Tecban - Histórias diversas
Entrevista com Eduardo Victor de Lima Vieira
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 5 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1247
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:17) P/1 - Bom dia, Dudu. Tudo bem?
R - Bom d...Continuar leitura
Tecban - Histórias diversas
Entrevista com Eduardo Victor de Lima Vieira
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 5 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1247
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:17) P/1 - Bom dia, Dudu. Tudo bem?
R - Bom dia, tudo bem, e com você?
(00:00:26) P/1 - Tudo ótimo. A gente vai começar a entrevista com a pergunta mais básica. Eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo, a data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R - Eu sou Eduardo Victor de Lima Vieira. Tenho 22 anos, nasci no dia doze de março de 2000, no Rio de Janeiro.
(00:00:46) P/1 - Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Foi um dia muito atípico, porque eu nasci com seis meses e meio, então não era pra eu nascer nessa data, [não] era pra eu ser pisciano. Foi um momento de muita tensão para a minha família, porque a minha mãe tem amadurecimento precoce na placenta, então foi um dia corrido porque ela estava passando mal. Eu não estava 100% formado, então foi um momento de muita tensão, tinha muita gente na maternidade porque as pessoas estavam muito tensas para saber como seria uma criança nascer com seis meses e meio, preocupados também com o estado de saúde da minha mãe, então foi um dia muito atípico. Não foi um dia inicialmente feliz, porque ninguém sabia o que poderia acontecer naquela sala de parto, então todo mundo relata isso com muita tensão, mas hoje com muito orgulho de tudo o que aconteceu depois disso.
(00:01:45) P/1 - E você sabe porque escolheram o seu nome como Eduardo Victor?
R - A minha mãe sempre gostou do nome Eduardo. O nome do meu pai também é Eduardo, mas meu nome não é Eduardo por causa dele. E Victor ela escolheu porque significa vitória.
(00:02:04) P/1 - Me conta um pouquinho sobre a sua mãe. Qual o nome dela? Como você descreveria a sua mãe?
R - Minha mãe se chama Eulélia. Ela nasceu no interior do Espírito Santo, em uma cidadezinha muito pequena chamada São Benedito, que não tem nem no mapa. Minha mãe sempre foi muito presente na minha vida, ela fez o possível e o impossível para que eu estivesse aqui, nesse lugar que eu estou hoje, tanto objetivamente, quanto subjetivamente. Eu sempre falo da minha mãe com muito orgulho, porque ela precisou, infelizmente, batalhar muito pra tudo o que acontecesse na minha vida de fato acontecer. Hoje eu tenho muito orgulho de quem ela é também; ela se formou há dois anos, com mais de cinquenta anos entrou na faculdade de Pedagogia.
Ela nunca deixou que eu deixasse de estudar, nunca deixou que o estudo não fosse prioridade na minha vida, porque ela sabia como isso era importante para as pessoas. Por mais que ela não tivesse conseguido ter esse acesso no tempo que as pessoas esperavam dela, ela sabia que isso seria importante para mim e para a minha irmã.
(00:03:17) P/1 - E a parte materna da sua família, você sabe de onde eles vieram?
R - O meu avô… A gente não sabe de onde a família dele veio. A minha avó [a gente] também não teve muito acesso, então eu sei muito da parte da família dela desse momento, que a mãe dela morava nessa cidadezinha pequena no Espírito Santo, que é praticamente uma vila. A referência é o filme Bacurau, quando eu assisti eu entendi que era assim, então tudo o que eu sei é isso. Ela é lá do interior do Espírito Santo e vieram para o Rio de Janeiro tentar uma vida melhor. Minha avó foi auxiliar de serviços gerais a vida toda e o meu avô era zelador.
(00:04:06) P/1 - Eu queria que você falasse agora um pouquinho sobre o seu pai, e também sobre a parte paterna da família.
R - Meu pai… A gente teve uma relação muito complicada desde que eu sou muito novo, porque meus pais se separaram desde que eu tinha quatro anos de idade, e ele nunca foi um pai ausente, mas a gente teve muitas questões na nossa construção de afetividade, que é muito abalada até hoje. Hoje, que sou adulto, eu entendo as questões dele, então a gente vive um pouco mais em harmonia, mas a gente não tem tanto esse contato, embora a gente se veja o tempo todo, porque meus pais são amigos até hoje. Eles não tem nenhuma questão, nunca deixaram de se falar, minha mãe nunca me afastou dele, mas por eu ter as minhas perspectivas de vida, isso acabou naturalmente afastando a gente. Hoje tem sido um pouco mais tranquilo.
A família do meu pai também… Da minha avó eu não sei muito, só sei que a minha avó era lavadeira em Belo Horizonte, e o meu avô, embora ele tenha morrido há pouco tempo, eu não trocava tanta ideia com ele, então não sei muito das origens.
(00:05:17) P/1 - Certo. E tem algum parente, alguma pessoa da sua família que você gostava muito desde criança, que vocês eram próximos?
R - A minha irmã e a minha avó por parte de mãe são as pessoas mais próximas de mim até hoje. O marido da minha avó, que faleceu quando eu tinha nove anos, o sonho dele era ser um cantor reconhecido. Hoje eu trabalho com internet, já apareci em televisão, já dei entrevista para alguns jornais, estou aqui fazendo isso para o Museu, e eu sempre fico imaginando como ele se sentiria vendo isso.
(00:05:56) P/1 - E me conta um pouquinho sobre a sua irmã, se ela é a mais nova, ou mais velha. Qual o nome dela, como é a relação de vocês?
R - A minha irmã se chama Aline, ela é dezesseis anos mais velha que eu, e quando eu nasci dizem que ela aproveitou a gravidez da minha mãe como se fosse a dela, porque o sonho dela era ter um irmão. Ela sempre me chamou de filho, então a nossa relação é muito materna também. A minha irmã revezava com a minha mãe de hora em hora para poder me dar remédio, por exemplo, porque eu precisava tomar muitos remédios quando eu nasci; o intervalo era de uma em uma hora, então minha mãe dormia uma hora e ela dormia uma hora. Mesmo ela sendo adolescente, tendo que ir para a escola no dia seguinte, ela fazia questão de fazer parte desse momento, e a minha irmã foi a pessoa que me deu todos os acessos que eu tive na minha vida, porque quando a minha mãe se separou do meu pai, ela precisou trabalhar no mercado, então ela ficava muito tempo fora.
A minha irmã se casou muito nova. É professora do Estado aqui no Rio, e ela é professora desde que ela tem dezenove anos, desde antes dela se formar na faculdade. Eu tive acesso às coisas com a minha irmã muito cedo, ela sempre fez o possível e o impossível para que eu pudesse ter as coisas que a minha mãe não pudesse me proporcionar naquele momento, porque se não fosse ela teria sido muito mais difícil.
O nome dela é Aline, eu esqueci de falar.
(00:07:22) P/1 - Tem alguma história da sua infância que te marcou que você lembra até hoje?
R - Nossa, eu acho que tem muitas coisas na minha infância, eu sempre lembro como… Eu sou um jovem millennial, cresci com a internet, e sendo um jovem com deficiência o meu acesso à rua era muito limitado, porque embora eu ande, eu fale, sempre fui visto como uma pessoa muito fragilizada, então eu tive muitos impedimentos de poder viver, brincar na rua. Sempre lembro dos momentos que eu me senti muito sozinho e encontrei na internet o acolhimento de pessoas que às vezes eu nem conhecia, e eu conseguia socializar de alguma forma.
Acho que o poder da fala foi o que me salvou, porque eu sempre fui muito comunicativo, então isso me salvou de momentos de exclusão.
Eu lembro sempre das minhas primas, Maria Eduarda e Maria Luiza, que sempre estiveram comigo em todos os momentos, a gente sempre… Eram os momentos que eu podia ser livre e ter direito à infância. Muitas vezes eu ia para a casa delas, a gente brincava sempre, e aí eu lembro que sempre eu estava em um lugar aleatório com a minha mãe, encontrava minha tia Paula, que é a mãe delas, e eu sempre ia aleatoriamente para a casa delas, ficava lá três, quatro dias.
Eu sempre tinha que usar as roupas da minha prima. A gente brincava de queimada, por exemplo, e eu usava as roupas dela porque eu nunca levava roupa, e eu nem ligava. Os meninos me zoavam, mas eu nem ligava, ficava só vivendo a minha vida e era isso. Depois de um momento, já nem era uma questão para ninguém, porque todo mundo sabia que toda a semana eu ia estar com as roupas da minha prima, e é isso, entendeu? Esse era eu.
(00:09:20) P/1 - E falando um pouquinho sobre a sua infância, você se lembra da casa, ou apartamento que você passou a sua infância? Você se lembra como era?
R - Foram dois momentos. Eu nasci na cidade do Rio, mas logo depois fui morar em Niterói. Meu pai trabalhava em uma espécie de Ceasa, aqueles grandes mercados. Inicialmente, ele tinha uma lojinha de produtos de laticínios, e eu morava em uma casa de vila na frente desse lugar, e era uma casa com um quintal enorme, então era muito divertido brincar, tomar banho de bica.
Logo depois eu me mudei para a cidade do Rio. Era uma casa de vila também, mas era uma casa muito menor. Eu lembro que ela tinha um eco muito grande, porque era uma casa grande, de dois andares, e ela tinha uma sensação meio melancólica. Eu lembro muito dessa sensação quando era muito pequeno, logo que me mudei.
Eu passei a maior parte da minha vida, até os meus dezessete anos lá, então foi o lugar que eu me encontrei, que eu me descobri, que eu consegui me conectar, me reconectar, chorei, acho que eu também sorri. Foi um lugar em que eu entendi que eu poderia ir muito mais além daquele lugar em que eu estava, que eu não precisava me limitar àquele espaço.
(00:10:43) P/1 - E o que você costumava fazer na sua infância, além das brincadeiras que você fazia com as suas primas. Do que você gostava? Você gostava de assistir TV, você gostava de ficar na internet?
R - Inicialmente era difícil ficar na internet porque internet discada era cara, e [no] fim de semana era muito mais cara, então minha mãe limitava muito esse acesso. [Em] dias de semana eu tinha que estudar, então eu não podia ficar muito na internet.
Eu sempre fui uma criança muito estudiosa, porque eu fui bolsista toda a minha vida praticamente, até o momento que eu fui para a escola pública, mas eu fui bolsista, então eu precisava manter boas notas. Sempre fui uma criança nerd.
Eu não tinha tanto contato com criança o tempo todo, sem estar na escola, ou essas minhas primas que eu estava falando, então eu sempre fui uma criança que conversava com os adultos. Eu lembro que toda vez que eu estava no MSN abria aquela tela de notícias; eu sempre lia tudo aquilo, sempre conversava com a minha mãe, com os meus avós, sobre as coisas da semana,
e a minha irmã falava que por mais que ela fosse professora eu era bem mais informado do que ela.
Eu fui uma criança muito pra frente, porque eu sempre fui adiantado também na escola, então naturalmente o meu círculo de amizades era mais velho que eu, entre um a três anos, dependendo de quando as pessoas tinham nascido. Eu sempre tive que me virar para poder dar conta dessas demandas, dessas relações.
(00:12:19) P/1 - Tinha alguma comida que você gostava de comer quando era criança que você gosta até hoje?
R - Com certeza. A minha avó nasceu lá no interior do Espírito Santo, então ela faz um angu maravilhoso, um angu com taioba que eu amo até hoje. Toda vez que eu vou na casa dela eu faço ela fazer para mim, e a minha avó me mima muito, então se eu pedir ela vai fazer, com certeza.
(00:12:46) P/1 - Você tinha algum sonho de infância? Alguma coisa que você pensasse assim: “quando eu crescer eu quero ser isso“?
R - Meu sonho era ser apresentador de televisão, eu sempre quis. Eu achava que as pessoas estavam dentro da TV; como era TV de tubo, eu achava que o apresentador estava lá dentro, e o meu sonho era trabalhar naquilo ali.
(00:13:10) P/1 - E o que você gostava de assistir na TV quando você era criança?
R - Eu era uma criança noveleira e a gente não tinha TV a cabo lá em casa, só antena de
canais abertos, então eu sempre via muita novela, e assistia o Jornal Nacional todos os dias, incessantemente, nunca perdia. Fui uma criança bem informada;, hoje em dia que eu me dou o direito de virar mais para entretenimento, e de ser um pouquinho mais alienado, porque está difícil.
(00:13:45) P/1 - Passando para a sua época de escola, quais as lembranças que você tem de ir para a escola, Dudu?
R - A minha mãe sempre diz que eu fui para a escola porque eu estava muito grudado com ela. Ela me colocou em uma creche pública, lá em Niterói, e eu lembro muito da primeira escola particular que eu estudei, do cheiro… Eu não sei descrever, mas pensando eu consigo lembrar mais ou menos. E eu lembro muito de uma professora que eu tive, ela era muito acolhedora, então a escola, por mais que seja um ambiente difícil para pessoas com deficiência, é um lugar que de alguma forma eu dava um jeito de ser acolhido, porque era o que eu precisava para poder me manter ali.
Tenho também uma melhor amiga, chamada Letícia, que é minha amiga desde que eu tenho quatro anos; foi na segunda escola que eu estudei. Ela é minha amiga até hoje, a gente trabalha junto hoje em dia, então eu lembro desse momento da minha vida com muito carinho. A relação é difícil, porque são vários atravessamentos que a gente passa, mas a gente conseguiu construir uma relação de afeto; na verdade, é tudo, até hoje. Não sei fazer conta, acho que são dezoito anos de amizade.
(00:15:02) P/1 - E essa sua escola… Você falou que teve primeiro a creche, depois foi uma escola, depois você passou para outra. Elas eram perto, você conseguia ir a pé, ou tinha que ir de ônibus, ou carro? Como era?
R - Todas as escolas eram muito pertinho da minha casa, então eu sempre fui a pé. O trajeto era sempre conversando, ou com meu ex-cunhado, ou com a minha mãe, ou com a minha avó, com quem estivesse disponível ali para me levar no dia.
(00:15:34) P/1 - E tinha alguma matéria no seu ensino fundamental que você gostasse mais?
R - Eu sempre gostei de Português porque eu sempre gostei de escrever. Eu sempre gostei muito de ler também, então sempre fui muito melhor nas matérias de humanas, sobretudo português, quando eu comecei a ter redação também. Eram matérias que eu me saía muito bem.
(00:15:58) P/1 - E continuando nessa parte de escola, no seu ensino médio você teve que mudar de escola? Como foi esse seu período escolar na adolescência?
R - Até o oitavo ano eu estudei em uma escola particular que eu precisava ir de ônibus. Às vezes eu ia com uma condução também, que era o pai de uma amiga que me levava. No nono ano, que era o último ano do ensino fundamental, eu fui para uma escola pública, aí no ensino médio eu passei para uma escola técnica em multimídia, a FUNAV, aqui no Rio também. Foi a primeira vez que eu entendi o meu lugar de ter direito enquanto uma pessoa com deficiência, porque era prova na época para fazer escola técnica, e eu passei em 2º lugar com a cota de pessoa com deficiência.
Foi lá que eu me encontrei, foi o momento que eu entendi a minha sexualidade, e era uma escola muito livre, tinha muitas pessoas LGBTQIA+ na escola, então foi o momento que eu me politizei, que eu consegui entender muitos momentos do meu lugar no mundo.
Era uma escola que eu passava o dia todo, eu acordava às cinco da manhã, chegava em casa às sete horas da noite. Eram 22 matérias, então foram três anos muito difíceis, porque era muito longe da minha casa. Foi a primeira vez que eu fui para muito longe, minha mãe ficou muito insegura porque, voltando, sempre fui muito colocado nesse lugar de frágil. Eu era muito novo, entrei no ensino médio com treze anos, então são muitas questões que passavam por isso.
Lá eu me encontrei, foi lá que eu decidi a faculdade que eu queria fazer, e é o que eu faço até hoje com o meu trabalho.
(00:17:48) P/1 - E nesse período da adolescência vão se modificando os gostos, vão se modificando uma série de coisas. O que você gostava mais de fazer nessa época, em relação a lugares que você gostava de ir, ou as amizades, as atividades que você gostava mais de fazer?
R - O ensino médio foi um momento complicado, porque é o momento que a gente adquire senso crítico, o momento que a gente começa a ter os hormônios muito aflorados, então foi o momento que eu tive conflito com a minha mãe também. Eu sempre fui uma criança muito passiva, eu nunca fui uma criança rebelde nem nada, mas nas adolescência eu comecei a querer ter um monte de angústia, eu descobri a minha sexualidade. Foi um momento um pouco delicado, depois ficou tudo bem, mas inicialmente foi um momento muito delicado, então eu fui proibido nesse momento de fazer muitas coisas.
Eu sempre gostava muito de depois da aula esperar o ônibus mais vazio com os meus amigos para a gente ficar conversando no ponto de ônibus. A gente comia um salgado em Madureira, me lembro que eram quatro reais na época, ele era muito bom. A gente ficava muito tempo ali, conversando, para poder pegar o BRT depois. Eu tenho saudades dos meus amigos, que são meus amigos até hoje também, mas infelizmente esse [lugar do] salgado não está mais aberto. Ele fechou em 2019, e nunca mais voltou pra gente.
(00:19:16) P/1 - E nesse período você já tinha decidido então o que você gostaria de fazer na faculdade?
R - Sim, em 2015 eu decidi, mais ou menos entre 2015 e 2016. Na real, eu tinha uma ideia e não conseguia achar nada que me agradasse, porque eu sempre fui uma pessoa muita aberta e flexível, nunca gostei de me colocar nessas caixinhas do tipo “ah, vou fazer Matemática, vou fazer uma coisa muito exata, vou ser professor de Português”. Eu queria experimentar o mundo, talvez porque eu não tivesse tido essa oportunidade e achava que a faculdade era esse lugar. Eu não conseguia encontrar nenhum curso que me contemplasse dessa maneira, porque eu fiz um curso técnico que era multimídia, então eu experimentei muitas coisas no mundo midiático, e eu não sabia como eu ia colocar isso na faculdade, porque era Marketing, ou era Publicidade, ou era Produção Cultural, e eu achava que tudo isso me limitava muito. Até que um momento eu fui checando aquela lista de cursos das faculdades do Rio de Janeiro e encontrei um curso de estudos de mídia na UFF. Descobri que era um curso que só tinha dois períodos de matérias obrigatórias, e que o restante da grade, até o sétimo período você montava de acordo com o seu gosto; você personalizava, você podia colocar qualquer coisa que envolvesse mídia ali. Eu fiquei encantado. Eu falei: “Cara, esse é o curso dos meus sonhos, é isso que eu preciso fazer na minha vida.”
Foi em 2017 que eu passei para a UFF. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida, porque depois que a gente sai do ensino médio, principalmente quando a gente é pobre, a gente tem muito medo, porque se você não passar em uma faculdade pública você vai ter que pagar uma faculdade, ou você vai ter que abrir mão da faculdade para poder trabalhar porque não dá, então ter passado por uma faculdade federal - e foi a mesma faculdade que a minha irmã fez - foi muito feliz.
Tirando o fato de estar a sessenta quilômetros da minha casa todos os dias, foi um momento muito legal. Só veio a pandemia do meio para o final da faculdade, então o finalzinho da minha faculdade foi remoto, mas foi um lugar que eu consegui me firmar, porque eu sempre fui muito decidido, muito ousado.
Acho que me impediram muito de viver, e eu nunca aceitei esse lugar para mim, aí na faculdade, mesmo com dezessete anos, eu já sabia que eu queria ser comunicador. Aquele sonho de ser apresentador talvez não fosse na televisão, mas eu queria me apresentar para o mundo, então eu criei um canal na internet no meu primeiro ano de faculdade, graças a uma amiga minha, chamada Morena Mariá. Era a oportunidade que eu tive, ela é minha comadre hoje em dia, e ela me encorajou a contar a minha história na internet, falar sobre a minha deficiência. Eu não me sentia no direito de falar sobre isso, porque eu era uma pessoa com deficiência que falava, que andava, que estudava, e as pessoas ensinam pra gente que pessoas com deficiência não vivem; as pessoas com deficiência têm um jeito específico de ser que é o estereótipo, e eu não era esse esteriótipo que esperavam. Eu era uma pessoa que me permitia viver, que conseguia viver, então eu achava que não tinha tanta deficiência assim. Só que, na verdade, não é assim que funciona, e ela me encorajou a mostrar esse meu lado, a mostrar outras possibilidades de ser uma pessoa com deficiência no mundo da internet, e hoje estamos aqui.
(00:22:46) P/1 - Pegando o gancho do que você disse, eu queria que você falasse um pouco sobre ser uma pessoa com deficiência, ser também uma pessoa LGBTQIA+. Como você se situa, como você enxerga o seu lugar na sociedade?
R - Voltando ao ensino médio, foi muito tranquilo. Eu entrei no ensino médio em 2014, então já era um momento onde as pautas estavam mais abertas para os jovens de maneira mais ampla. A gente já tinha algumas questões de representatividade rolando por aí, a internet possibilitou essa democratização muitas vezes em grupos, enfim, nas redes sociais, para que a gente conseguisse se encaixar em comunidades mesmo, ainda que virtuais, de uma maneira mais democrática, mais fácil. Eu achava que eu me sentia muito sozinho, que eu sentia uma solidão dentro de mim porque eu era uma pessoa LGBTQIA+, e no ensino médio eu entendi que estava tudo bem ter a sexualidade diferente, não performar o gênero da maneira que as pessoas esperam. Conheci gente diferente, gente de cada lugar do Rio de Janeiro, então essa foi uma experiência única que eu desejo que qualquer jovem tenha, pra que quando chegue na faculdade não tome um susto com a realidade, porque as pessoas são diferentes. Na real, depois da faculdade que eu fui entender que eu não estava conseguindo encontrar o meu lugar no mundo porque eu tinha uma deficiência e isso me limitava muitas vezes, e que eu era atravessado sim pelo capacitismo, independente das minhas condições físicas. Embora eu tenha uma deficiência física, ela é menos visível que outras deficiências físicas, então eu acabava me anulando, então o meu processo de identidade eu joguei todo ele para a minha sexualidade, quando na verdade ele estava entrelaçado com o fato de eu ser uma pessoa com deficiência. Eu só comecei a entender isso quando comecei a usar a internet como um diário, que eu comecei a fazer meus vídeos, e na real os meus vídeos não eram para ninguém, eram para mim mesmo. Por exemplo, quando eu jogava paralisia cerebral, que é a minha deficiência, no YouTube, eu só via médicos falando sobre isso. É assim que eu quero que a minha história seja contada? Eu acho que não, então hoje, quando você procura paralisia cerebral no YouTube tem um videozinho meu lá, perdido no meio.
Eu tinha cem inscritos, só, e o vídeo viralizou. Várias pessoas comentando “caramba, eu também tenho essa deficiência”, ou “o meu filho tem essa deficiência, eu nunca tinha visto alguém falando sobre isso. Eu nunca tinha visto a possibilidade de ser uma pessoa com deficiência e poder estar na internet, falando, e ser tão descontraído”, porque são crianças limitantes que colocam na gente.
A partir daquele momento me virou uma chave, e eu entendi que se eu não contasse a minha história, alguém ia contar por mim, e certamente não ia ser do modo correto, porque se a gente não está falando pela gente mesmo, ninguém vai saber falar. Ninguém pode contar a nossa versão melhor do que a gente. A partir daquele momento, eu decidi que eu ia tomar as rédeas das minhas narrativas, contar ao mundo quem eu era, e destrinchar isso ao longo do tempo, então desde 2017 eu tenho feito esse trabalho. Claro que ele já mudou muitas vezes, porque eu fui crescendo, fui amadurecendo, fui experimentando novas coisas, então a internet é como se fosse um grande diário para mim hoje.
(00:26:17) P/1 - E você já passou por alguma situação de preconceito visível que você tenha notado em relação à deficiência ou em relação à questão de gênero, sexualidade?
R - Inúmeras vezes, desde que… Eu sempre fui uma criança muito afeminada, então desde sempre isso é uma questão para as pessoas, e se tornou uma questão para mim. Só que esse era muito o meu jeito, em momento nenhum eu consegui fazer um cosplay de masculinidade, porque não era eu. Nem tinha a voz grossa, nunca tive a voz grossa, por exemplo, então era difícil conseguir me encaixar nesses padrões. Aí eu comecei a experimentar o mundo e comecei a usar outras roupas, ditas femininas - eu basicamente [uso] short, cropped, sempre que possível, quando não está frio, e às vezes até quando está frio. Aí eu comecei a encontrar identidade nesse momento, eu comecei a encontrar quem eu era, e foi um processo muito importante - se vestir é um processo muito importante. Por muito tempo eu vestia as roupas que o meu primo me dava, então isso também é perder um pouquinho da nossa identidade, né? Quando a gente se mostra para o mundo também faz parte desse processo.
Eu tinha muitas questões em usar short porque a minha perna é torta e eu tinha um pouco de vergonha. Eu não entendia muito bem por que, mas hoje eu sei, porque a sociedade é capacitista.
Desde sempre eu sofri muito preconceito, porque as pessoas me colocavam nesse lugar da bicha, sabe, e mesmo antes de eu saber esse meu lugar; hoje eu tomo ele para mim de fato, mas muito antes disso eu já era colocado nesse lugar, então desde sempre eu experenciei esse tipo de violência. Inclusive eu morava em cima de um bar, e eu sempre vivi assim, maquiado, de short, de cropped, então o assédio era muito comum de pessoas que não moravam na minha vila, mas estavam frequentando os bares. Aí sim eu já me colocava, porque eu já era adulto, morava em um lugar que eu sabia que as pessoas vissem aquilo
elas não iam permitir que isso acontecesse, e que se eu não me colocasse aquilo ia se tornar uma rotina, então eu fui muito de me impor em algumas situações - claro que nem sempre a gente consegue reagir, e nem pode.
Sobre a minha deficiência também eram violências muito subjetivas, que eu não entendia como violências; [era] como uma piada, como você se antecipar para fazer uma piada. Eu lembro que Educação Física sempre era uma dificuldade para mim, porque eu era sempre o último a ser escolhido; ninguém me queria no time, porque eu não sabia correr, por exemplo. Eu tinha muitas questões quando era criança, bem mais novo, porque eu usava uma calha nas pernas, então o meu tênis era muito maior do que o tamanho do meu pé, e isso era muitas vezes piada para as crianças. Depois de adulto, principalmente quando eu precisava pegar ônibus ou a barca para poder sair de uma cidade para outra - eu fazia faculdade em Niterói, que é outra cidade, e morava aqui no Rio - muitas vezes eu precisava andar para as pessoas verem a minha deficiência, porque eu mostrar a carteirinha não era suficiente, a deficiência precisa ser visível para eles poderem me liberar.
Foi muito violento para eu poder ter acesso a educação por exemplo, enfim, ‘n’ coisas que vão acontecendo, das coisas mais sutis até as mais escancaradas, até mesmo das pessoas duvidarem da sua capacidade, e aí você acabar duvidando de você mesmo, por conta dessas expectativas do mundo.
(00:30:03) P/1 - E no meio disso, como surgiu a ideia de você ser DJ?
R - Eu sempre ouvi muita música e a minha família nunca foi muito de ouvir rádio. A minha mãe nunca entendeu como que eu conhecia tanta música, mesmo sem ouvir rádio, mas eu cresci… Quando o YouTube aconteceu eu tinha cinco, seis anos, então desde sempre eu tive esse contato. A minha tia cuidou de mim por muito tempo, e era muito fã de Furacão 2000, que era uma gravadora do Rio muito famosa nos anos 2000, então eu tinha DVD, a minha tia levava os dela. Tinha uma menina que cuidava de mim, às vezes a gente ia para a casa dela e ficava dançando todos os CDs da Furacão 2000 a tarde inteira, essa é uma memória, inclusive, da minha infância, então foi o que sempre foi muito ligado na minha vida.
Na frente da minha casa tinha uma padaria que tinha um pagode toda semana. A minha mãe sempre gostou muito de pagode e a minha irmã também, então eu vivia com elas.
A cultura periférica sempre esteve muito ligada na minha vida, e com o passar do tempo, principalmente quando eu entendi o meu lugar no mundo enquanto uma pessoa com deficiência, o lugar do meu corpo, eu comecei a reivindicar alguns lugares, porque por muito tempo eu falava que eu não queria dançar, que eu não estava a fim, que eu estava cansado, quando na real eu tinha vergonha de como o meu corpo dança, de como ele se movimenta. Conforme eu fui entendendo tudo isso, eu fui vendo que tudo bem ser quem eu sou, então a música, a dança, sempre foi muito objeto de não só de empoderamento, mas de eu conseguir olhar com carinho para o meu corpo, e com auto-cuidado mesmo. Ir para o baile funk para mim não é só ir para o baile funk, tem todo um significado. Toda vez que eu estou ali eu me sinto vivo, e é exatamente o movimento contrário que esperam de uma pessoa com deficiência, não esperam que a gente esteja vivo e vivendo. É o momento que eu consigo me sentir 100% vivo.
Eu sempre ouvi muita música e sempre falava: “Ai, essa música combina com essa.” Aí umas amigas me falavam: “Cara, você tem que ser DJ.” Só que é muito caro para você fazer um curso de DJ, é muito caro ter um equipamento, e aí eu falava “verdade”, mas ia deixando para lá.
Na pandemia um vídeo meu viralizou. Eu estava vendo as DMs do Instagram e o meu hoje professor tinha me mandado uma mensagem, falando: “ Oi, tudo bem? Eu vejo os seus vídeos, e a gente queria muito uma pessoa com deficiência na nossa turma. A gente queria te convidar para fazer o nosso curso.”
Era exatamente o curso que eu queria fazer e não tinha dinheiro para pagar, aí eu achei que era tipo, sei lá, não um trote, mas golpe, desses da internet. Falei: “Gente, isso está estranho.” Cliquei e aí quando eu vi era exatamente o curso que eu queria fazer, aí eu fiquei muito feliz, empolgado. Eu fui e comecei em 2020 a fazer o meu curso, me aprofundar na cultura hip hop, sobretudo o trap, em que eu comecei, e hoje especificamente eu toco drill e grime, que são subgêneros do rap, e o grime, que é mais eletrônico.
Eu estou estudando ainda, me sinto um aprendiz da música. Tem dois anos que eu estou construindo essa carreira, tem um ano que eu trabalho com música na internet, de outra forma, contando outras histórias, e tem dado muito certo. Fui muito bem acolhido. Tive muito medo, porque quando eu comecei a acompanhar a cena do rap, ainda era um lugar muito machista e LGBTQIAfóbico, sabe? Tive muito medo de uma pessoa como eu, e que além de tudo tem uma deficiência, tentar me infiltrar no meio dessas pessoas, mas de modo geral eu tenho sido bem recebido, e tem sido bem bacana.
Ser DJ é o que me move hoje. Embora a minha renda hoje seja a maior parte da internet, quando eu estou tocando é o momento de eu me sentir vivo, porque a música tem essa responsabilidade sobre mim, e eu tenho essa responsabilidade sobre a música, porque ela faz parte de quem eu sou.
(00:34:20) P/1 - Falando sobre esse período, você disse que o período final da sua faculdade foi durante a pandemia. Você começou também a fazer esse curso durante a pandemia. Como a pandemia afetou a sua vida em geral, a sua saúde mental? As pessoas falam que ela acabou, mas ela não acabou ainda. Como isso tem sido para você?
R - A pandemia foi uma loucura para todo mundo, e de modo geral foi até um saldo positivo para mim, de certa forma, principalmente profissional, porque eu trabalhava muito longe da minha casa, estudava muito longe da minha casa. Minha mãe não queria, mas com dezenove anos eu precisei sair de casa, porque não tinha como eu trabalhar na zona norte do Rio de Janeiro, estudar em outra cidade, e voltar para a zona oeste. Era tipo cinco, seis horas de ônibus para poder fazer todo esse trajeto; eu saía de casa às quatro, cinco horas da manhã e chegava às onze e meia da noite, e nesse tempo eu tinha que comer, dormir. Não dá tempo, você não consegue viver; você no máximo sobrevive com sorte.
Essa minha amiga Morena, que eu estava falando, me chamou para morar com ela no subúrbio do Rio, então eu fiquei entre o meu trabalho e a faculdade. Eu tive que adquirir um monte de responsabilidade também, experimentei a liberdade de ser quem eu era 100%. Muitas vezes as pessoas não entendem, mas além da questão financeira, por exemplo, se hoje eu morasse com a minha mãe seria insustentável - ela sustentar dois adultos, por exemplo, se eu não trabalhasse. Também era uma maneira de eu ter minha autonomia e dar autonomia para a minha mãe. Da mesma forma eu precisava me sentir livre, porque eu já tinha entendido que eu era um corpo vivo, mas eu precisava ser um corpo livre, que muitas vezes é negado para pessoas como eu.
Foi uma doideira, porque veio a pandemia… Eu tive que mudar porque essa minha amiga engravidou. Eu fiquei morando com outras pessoas de casa, e aí no meio da pandemia eu mudei de novo de casa, porque eu queria ter a minha vida sozinho, e aí a minha mãe, a minha irmã se mobilizaram e encontraram uma casa para mim, próxima da casa delas. Como eu estava no final da faculdade, eu não precisava mais morar perto da faculdade, então eu voltei para a zona oeste. Fui morar na Cidade de Deus, minha irmã encontrou uma casa muito boa para mim em cima desse bar que eu falei, e morei lá por um ano.
No segundo mês da pandemia, antes de eu me mudar para essa casa, eu estava morando ainda com outras pessoas. Eu viralizei com o vídeo na internet que eu tinha sonhado um dia antes, que é o vídeo explicando o que é capacitismo, o vídeo [com] que muitas pessoas me conheceram. Eu dupliquei de seguidores de um dia para o outro; eu tinha dois mil seguidores, eu fui para quase cinco mil, e foi o vídeo que me deu um gás para poder fazer, porque sempre quis muito trabalhar com internet; se eu disser para você que foi por acaso é mentira. Não foi, foi muita perseverança, não tinha constância porque eu não tinha tempo, então a pandemia me possibilitou isso porque eu comecei a trabalhar de casa. Eu tinha mais tempo para outras atividades e comecei a fazer vídeos todos os dias; até outubro eu fiz vídeos praticamente todos os dias, real.
Quando chegou em outubro, ou setembro, eu não lembro bem, eu bati dez mil seguidores. Na época, ainda tinha o arrasta para cima do Instagram. Mesmo assim, é a meta de qualquer pessoa que cria conteúdo, podia colocar o link. Aí eu falei: “Ok, vou descansar.”
Nisso eu já estava morando sozinho nessa casa, e aí nesse dia, a minha irmã morava na mesma rua que eu, só que minha irmã morava bem no início da rua, e eu já morava entrando na favela. Ela me chamou para poder comer um negócio, tomar uma cerveja, trocar uma ideia, porque era pandemia e eu não estava vendo ninguém. A gente estava tendo só esse contato porque ela não me deixava sozinho e eu não deixava ela sozinha; tem a minha sobrinha também, e a gente ficava meio que se cuidando. Aí ela falou: “Vem para cá, como a gente não está se vendo vem para cá, e vamos tomar uma cerveja para descontrair, ver uma live.” Eu falei: “Beleza.”
A gente estava conversando, eu abri o Twitter e falei: “Gente, o que está acontecendo?” Um bafafá enorme, eu não [estava] entendendo nada. Não sabia nem o que estava acontecendo, tinha ficado o dia inteiro off, não tinha mexido no celular. O presidente tinha decidido que iria montar escolas especiais, e que ele separaria as pessoas com deficiência das pessoas sem deficiência, como era antigamente, antes da lei de inclusão, que inclusive vai fazer sete anos amanhã. Eu falei: “Gente, o povo vai achar que só porque eu estou tendo o reconhecimento da internet, agora eu não quero mais falar sobre as coisas. Imagina, eu estava falando de acessibilidade todos os dias. Nesse dia eu estou desaparecido da internet; ou vão achar que eu votei nesse presidente, ou vão achar que eu estou fazendo o isentão, Deus me livre!” Falei: “Bom, vou fazer um tweet bem genérico porque já são dez horas da noite, mas amanhã eu vou ver o que eu vou fazer com isso.” Aí eu fiz o tweet, até viralizou o tweet na hora. Falei: “Bom, amanhã eu posto lá no Instagram o vídeo. Não sei, amanhã eu decido, deixa eu ver o que está acontecendo.”
Tirei a noite para poder ler, ver o que as pessoas estavam falando. O Twitter estava um caos, o pessoal quebrando o pau. Falei: “Gente, pelo amor de Deus, o que é isso?”
Chegou no outro dia, eu abri o Instagram. Parecia outra realidade, parecia que nada daquilo estava acontecendo, [que] tinha pessoas falando sobre aquilo naquela rede social. Em todos os perfis que você imaginar de mídia independente, todos os perfis de influenciadores, ninguém tinha feito nenhum conteúdo no Instagram sobre aquilo. Foi uma discussão enorme que ficou restrita no Twitter. Eu falei: “Mano, não vou postar no Twitter, então eu vou fazer um vídeo. “ E aí no vídeo, gente, [eu estava] tão feio, magoado, porque era cedo. Não tinha nem penteado o cabelo, estava sem maquiagem, com um cropped velho… Eu não imaginava o que ia acontecer. “Bom, vou fazer um vídeo.” Fiz o vídeo e postei na hora, praticamente.
Eu estava com 10.400 seguidores. Fiz o vídeo e postei despretensiosamente. Eu tenho mania de sempre que posto um vídeo atualizar a página do Instagram, e quando eu atualizei veio cem curtidas de uma vez, em dez segundos. Eu falei: “Nossa”, mas beleza, tinha dez mil seguidores, isso aconteceu naquela primeira vez que tinha viralizado e eu tinha achado muito estranho porque eu tinha dois mil. Com dez mil, tipo beleza, o engajamento estava maravilhoso; nessa época o Instagram ainda funcionava, falei: “Vai dar uma viralizada, é maneiro. Deveria postar em algum lugar, é bom que a mensagem chegue, é importante falar que a escola especial não é inclusiva.” Só que comecei a entrar no meu perfil e quando eu atualizava eu ganhava cem seguidores a cada trinta segundos, aí parecia, sei lá, que eu tinha entrado no BBB. Eu falei: “Gente, o que está acontecendo aqui?”
Isso começou a me deixar muito ansioso, porque eu sempre quis muito trabalhar com internet. Eu esperei muito tempo para que eu fosse reconhecido nesse lugar, para que esse fosse o meu trabalho, fosse o meu emprego, e sentir que aquilo ali estava se aproximando me causou muita ansiedade. “Eu não quero olhar esse celular agora”, eu larguei, aí fui lá na casa da minha irmã. Falei: “Cara, você não sabe o que aconteceu”, fui contar pra ela. Ela falou: “Agora vai!”
O vídeo foi muito bizarro, eu nem sei onde ele chegou. A avó da minha amiga recebeu em um grupo de Whatsapp que alguém baixou e divulgou, aí ela falou: “Ih,
gente, o Dudu”, aí mandou: “Menina, recebi o vídeo do Dudu aqui no Whatsapp.”
Enfim, foi um caos. Dei entrevista para um monte de rádio, foi uma doideira. Eu saí de dez mil seguidores para 24 mil seguidores em três dias, o vídeo bateu um bilhão de visualizações. Foi uma coisa surreal, sabe, que eu nunca nem sonhei que ia acontecer dessa maneira. E aí eu falei: “Cara, e agora?”
Aí eu caí em uma contradição: eu estava ali o tempo todo falando para as pessoas que tudo bem ser quem a gente era, que a gente não era uma coisa só, que pessoas com deficiência tem outras vivências, que a gente não é só a nossa deficiência, mas a partir do momento que tudo o que eu sonhei estava resumido naquilo, eu fiquei com medo de falar de outras coisas que não fossem a minha deficiência, e aí eu falei: “Cara, tem alguma coisa errada.” Eu comecei a me sentir incomodado. Estava dando tudo certo, eu tinha fechado com a agência que eu estou hoje, eu tinha feito o meu primeiro trabalho pago, uma palestra paga, que eu ganhei o que eu ganhava em um mês. Por que é que eu estou incomodado?
Na real, é porque eu mesmo estava caindo na contradição do que eu estava dizendo, que era dizer que eu podia ser muito mais do que aquilo ali, e eu não estava me permitindo ser muito mais do que aquilo ali, porque eu tinha medo das pessoas irem embora. Isso tem muito a ver com a fragilidade que colocam em pessoas que têm deficiência no mundo, porque a gente não tem acesso nem às pessoas, porque as pessoas têm medo de se relacionar com pessoas com deficiência, ou tratam de uma maneira muito infantil. Ou se você não for uma pessoa branca como eu, vão te tratar de um jeito totalmente animalizado, sabe, então são dois extremos que pessoas com deficiência podem viver a partir de perspectivas do que elas vivem. Tudo isso foi muito gatilho, só que aí eu falei: “Eu não posso viver com esse medo. Não posso ser injusto com a minha própria história, porque eu comecei aqui por poder contar a minha história. Eu não posso me perder no meio desse caminho por isso.”
Depois eu fechei alguns trabalhos em 2021, o tempo passou e eu continuei amadurecendo essa ideia. Eu estava muito insatisfeito no meu estágio, as pessoas eram incríveis; eu fiz estágio na escola que eu te contei que eu estudei, que eu fiz o meu ensino médio, então o meu chefe era uma pessoa que eu conhecia desde os meus treze anos de idade. Ele era uma pessoa incrível comigo, ele sabia que eu queria trabalhar com internet, ele deixava eu sair rapidinho para poder gravar um vídeo. Ele sempre foi muito compreensivo, todo mundo lá na empresa que eu trabalhava, porque era uma empresa terceirizada da escola, me apoiava, me chamava para dar palestras nas reuniões semanais que a gente fazia; por conta da pandemia elas eram virtuais, então sempre tinha um tema, e várias vezes eles me chamavam para falar de vários assuntos, porque eles gostavam de me ouvir falar, porque eles acompanhavam esse meu trabalho paralelo até então.
Quando eu fechei o meu primeiro contrato, eu falei: “Ok, agora eu vou tentar viver disso”, porque eu sou novo, eu tenho apoio da minha família. Em momento nenhum a minha família me desencorajou. A minha irmã, principalmente, sempre foi uma pessoa que me apoiou, independente de qualquer coisa. Se fosse para eu poder fazer o meu corre ela estava me apoiando. “Cara, você tem 21 anos. Se der errado, a gente vai dar um jeito. Você tem sua formação, você vai procurar um emprego, vai dar certo.” E aí me deu muito medo, porque a gente está acostumado com uma vida de conforto, de zona de conforto, que não é necessariamente confortável. Falei: “Ok, eu vou tentar.”
Eu estava muito triste porque eu queria muito viver aquilo, eu já tinha um número [de seguidores] e não sabia como que aquilo ia reverter em trabalho; eu estava me esgotando, estava deixando o meu trabalho de lado, sendo relapso mesmo, sabe?
Eu queria viver aquilo e aquilo me angustiava.
Teve um dia que realmente eu estava muito chateado, porque tinha vindo uma proposta de orçamento muito baixa. A pessoa que tinha mandado a proposta tinha sido completamente invasiva e desvalorizado o meu trabalho, dizendo que um perfil como o meu nunca ganharia o valor que tinham oferecido, que ela estava sendo legal comigo de me oferecer aquele valor, sei lá, acho que de quinhentos reais, para eu fazer ‘n’ coisas para ela. Fiquei muito mal com aquilo, afeta a nossa autoestima. A gente vive em um país que 1% das pessoas com deficiência tem emprego, então imagina você ser colocado nesse lugar. Pensei que esse era o meu fim, que eu ia ter que arrumar, sei lá, fazer um concurso público por meio de cotas, e viver assim, não fazendo o que eu queria. Fiquei muito triste.
O Vitor, que é o meu agente, falou: “Preciso te ligar.” Achei que ele ia falar qualquer coisa. Ele falou: “Então, lembra daquela mulher lá de ontem?” “Lembro, estou com raiva dela”, estava meio para baixo. Ele falou: “Pois é, ignora ela porque a gente fechou um contrato!” Eu falei: “Como assim?” Ele falou: “É um contrato de três mil.” Falei: “Caraca, três meses do meu salário!” Ele falou: “Não, são três mil dólares. Você pode sair do seu emprego.”
Eu fiquei trinta segundos assim, completamente estatelado. Falei: “Meu Deus, como assim, três mil dólares? O meu trabalho vale isso, como assim?” No mesmo dia eu marquei uma reunião com todo mundo que era da minha equipe, já avisei: “Eu não vou sair agora porque eu não sei quando esse dinheiro entra, mas aconteceu isso. Eu quero muito ir, preciso muito ir, porque eu não sei quando eu vou ter essa oportunidade de novo.” Todo mundo ficou muito triste porque eu ia sair, mas todo mundo ficou muito feliz porque sabia como eu estava triste com aquilo ali, e como estava difícil conciliar as duas coisas. Todo mundo via claramente que eu não estava aguentando mais conciliar as duas coisas, que não tinham nada a ver.
Desde então estou vivendo disso, [em] 2023 estarei vivendo disso, e é muito doido pensar que eu, com 22 anos, sou responsável por uma empresa, e também sou responsável pela minha própria história, que me possibilitou chegar nesse lugar. Ainda é muito confuso, ainda tenho muitos medos, muitas inseguranças. Eu ainda me sinto muito inseguro financeiramente, óbvio, porque quando a gente vem de um lugar de pobreza, qualquer coisa gera esse gatilho de que a gente pode voltar para a estaca zero, então é muito difícil ainda entender que eu posso sim comprar uma coisa que não é necessariamente, extremamente útil, mas que eu quero. Eu posso sim me permitir experimentar novas coisas, porque eu tenho sim uma garantia, eu sou responsável, eu tenho capacidade - capacidade é uma palavra-chave quando você tem deficiência, porque as pessoas te colocam em um lugar contrário disso.
Eu tenho a capacidade de não só contar a minha história, mas de tomar conta do meu dinheiro, de viver sozinho, independente, ter o meu lugar no mundo, saber o meu lugar no mundo, sabe? São muitas coisas que estão correlacionadas com esse trabalho, e isso também é um perigo, porque o meu trabalho sou eu, mas eu também não posso me abrir de uma maneira 100% eu, porque eu não sei ainda lidar com isso. Eu preciso podar de alguma forma, preciso negociar comigo mesmo. Você começa a ter preço, de alguma forma, mas não é você, é uma parte de você, então são muitas contradições que eu estou tendo que lidar muito novo, mas que por enquanto estamos aí.
Acho que estar contando isso para você também é a prova de que eu estou no caminho certo de alguma forma, e que de alguma forma isso também é humanizado, que isso não é só sobre dinheiro, que é sobre histórias, sobre potências, e que é sobre o valor que a gente tem, que muitas vezes as pessoas não projetam e não veem na gente, mas que é possível quando a gente conta a nossa própria história, quando a gente sabe quem a gente é, quando a gente tem o poder da narrativa sobre nós. A gente consegue ir além do que esperam, porque você não precisa suprir a expectativa de ninguém, você só precisa ser você, e isso é uma coisa tão simples, parece tão banal, mas que é negado para muitos corpos no mundo que a gente vive, entende?
(00:51:07) P/1 - Falando sobre essa sua questão profissional, a gente tinha falado sobre questões de preconceito em ambientes em geral, mas você acredita que também tenha sofrido preconceito no ambiente de trabalho por questões capacitistas, enfim?
R -
No meu trabalho hoje, me expondo, com certeza, mas no trabalho do estágio, que foi o meu primeiro emprego fixo mesmo, fora os freelances, os bicos que eu já tinha feito, esse emprego foi muito tranquilo. É até difícil, porque todo mundo tem uma história de sufoco quando está no trabalho, de assédio moral, de preconceito, e eu nunca senti isso, primeiro porque eu conhecia o meu chefe há muitos anos de uma maneira mais íntima, ele era o meu professor antes, então a gente já tinha uma intimidade, mas aquelas pessoas sempre estiveram muito abertas. Quando eu cheguei lá para poder trabalhar, foi logo assim, eu já tinha o canal no YouTube, mas logo depois eu viralizei, então as pessoas se abriram para o que eu estava falando.
Foi muito tranquilo, ter uma deficiência não foi um impedimento para eu ser contratado nesse emprego. O meu chefe me conhecia, sabia do meu trabalho na internet, especialmente no YouTube. Isso era um diferencial no trabalho, por ter essa linguagem mais jovem, essa aproximação com os alunos, então foi muito tranquilo - [foi] o ano e meio mais tranquilo da minha vida em relação a trabalho.
Na internet não, na internet as pessoas acham que é meio terra de ninguém, então o tempo todo [há] capacitismo, preconceito pela minha sexualidade, principalmente quando eu faço publicidade que é impulsionada pelo cliente, então chega, fura a bolha mesmo; chega em outras pessoas, se um vídeo viraliza. As pessoas viralizam a minha deficiência, porque elas estão me vendo do colo para cima, elas me vêem falando de uma maneira que elas entendem muito bem, elas me veem tendo uma desenvoltura de uma pessoa que elas consideram “normal”, então automaticamente me colocam em um lugar que sempre tentaram me colocar a vida toda, que é “ah,
você nem tem tanta deficiência assim. Que deficiência que ele tem, que ele está falando tanto aí? Eu não estou vendo”, como se não existisse subjetividade, como se toda a deficiência fosse visível, e para além… Eu sempre dou uma risadinha de canto de boca, porque além de tudo a minha deficiência é visível, só que na tela do computador você não vai conseguir ver.
(PAUSA)
(00:53:39) P/1 - Retomando, Dudu, eu queria que você contasse um pouco sobre esse seu estágio que você fez nessa escola. O que você fazia, como você chegou nele? Conta um pouquinho pra gente.
R - Como eu estava dizendo, eu fiz uma escola técnica, e tinha alguns cursos técnicos quando eu entrei. Podia fazer Roteiro, Multimídia ou Programação de Jogos, e eu optei por Multimídia, então eu tive contato com a área de design, com a área de vídeo, captação de imagem, fotografia, vídeo, ângulo, figuração - enfim, tudo isso que tange as mídias, não só sociais, mas as mídias, os objetos. Eu me formei [no ensino médio] em 2016, entrei no curso de 2017, então estou imerso nesse mundo aí há alguns anos, já.
Em 2019, eu era bolsista lá na faculdade também, tinha uma bolsa de extensão para poder me manter na faculdade. Como eu não pagava passagem era mais tranquilo, porque embora eles tenham o bilhete único universitário, como é em outra cidade o governo não custeia, então é muito caro estudar em Niterói. É uma média de dezesseis reais por dia, se eu não me engano, de passagem, o que dá mais de quinhentos reais por mês, então é inviável, quando você literalmente é pobre, tirar quinhentos reais do seu salário, ou do salário da pessoa que te sustenta, para poder usar só de passagem. Fora que você tem que se alimentar, você tem às vezes um imprevisto… Enfim, por eu não pagar passagem era um pouco mais tranquilo essa bolsa.
Foi ali que eu comecei a ter muito contato com pessoas com deficiência. Foi em 2018, meu segundo ano de faculdade. Eu já estava ligado, mais ou menos, mas aí eu tive a noção real das coisas, dos problemas de verdade que nós enfrentamos na faculdade, principalmente as pessoas que não andam, as pessoas que precisam de recurso de acessibilidade, porque eu não preciso de recurso de acessibilidade na faculdade, mas tem muita gente que precisa, isso é mais um impeditivo. Também comecei a perceber várias coisas que eu passava de violência também, porque eu não processava, aquilo me distanciava do que era uma pessoa com deficiência. Não é como se eu não sofresse aquilo, mas eu achava que aquilo não era nada demais. Então eu comecei a entender o valor, o peso que essas coisas também tinham.
Trabalhei nesse departamento, nessa necessidade de inclusão como estagiário bolsista da faculdade, mas eu precisava ir além daquilo ali. Eu não podia viver daquilo ali até o final da faculdade, eu precisava ter uma experiência no mercado. Eu queria trabalhar já com internet, mas enquanto não dava, a gente vai fazendo como dá.
No meio de 2019 abriu uma vaga para a menina que trabalhava nessa escola. Ela ia fazer um intercâmbio, abriram a vaga e eu me candidatei. No dia da entrevista peguei um trânsito enorme, tive uma crise de ansiedade, com medo de perder a hora. Passei e no mesmo dia tive a notícia.
Foi uma loucura, porque eu queria muito trabalhar, e eu trabalharia com coisas que eu gosto muito. É um departamento de mídia-educação, é uma parte da escola que é reservada para os alunos fazerem trabalhos do curso técnico, outros trabalhos integrais da escola normal com o curso técnico, então tem estudo de áudio, estudo de vídeo, tem câmera, tem estudo para poder gravar podcast. Eu precisava auxiliar os alunos, anotando os materiais que eles estavam pegando emprestado, porque tinha esse acervo na escola, que era a parte privada da escola. Eu fazia toda essa logística, eu auxiliava. “Preciso de ajuda para enquadramento. Dudu, como é que faz?” Eu ia lá, ensinava. “Não estou conseguindo fazer tal coisa nesse programa de edição, como é que eu faço?” Eu ia lá e ajudava. Ficava mediando ali também na hora do almoço, do intervalo; eles podiam ficar ali usando os computadores disponíveis, ou ficavam ali conversando, então era uma relação muito humana, de coisas muito digitais. Era meio que fazer esse intermédio, era isso, um trabalho muito leve, mas que depois de um tempo começou a ficar pesado, porque eu queria ir além daquilo, eu queria ir para a frente das câmeras e não [ficar] atrás.
(00:58:28) P/1 - Falando sobre essa questão de crescimento profissional, você enxerga possibilidades de crescimento hoje em dia no mercado de trabalho para pessoas com deficiência e também para pessoas LGBTQIA+?
R - Eu acho que as ações afirmativas têm um papel importante na sociedade hoje. Graças às ações afirmativas eu tive a oportunidade de fazer o curso técnico. Elas são totalmente paliativas, a gente sabe disso, claro.
Com a abertura do debate tudo fica mais fácil, de alguma forma, embora seja muito difícil porque caminhamos a passos lentos. Eu acho que a abertura do diálogo para outros tipos de corpos vivendo, existindo, trabalhando parece tão básico, e muita gente não tem acesso a esse básico.
Essa abertura de debate tem sim aberto novas possibilidades. As empresas têm começado a escolher não pagar a multa por não ter pessoas com deficiência nas equipes, entendendo que existe sim não só uma responsabilidade social, mas existem pessoas capacitadas que tem uma deficiência, que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Não é que está bom, estamos caminhando para um progresso.
(00:59:53) P/1 - E como você enxerga a importância da diversidade no mercado de trabalho?
R - Eu acho que o ambiente de trabalho diverso faz o ambiente ser melhor. Inclusive, quanto mais diverso o ambiente de trabalho, melhor o desenvolvimento daquelas pessoas. Por exemplo, na UERJ saiu uma pesquisa que os cotistas têm um desenvolvimento muito melhor do que os alunos de outra concorrência, e no mercado de trabalho não é diferente. No trabalho que eu tinha, eu tinha um olhar completamente diferente deles sobre as coisas que a gente postava nas redes sociais, porque eles eram pessoas mais velhas. Eles não eram pessoas que trabalhavam com internet, não eram pessoas que estavam ligadas nas trends do momento, então eu podia colaborar. Às vezes até não conseguia executar por limitações físicas, mas eu podia dar orientação para que alguém executasse.
(01:00:46) P/1 - E indo para uma questão um pouco mais pessoal, quem é o seu grupo de apoio, aquelas pessoas com as quais você pode sempre contar?
R - A maioria das pessoas que eu já citei aqui. A minha irmã, a minha mãe, são pessoas que me apoiam, independente de qualquer coisa. As minhas primas, aquelas que eu brincava na infância, a Maria Eduarda e a Maria Luiza; a Letícia, que é essa minha amiga que eu conheci aos quatro anos de idade, a Manuela, que é a minha amiga que eu conheci depois, junto com a Letícia, que a gente trocou de escola junto. E a Lola, minha amiga que é DJ e está morando na minha casa agora também.
(01:01:28) P/1 - Indo para as últimas perguntas, Dudu, quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R - Eu acho que o valor da vida é a coisa mais importante para mim hoje, porque por muito tempo eu passei me limitando, me podando, negando a minha identidade, nesse processo de “eu não tenho tanta deficiência assim”. É um processo de negação de identidade, é uma escolha que é inconsciente, mas é uma escolha, de não se enxergar, de não olhar para si, para a sua subjetividade. Isso também é acessibilidade, sabe? Acessibilidade é rampa? Claro que é, mas é muito além disso. É sobre a oportunidade da gente ser quem a gente é, sem medo, sem se limitar ao que as pessoas impõem como limitação para corpos como os nossos.
(01:02:30) P/1 - Quais são os seus sonhos para o futuro, Dudu?
R - Ai, os sonhos do futuro! Eu, com certeza, quero ser produtor musical um dia. Eu estou protelando para isso acontecer no momento, porque são muitas coisas para fazer, mas acho que vai acontecer. Quero muito colaborar com as pessoas que eu admiro, um dia. Quero muito tocar em um festival, eu quero, com certeza, ser apresentador ainda de um canal grande, ir para a televisão, ou para algum meio de comunicação que é reconhecido pela grande mídia, ou até mesmo no nicho da música.
(01:03:08) P/1 - E que legado você gostaria de deixar com a sua experiência de vida? Que mensagem você gostaria de deixar para as pessoas que vivem a mesma situação que você?
R - Eu acho que eu já consegui deixar a mensagem de que tudo bem a gente ser quem é. Mas para além disso, eu quero ver outras pessoas com deficiência no mundo da música. Eu quero pessoas com deficiência vivendo, sendo quem elas são. Mas do legado que eu estou construindo hoje, eu quero ver outros DJs com deficiência, com certeza, porque é muito difícil. É muito legal ver o meu trabalho, ser bem reconhecido como DJ com deficiência, mas é muito difícil ser o único, principalmente no Rio de Janeiro.
Eu fui dar uma palestra e eu tocaria no dia seguinte, só que eu já tinha um compromisso em São Paulo. A menina queria que fosse uma pessoa com deficiência, porque era um encontro da inclusão que eles estavam fazendo, então precisava que fosse uma pessoa com deficiência. Pra todo mundo que ela perguntava, a única pessoa que elas indicavam era eu, e não tinha outra pessoa para poder fazer aquilo.
Será que nenhuma outra pessoa com deficiência - nós somos 24%, isso com laudo, né? 24% de pessoas com uma deficiência no Brasil. Será que só eu e sei lá, mais meia dúzia temos essa vontade? Eu acho que a conta não bate, então eu quero que as pessoas com deficiência saibam que podem ser muito mais que pessoas que vivem de um emprego público, ou que vivem de INSS. Eu quero que elas possam experimentar o mundo, que elas possam ser artistas, que elas possam expressar o que sentem dentro delas com a arte. É [por] isso que eu quero ser lembrado um dia, com uma pessoa que colaborou com esse contexto.
(01:04:52) P/1 - Tem alguma coisa que na nossa conversa não surgiu e você gostaria de falar?
R - Nossa, pelo contrário. Acho que eu consegui falar muito mais até do que eu imaginei. Foi um processo de conseguir olhar para mim com carinho, que às vezes é muito difícil, porque eu falo isso para as pessoas o tempo todo, [pra] se olharem com carinho, mas muitas vezes eu esqueço., Às vezes, as pessoas me veem falando publicamente sobre as questões, sobre as feridas, sobre as coisas que eu gosto de fazer, e elas me colocam nesse lugar de uma pessoa que passou por tudo isso, mas não é que eu passei, eu estou passando por tudo isso.
Acho que eu consegui olhar um pouco com carinho para a minha história, revisitar coisas muito bonitas para mim. Isso eu acho que é o mais bonito, quando outra pessoa humaniza a gente, a gente conseguir se olhar dessa forma, então pelo contrário, eu me senti totalmente contemplado. É isso o Museu da Pessoa, e eu me senti uma pessoa completa hoje, como muitas vezes me foi negado.
(01:05:56) P/1 - Bom, parcialmente você já respondeu a última pergunta que eu ia te fazer, mas eu vou te fazer mesmo assim. Como foi para você contar a sua história pra gente?
R - Acho que é isso, a oportunidade de olhar para mim, e saber que eu estou construindo uma história. Mesmo com 22 anos, eu já fiz várias coisas que ainda não consigo reconhecer, porque o capacitismo é isso. Além de eu não conseguir chegar em um lugar físico, é sobre onde eu quero chegar, é uma oportunidade de sonhar. A gente não consegue se ver no futuro, a gente não consegue fazer acontecer no presente, como a gente vai conseguir manter um legado?
Eu não sou a primeira pessoa com deficiência no mundo a fazer algo de significativo. Eu estou aqui porque outras pessoas vieram antes de mim, e eu quero estar aqui para que outras pessoas possam vir também. Então eu acho que foi sentir que eu estou em movimento, e é muito contraditório estar em movimento quando você é uma pessoa com deficiência, porque as pessoas não te associam a isso, as pessoas não te veem como uma pessoa possível de se movimentar, tanto fisicamente, quanto subjetivamente também.
Acho que [é] a oportunidade de estar fazendo tudo ao contrário do que esperam de mim. Para mim é muito bonito, no final das contas, porque eu sou abusado, então eu gosto quando faço o que as pessoas não esperam que eu vá fazer.
(01:07:24) P/1 - Dudu, então muitíssimo obrigado em nome do Museu da Pessoa. Foi uma entrevista incrível, muitíssimo obrigado mesmo!
R - Imagina, eu que agradeço muito, e é isso. Obrigado pelo convite, obrigado pela escuta. Eu acho que é isso que falta no mundo, e hoje eu me senti completamente contemplado por isso!Recolher