntos, aprendemos juntos, terminamos juntos”. Todos os dias é isso, nós vamos fazer, praticar isso todos os dias. E o outro é Shoshin Kantetsu, que é, resumindo, vai, “primeiro objetivo de vida, realizar até o final da vida". Então são dois ensinamentos que eu levo muito, que é prosperidade mútua, a gente ter que crescer, fazer o crescer no coletivo e persistir, porque eu vejo hoje que as crianças desistem muito rápido das coisas. Eles: “Ah, eu não quero mais! Eu não quero mais! Não gostei”. Desiste. “Ai, perdi, não quero mais, não quero fazer de novo”. E na academia eu tô sempre falando pras crianças: “Vocês precisam persistir, vocês têm que continuar. Na vida vocês não vão fazer só o que vocês querem, então vão ter que aprender a fazer algumas coisas que vocês não querem fazer, mas vão ter que fazer”. A gente não faz só o que a gente quer, eu não faço só o que eu quero. Então quanto mais cedo a gente começa a falar pra eles, de uma forma responsável, de uma forma cuidadosa, de acordo com as idades, menores serão as frustrações. Porque a frustração vai acontecer, que já é a frustração da vida: ganhar, perder, namorar, terminar namoro, entrar no emprego, não passar na prova. Isso vai acontecendo, é natural da vida. Mas como eles lidam com isso, como eles vão lidar com isso, né? Então, acho que o grande desafio do judô é fazer com que ele tenha essa força interior pra encarar a vida, que a vida é muito legal, a vida é mágica, é bonita, só que tem as dificuldades e as dificuldades você tem que saber encarar de cabeça erguida, porque são muitas.
P/1 - Querido, muito obrigada! Muitas perguntas teriam ainda: casamento, paternidade, mas acho que é isso. Só, por fim, queria te perguntar quais são os seus sonhos.
R - Ixi. Meu sonho? São poucos. Na verdade, a felicidade das minhas filhas, porque eu tenho quatro filhas, e eu quero só que elas sejam felizes, esse é o meu... a minha maior preocupação, minha felicidade vai ser vê-las felizes.
P/1 - Tiago, que prazer! Que prazer! Muito obrigada por esse tempo, mesmo. Espero que tenha sido gostoso pra você também, relembrar um pouquinho. Muitas coisas ficaram de fora, mas são recortes, né, e espero que suas filhas possam ver depois o seu registro e ter muito orgulho. Muito obrigada por esse tempinho! Ah, é isso. Muito sucesso!
R - Ah, Luiza, obrigado pelo carinho, pelas palavras. Enfim, eu tô superfeliz de ter compartilhado a minha história e é uma história de dedicação, de amor ao esporte, até hoje eu tô envolvido com esporte e, enfim, eu quero realmente deixar um legado aí pro Brasil, para as minhas filhas, pra minha família, de boas escolhas. Acho que isso é o mais importante.