Projeto: Mercado Livre - Biomas que Transformam
Entrevista de Mareilde Freire de Almeida
Entrevistada por Grazielle Pellicel
Local: São Paulo (SP) / Ouro Preto do Oeste (RO)
Data: 01/06/2022
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1206
Transcrito por Mônica Alves
Revisado por G...Continuar leitura
Projeto: Mercado Livre - Biomas que Transformam
Entrevista de Mareilde Freire de Almeida
Entrevistada por Grazielle Pellicel
Local: São Paulo (SP) / Ouro Preto do Oeste (RO)
Data: 01/06/2022
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1206
Transcrito por Mônica Alves
Revisado por Grazielle Pellicel
00:00:18
P/1 - Oi Mareilde, tudo bem com você?
R - Tudo ótimo, e com você Grazielle?
R - Tudo bem comigo. Para começar, eu gostaria que você dissesse seu nome completo, a sua data e local de nascimento, por favor?
R - Mareilde Freire de Almeida, nasci em 20 de novembro de 1961.
00:00:48
P/1 - E onde que você nasceu?
R - Nasci em Freire Cardoso, Minas Gerais.
P/1 - Alguém da sua família te conta como é que foi o dia que você nasceu?
R - Na verdade, eu nasci no Vale do Jequitinhonha, em uma região que é bastante castigada pela seca. Os meus pais sempre contam como foi a trajetória da nossa família, e até a causa da gente ter que fazer a migração de Minas em busca de novas oportunidades. As referências que eles fazem [sobre] a data de nascimento é [de que era] um local afastado, o nascimento sempre feito por parteiras, que fazia referência às mulheres que faziam os partos. É isso que eu tenho de relato da minha família.
P/1 - Qual é o nome da sua mãe, você tem alguma lembrança da parte da família dela?
R - O nome da minha mãe é Gertrudes Freire de Almeida. Ela perdeu o pai ainda criança, um relato dela. Então, nesse caso, o meu avô, eu não tenho essa lembrança, mas tenho lembrança da minha avó, que até hoje eu guardo conselhos sábios que [minhas vós] nos repassaram. Lembro porque eu fiquei Minas até os seis anos de idade, para fazer a migração, então eu consigo ainda reter na minha memória bastante fato da minha avó, da minha bisavó, até o fato [de] que na época era muito usado - enquanto criança, não entendia -, que a minha bisavó sempre vestia um vestido longo, mangas compridas e sempre preto. Para mim, quando criança, eu não conseguia entender o porquê ela tinha sempre aquela vestimenta, enquanto as outras mulheres, a minha avó, a minha mãe e as outras que eu podia ver na igreja, em outros locais, se vestiam diferente.
P/1 - E por que sua avó se vestia de preto?
R - Porque, na verdade, era o ato de viuvez, então tinha que manter, às vezes, até o final da vida - que no caso da minha bisavó foi até o final da vida -, sempre usando vestido preto.
P/1 - E o seu pai, como é o nome dele é a relação que você tem com a família dele?
R - Meu pai é Joaquim José de Almeida. Por coincidência, ele perde, no caso, a mãe. O inverso da minha [mãe]. Eu lembro do meu avô, considerava a minha avó, mas a relação com eles era só com tio, o meio irmão do meu pai, que ficava na casa dos meus pais para estudar, porque ficava mais próximo, que também era na zona rural. A gente vivia na zona rural, então a casa dos meus pais tinha [uma] proximidade maior [da] cidade maior, da vila, para estudar. Já tem, [onde moravam] mais membros da família do meu pai. A gente se encontrava em menos tempo, acredito eu, pela distância.
P/1 - E seus pais te contam como eles se conheceram?
R - Não, é sempre um tabu. Dizem que os antigos tinham o hábito de namoro diferente, principalmente da atualidade, até da minha época de namoro, mas eles não abrem diálogo de como foi esse namoro.
P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho. Nós somos cinco irmãs, e um único irmão, então somos seis filhos [no total].
P/1 - Qual o nome deles?
R - Tem a Maria, que está acima de mim, abaixo de mim tem a Roseli, o José Lindomar, a Kátia Regiane e a Cássia Jane, são nomes bem parecidos.
P/1 - Sua família tem algum costume especial, por exemplo, alguma comemoração que vocês faziam anualmente [em] alguma época do ano?
R - Sim, sempre. Anteriormente, quando se dizia, de festas juninas, o Natal sempre é comemorado, e depois, com o passar dos anos, a gente tem o ato de fazer dia dos pais, dia das mães, uma ação comemorativa e o aniverssário, em especial dos meus pais, pelo fato de hoje estar em uma idade, eu até brinco, mais experiente, o meu pai hoje está chegando aos noventa e minha mãe aos oitenta, então é motivo de comemoração. A gente faz sempre isso.
00;07:06
P/1 - E seus pais, outras pessoas da família, eles contavam histórias para vocês quando criança?
R - Principalmente a minha mãe. Eu acho que isso era incumbência das mães, [de] ser a contadora de histórias. Me lembro desde Minas, mesmo com seis anos, dela contar. E o que existia naquela época em Minas, nas noites: a gente vivia sobre a lamparina a querosene, não tinha eletricidade, e sempre quando anoitecia ela contava uma história, depois a gente fazia oração, tinha sempre que rezar -
catolicismo, rezava -, pedia a benção para ir dormir, e isso fez uma sequência. Ela sempre contava histórias à noite pra gente, mas a gente foi crescendo e ela foi criando outros hábitos.
00:08:29
P/1 - Em ambas as famílias, tanto da sua mãe, quanto do seu pai, são todos de Minas, ou eles vieram de algum outro lugar?
R - Eles são de Minas, mas tem alguma relação com a Bahia. Bisavô, alguma coisa assim. Porque, no caso, onde a gente vivia, é bem próximo a Bahia, então tem essa relação Bahia e Minas.
00:08:59
P/1 - Então eles moravam na parte nordeste de Minas?
R - Isso, então hoje a gente pode dizer - porque se falar Freire Cardoso, Coronel Murta, as pessoas não tem muita noção, então a gente usa Salinas - que está próximo a Salinas. Salinas é referência na cachaça, as mulheres que bordam; assim você consegue dar uma referência para as pessoas de onde viemos.
00:09:35
P/1 - E lá em Minas, você lembra como era a casa da sua infância? Você consegue descrever como ela era?
R - Consigo! Ela está lá de pé até hoje. Ela era feita com madeiramento, esse madeiramento era amarrado e revestido com barro, creio eu que tinha uma liga, fazia todas as paredes. Tanto é que esse material é de boa qualidade, que a casa está lá até hoje. Tive a oportunidade na fase adulta de retornar, porque era um sonho, foi um sonho demorado, mas aos quarenta e poucos anos, eu consegui voltar e ir até a casa. Eu queria voltar, entrar ali e ver, ter essa experiência novamente.
00:10:46
P/1 - E ainda na infância, foi quando você fez a migração. Vocês foram direto para Rondônia?
R - Não, a gente faz a migração para o Paraná. É um fato, a parte que tinha iniciativa, aquela vontade de trazer mudança para a família, vem da minha mãe. O meu pai já era mais pacato. Então a minha mãe ouviu o fato que achava que tinha condições de melhorar, ela buscava. Ela ouviu que o Paraná, na época, produzia muita hortelã - o meu pai trabalhou muito com isso - e a gente vai para lá. Chega lá, a gente vai viver com um pessoal que cultivava café e hortelã. A gente passou dois anos lá. E lá, mesmo criança, eu acredito que as coisas não fluíram. Aí ela ouve falar em Rondônia [e] decide vir. O meu pai reluta para não vir. Meu pai, eu vejo que ele tem medo do novo. Todos nós temos, mas ele, o medo do novo dominava. Já a minha mãe, não. A gente entra no ônibus apenas com a mala, ainda lembro, umas malas quadradinhas bem duras, só aquilo, e vem para Rondônia.
00:12:30
P/1 - E você também ajudava eles nas plantações?
R - Não, a gente só estudava.
00:12:38
P/1 - Voltando um pouquinho para a infância, vocês tinham o costume de ouvir música, assistir TV?
R - Música, tinha um rádio, o que existia na infância, eu me lembro que ele era grande, marrom, e muito difícil para sintonizar. Eu me lembro que eles ficavam tentando, fazia um barulho. E TV quase não existia, a gente foi ter contato em Rondônia, mas já estava com quinze, dezesseis anos. E, também, [era] sempre na zona rural, então a dificuldade era [com] bateria. [A TV] era bem pequenininha, só tinha imagem preto e branco, mas, mesmo assim, a gente teve. Eu me lembro que pelo fato da minha mãe ser essa guerreira, ela foi uma das precursoras em trazer a TV para a comunidade, então nos dias de jogo, aquelas datas, as pessoas faziam aquele conjunto de pessoas para poder ver o jogo, para assistir alguma coisa, copa do mundo. Eu me lembro quando era só o rádio, era ela que tinha.
00:14:10
P/1 - Você tinha alguma brincadeira favorita dessa época de infância? Você brincava com muita gente ou sozinha?
R - A gente brincava. Em Minas, eu me lembro, a gente brincava com bonecas, bonecas essas que eram sempre fabricadas ali, por nós mesmo, porque as condições financeiras eram muito difíceis. Era sabugo de milho. Pegava o sabugo do milho, fazia a vestimenta, cortava alguns retalhos. Em Minas, isso. No Paraná também continuou uma situação um tanto difícil. Rondônia também [foi] muito difícil, acesso a boneca demorou bastante. Quando a boneca chegou, a gente já estava na fase mais de brincar, que a gente falava assim, de casinha, brincava muito de casinha, falava cozinhadinha, reunia - isso já em Rondônia -, cozinhava, brincava, se aventurar de conhecer. Eu acho que essa aventura de natureza, floresta, ela vem desde a infância. A gente ia, só que não podia entrar. A gente ia [só] até a beira da mata, porque, naquela época, muitas crianças perderam a vida. Se entrava, não saía. Tinha aquele aviso dos nossos pais, então a gente não entrava, ficava na beira da mata, fazia aventura, essas coisas. Depois de certo tempo, já tem mais áreas desmatadas, a gente começa a brincar de uma brincadeira que eles chamam [de] queimada, jogava a bola e tinha que se defender para a bola não acertar, e foi assim. Já depois, adolescente, a gente reunia a comunidade inteira, aquela fase de já querer estar namorando, então tinha raminho trocado, passar o anel, todo mundo ficava passando o anel, que era uma época, acho, mais ingênua, sem muita malícia. [São] muito boas recordações.
00:16:48
P/1 - Tem alguma comida da sua infância que te marcou?
R - De infância, sim. A minha mãe fazia em Minas uma farofa: era um feijão que se chama lá feijão catador, com torresmo e umas lascas de rapadura, umas das coisas que eu mais gostava. E me lembro até hoje, me dá água na boca. É essa farofa que ela fazia.
00:17:25
P/1 - Quando criança você já pensava em ser alguma coisa quando crescesse?
R - Eu sempre fui sonhadora. Falo que desde… Eu vivia planejando, na minha cabeça. Hoje, na fase adulta, eu acredito que me fechava no meu mundo. Eu ficava criando ideias de mudar, sempre pensando em mudar, em transformar, não sei se por causa da situação que a gente sempre viveu, caótica, muito difícil. Ali, nos meus sonhos, [o desejo] era sempre mudar, às vezes de ter um sapato, de ter um vestido diferente, sonhava muito. E até hoje não realizei o meu sonho: na época, usava muito perucas, não sei muito o porquê, era um sonho meu em ter uma peruca daquelas, que tem cabelos longos, cacheados. Na verdade, eu acho que Deus providenciou o meu cabelo cacheado, não tão cacheado… Mas a peruca, eu nunca consegui realizar esse sonho de usar essa peruca.
00:18:50
P/1 - Você tem alguma lembrança da sua primeira escola?
R - Tenho. Em Minas ainda, Grazielle, aconteceram fatos que a gente não sabe traduzir como foi: eu fui acometida por uma doença [que] eu não sei o que era. Na época, os médicos não conseguiram detectar. O fato é que eles diziam para minha mãe que eu não podia, [teria que] me ausentar [de] ir para a escola, mas eu tinha muita vontade de ir. Alguns dias, a minha mãe deixava eu ir para a escola [e] eu ficava com aquele encantamento, com aquela alegria, mas, na verdade, nos primeiros anos, eu nunca tive uma vida escolar como deveria, mas me lembro muito bem da então professora, minha primeira professora e, assim foi, uma coisa que eles sempre colocavam é que a minha letra era muito bonita, eu conseguia desenhar uma letra muito bonita. Consigo me lembrar. Depois, no Paraná, também, como a escola era bem próxima, eu tive mais oportunidade de ir porque era próxima, podia estar sempre ali sob a vigilância da minha mãe. Em Rondônia, eu tive seis meses apenas com uma professora, daí minha mãe vai para um processo seletivo e passa a fazer [parte do] quadro de funcionários como professora, então eu passo a ser aluna dela, a minha mãe é minha professora também.
00:21:00
P/1 - Você teve, além da sua mãe, algum professor que te marcou, que você lembra até hoje?
R - Me lembro da primeira lá em Minas Gerais, o nome dela é Maria. Eu acredito que… Não sei se era pelo pouco que eu lia, ou seja, alguma coisa ela deixou ali. Acho que ela tinha um carinho, um olhar diferenciado pela situação. Eles diziam que: “Ela está aqui, daqui a pouco pode ir embora”, eles diziam que eu não ficaria, então seria uma vida muito curta. E eu agradeço muito a Deus que, na verdade, não foi isso, espero ficar [viva] muito [por muito] mais [tempo] ainda.
00:21:56
P/1 - Na escola ainda, você tinha alguma matéria favorita?
R - Eu gosto de teoria. Tudo o que eu tenho que memorizar, é o que mais me atraía. Os cálculos, eu sempre tive dificuldade. A parte de português [e] história, era teoria [e me atraía mais].
00:22:20
P/1 - Tem algum momento da escola que você nunca tirou da cabeça, que aconteceu naquela época?
R - Tem. Nesse período que eu tive de aula, eu tive uma facilidade muito grande em entender. O professor nem terminava a fala, eu já havia entendido. Esse fato aconteceu aqui em Rondônia. Essa professora tinha um olhar muito para questão de valor financeiro, e eu me lembro que a meia irmã do meu pai, eles tinham uma condição financeira bem acima do que a nossa, então umas duas vezes eu peguei ela apagando prova da minha tia porque estava errada, e ela corrigindo para que ficasse igual ou maior que a minha média, mesmo criança. Eu via uma medição de forças comigo no sentido de, eu não podia estar, não porque eu queria ser melhor, mas eu tinha essa facilidade, e ela, hoje eu interpreto que, por questões financeiras, a minha tia tinha que prevalecer aos demais.
00:24:11
P/1 - E durante a sua adolescência, você já estava em Rondônia, qual era a principal diversão que você tinha naquela época?
R - Eram essas brincadeiras que eu relatei. A gente se reunia mais [no] final de semana, então vinham as moças, os rapazes, a gente fazia essas brincadeiras à noite. No sábado e domingo, a gente participava na igreja católica, tinham as irmãs, freiras, uns encontros com os rapazes e as moças, a gente se deslocava para outras comunidades, e depois de um tempo, era o jogo de futebol na comunidade, porque a gente ficava contando os dias para a gente ir. A gente fazia torcida, pegava um time ali como favorito e fazia toda aquela defesa. Mesmo que perdesse, a gente continuava defendendo.
00:25:28
P/1 - Vocês costumavam namorar também nessas saídas?
R - Sim. Era um namoro escondido, porque na época era bem proibido. Você tinha que ter uma certa idade, tinha que estar acima de dezoito anos para namorar, mas, antes disso, a gente fazia aquele namorico às escondidas. Era muito gostoso, muito emocionante.
00:26:02
P/1 - E assim que você terminou a escola, você já tinha alguma ideia do que queria fazer?
R - Ideia sim, mas a verdade é que na época as oportunidades eram bastantes restritas e eu acabei indo para [a] parte educacional, mas não era o meu sonho. Na verdade, na época que eu terminei a parte do segundo grau, na minha cabeça, eu tinha vontade de ir para o mundo investigativo. A gente lia muito os romances na época, então eu acho que aquilo fez desenvolver em mim uma vontade policial investigativa, mas não teve essa oportunidade e eu acabei indo para área educacional. Mantive os meus pés sempre na área educacional, mas a cabeça sempre sonhando para ir buscar algo diferente. Não era ali que eu me encontrava, dentro da educação. Tenho gratidão pelo tempo que percorri ali, mas a minha vontade era de buscar algo do tipo o que eu faço hoje, que estivesse em contato diretamente com a natureza.
00:27:40
P/1 - E a parte da educação, você fez alguma faculdade, começou algum outro trabalho?
R - No período da educação é que vem ali a necessidade de fazer uma graduação, porque sem a graduação a questão salarial era muito baixa. Forçosamente, eu vou buscar uma graduação. Como a minha ideia ali já era não se manter dentro da educação, eu vou para administração. Eu nem vou para o magistério, onde tem licenciatura na área educacional; faço essa migração para outro curso. Administração não era também o que eu queria, porém, a disponibilidade de cursos ofertados naquele momento era essa, então eu fiz, mas sempre buscando um momento de alçar voo, para buscar algo que eu não havia encontrado no mundo educacional.
00:28:50
P/1 - E quando você entrou na faculdade, a sua vida mudou de alguma maneira?
R - Sim, eu me lembro que alguns professores sempre citavam pra gente: "Vocês são privilegiados, a partir de agora vocês passam a ter o discernimento, estão tendo o senso crítico", o mundo precisa desse senso crítico para fazer análise de situações. Eu vejo ali um aprendizado que a gente agora pode aplicar, e levar para o resto da vida. Você passa a enxergar o mundo de uma outra forma.
00:29:45
P/1 - Teve algum momento marcante desse período da faculdade?
R - É difícil estar relatando, a minha vida é marcada por superação. Eu comecei em uma faculdade pública, que é a Unir - Universidade Federal de Rondônia, porém, no decorrer, aconteceu uma situação particular, pessoal, mas que levava a risco a minha vida. Eu tenho que sair dessa cidade, voltar para Ouro Preto do Oeste (RO), e ali não tinha faculdade federal, eu tenho que prover meios para terminar o meu curso em uma faculdade particular. Foi um momento muito difícil, porque eu não tinha condições financeiras, e tentar que algumas pessoas me apoiassem, me ajudassem a terminar o meu curso… Entendo que foi bastante humilhante, mas eu precisava e queria. Deus permitiu, mas foi bastante humilhante. Eu gostaria que as pessoas pudessem fazer algo pelos outros sem humilhação, a gente não veio aqui para isso.
00:31:18
P/1 - Quer falar mais um pouco sobre isso?
R - Por exemplo, eu me lembro de fatos, de eu conviver com pessoas que não tinham dificuldades financeira, e eu sentar cansada na cadeira de trabalho o dia inteiro, a pessoa apontar para minha calça, para minha bolsa e dizer: “Você não acha que já está na hora de você trocar sua calça que está surrada, sua bolsa?”, você ouvir aquilo e engolir calada. E outro fato bastante marcante foi no final do curso, [que tem] sempre o encerramento com uma festa, colação de grau, e uma colega que estava fazendo a parte de levantamento, dizer que cada um deveria apresentar um cheque no valor de R$250. Eu não tinha. Não tinha nem R$50, quanto mais R$250. Ela [veio] me dizer: “O que você está fazendo aqui se não tem um cheque de R$250?”. Eu me lembro de um rapaz bem jovem, ele levanta e fala: "Mareilde, você será minha convidada. Eu custeio toda a sua parte!". Eu procuro identificar quem é ele, descubro que ele é um jovem empresário na cidade vizinha, vou até ele e agradeço imensamente pela atitude, desejo a ele cada vez mais sucesso, mas digo para ele que participar com aquela turma já não me trás satisfação, porque eu acho que se você não tem esse olhar de importância, de valor, em um determinado local, então eu acho que fica enquanto necessidade, a partir dali já é escolha sua. Se eu escolho estar ali, com certeza [vão ter] mais humilhações, porque é uma festa onde as pessoas estariam ali com os seus trajes, e eu não teria, então seria mais um momento de humilhação, e eu acho que ali já era uma escolha minha. Na faculdade, não, era uma necessidade. Independente de qualquer que seja as palavras ouvidas, eu estava ali para fazer a minha graduação. Agora, ir para o festejo já era uma escolha minha [e] eu decidi não ir.
00:34:28
P/1 - Como você começou a sua atividade atual, foi em seguida [de] quando você terminou a faculdade?
R - Não, na faculdade, finalizado o meu curso, eu tive um problema, que foi feito um procedimento cirúrgico às pressas, e com esse procedimento cirúrgico foi retirado partes do meu organismo, que interferiu na parte da minha pele. A minha pele começou a craquelar e eu tive dificuldade em usar um creme hidratante que eu tinha que usar o dia todo. Eu ia trabalhar a pé, no sol quente, às vezes o lugar não era climatizado suficiente, e aquilo me fazia sofrer muito, eu não conseguia nem trabalhar. Voltava para a casa à noite e dizia: "Eu tenho que encontrar uma solução, não consigo viver assim". Foi então que eu comecei [a] pesquisar o que poderia melhorar a parte da hidratação, a parte de conseguir manter a água; a nossa pele precisa se manter hidratada. Todo cursinho gratuito que eu via, eu estava ali fazendo. E hoje eu falo que não é vergonha, até aquele momento, eu não sabia do poder de hidratação da glicerina, então eu uso sempre a glicerina, porque foi ela que me despertou. Um sabonete glicerinado já seria um grande auxílio, e ali eu começo a buscar meios de fazer o meu próprio sabonete. Quando eu começo a usar, eu percebo que ele melhora [minha pele], e eu fico ali sonhando, sempre sonhando. Só em 2015 é que eu consigo dar o pontapé inicial. Fiquei por muito tempo envergonhada em contar, [mas] hoje eu tenho orgulho em contar que em setembro de 2015, eu retiro do meu salário, [que era] R$152,34, e faço a primeira compra de matéria prima para eu elaborar um sabonete mais aprimorado. Passei três meses com insônia, porque aquele valor iria me deixar totalmente desprovida por três meses, mas hoje eu falo assim: então você pode, é capaz; esses R$152,34 se tornaram nesse maravilhoso e magnífico projeto que hoje traz o nome de Saboaria Rondônia.
00:38:00
P/1 - E esse projeto, você iniciou sozinha ou com outras pessoas?
R - Ele inicia por ideia minha, por essa necessidade, porém, como o projeto demandava um valor financeiro do qual ainda eu não tinha essa condição, então eu convido as mulheres da família, a minha filha, as minhas irmãs pra gente fazer o projeto. Então a gente inicia o projeto, aí vai observando que dentro da comunidade existia um problema que a gente poderia transformar em solução, a gente pega as mulheres da comunidade e a gente vai crescendo, vai alinhando o projeto e vai buscando outros atores para fazer parte desse projeto, e através de conexões a gente foi criando nossa estrutura.
00:39:10
P/1 - E quando é que foi que vocês começaram a pegar matéria prima da amazônia para incorporar com a glicerina?
R - Foi a partir do momento que a gente entendeu que iniciar a fábrica na zona rural seria o início. A gente observa duas palmeiras em abundância, que é o babaçu e o buriti. Esse último é especial e se tornou o carro chefe, porque é aliado do curso de água. Se você abrir um buriti, você avista água. Por desconhecimento, as pessoas estavam desmatando. Ao desmatar o buriti, você tira a água, a sua propriedade natural. Como eu falei, de um problema a gente enxerga uma solução: então a gente faz um pacto em agregar valor econômico a essas duas palmeiras para conscientizar as pessoas a mantê-las em pé. Começamos então a elaboração dos nossos produtos, mas a gente queria mais pessoas, então passamos a fazer o valor da cadeia produtiva regional. A gente vai até as comunidades que produzem café - porque nós usamos café nos nossos cosméticos - [e] procura o seguinte critério: tem que ter o respeito com o meio ambiente e tem que ter a mulher inserida na cadeia regional, porque o nosso propósito é gerar o impacto para agregar valor tanto ao desenvolvimento rural sustentável, mas dar condições para que essas mulheres possam ter ali uma fonte de renda. E esse envolvimento, esse despertar para ver que mesmo na zona rural a gente pode ficar, não é necessário fazer êxodo rural, fazendo com que a cidade super lote e traga prejuízo. A gente [pode] ficar [no campo] e dá condições nesse meio. A gente vai em busca da comunidade que produz óleo de copaíba, na comunidade que produz o óleo de andiroba, na comunidade que tem o mel, a manteiga de murumuru; a gente foi fazendo. A nossa biodiversidade é muito rica, e pode ser usada em nossos cosméticos, então a gente foi ampliando essa cadeia de valorização a partir de 2016.
00:42:06
P/1 - E essas matérias primas, tem alguma propriedade específica que só algumas delas têm, que incorpora o produto?
R - A gente, através de pesquisas já existentes, toma base. O buriti… Vou pegar o buriti [como exemplo], que é nosso carro chefe: em pesquisas da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), de outros órgãos, eles encontraram no óleo de buriti uma concentração até hoje não encontrada em nenhum outro, que é o betacaroteno, e esse betacaroteno é capaz de trazer para os cosméticos uma ação antioxidante que é tudo. O que o antioxidante traz para a pele, para o cabelo, para o organismos como um todo? Ele traz vida, no sentido de renovação. Se você vai na literatura buscar o óleo de copaíba, ele é considerado o bálsamo da Amazônia; você vai na andiroba, ele também, com suas propriedades é um repelente natural. Voltando ao buriti, ele é um fator de proteção natural, então a cada matéria prima utilizada, você vai encontrando propriedades. E o que a gente constitui com isso? Que a natureza tem muito para nos oferecer, com apenas uma condição, que saibamos cuidar dela, [ter] reciprocidade. A gente precisa ser recíproco: ela nos acolhe e a gente acolhe ela.
00:44:10
P/1 - Vocês tiveram algum tipo de capacitação para melhorar os negócios de vocês?
R - Sim, tivemos tanto na parte de produção dos cosméticos, assim como na gestão. A gente teve participação no “Programa Empreender com Impacto”, [do Mercado Livre], que nos trouxe grandes aprendizados. A gente esteve também com o Sebrae quando estávamos iniciando, que é o “Inova Amazônia”. Todas as oportunidades que vem a nós, a gente acolhe e vai em busca, porque conhecimento não ocupa espaço, ele só agrega. Hoje, você tem um conhecimento que amanhã pode ser modificado, então você tem sempre que estar atualizando, e a gente vai fazendo uso disso.
00:45:15
P/1 - Com essa entrada da tecnologia, que vocês conseguem vender produtos para vários lugares diferentes, tem algum lugar que o produto de vocês - sabonete, shampoo, hidratante - chegou e que vocês nunca imaginaram que chegaria?
R - Tem. Por exemplo, [enviamos] tudo em pequena escala, uma amostra, como um conhecimento [para] ver como é a aceitação no mercado. No início da pandemia, a gente mandou - [em] Março de 2020, já iniciando a pandemia -, conseguiu mandar para Suíça, que foi muito bem aceito. Nós [também] mandamos para Portugal, para os Estados Unidos, e agora, em 2022, nós mandamos para [a] Alemanha. Então, isso graças à tecnologia, à informação.
00:46:20
P/1 - E depois de ter aumentado esses recursos de alguma forma, você acredita que melhorou a qualidade de vida das pessoas da comunidade que trabalham na Saboaria?
R - Com certeza. O grau de melhoria você pode observar não só em termos financeiros, no fator motivacional [também], porque nós seres humanos somos movidos pela razão e pela emoção, as duas tem que ter o equilíbrio. A vida pacata da zona rural tem o lado bom, mas acaba sendo uma rotina, tudo que vira dias após dias - não estou afirmando - pode trazer algum grau de insatisfação, então trazer a Saboaria para comunidade rural, e ela ser a primeira indústria de cosméticos do estado de Rondônia, que além de idealizada, é gerenciada por mulheres rurais, pode ser considerada hoje uma referência para que outras mulheres possam entender:
“Elas fizeram, nós também faremos”. Ontem mesmo, nós estamos na semana de colheita do buriti, a gente tem um grupo de fazer as interações, então o ânimo que elas predispõem para estar fazendo isso ali, só esse fator de motivação já é um ganho sem precedentes.
00:48:16
P/1 - Eu gostaria de saber, quanto o trabalho da Saboaria gera de renda? São quantas famílias envolvidas nisso? E as mulheres [envolvidas]?
R - Hoje, nós temos de forma direta trinta famílias, mas de forma indireta, porque como eu coloquei, a gente cria várias situações em outras comunidades, que não estão envolvida diretamente. Porque dentro da comunidade onde a Saboaria está inserida, a gente faz a parte do buriti, que ela está se expandindo para outras comunidades. Em outras comunidades - [que] a gente trabalha [com elas], como eu citei -, eles trabalham com a produção do café, outros trabalham com a produção de outros óleos. Então, indiretamente, ultrapassa sessenta famílias.
00:49:15
P/1 - E qual é o benefício do trabalho de vocês para o meio ambiente?
R - É tudo de bom! Sem água, sem vida… Preserve. Então, [o] fato da gente preservar através de um manejo sustentável… A gente não trabalha na ideia do intocável, a (kinha?), o nosso manejo, de forma que a gente vai até a natureza, retira dela o necessário, volta a fazer… Por exemplo, na despolpa do buriti, a gente devolve todas essas sementes para locais onde elas se transformam em novas espécies.
00:50:13
P/1 - Antes, você estava falando que o buriti dá água para o solo, é isso?
R - Isso, o buriti. Isso já envolve a parte do engenheiro florestal, ou alguém que tem embasamento para explicar melhor, mas a gente, na nossa trajetória, percebe que o buriti é de locais alagados. Segundo pesquisas, eles têm um sistema de raízes que abrigam água para que ela se mantenha. Então, ele tem uma raiz totalmente diferente que absorve a água e deixa ali. Se você faz a coleta do buriti - agora nós estamos no período de seca -, se você pisa [no chão], percebe que o local é achatado e retém todo aquele curso de água.
00:51:20
P/1 - Mareilde, voltando um pouquinho mais para as questões pessoais: você é casada?
R - Fui casada, tive dois filhos. O primeiro é especial, vai ser uma eterna criança, mas hoje eu sou divorciada.
00:51:47
P/1 - E o seu filho é PCD (Pessoa Com Deficiência), o que ele tem?
R - A gestação foi tudo tranquilo, mas ao nascer, o sistema onde eu fui para realizar o nascimento dele, creio eu que não tinha condições, então ele não nasceu como deveria. Faltou oxigênio, segundo os neurologistas, então trouxe esse prejuízo. Ele tem uma idade cronológica, mas a idade mental dele é outra.
00:52:30
P/1 - Agora, encaminhando para a parte final da entrevista: desde que você começou a fazer sabonete, que você fazia para a sua pele mesmo, muita coisa mudou até agora?
R - Essas mudanças vieram só com ganhos, em aprendizado, em pessoas maravilhosas que fizeram conexões com projetos, cada um ali contribuindo, e hoje eu posso garantir, somos o que somos pelas conexões, cada um fazendo ali a sua parte, seja na tecnologia, ou na parte do conhecimento da cosmetologia, ou na parte ambiental, e com isso a gente foi criando e aperfeiçoando o nosso projeto.
00:53:38
P/1 - Você pode contar um pouquinho como foi fazer a sua pós?
R - A pós em cosmetologia foi bastante difícil, por, no caso, eu não ter uma graduação em química ou em farmácia. Ter que entender esses termos, até mesmo os cálculos, me fez a duras penas entender todo aquele conhecimento, mas hoje eu estou cursando técnico em química justamente para me dar mais embasamento. Como eu disse, o aprendizado tem que ser constante, você tem que estar sempre buscando para trazer melhoria para o processo produtivo da Saboaria Rondônia.
00:54:49
P/1 - Você comentou também que chegou a voltar para a sua cidade natal. E quando você voltou, mudou muita coisa?
R - Foi como se eu tivesse dado um mergulho no passado e tudo estivesse praticamente quase igual. Aconteceram algumas mudanças, não muitas. Você vê que a minha mãe foi bastante assertiva em fazer essa migração, ir em busca de novas oportunidades.
00:55:33
P/1 - E hoje em dia, você mora em Rondônia com a sua família?
R - Sim, hoje, depois dessa trajetória que eu citei, nós viemos para Rondônia. Chegamos em 1971: momento esse de fase de não ter telefonia, era fase de telégrafo ainda, sem energia, sem água, mas a gente vai em busca de estudar e depois sempre ter os pés aqui na zona rural. É tanto que depois a gente volta - no caso, eu volto - e aqui a gente tem o nosso espaço, convivência com nossos pais, que hoje estão já na fase mais de descanso. Algumas irmãs ainda estão fora. Somos em cinco irmãs; duas não estão em Rondônia, mas as outras estão aqui na comunidade.
00:56:52
P/1 - A gente falou bastante de trabalho, mas, além do trabalho, você tem algum hobby, alguma coisa que você goste de fazer?
R - Eu gosto, quando eu não estou trabalhando, é de estar em contato com a natureza, ir lá naquele igarapé, ou visitar os locais que a gente revitalizou com as mudas de buriti, o quão maravilhoso é você olhar, porque elas são nativas, as comunidades de buritis são nativas. E nós agora estamos fazendo o nosso papel, estar contribuindo com o meio ambiente, criando. Quando a gente pega a semente e leva, você vai lá avistar, então você colocou aquela semente. Eu me lembro de um fato [de] quando eu era criança; eu gostava de fazer muito isso, plantava a sementinha e depois ficava pensando: “Mas por que ela cresceu muito mais que eu?”. Hoje eu entendo que o ciclo de vida das árvores é totalmente diferente. E quando eu posso, assisto filmes, adoro comédia para dar risada, não deixo de ver um de romance para chorar, porque ali eu me identifico com uma personagem e choro, coloco tudo. São os que eu mais gosto, comédia e romance.
00:58:33
P/1 - Você comentou que gostava bastante de ler quando era criança, que queria ser policial investigativa. Você ainda costuma ler?
R - Costumo. Só que hoje não tenho o tempo que eu tinha, mas se eu tivesse, continuaria lendo. Só que “Ou isso, ou aquilo”, como dizia Cecília Meireles: o envolvimento com esse projeto, ele toma um certo tempo, então não consigo manter o hábito de leitura que lá na juventude eu tive. Mas não há problema, eu estou satisfeita em poder deixar, [fazer] alguma diferença aqui na comunidade.
00:59:24
P/1 - Quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - É a minha família e o projeto Saboaria Rondônia.
00:59:37
P/1 - Você tem algum sonho que você ainda não realizou?
R - Tenho vários. O meu sonho é de criar um centro, ainda não sei bem, mas um centro de referência para outras pessoas que possam vir [a] se inspirar, em especial às mulheres - não significa que seja só para mulheres -, e um dia poder conhecer novas culturas, ver novos países, ver como eles vivem. Isso é um sonho.
01:00:20
P/1 - Qual você acha que é o seu legado para futuras gerações?
R - É de deixar com que, mesmo com o progresso, você conciliar com a natureza, não significa ficar preso aqui. Não quero progresso na minha vida, não; ele tem que vir, a gente é que tem que saber conciliar, trazer o equilíbrio. Então, essa convivência com a tecnologia, por exemplo, se não fosse o progresso, a tecnologia, a gente não estaria conversando aqui nesse exato momento, mas eu posso estar falando com vocês aqui, e já à tarde estar lá na natureza fazendo o papel de perpetuar para que ela exista.
01:01:15
P/1 - E por fim, o que você achou de contar a sua história pra gente?
R - Eu fico emocionada e, ao mesmo tempo, agradecida, por deixar aqui a minha história como referencial, para que outras pessoas se inspirem e também possam fazer a diferença.
01:01:43
P/1 - Mareilde, eu gostaria de agradecer em meu nome, e do Museu da Pessoa, pela sua história de vida. Essa entrevista foi muito legal e a sua história vai ser inspiração para outras pessoas também!Recolher