Projeto Cotidianos Invisíveis da Ditadura
Entrevista de Leda Tronca
Entrevistada por Lucas Torigoe (P/1) e Alisson da Paz (P/2)
São Paulo, 27 de abril de 2022.
Entrevista número COIND_HV014
Revisão: Nataniel Torres
P/1 – A gente sempre começa com uma pergunta complicada, que é assim; qual...Continuar leitura
Projeto Cotidianos Invisíveis da Ditadura
Entrevista de Leda Tronca
Entrevistada por
Lucas Torigoe (P/1) e Alisson da Paz (P/2)
São Paulo, 27 de abril de 2022.
Entrevista número COIND_HV014
Revisão: Nataniel Torres
P/1 – A gente sempre começa com uma pergunta complicada, que é assim; qual é o seu nome completo? Em que cidade você nasceu e que dia foi, por favor?
R - Meu nome completo é Leda Mariana Marques dos Santos Tronca. Eu nasci no dia 24 de junho de 1941 aqui em São Paulo mesmo, na capital.
P/1 – Leda, como é que foi o seu nascimento? Seus pais te contaram se você nasceu em hospital, em casa?
R – Minha casa e dos meus pais era na Barra Funda e eu nasci na maternidade do Brás. Era para nascer em maio, dia 20 de maio, meu irmãozinho que é um ano e cinco meses mais velho que eu foi para ficar com a avó alemã, eu tenho uma avó alemã do lado da minha mãe e levaram ele para lá, porque eu ia nascer dia 20 de maio, mas eu não quis saber, eu levei um mês e quatro dias para dar a entrada no mundo (risos). No dia 24 o meu irmão voltou, nesse tempo meu irmão teve que voltar para casa e tal e então eu tinha esse irmão, o Sidney de um ano e cinco meses mais velho que eu e depois eu tive outro irmão, Paulo. Paulo, que é dois anos mais novo que eu, quer dizer que eu fiquei sanduíche entre dois meninos.
P/1 – E me fala uma coisa, qual é o nome da sua mãe?
R - Minha mãe chama Suzana Olga Fiks. O nome dela é Schlemper Fiks, como solteira, depois como Marques dos Santos do meu pai. Ela é bem estrangeira, meu avô é francês, Antônio Fiks. Esse nome Fiks aqui no Brasil, aqui em São Paulo, todos são judeus, mas gozado que nós não, meu avô diz que não, que ele é até para ser padre, (risos), aí perdeu os pais, andou pela Europa, ele é o alsaciano, então às vezes era francês conforme quem ganhava a guerra, às vezes era alemão, porque estava ali… e a minha avó, da minha mãe, a mãe da minha mãe, Edwirges Schlemper, que depois virou Fiks, apesar de só falar alemão, ela não era alemã, ela nasceu em Santa Catarina, em Palhoça, então é gozado porque ela tinha até uma irmãzinha índia, porque uma coisas horrorosas que se jogava as coisas para os índios pegarem, morrer e deixar as terras, uns terrores assim. Ela era Luterana e foi com dezessete anos estudar em Berlim, naquele tempo da Belle Époque, antes da primeira guerra e ela fez enfermagem, trabalhou no hospital por quatro anos, mas não aguentou e quis voltar, aí não se acostumava mais no interior, em Palhoça, veio para São Paulo e trabalhou aqui como preceptora, porque estava na moda ter uma alemã que cuidasse dos filhos dos ricos, então ela quis… e meu pai é bem brasileiro, eu sempre digo que ele tem sangue negro, tem sangue índio, bem moreno de olhos verdes e tal (risos) chama Cherubuim, coitado, ele já teve o nome do avô dele, ainda escrevia Cherubim, então chega o… quando batiam na minha casa: “O seu Cherubim está?”. Eu falava: “Cherubim não, ‘Querubim’.” Então bem brasileiro meu avô, ele nasceu bem na divisa de Minas, Meu avô era mineiro né, meu bisavô foi tropeiro, e meu pai nasceu no Espírito Santo do Pinhal, que é bem ali na divisa de Caldas. Minha mãe é de 1918, meu pai é de 12 e eu levei um susto agora que eu tô lendo um livro, eu faço parte de um grupo de leitura e estamos lendo Torto Arado, não sei se você já ouviu falar, um livro que vale a pena pra gente saber a vida dos negros. Aí o que eu fiz, porque um dos personagens principais nasceu em 18, aí eu fiz a conta, só trinta anos, a minha mãe nasceu trinta anos depois da escravidão, pra mim imagina, eu que fiz pós graduação em história e não sabia, não tinha feito essa relação, porque é tão pouco tempo a libertação dos escravos. Então é assim: mãe bem europeia e pai bem brasileiro.
P/1 – E eles se conheceram como? Você sabe?
R – É, deixa eu lembrar… eles foram morar aqui na Liberdade. Meu pai morava em uma casa na rua Condessa de São Joaquim, isso foi depois, aquela rua dos japoneses e tal, ali na Liberdade. E a minha mãe foi morar ali e a minha avó, essa avó alemã, alugava quartos, mas meu pai morava em uma casinha do lado e tal e se conheceram na Liberdade, foi lá que se conheceram. Meu pai veio do interior em um caminhão em 29, 30 com a grande crise, meu avô perdeu, meu avô, o pai dele, tinha um café em Pinhal e perderam tudo, porque o café, as fazendas de café foi aquela coisa, uma desgraça em 29, 30, e meu pai que era o filho mais velho, o resto eram todas irmãs, ele veio em cima de um caminhão, nem tinha dinheiro… saiu, tiraram da escola, quer dizer que ele nem acabou o ginásio, já tinha 18 anos, ele teve a gripe espanhola, então ele entrou tarde para a escola e veio em cima de um caminhão e depois veio trazendo a família, o pai, a mãe já tinha morrido, as irmãs vieram assim, e aí conheceu minha mãe e era o tipo que ele gostava, ela era alemãzinha (risos) loira de "zóio" azul, né? Ele gostou dela e casaram e ficaram casados a vida toda. Minha mãe morreu com 96 anos, meu pai com 80 (risos). Então eu falo assim: “Eu só conto essa parte da minha mãe, porque eu ainda tenho uns anos de vida”. Entendeu? (risos) Eu não falo que o pai foi antes, foi a idade, mas eles viveram a vida inteira… nós moramos… interessa essa, de eu contar?
P/1 – Pode, claro.
R – Então nós moramos na rua Mairinque. Quando saímos da Barra Funda eu tinha quatro anos e fomos morar na Mairinque, eu estudei a vida toda no Lycée Pasteur, que é na mesma rua. A Mairinque é uma ruinha pequenininha com o colégio Lycée Pasteur, ali na Vila Mariana, e moramos lá e depois… é mais eu fiquei dos quatro aos 19 e depois fomos para Diogo de Farias, mas tudo por ali, Vila Mariana, Vila Clementino e hoje eu moro perto da Praça da Árvore, lá no metrô Praça da Árvore, é o meu ponto. Hoje eu estou há 55 anos na mesma casa. Fiquei viúva há sete anos. Meu marido Ítalo Tronca era professor da Unicamp, foi primeiro jornalista muito tempo durante a rebordosa da ditadura militar, ele não aguentava mais a censura e queria mudar, ele era advogado como formação e foi para fazer história, foi convidado para ser professor, ficou um tempo na USP, e depois foi para Unicamp e virou a vida inteira, até se aposentar 70 anos, como professor de história da Unicamp, tem livros, tem vídeos, umas coisas bonitas dele.
P/1 – Me conta uma coisa, você tem um irmão mais velho e um mais novo, né?
R – E o mais novo depois de muitos anos, não sei se eu vou contar isso para você… Eu tenho uma irmã adotiva, 14 anos mais nova, mas como ela não quer saber muito disso, eu fico meio… mesmo sobrenome, tudo certinho.
P/1 – E como é que foi a sua infância, você brincava muito? O que vocês faziam para se divertir nessa época?
R – (risos) Olha a rua Mairinque, acho que você já passou por lá pelo Lycée Pasteur, né? A rua Mairinque não era asfaltada (risos). Então, quando ela foi asfaltada… até os quatro anos eu não lembro bem, mas quando vim para rua Mairinque, minha mãe conta, porque eu tenho os dois irmãos e todo mundo fala que menino é muito mais levado, a minha mãe dizia assim: “Leda, você, com dois anos e meio, pulava o muro da casa”. (risos) E eu brinquei muito nessa terra, a terra da rua, e a grande alegria foi quando eles puseram aqueles canos enormes, na rua embaixo, não sei se é para água, eletricidade… eu e meus irmãos brincávamos ali e era bem na frente da rua Teresa Margarida, que é uma ruinha pequena e a gente atravessava e ia para o campinho, que era um campo enorme que hoje eu dou risada, e também atravessava para ir no Cine Sabará (risos) que a gente assistia domingo de manhã. Brinquei muito na rua, brincadeiras de rua, que a gente tinha naqueles 75 anos, 70 anos atrás de forma completamente diferente. Minhas filhas ainda pegaram um pouco de brincar na rua, nessa minha rua Bogaris que eu vivo há 55 anos, mas hoje não, hoje não se pode brincar na rua. Olha que triste!
P/1 – E vocês tinham rádio ou TV, o que vocês tinham em casa?
R - Eu lembro. Rádio sim, mas tevê não. Tevê quando apareceu em 50, foi um acontecimento. Até hoje eu tenho os escritos, minhas crônicas, e eu conto a alegria que foi o meu pai que era animado, que nós assistimos o filme do Gordo e o Magro a primeira vez. O meu pai riu tanto que caiu no chão e é uma alegria que eu lembro até hoje com saudade, um pai que riu tanto da história e ficou marcado na minha vida. Umas das minhas crônicas é sobre isso, a outra é sobre o meu irmão Paulo. Era assim, eu e o Sidney muito perto, muito junto, muito amigos, e o Paulo era chato, sempre o irmão caçula é o chato, ele era o dono da bola, sabe aquele que ganha a bola e ia assim com a bola jogar no campinho e depois ele voltava, brigava? Ele era um alemão loiro (risos), voltava com a bola e todo mundo atrás: "Paulinho, dá a bola.” Porque ele era o dono da bola e quando ele brigava ele pegava… e o Paulo a gente tinha dificuldade com ele. Eu não te contei que meu pai ficou bem de vida. Meu pai trabalhou na Shell muitos anos e depois ele teve uma companhia, a Shell ajudou, não sei como que foi e ele ficou dono da Combuluz, que até hoje eu vejo de vez em quando os caminhões da Combuluz, então nós ficamos bem de vida, bem mesmo, bem, porque a gente tinha casa em Caraguatatuba que eu herdei até hoje, tivemos chácara em Itapecerica, quer dizer, ele era bom, porque ele era um homem muito família e tal, então ele não gastou em bobagem de ser granfino. Ele levava a gente para passear, na casa de Caraguatatuba eu levava todos os amigos, meus irmãos. Então é uma lembrança muito bonita que a gente tem nessa casa que hoje é minha, eu fui comprando dos meus irmãos e depois da minha sobrinha francesa que é filha desse Sidney, do meu irmão que eu vou contar depois a história dele.
P/1 – Me conta uma coisa então, como é que foi entrar no Lycée? Como era na época?
R – Na época eu entrei para o Lycée com cinco anos e eu era uma menina que dava um trabalho, minha mãe disse que eu era uma chorona; chorava para sair da cama, chorava para ir para cama, chorava para… batia com a cabeça na grade do berço, ficamos no berço nós três, os três irmãos não sei quanto tempo, então era uma chata. Minha mãe disse que foi um milagre, aconteceu alguma coisa, no dia em que eu fui para a escola eu mudei completamente de gênio, eu não sei, eu lembro lá no Lycée eu brincava com as formigas (risos). Imagina, não podia pinicar em casa, mas lá que eu descobri os formigueiros, fazia umas coisas. Eu até tenho fotografia dessa época no Lycée Pasteur, era colega, não dá porque ela é mais nova que eu, a Rita Lee. A Rita Lee passava pela minha casa, porque ela morava numa ruazinha depois com as duas irmãs que eram mais da minha idade, ela é um pouco mais nova, era uma loirinha e tal. A minha mãe era tão loirinha assim de olhos azuis, pequenininha, baixinha. Ela conta que uma vez ela estava assim na rua e um amigo do meu pai chegou e ela assim conversando com ele e o Sidney correndo em volta e o amigo falou: “Mas quem é esse mulatinho?”. Porque ele não podia acreditar, porque o Sidney era moreno, eu castanha e o Paulo loiro (risos). Então, assim, a gente sempre deu risada dessa história: “Quem é?”. Porque aquela alemãzinha loirinha, com um filho moreninho, o Sidney era magro… alto…
P/1 – Vocês iam a pé para a escola?
R – Sim, era no quarteirão. Minha casa aqui no 74, o Lycée Pasteur era algo de um quarteirão só. Depois eu saí de lá e fui para o Dante Alighieri. Aí você vê, meu pai já estava bem, porque podia pagar a escola, eu nunca tive em escola pública, só particular.
P/1 – E era… os professores, algum marcou você no Lycée?
R – No Lycée eu tive uma professora que marcou muito, até eu tô louca para ir no biológico para… ela era professora de ciências, chamava Lídia, mas eu não lembro o sobrenome. Era uma mulher magra, alta, eu fiquei encantada. E um professor de história também, mas esse eu não vou lembrar o nome dele. Então de história eu tive uma dificuldade enorme, eu repeti o primeiro e o segundo ano do primário, eu sou disléxica de letra, não de falar, mas o T, P, o B era uma dificuldade e no meu tempo não tinha essa coisa de você fazer uma alfabetização, mas eu acho que não. Eu sou de junho, então entrei com seis anos e meio no primeiro ano que era jardim, pré e primeiro e foi uma desgraça porque eu tinha boa memória de decorar, era boa de contas, mas se tampasse da cartilha o desenho, eu… minha mãe me grudava pelas tranças, “Leda!” Mas eu levei um ano para… o primeiro ano e o segundo ano eu repeti, porque ainda com essa dificuldade de trocar as letras, “quando”, “quanto”, até hoje eu preciso prestar um pouco de atenção. Eu sempre dou risada, porque quando o professor falava: “Ditado”, eu começava a chorar, porque "di, ti, ta, to”, já trocava, eu já sabia que ia tirar nota baixa, depois fui para frente.
P/1 – E você foi Dante em que ano da escola, quantos anos você tinha?
R – Eu sempre quis ser professora, eu gostava de dar aula, mas no ano em que eu acabei o ginásio, que eu queria ir para o normal, que chamava o normal para fazer professora, entrou vestibular e eu tinha um medo de fazer prova, um medo, então meus amigos, que até hoje eu tenho um amigo que é… esse amigo de 70 anos (risos) quase 80, o Gian Carlo Cilento, morava na frente da minha casa, eles estudavam… eles são bem italianos e estudavam no Dante e aí me convida: “Não, vai para o Dante.” O meu irmão Sidney foi para o Mackenzie, fazer o colegial, mas eu sempre escondi de todo mundo, eu falo que eu fiz o clássico, mas é mentira, eu fiz contabilidade (risos) o técnico em contabilidade, de medo de… era meu sonho ser professora, achava que eu dava pra ser (risos), mas o medo era terrível, uma insegurança com essa coisa de fazer, escrever e tal…
P/1 - E é o que seria hoje o ensino médio, né?
R – É o médio, era o normal. O técnico em contabilidade, o clássico para exatas… Olha, esqueci…
P/1 – Que é o que você fez?
R – Não, eu fiz contabilidade, eu fiz o técnico e aí o Sidney e todo mundo faziam o outro, de… as meninas geralmente faziam do clássico e os meninos faziam o… não lembro, mas se eu lembrar eu te conto.
P/1 – Tranquilo, e vocês três já tinham alguma coisa que vocês pensavam ser? Você queria ser professora, mas o Sidney e o Paulo tinham algum sonho, alguma carreira em vista ou não, nessa época?
R – O Sidney era o meu irmão brilhante. Então minha mãe bem alemã falava assim: “Poeta, já gostava de Jazz de música”. Tudo que eu sei aprendi com ele. Então a minha mãe apresentava assim, uma pedagogia ‘maravilhosa’: “Esse é o Sidney, primeiro da classe, poeta, passa em tudo. Este é o Paulo, que é o meu filho, ele vai bem porque é esforçado”. Então o Sidney era o inteligente, o Paulo era o esforçado, “E essa aqui, (batia na minha cabeça) graças a Deus, nasceu mulher”. Veja se eu enfrentar uma coisa assim: “Burrinha, mas graças a Deus nasceu mulher”. É uma dureza, né? Muitos anos de análise (risos) pra superar essas coisas. O Sidney então ia ser, ou ia ser presidente da República, pelos pais, ou ele ia ser astronauta, já se falava em astronauta, ele ia ser uma coisa brilhante. E o Paulo, fez uma carreira bonita na IBM, foi um chefão fora do Brasil e tal. E o Sidney… posso contar dele, do Sidney?
P/1 – Pode.
R – Ele entrou para a USP, para geologia, e teve até bolsa de tão bem que ele entrou, os primeiros lugares da geologia. Mas nesse tempo, ele conheceu a quarta internacional, que é a trotskista, então nós dois fomos militantes da quarta, com um montão de… estava na… antes da rebordosa…
P/1 – Só uma coisa, ele entrou na geologia em que ano?
R – Ele largou no primeiro… ele fez o primeiro ano com uma bolsa boa, tinha tudo, era uma alegria para os pais. Meu pai que tinha largado escola, minha mãe que só tinha feito o comercial, foi uma alegria para a família. E, no segundo ano, ele larga tudo e vai ser operário no Rio de Janeiro, foi construir navio (risos). Meus pais envelheceram… imagina, o brilhante, ia ser o sucesso da família, larga tudo e vai ser operário no Rio.
P/1
- Isso em 60? Em que ano você acha?
R – Ele nasceu em 40? É, 60/61, porque ainda não tinha a ditadura, A ditadura nós pegamos, eu tinha conhecido o partido comunista, porque eu não sei como, eu não me recordo, a rua Cunha assim, eu… tinha o Doutor Gilberto Andrade Silva, até o sobrenome importante, era um velho, um senhor, e ele me convidou para ajudar, naquele tempo, a gente cortava jornal, ele tinha as pilhas e eu com 15 anos fui ajudá-lo e sempre querendo que ele me convidasse, que ele era do partido comunista e ele estava voltando, ele tinha ido morar na França, ele tinha três filhos, porque ele teve que fugir do Getúlio, quando o negócio ficou feio com o Getúlio, ele conseguiu fugir para a França e estava voltando, tinha uma casa bonita na rua Cunha, aquela que você sabe que vai dar lá no museu, que é uma
continuação assim do museu Lasar Segall na rua Cunha, eu trabalhei com esse doutor, eu não sei quanto tempo, um ano, e ele me contava e eu achava uma maravilha: “Olha que maravilha, a Rússia é um país, a União Soviética que não tem a diferença de classe, todo mundo é igual”. Foi uma descoberta pra mim e eu queria ser convidada e ir, o doutor Gilberto falava para mim: “Não. Muito novinha, não vou te levar para o partido”.
P/1 – E isso em casa era discutido, política, ou não? Como vocês começaram?
R – Eu fui a primeira que discuti com esse negócio assim. E o meu pai, você imagina, um homem que veio e subiu na vida, o capitalismo, a coisa, o orgulho de ter… ele achava um horror, mas não chegava porque ainda não estava no período da repressão, a gente conversava e tal. Aí quando o Sidney entrou com o Tomás Marques, com o Bóris Fausto que foi colega, para a Quarta Internacional, que depois me levou junto com ele, aí que era uma militância. Eu lembro um dia, eu tomava o trem para Mogi das Cruzes, que nós tínhamos os companheiros lá, e eu nunca esqueço, eu fui para lá e na volta o trem quebrou, e o Sidney ia me esperar na estação da Luz, acho que era, e eu ia chegar meia-noite no local e o trem quebrou e nós ficamos na rua. Eu saí do trem, aí o trem foi embora e perdi o trem. Quando cheguei na Luz, tive que pedir para um guarda, um policial, me ajudar a tomar um táxi. Eu falei: “Ai Ledinha, você de esquerda, tão… vai pegar um cara e tal”. Eu cheguei em casa achando que os meus pais estavam assustadíssimos, mas não estavam. Mas outra vez que eu cheguei com Sydney de madrugada, que nós fomos também em uma militância, nós dois com o sapato na mão, entramos e meu pai e minha mãe sentados no sofá chorando, meu pai… eles estavam assim, desesperados que nós temos sumido de casa, a gente deu nessa parte trabalho. Quando começou a ficar coisa feia mesmo, quando estourou, aí eu fiz um concurso para ser secretária, que eu tinha feito contabilidade, eu fiz um concurso no Hospital do Servidor Público Estadual ali na Pedro de Toledo, passei bem da coisa e fui ser secretária da alta cúpula… mas eles descobriram que eu estava grávida, então não me deram contrato… naquele tempo podia fazer isso, então eu não tinha direito e eu fiquei com um contrato de 6 meses, estava de 2 meses, até o oitavo mês da gestação e eu estava lá e ali era tudo uma cúpula da direita, os médicos lá, o Hospital do Servidor, o do Dr. Schmidt toda aquela… e eu percebi que tinha alguma coisa no dia no dia 31 de março de 64, uma coisa esquisita no ar. Como eu era a secretária lá da cúpula, eu escutei e dei um jeito de sair e ligar para o meu pai, porque meu pai tinha dinheiro, nós, eu e o Ítalo não tínhamos dinheiro, então para o meu pai tirar dinheiro que a coisa estava estourando alguma coisa. Eu fui para casa, lembro da coisa de eu ir e eu nunca perdoei o Ítalo, porque eu morava numa casinha assim, ali em Vila Mariana mesmo, meus pais na Diogo de Faria, que já moravam, e o Ítalo trabalhava no médico, não, o médico moderno já tinha saído, ele trabalhava no jornal Última Hora, ele fazia toda a parte internacional do jornal e o Ítalo não voltou naquela noite, imagina, você sabendo que tá estourando o negócio e ele não veio, eu grávida, eu saí de casa na Leandro Dupret, fui a pé até a Diogo de Faria chorando para minha mãe e tal, porque meu pai tinha me dado um telefone, naquele tempo era… quem tinha telefone era uma beleza. De repente, o Ítalo chega, mas eu queria matar, sabe aquela assim, de segurar pelos colarinhos (risos), numa situação daquela ele não me dá um recado que ia chegar tarde, imagina ficaram no jornal, coisa toda. Então eu lembro disso e lembro que nós dentro do carro, paramos o carro ali na Leandro Dupret onde era a minha casa, esticamos os fios para pegar o Leonel Brizola do Sul, tentando organizar uma resistência para o golpe.
P/1 – Vocês estavam tentando ouvir ele no rádio, é isso?
R – No rádio. Porque ele tinha rádio... não lembro como chamava, lá do Rio Grande do Sul, que ele já estava lá, tentando organizar. Mas imagina, foi uns 21 anos, nós passamos nessa ditadura. O Ítalo desistiu do jornalismo, foi convidado e foi para a USP primeiro e daí também não saiu o contrato dele, mas aí na UNICAMP saiu, porque: “Nos meus comunistas ninguém mexe” dizia o… não tô lembrando, o fundador da Unicamp, o grande que organizou… e o Ítalo ficou lá até os 70 anos, quando ele se aposentou, como professor de história contemporânea, e ele era um… jeito de fazer… eu nem sabia que ele fazia tanto sucesso como professor, que como jornalista ele fazia uma história… Ele tem um livro sobre… Ah, ele fez especialização na última época, ele fez sobre os militares, a Volta Redonda, ele tem a tese dele de doutorado e depois aí ele se especializou em saúde, ele fez um livro que chama Lepra Aids, bom não sei, depois eu trago.
P/1 – Posso voltar só em algumas coisas?
R – Pode.
P/1 – Antes do golpe você e seu irmão militavam pela Quarta Internacional, que ações vocês faziam, e qual era o objetivo de vocês nas suas ações nessa época?
R – Era assim, a gente era contra a União Soviética, contra o Stalin. Então era toda uma coisa, uma revolução permanente do Trotsky que a gente tinha, e eu logo percebi que não era a minha sabe, eu fazia as fotos, nós fomos para as portas das fábricas, vendíamos o jornalzinho da quarta, e eu percebi que o nosso grande chefe, que depois é sogro do meu irmão, casado com a filha dele, o Pousada, argentino, era um cara completamente fora da casinha, descobri umas coisas e umas loucuras de discos voadores, tem umas coisas que a turma que lê o jornal hoje fala: “Como é que vocês entraram?” E o Sidney tão inteligente, tão brilhante, acabar do jeito que acabou acreditando, não sei se acreditava, mas foi pego na Argentina e provavelmente jogado do avião, porque a mulher, a… como chamava?
P/1 – Operação Condor?
R –
Operação Condor, é provavelmente, mas foi bem antes do golpe na Argentina. O golpe na Argentina foi em 76. Eu estava na casa dos meus pais, eu e o Ítalo jantando, porque minha mãe minha mãe faz aniversário dia 21 de fevereiro e ela ia passar com Sidney em Buenos Aires, com a Suzana… não sei como ela chama, mas a filha do Pousada, ela ia passar com eles lá, e nós estávamos almoçando. Tocou o telefone, eu fui atender. Era da Itália avisando que o Sidney tinha sido preso, foi uns dias antes do golpe da Argentina, então eles avisaram. O Ítalo trocou a passagem com a minha mãe, para o meu pai e o Ítalo irem para Argentina, foram lá saber do Sidney, pensava que iam visitar, que iam ver, e ficaram lá. Meu pai teve um infarto lá, sem perceber, só percebeu quando chegou que tinha tido um infarto, imagina o que foi aquilo para ele, e aí meu pai acreditava na embaixada… Buenos Aires era embaixada mesmo, tinha uma brasileira lá da embaixada toda: “Que sim, o Sidney estava preso, que ia ver, que tal.” E meu pai quando saiu, que era aquele homem que tinha subido na vida, o dono do pedaço, ele falou para minha mãe que ia trazer o filho de volta: “Ele vem comigo…” E nós fomos tudo esperar meu pai e o Ítalo chegarem em Congonhas, naquela época Congonhas, e meu pai desce, eu nunca vi um olhar tão triste na minha vida, nunca, já passei por muita coisa, mas meu pai descendo e olhando para minha mãe sem o Sidney, sem o filho mais velho, não conseguiu trazer. Então foi aquela loucura, depois eu e o Ítalo fomos de novo, corremos sérios riscos, a gente percebeu depois, nós tínhamos falado que íamos voltar, procuramos a igreja, viramos tudo que podia, os amigos, o Bernardo Kucinski nos deu o endereço, fomos lá para embaixada israelense, o cara já tinha imaginado, já tinha sido preso, nós na porta sendo filmado tal e nós tivemos que trocar, eu não lembro detalhe, trocar passagem, e acontece que meus pais foram esperar na segunda-feira, a volta em Congonhas, e nós não chegamos, imagina o que que foi, porque só voltamos no outro dia e meu pai e minha mãe… e quando o Sidney, aí não te contei isso! Eu era professora no Lourenço Castanho, dos pequenininhos, eu alfabetizava. Eu fui pedir demissão do Lourenço Castanho nesse dia, estava brava com a direção e não sei o que e fui pedir demissão, mas… e a minha mãe tinha me prometido, não sei o que ela ia me dar, uma mesa, não sei, e eu liguei lá do Lourenço e a minha mãe… falei que é um silêncio, depois minha mãe atendeu e eu falava: “Mamãe eu tô aqui no colégio, tô pedindo demissão, vou para aí”. Fazia um silêncio e a minha mãe respondia com uma voz esquisita, eu falava outra coisa… eu pensei comigo, “o que é isso?”. Saí do Lourenço e fui para minha casa na Diogo, quando eu parei do carro, a nossa empregada vinha em cima, fez sinal para mim, mas não dava, os caras vieram de metralhadora e me prenderam dentro de casa: “E o que você é, você é o quê do Sidney?”. “Eu sou irmã.” “Tá bom, só entra, não pode sair.” Eu fiquei trancada com os caras, dois caras de metralhadora dentro de casa, e aí, “E a mamãe?”. E aí a minha irmã, a Marli, mocinha: “Vieram aqui e pegaram a mamãe, puseram no carro e levaram ela para buscar o papai lá na Vila Carioca.” Para levar, naquele tempo não era OBAN, era Bandeirantes, mas era na Tutóia, ali onde era a coisa, levaram eles para lá e eu fiquei… eu estava com hóspede em casa que eu não sabia quem era, a gente como simpatizante da esquerda… os caras estavam e a gente dava um jeito de ficar em casa. Chegou em casa e eu falava: “Bom.” Eu tinha certeza que eles iam para minha casa, irmã casada com filho pequeno. Então eu peguei um papel, arranjei e fiquei lá em cima, a casa era sobrado, eu escrevi assim: “Avisa o Ítalo, telefone tal, meu marido, que eu estou presa na casa da minha mãe”. Amassei o papel, esperei o vizinho, porque todo mundo percebeu que uma coisa estranha, não sei como é que era o carro daquele tempo e eu fiz sinal para o dono da casa e joguei o papel, com medo, porque imagina se os caras pegassem, mas eles estavam dentro de casa e tal, aí eu falei: “Bom, ele vai ligar para o Ítalo, o Ítalo vai tirar as meninas de casa, duas meninas, as minhas mais velhas, tirar a pequena e vai sumir com o cara, vai tirar as malas do cara, aí eu fiquei mais tranquila, mais ou menos, esperando a minha mãe, imagina na operação. Quando é com pouco eles voltam, os dois cara subiram assim, me falam… aí nesse meio que cuidava uma senhora meio parente que cuidava dos meus avós que moravam perto, foi presa também, Evinha que era nossa empregada… ficamos todos presos lá, eles chegaram disseram: “Pode sair, seus pais vão voltar”. Falei: “Tá bom”. Aí eles… eu falei: “Vamos embora, eu vou levar todo mundo”. Para o ponto e botar no carro e a minha irmã que eu pus dentro do carro, todo mundo. Aí eles falavam: “Não, mas você vai deixar a casa aqui com a gente?”. Eu falei: “Eu vou embora, eu vou levar as pessoas que estão aqui que estão precisando de ir para casa”. Porque já era não sei que horas, não lembro. Bom, levei a coisa, distribuí o povo, e fui para minha casa falando… quando eu chego, o Ítalo tá tomando banho cantando no banheiro, você imagina a Ledinha… (risos) eu chego: “Ítalo!” Ele falou: “Uai, o vizinho me falou que você ia chegar tarde”. O vizinho ficou, acho que com… avisou que eu ia chegar, eu falei: “Ítalo, corre! A OBAN vem vindo aqui para casa! Vai imediatamente e leva as meninas embora para casa de amigos”.
P/1 – E o hóspede também?
R – É, e o hóspede foi para casa… um amigo nosso, e o hóspede vai pegar, ele não estava em casa, nós jogamos as malas dele no fundo do meu quintal, que eu tenho uma casa grande, quase uma Chacrinha no fundo do quintal no meio das plantas e o Ítalo levou as meninas para os amigos, as duas pequenas e foi para o ponto de ônibus, esperou o cara chegar e eu fiquei em casa sentada, porque eu disse: “Esses caras vêm”. Então saber o que você joga fora, os livros, dentro do possível, e fiquei sentada, na minha casa tem um vitrô aqui atrás, eu estava sentada rezando e tal, para eu passar saber dos meus pais, isso toca, batem no vitrô assim: “Leda!”. Quando olho para trás, o Sidney, eu levei um susto! Eu falei: “Sidney, papai e a mamãe estão presos, estão atrás de você! Você suma, desapareça!”. E aí ele foi no telefone perto e me ligou, mas eu falei… eu achava que estava tudo, você fica completamente paranóico: “O telefone tá, você suma, você desapareça porque eu não sei o que vai acontecer, os caras vão chegar aqui”. Mas não vieram. O Sidney foi, mas me trouxe a filhinha, a Luizita, que é neta do Pousada, nós combinamos, eu fui pegar, eles foram saindo para a Argentina que naquele tempo não precisava de passaporte.
P/1 – Isso foi em que ano?
R – Foi 71… deixa eu ver, as menininhas é de 64. Acho que era 70 e o Sidney e a Suzana conseguiram sair pela fronteira e eu fiquei com a Luizita, e aí eu queria ir de ônibus e eles me fizeram jurar que eu ia devolver a filha para eles, porque o medo deles é que a gente pegasse. Eu tinha uma tia que não tinha filhos e que adorava a Luiza, eu falei: “Não, eu juro que quando der eu vou!” E a Luizita ficou muito tempo comigo, porque eu lembro que as minhas filhas estudavam no Pueri Domus e consegui com que a Luizita fosse junto. Então eu acho que foi uma coisa de três meses, isso eu não consigo lembrar, e eu queria ir de ônibus levá-la e meu pai não deixou, meu pai disse: “Eu não vou ficar esperando notícias de vocês durante não sei quantas horas daqui em Buenos Aires, passar fronteira e tal”.
E eu levei a Luísa no colo como, então ela tinha uns 5 anos, que a minha a minha filha, segunda filha Alicia, Marina é a mais velha, mas eu tive que levar o documento da Marina, porque a Marina é moreninha e tal, e a minha filha mais nova, essa coisa, tem um problema no rosto, ela teve uma síndrome de Romberg, não é uma coisa que diminua, então minha filha linda e tal, ficou com esse problema, isso é uma história comprida. Então eu tive que levar a Luizita aqui, mas a Luizita era bem treinada aqui, entrando no avião aqui revistada, que era uma coisa, era uma época de… você ia passando a mão e tal e eu com a Luizita e falava: “Me chama de mamãe, eu sou sua mãe!”
E com o documento da Marina e conseguimos chegar. Quando eu cheguei em Buenos Aires, que o avião desceu, o meu irmão estava esperando, todo dia eles iam para o aeroporto. Eu não acho que foi dois meses, mas quando ele achou, não sei se queria que eu ia dar um jeito de chegar com ela, então foi uma emoção, levar a filha para eles… e o medo. Você não imagina o que foi aquele período de medo. Vieram buscar o Ítalo como jornalista duas vezes em casa. Tocaram a campainha e entraram, na minha casa é térrea, mas desce o quintal, então tem uma passarela assim, que a gente chama… os caras abriram o portão e entraram: “O Ítalo está?”. Por sorte, nós estávamos na mesa, que é assim bem na sala, uma família, eu o Ítalo e as duas meninas…Devia ser jantando, já eram umas 7 horas da noite, você imagina o medo com aquela comida… era um horror! Então cada vez que tocava a campainha, era um susto, e levaram o Ítalo. Toca eu botar as meninas e levar para casa de amigos, porque eu tinha amigas que levaram as crianças e viram os pais serem torturados… a primeira coisa era salvar, desaparecer com as crianças, e o Ítalo até agora tem esse jornalista japonês, ele fala, não tô lembrando o nome dele, ele me mandou um recado que ele quer um dia pedir perdão para mim, porque ele pediu para gente… nós éramos os únicos que tínhamos casa no nosso nome, meu pai deu uma casinha, e depois a gente conseguiu comprar essa casa maior, meu pai sempre ajudando, e ele pediu para gente ser avalista, porque ele ia casar… “Tá bom, Okubaro”, será que ele chama Okubaro? Bom, ele… “Tá bom, vamos servir para ser avalista”. E não sabíamos que era de um aparelho, quando eles foram lá, que pegaram o aparelho, viram os documentos, vieram buscar o Ítalo, uma vez essa. Uma vez, eu estava na USP ainda, eu já tinha as meninas quando eu entrei para a USP para educação e eu estava na aula quando chegaram, apreenderam todo mundo, Fernando Henrique Cardoso, eu estava na biologia lá em cima, cercaram tudo e pegaram todo mundo, fecharam tudo e prenderam os professores. A gente teve que dar os documentos, documento do carro e o meu não vinha, eu fiquei não sei quantas horas e o meu não vinha. No final, quando todos os colegas já tinham ido embora, eles falaram: “Bom a senhora… o documento aqui do Ítalo Tronca, ele vai ter que vir buscar. Então amanhã, tal hora ele que venha buscar, nós não vamos dar o documento”. Você imagina, o Ítalo eu lembro, dava aula num cursinho e ele tinha barba, ele sempre teve barba, ele disse que não era porque era de esquerda, era porque tinha pouco queixo, a gente brincava e aí… quando ele tirou a barba e pediu para o nosso amigo Anselmo ir com ele para… foram os dois lá para a Cidade Universitária, buscar o documento sem barba e quando ele voltou, que ele foi pegar… aí a Marina, então era antes isso, contar porque a Marina era pequenininha falou: “Vem com o papai”. Ela começou a chorar, porque ela não conhecia aquele pai de cara lavada. E o Ítalo dava aula ali num cursinho, o Ricardo Maranhão arrumado para ele, porque ele estava querendo largar o jornalismo no primeiro momento, e o Ítalo entrou e disse que foi na aula e sentou na sala de professores, ficou lendo o jornal enquanto não tinha, e disse que o dono do… não lembro agora o nome do curso, era bem no centro da cidade, chegava, olhava: “Mas quem é esse cara aí?” Aí chegou para ele e falou: “O senhor está esperando alguém?” Ele disse o nome do (?). “Eu sou o Ítalo Tronca” (risos). Ninguém conhecia sem a barba, mas eles devolveram para o Ítalo e vieram buscar outra vez também. Duas vezes o Ítalo foi levado para operação, mas não foi torturado.
P/1 - Eu posso só voltar? Vamos voltar que eu gostaria de organizar um pouco mais os fatos da sua vida, do que aconteceu com o seu irmão. Vamos lá, em 64 você tinha 23 anos é isso mais ou menos? Você nasceu em 41…
R – 20 e poucos anos, estava casada, casei com 20 e poucos anos…
P/1 – E já estava com uma filha?
R – Em 64 a Marina nasceu, mas depois daquilo que eu contei do hospital que eu era a secretária, eu estava grávida lá e aí quando saio, que nós esticamos os 64 fios para pegar o Brizola, é….
P/1 – Você já tinha duas filhas?
R – Eu não tinha filha, eu estava grávida da Marina.
P/1 – Que é a primeira?
R – A primeira, Marina. Ela é de 64, setembro de 64.
P/1 – E me conta uma coisa, quando aconteceu o golpe vocês acharam que ia durar tanto tempo, ou não? Vocês eram mais otimistas? O que vocês pensavam?
R – Não, a gente não acreditava. Era aquilo, o Brizola chamando, a gente escutando-o tal e achávamos que não, que era… que não ia durar tudo isso, nunca, é que mataram o avião do primeiro ditador Castelo Branco, disseram que foi… Castelo Branco e tal, mas foi muito assustador. Eu assim, eu queria… você vai me perguntar alguma coisa a mais, para acertar as datas?
P/1 – Não, pode continuar.
R - A ideia é que não ia durar muito tempo, mas aí a gente foi vendo e percebendo a dureza, né?
P/1 – O seu irmão estava no Rio de Janeiro em 64?
R – Em 64… estava no Rio.
P/1 – Estava trabalhando?
R – Estava trabalhando. Ele ficou pouco tempo nessa… como que chama, que faz navio?
P/1 – Nos estaleiros.
R – Isso, nesse estaleiro… porque a gente não tinha paciência, a gente já queria fazer logo a revolução, em vez de…e logo perdeu o emprego e tal, mas não foi preso, preso mesmo, só foi em Buenos Aires, um pouco antes do golpe. Ele foi pego no dia 15 de fevereiro de 76, então o golpe lá foi em 21 de fevereiro, se não me engano. O Ítalo e meu pai estavam lá quando teve a… pegar os comunistas, e disse que foi assim, o Sidney pelo que a gente sabe… você quer voltar para a história de São Paulo, do Brasil ou eu posso…
P/1 – Vamos só… eu queria ir ver se a gente consegue cronologicamente. Então ocorreu o golpe, você estava trabalhando como secretária, né?
R – Como secretária no Hospital do Servidor Público.
P/1 – Ficou pouco tempo, né?
R – 6 meses. A barriga já estava grande. Eu falo assim: "Graças a Deus!” Já pensou, capaz de eu ficar, quem sabe, um serviço público(risos), capaz de me acomodar.
P/1 – Mas depois você foi e entrou na USP, é isso ou não?
R – Eu entrei na USP em 76 já com duas meninas. Eu tinha as meninas e fui estudar à noite, porque militante não dava para entrar em… estudar muito, então só depois que eu estava com as meninas e o Ítalo me pedindo para eu ir para a universidade, então eu fui para a USP.
P/1 – Então de 64 para frente você estava fazendo o quê? Cuidando das filhas ou também estava militando?
R – Eu sempre trabalhei… eu mudei de emprego, para mim era importantíssimo na minha época ter emprego, uma mulher ter emprego era uma coisa meio assim, fiz até uma bobagens de fazer… trabalhei para… escrevi, fiz uma pesquisa para a federação das indústrias, tem um livro sobre tudo, não livro, mas assim, todas as escolas profissionais eu fiz uma pesquisa, fiz um montão de coisas assim, até que foi em… que eu fui convidada para ser diretora de creche por uma amiga, que era minha colega na… aí eu já estava na… então já tinha passado pela USP, essa minha colega… quer dizer, que eu entrei em 76. Então eu fiz um montão de coisas depois que tive a Marina. Depois tive a Alicia e levei… empregos, coisas, trabalhos. Aí eu entrei para pedagogia e essa colega Ermezinda tinha feito um concurso em Brasília e ela era do bem estar social e diretora de… é, eu sei que eu fui para a prefeitura por ela, como cargo assim, sem concurso, eu fui ser diretora de creche municipal, eu fiquei como substituta, fui para o Campo Limpo, a minha vida profissional assim. Depois me convidaram para vir para a central do bem estar social. Quando a prefeita Luiza Erundina entrou, eu tinha saído da prefeitura porque eu fiquei escandalizada, eu já era do PT. Em 80/81 (risos) eu fui bater na porta do PT e falei: "Dá para uma senhora como eu de…” E então eu fui ser diretora e depois fui para a central e percebi que não era a minha, eu gosto de trabalhar na ponta. Então a Ermezinda me convidou e eu fui e depois eu fiquei em Vila Mariana que era um… era bom, eu cuidava das creches, era todo uma… eu trabalhava com alfabetização de adultos de noite, era da prefeitura, era uma coisa com a prefeitura que a gente fazia, não como monitora, eu era como, como… como é que é? Que cuida da alfabetização de adultos, foi uma coisa que eu gostei de fazer e aí eu fiquei lá e depois eu pedi demissão e sai, porque eles me deram um castigo, porque eu, a Lourdes e a Tereza, nós acusamos a nossa chefe de estar roubando o lanche das creches, ela tinha uns amigos e a gente percebeu um montão de picaretagem e nós fomos falar com o chefe maior e tal, em vez dela perder o emprego, eu fui mandada para uma coisa longe, as outras já eram concursadas. Como eu não era concursada, eu falei: “Eu vou sair”. Eu percebi que não dava, com criança pequena, já tinha acabado … bom eu não lembro, com criança pequena eu ir para não sei quantas horas de ônibus e tal, eu falei: “Eu não mereço”. Então eu pedi e saí, mas a Erundina ganhou e me convidou para voltar para trabalhar e aí eu fiz concurso, teve concurso e eu entrei e pude passar. Eu fiz concurso para Secretaria da Cultura que é então… não no primeiro tempo não, eu continuei no bem estar, porque eu continuei trabalhando com a Lourdes, com essa amiga que era supervisora e eu era abaixo dela, nós fizemos todo um trabalho em Santo Amaro e Socorro. Trabalhei lá e depois quando a Erundina perdeu para o Jânio, você imagina, depois da Erundina o Jânio, aí eu fui para a Cultura. A Erundina, nós que tínhamos cargo assim, a gente pode, não sei como é que foi, eu fui para a Cultura que eu fiquei na cultura todo esses anos, até me aposentar. E foi… como é que eu vou te contar que eu fui professora, que eu formei o Vera Cruz (risos) deixa eu pensar…
P/1 – Vamos voltar de novo para os anos 60, me conta uma coisa; como que era para você no dia a dia, saber que você estava em uma ditadura sendo uma pessoa que é de esquerda e que militou na quarta internacional? O que você sentia? Você consegue voltar e acessar esses sentimentos, antes de tudo que aconteceu com o seu irmão, mas como que era…
R – Esse dia a dia, né…
(1:06:43) P/1 – É importante para as pessoas que vão ver essa parte, entender como, ou tentar entender como seria voltar para um governo como esse, por exemplo, que a gente tem chance né, como é o dia a dia?
R – Olha um horror, o medo era uma coisa… era isso que eu tinha perdido o fio… o medo era muito grande. A gente saber dos amigos, o Merlino, tudo mortos. O Merlino antes apareceu o jornalista, ele era muito amigo, ele me deu todas as fotografias dele quando ele foi para França, quando ele voltou, ele é morto. Nós fizemos uma festa, a minha casa é festeira, assim de quintal, porque eu tenho um quintal grande, e eu lembro que era de 68 para 69, nós estávamos em uma festa no fundo do quintal, o Merlino chegou e falou: “Leda eu posso deixar minhas fotos, eu tô indo para França e eu queria deixar minhas fotografias”, daí eu falei: “Lógico”. E nós fizemos uma gravação maravilhosa, seria um documento para vocês, você não imagina o que foi, porque foi nas vésperas do AI-5, AI-5 é 69, né?
P/1 – É 68.
R – Dezembro de 68, não foi dezembro de 68? Eu lembro até onde eu estava, como é que nós escutamos pelo rádio e nesta festa nós fizemos uma gravação, todo mundo falando, sabe assim, brincando? Eu tenho umas coisas de brincadeira e umas coisas muito sérias ligada nessa fita, que uma era uma pena, e o Raimundo Pereira que é o jornalista, que é do… como chama? O funcionário? O Ítalo trabalhou, o Bernardo, tudo nesses jornais movimento, tem os jornais dessa época, os jornais por baixo do pano, o Pasquim, que era o grande tal, mas esses, os pequenininhos daqui da esquerda, e o Raimundo Pereira que estava nessa coisa gravando, nós gravamos com todo mundo e era gozado, porque era a troca para 69, porque tem um sentido todo erótico, então foi feito essa gravação e tal, mas olha foi um documento… mais o documento era tão bom, tão bom essa gravação que o Raimundo pediu e o Ítalo ficou meio assim que não queria muito dar… e o Raimundo nunca devolveu, a gente tinha uma pena porque era um documento de registrar essa passagem e véspera do AI-5.
P/1 – Vocês falam que vocês lembram de alguma coisa que estava lá? Que vocês estavam brincando? Qual que era sério?
R – O que a gente podia tá… essa ainda, o Umbelino estava com a gente, porque 68, de 64 a 68 foi uma época mais suave. Agora a partir de 68, aí foi ‘um pega para capar’, aí foi uma coisa, aí o medo era… tocava a campainha, e os amigos tudo sendo preso, a Lígia foi morta, a Lígia essa minha colega da pedagogia, brilhante! Uma menina 6 anos mais nova que eu, ela morreu com 24, eu tinha 30 anos quando ela… eu faço as contas aí vocês fazem as contas. Ela emprestou Volkswagen dela para o rapaz… para alguém que pediu e tal, aí ela ficou… sabe o Cine Belas Artes, na frente tem aquele bar famoso e tal, combinaram que meia-noite ia devolver o carro para ela lá, e ela não sabia nem o nome deste… e por coincidência era este cara que esteve na minha casa quando eu te contei que as malas, jogamos lá… aquele cara e ele foi numa reunião e deixou o carro dela parado com pisca alerta, essa história que depois contam e nunca sabe se é exatamente, mas em todo caso foi essa história e a polícia… passaram lá e pegaram o carro, entraram, porque estava o pisca alerta, numa rua deserta, entraram e dentro do… que guarda os documentos…
P/1 – Porta luvas.
R – Porta luvas, estava o revólver. Bom, aí o que fizeram, ele não voltou, percebeu e sumiu, o rapaz sumiu, a Lígia ficou esperando nesse bar que eu tô esquecendo o nome…
P/1 – Riviera, né?
R – Riviera era o famoso da nossa época, ele nunca chegou, mas eles pegaram o documento do carro e foram para casa dela e ela ligou para família e a mãe dela, nossa a mãe dela era uma chatinha, uma mulher completamente séria, a mãe falava assim: “Lígia vem para casa”. Ela percebeu que tinha alguma coisa estranha, ela não foi para casa, ela sumiu na coisa, depois estava no Rio de Janeiro, e, enfim, foi pega depois de não sei quanto tempo, eu só fiquei sabendo agora no livro… era tortura, nunca mais, mas esses documentos que saíram, os 3 volumes?
P/1 – Da comissão da Verdade?
R – Da comissão da verdade. Conta que ela tá e tem uma fotografia dela, não gosto nem de pensar, ela estava grávida de 2 meses, 3 meses e foi morta e eu quando soube que ela… eu fui para casa da mãe dela, quando avisaram que ela tenha sido morta lá no Rio de Janeiro, ela não é desaparecida, ela voltou, entregaram o corpo e ela tinha, sabe a… chamava, você punha uma coisa aqui, apertava e quebrava todos os ossos da cabeça, chamava coroa de cristo, eu não sei, imagina o horror. Então foi uma época de horror, como a gente trabalhava, como a gente estudava, como a gente… é incrível porque é no meio de uma coisa que… incrível. Eu queria mudar para Caraguatatuba, que era a casa… meus pais… ou para Londres, o Ítalo fez o concurso para BBC de Londres, que o Bernardo Kucinski já estava lá e mandou… o Ítalo fez por um cassete e foi aprovado, mas ele queria mudar, ele não queria mais ser jornalista… ele estava com esses convites todos da USP e da Unicamp, ele falou “Não”. E eu pedia pelo amor de Deus, porque cada vez que tocava a campainha… eu também, estavam me procurando, porque a Lígia, e uma outra amiga, outra colega, tínhamos feito um curso com a… como é que ela chamava… uma francesa, sobre… para trabalhar com criança com problemas de escrita e tal, o curso era o (Raman?) e nós tínhamos feito e nós tínhamos alugado uma salinha para atender as crianças, então eles pegaram o nosso endereço dessa salinha, pegaram essa outra só, mas ela disse que eu era uma mãe de família, eles não vieram, mas você já pensou? Você tá o tempo todo sabendo que estão atrás de você, olha um horror! Quando eu vejo essas… eu indo nas manifestações aqui pela coisa, agora eu vi um carro a favor da ditadura, os militares, eu falei: “Meu irmão morreu! Foi jogado para o mar!”. Provavelmente, que é tudo história, porque documento a gente nunca teve, nunca achou. “Se foi é porque ele merecia”. Quer dizer, você tá no lugar que tem gente… e esse, o que nós estamos nesse governo, que coisa horrorosa esse homem, que medo, o Trump, mas como é que nós elegemos? Como é que 55 milhões de brasileiros aprovaram esse canalha? É uma dor que você nem imagina pensar numa coisa dessa, você que passou todas essas coisas, muito louco para gente que passou, sabe o que é o medo, você saber que o amigo foi pego, que vai para… era assim, era pego. O Fleury quando os meus pais foram presos, o Fleury era contraparente da minha mãe, tem um primo que é casado, a mulher dele , então eles conheceram o Fleury não sei. Então a minha mãe passou assim e o cara perguntou: “O que a senhora olha tanto?”. “Eu tô vendo se eu encontro aqui, que eu sou contrapa…" Sei lá o que ela falou do Fleury, “Aqui não tem.” E o nosso amigo, que hoje é professor, acho que ele se aposentou já da USP, o Tulo
_______ ele estava, ele passou pela minha mãe todo ensanguentado aqui na rua Tutóia, então uma coisa muito…
P/1 – Só uma curiosidade também, você conseguiu pensar no futuro nessa época? Ter planos? Pensar no futuro das suas filhas, por exemplo? Como é que era isso?
R – Eu acho que tinha sempre a esperança que isso não podia… Quando foi passando o tempo, os horrores, o Médici, o João… Se fixava para elas não ficarem muito assustadas, a gente fazia as coisas, isso de tirar para cá tantas vezes. Uma vez tivemos que tirá-las de casa de medo, lembro de ter levado meus pais, quando os meus pais foram eu voltei, eu fui lá para casa, quando eles me avisaram que estavam e peguei meus pais e levei, eles tinham um apartamento no Guarujá, meu pai teve um pouquinho de tempo e levei para o Guarujá e sem as meninas… o que será que eu fiz com as meninas? Não lembro, porque eu levei… e era tão gozado que a minha mãe, todo mundo ela achava que estava atrás dela, levou um tempão, ela falava assim: “Oh Leda, aquele homem ali…” E era um… você via um senhor de Guarujá, que aquele tempo era de rico e ela falava, “não, tá me seguindo, tá seguindo a gente”. E esse olhar do meu pai, se você quiser saber uma dor, uma dor que eu nunca vi uma coisa igual, é o meu pai, esse olhar do meu pai quando ele não trouxe o meu irmão e uma vez que também ele foi pego, foram buscá-lo em casa e a minha avó tinha morrido, essa avó alemã e ele para dormir, ele tinha tomado um remédio, porque ele estava tão cansado e o exército bateu lá, você imagina, ele dizendo: “Olha, a minha sogra morreu, o enterro vai…”. Eu estava na Argentina com Sidney nesse ano, nessa época, que eu tinha ido passar o aniversário do Sidney na Argentina, e meu pai foi levado lá para Dutra, como é que chama aquela cidade de milico? Bom, ali na Dutra. Ficaram com ele lá querendo saber do Sidney, “Onde é que tá o Sidney?”. Mas ele nunca… que ele contou, ele nunca foi… só assim, psicologicamente se você tá, vir te buscar de madrugada e levar para a coisa mais, então esse também foi uma… tudo a gente corria. Essa gente que fala não sabe o que é isso, o que é essa dor, essas coisas…
P/1 – E me conta como era essa rede de amigos que vocês tinham? Vocês se comunicavam sempre? Quem que estava do lado de vocês para ajudar?
R – Olha, a turma da quarta, os mais velhos foram todos embora, fizeram um concurso, o boyzinho que era… outro dia ele apareceu em casa, foi me procurar, queria tá escrevendo, queria saber tudo Sydney, foi entrevistar faz um ano. Ele foi e ganhou um prêmio quase Nobel de medicina na França. O Thomas Mack, também médico, era um montão de gente médico, foi para os Estados Unidos e também virou um alta cúpula, foi que criou as filhas, as filhas ficaram americanas, e o Bóris Fausto que você deve conhecer, os filhos dele que eu fui professora no Vera Cruz do Carlos e do Sérgio tal, eles iam para chácara com a gente, eles… ah, o Bóris Fausto não foi para fora, os irmãos foram, os dois irmãos dele que eram famosos também, o Boris e a Cinira não. A Cinira ficou esperando eu acabar minha pós-graduação em… eu fui fazer pós-graduação em história né, aí ela ficou esperando para eu ir trabalhar com ela, formar o Vera Cruz. Eu fui como professora, mas da primeira, eu e a Maria Lúcia fomos para o Vera Cruz, imagina na época da rebordosa feia, porque eu fui em 70, eu entrei lá em 73, fiz um pouco de estágio e depois fiquei com a classe, era tudo filho de professor, não é o Santa Cruz é o Vera Cruz. Era tudo filho de professores da USP, de muita gente de esquerda, e como era a nossa relação…
P/1 – Como vocês se ajudavam nessa época? Porque eu percebi das pessoas que a gente conversou que elas não teriam passado por esse período se não tivessem amizades, contatos também.
R - Eu fiquei muito ligada com a turma do Vera Cruz. Depois disso, a Maria Lúcia e o Gera di Giovanni que é professor, agora está aposentando também da Unicamp na economia, e o Tulo, que frequentava em casa, mas era tudo com muito medo. Na época dura a gente tinha muito receio, era assim tudo meio assim e muito salvaguardando as crianças. Eu não lembro assim de uma… nesse período mais duro, era isso de querer ir embora.
Aí em 81 eu fui me inscrever no PT, o Ítalo não acreditava mais muito em partido(risos) e eu falei: “Não, eu vou”. Eu fui, fui militante, aliás o… como é que é, que perdeu da… que ia continuar dá… como é que ele chama? Marta Suplicy. O Suplicy me ajudou muito assim, de me levar uns negócios do Sydney, ele pegava no Brás e a gente também militava em Congonhas pelo PT. Nessa época, a minha grande decepção com PT quando teve o mensalão, eu que largava as minhas filhas, tive uma dor que você não imagina, eu tive umas dores na minha vida (risos) esquerda foi duro para mim, não votei no Lula, não votei na Dilma. No Lula eu votei a primeira vez, fiz toda a campanha, mas depois que eu percebi a tal chamada Governança que é obrigada a fazer essas coisas, mas para mim doía o coração, sou meia boba. Tem um amigo que diz assim para mim, o Romeu fala assim: “Leidinha você é a pessoa mais boba que eu conheço”. Você acredita? Eu falei: “Pois é, eu sou né?” E foi muito ‘decepcionante’ para… não sei se vocês são, eu vou fingir que eu não sei, mas para mim foi muito duro.
P/1 – Leda, me fala uma coisa, o seu irmão depois de 64 optou por continuar militando pelo que eu entendi, é isso?
R – Ele era um dirigente da Quarta Internacional. A gente brincava que ele era o príncipe herdeiro, porque o Pousadas mandou a filha para São Paulo (risos) eu dizia que veio para casar com o Sidney, (risos) porque o Pousadas, acho que achou que o Sidney era um bom partido para ficar dirigente da quarta, então a gente sempre brincava quando a gente estava com raiva (risos). Depois que eu descobri que o Pousadas era uma figura, então ele continuou militando e dessa vez que ele saiu, que eu te contei que ele teve que ir embora, como conseguiu chegar até Buenos Aires, que Buenos Aires não tinha golpe ainda, então ele foi e deixou a Luizita comigo e foi para lá e lá ele continuou militando, era militante… nunca olhei, nunca mais vi os jornaizinhos, mas acho que era responsável pelo jornal sabe, ele morava com um amigo que eu não vou lembrar o nome, que eu conheci bem pouco, mas que é professor aqui da USP também além do que eu te contei, o Tulo e esse outro que tem o nome bem brasileiro, acho que ele é nordestino, ele morava com o Sidney, eles moravam juntos, dividiam o apartamento, não sei, pensão… e esse rapaz, que foi o que deu o alarme que o Sidney não voltou no outro dia. No dia 15 o Sidney saiu, agora eles achavam que o Sidney era muito… porque naquele tempo em 76 os de Buenos Aires usavam ternos, gravata e o Sidney usava blusão, camisa para fora da calça e que quando a coisa começou a ficar preta antes do golpe, que eram esses que saiam com o carro lá caçando comunista, eles achavam que o Sidney devia se vestir igual, então esse colega você me falou que achava e tal e o Sidney estava na… eu vou contar como foi tá? Como foi contado a história. Ele estava na rua, ele tinha recebido uma carta da Luizita, da filhinha que tinha, em 74 ela tem 10 anos, quando ela nasceu… não, ela é de 66, tinha 8 anos, ela tinha uma cartinha para ele e estava com a carta no bolso e eu não acredito que foi sem querer, eu acho que ele estava sendo seguido, na minha cabeça é isso, porque é muita coincidência e a minha grande… eu passei uma época muito assim, de pensar o susto que ele levou, gozado que eu penso nesse momento, no momento em que ele foi pego, o horror que deve ter sido. Eu tinha estado com ele um mês antes; eu, o Ítalo, a Maria Lúcia e o Gera tínhamos ido para Buenos Aires e tinha um jeito que eu consegui avisar que estava em Buenos Aires. Ele faz aniversário dia 20 de janeiro e nós estivemos lá até o dia 15 de Janeiro, só faltava um pouquinho para ele fazer 36 anos, eu tinha acabado de dar à luz para minha última filhinha, para Tarsila que é uma mocinha hoje de 45 anos (risos) menina, e tinha estado, mas eu tinha prometido para as mais velhas que eu ia levar elas para uma fazenda no sul, que eu trabalhava no Vera Cruz e a minha ajudante, Sara Guazzelli, que era até sobrinha do governador e tinha uma fazenda e a Sara entusiasmou e eu resolvi ir, mesmo deixando a Tarsila aqui nós fomos, fui para o Rio Grande do Sul e deixei as meninas com a Sara na fazenda e fomos aproveitar para visitar o Sidney em Buenos Aires quando que ia fazer aniversário dali um pouco. E bom, chegamos lá foi uma alegria, e gozado eu digo, uma coisa que você não sabe explicar, quando eu abracei o Sidney, ele foi me esperar no hotel e eu em vez de embaixador, falei qualquer coisa, o nome errado, mas ele chegou lá onde eu estava e eu desci, me avisaram, “O teu irmão tá aqui embaixo”. Eu desci e nós dois nos abraçamos e choramos, eu chorei de não poder segurar o choro, chorei, chorei e falar… depois eu fiquei pensando e falei: “Mas o que será?”. Uma, sei lá o que que era, meu medo e tal. Ele levou a gente para dançar, para escutar tango, foi uma delícia o tempo que eu fui lá e eu lembro que eu olhei para ele, ele já era um homem, eu já tinha 34 anos e ele tinha 35, e eu olhando para uma pinta que ele não tinha, ele que estava com uma pinta aqui e eu fiquei olhando a pinta e falei assim: “Quando será que eu vou ver essa pinta de novo?” No dia 15 de… bom, “Vamos embora.” Nós viemos, tomamos avião e viemos embora e aí que aconteceu da minha mãe que ia passar o aniversário… ela é de fevereiro e ele é de janeiro, e aí que a gente soube de toda a coisa. Agora ele foi pego na rua, o que contam é que ele foi pego na rua, foi colocado dentro daqueles carros horrorosos. Como é que chamava aquele preto que eu não lembro mais o nome? Com os caras na véspera do golpe e foi… era marcado que ele… se alguém fosse pego, ia numa casa, que era uma casa rica assim, com uma coisa que tinha alguém simpatizante, que era para a pessoa poder avisar que tinha acontecido alguma coisa. Foi o que aconteceu, e a pessoa… ele chegou até a casa, os caras batendo muito nele, parou o carro… vou chorar um pouquinho tá? O carro na porta, essa pessoa saiu e viu, disse “Não!” Aí ele falou, “Não, é engano, é engano!” Mas essa pessoa, que era uma mãe de família, eu sei quem, já avisou o colega dele e ele não falou nada, porque ninguém foi pego, esse colega, que hoje é professor e não sei se já está aposentado da USP me contou que ninguém foi procurar, lógico que ele sumiu imediatamente, fechou o apartamento, mudava quando acontecia e foi assim. Muitos anos depois, a minha mãe todo dezembro, chegava o Natal, tinha labirintite. Sabe o que é labirintite? É uma tontura, uma coisa que é do ouvido. Minha mãe tinha labirintite porque ela esperava a notícia do Sidney e ela tinha horror que ele tivesse ficado louco de apanhar de torturado e andava pelas ruas, ela tinha essa fantasia, mas tinha uma esperança. De repente, tinha uma revista chamada Senhor, que eu vou ver se eu trago depois para você e que sai um torturador argentino… deu uma entrevista contando como o pianista do poetinha da Bossa Nova. Como chama o nosso poeta?
P/1 – Vinícius de Moraes?
R – Vinícius de Moraes. Como o Vinicius de Moraes, que foi tocar um show na Argentina e o pianista dele sumiu, o menino, o pianista, esqueci o nome, mas é um nome que se procurar já aparece, ele saiu, ele disse que foi na farmácia, mas na realidade que a gente soube é que ele foi procurar droga, maconha, alguma coisa assim, e foi pego, como era brasileiro, a turma pegou e torturou ele tanto e foi assim, na véspera, para o Sidney foi dia 15, ele foi dia 13 ou 14, e aí o governo brasileiro mandou matar, porque ele tinha visto a pessoa. Então esse cara contou como o pianista do Vinícius foi morto e como Sidney foi morto, o Sidney foi pego dia 15 e morreu dia 16, a tortura foi tão forte que ele morreu no dia 16, na cadeira da coisa de tortura né. E bom, a gente continuou nessa luta, achando que tal, a esperança que ele tivesse preso, os padres, o Papa, que hoje é Papa Francisco…tudo, para achá-lo. Então esse cara contou e quando ele contou eu tive que levar para minha mãe, minha mãe sentiu um alívio incrível e nunca mais teve doença de coisa, porque o medo dela era que ele tivesse vagando pelas ruas era pior, tortura ela sabia que tinha, nós aqui estávamos acostumado com os amigos, as coisas todas, mas que ele tivesse sido posto na rua… gozado ela acalmou, mas homem é diferente de mulher, a minha mãe foi procurar espírito, foi procurar não sei o que, homem, é o pai ficou com aquela dor, eu falo que meu pai morreu de coração partido, porque é uma dor, o filho, aquele filho que era o brilhante da família acabar assim com 36 anos, mas era um homem de 36, não foi um menino, porque todo mundo pensa assim, “Ah era um menino”. Não, era um homem de 36 anos. Então tem esse cara contando como é que foi a morte. Nós tínhamos advogado, que era o Greenhalgh e lá é o Barcessat, que era o nosso advogado lá e nunca, depois nunca achou o Sidney. Diziam que Operação Condor, pegou e jogou o corpo, não sei se era corpo, então isso o cara não contou, a gente nunca, então eu digo que é uma coisa sem fim, é uma dor sem fim, então foi uma coisa…
P/1 – Quanto tempo foi entre sair essa notícia de jornal?
R – Eu preciso olhar, muito tempo, 10 anos.
P/1 – Pelo menos assim?
R – Pelo menos 10 anos, mas eu tenho a revista, eu levo lá para o Luís, lá na Casa do Povo, vou ver tudo que eu acho para mostrar de fotografia. Então, essa é uma coisa, é uma dor, você vê, 45 anos, acho que agora já tá… e é uma dor hoje, é uma dor, é uma dor, porque é uma coisa né, morrer é uma coisa. Eu sempre disse, a gente brinca que tem uma chácara eterna que é na Getsêmani, o meu pai comprou para toda a família e eu perguntei se eu posso por uma… com o nome do Sidney e ela disse que pode. Então é sempre uma coisa que precisava está marcado, porque é horrível essa coisa de você… as memórias das coisas boas e essa coisa é sem fim, essa dor é sem fim. Só sei que eu não sinto nada e de repente eu percebo que não, é uma dor eterna, vou levar para o túmulo comigo. Aí você queria saber do Vera Cruz?
P/1 – É, mas só uma coisa antes. Então, de vez em quando, quando você conta essa história você relembra ou é sempre? Como é isso para você? Você lembra disso mais quando você conta essa história, ou não?
R - Atualmente é, no começo não. No começo a procura, a loucura… eu lembro que eu estava no Vera Cruz. O começo o Vera Cruz para mim foi duro, porque eu lembro que uma a senhora e eu ajudei muito no desaparecimento da Ana Rosa Kucinski, professora da química da USP, ela e o marido, porque a irmã do Bernardo Kucinski, um cara que assim, amigão da família, eu e o Ítalo tivemos… que o Bernardo Yamitsuki e a mulher dele, estava fazendo voz e ele trabalhando na BBC, que ele até fez para o Ítalo ir para lá, e ela fazendo física, era professora de física da USP e tal e eu achava gozado que eles… às vezes o Bernardo falava como se Ana Rosa pudesse aparecer e eu falava assim: “Mas que…” Porque eu de repente, eu estava no Vera Cruz e veio uma amiga, uma mãe de aluno, veio pra mim, “Ai Leda, eu sinto muito, eu soube do seu irmão né, que foi…” Eu disse: “Não! Ele não morreu, ele tá desaparecido”. Eu falei, aquilo que eu achava ridículo no Bernardo eu era igual, eu fazia a mesma coisa sabe, é uma coisa que você sempre tem a esperança, como ele estaria? Hoje eu penso como será que nós dois, que nos dávamos tão bem, como seria a gente velhinho? (risos) Mas ele não chegou velhinho, não chegou, a mulher dele… bom eu te contei, ela conseguiu sair 6 meses antes o Sidney ser pego, porque ela tinha documento argentino, a minha sobrinha tem também… em 76 ela tinha documento e foram para Itália, o Pousadas estava na Itália, ela conseguiu, mas o Sidney não. E eu sempre tenho um pouco de dor, porque, “Será que eu procurei?”. Imagina a ditadura se eles iam dar os documentos para fazer o passaporte, não deram e nem iam dar. Então ele não podia voltar para cá, não podia ir para lá, Uruguai estava também com a… estava tudo, aqui o Sul do continente estava um horror, aí pegaram.
P/1 – E elas, como elas estão hoje? A ex-esposa dele e a filha?
R – A filha dela, eu escrevi para ela no dia da eleição, falei: “Por favor, Luizita, você não me vote em branco”. Porque eu tenho um remorso, porque eu com raiva, eu sou ‘Cirense’, eu sou do Ciro tá. Eu votei no Ciro na primeira e na segunda vez eu botei cinco de novo, então eu tenho que no fundo eu ajudei a eleger, eu tenho essa coisa na cabeça, porque imagina, eu que tenho um irmão assim e depois daquilo que ele falou, fazendo aquela homenagem, eu tenho… Então eu liguei para ela, liguei não, escrevi do WhatsApp, ligar a gente liga de vez em quando só, falei: “Luizita você vai votar no Macron, você não me anule o voto, não me faça a direita extremista tomar conta da França, que eu que tô aqui sei”. Ela me escreveu, “Tia, você acha, nós todos aqui vamos votar no Macron”. A família toda, minha cunhada, que ela ficou viúva, ela casou de novo, teve dois filhos, até a filha dela é uma cantora, parece que é famosa lá, Argentina, mas a minha sobrinha é francesa, as filhas são francesas, ela queria, porque ela às vezes era Argentina, às vezes era Uruguaia, às vezes era brasileira, na vida de militância dos pais militantes, ela disse: “Eu quero ser alguma coisa, eu quero ser”. Eu levei a minha mãe no primeiro casamento dela, que mãe tinha ficado viúva e eu levei para o casamento fomos no casamento dela, bonito lá no sul da França, foi lindo. Mas estão lá, estão como franceses votando… mas a mãe também, nunca me dei muito bem com a mãe (risos) sempre tinha uma pegada assim, a gente tem que pôr a culpa em alguém né, é duro (risos).
P/1 – E como é que foi então os primeiros anos no Vera Cruz, conta para mim?
R – Então, eu fui para o Vera Cruz em 73, que eu fiquei um pouco como estagiária, que ela estava me esperando, falava: “Leda, você vem aqui trabalhar com a gente, nós estamos formando o ginásio, porque o primário, os pequenininhos têm a não sei quantos anos, muito tempo”. E então eu comecei com classe em 74 e fiquei logo grávida (risos), aproveitei para ficar grávida da Tarsila, da minha última que nasceu. Em 74, 75 eu tive a Tarsila, e logo teve a coisa do Sidney, então eu dando aula e foi muito difícil, essa coisa de eu não aceitar, aquelas coisas todas, que eu já te contei, mas foi a minha facul… eu digo que não foi a USP que eu aprendi educação, foi com a Cinira e com o Vera Cruz, porque eu coitadinha que era a que trocava as letras, eu aprendi que a gente primeiro mostrar…você vai corrigir um texto de um aluno, você primeiro mostra as coisas boas, então para mim foi uma revelação sabe, porque o meu vinha tudo de vermelho assim, que eu escrevia 'ditado' 'quando' ao invés de quanto, ‘porracha’ (risos), pra mim foi uma coisa, eu falo assim: “Na universidade não foi uma coisa assim, de muita…” Era a noite primeiro, eu tinha que trabalhar de dia, de noite com as meninas militando, então eu aprendi muito de educação, mas também fiquei 6 anos, 7 anos só. Eu falei: “Agora eu quero, agora que eu aprendi bastante, agora eu quero ir para a periferia"(risos). Eu fui diretora de creche, fui convidada, fui para a periferia. Fiz algumas coisas boas na periferia no tempo que fui diretora, mas depois também dando aula, dando assistência para os professores. Tem um até que é um jornalista famoso da folha, Vinícius. Como é que ele chama? Não sei o que, Vinícius, na Folha faz uma coluna e ele era meu monitor também, ele fala que eu era a única monitora… a única que ele respeitava, porque uma vez eu cheguei na classe, o professor estava dando uma aula sobre marxismo, mais teórico sabe, eu fiquei. Na próxima vez que eu fui eu dei um jeito de mostrar como era o dia e como era o sol, como a terra andava, os alunos, meus alunos achavam que a gente estava dentro da terra. Você já soube disso? Já teve alguma dessas experiências? Se você é uma coisa redonda, você não cai para fora, é muito mais você está dentro, né? E eu mostrei para esse monitor, que para eles era importante você começar olhar nos olhos e perceber o que eles… qual é a coisa que eles estão precisando. Saber escrever, conseguir as letras, aprender essas coisas que ajuda a colocar e mostrar que a pessoa vem de Sergipe, de qualquer lugar para São Paulo, mas não é, o mapa do Brasil é um mistério, não tem um mapa que você mostra para… olha tá aqui e aí, “Você não me dê essas teorias, você pode dar depois que você tá, que você alfabetiza, mas não vem com muita coisa complicada, que você tá dando uma coisa e eles não estão, eles não tão nem… pensa que é coisa… então o… como é que ele chama meu Deus?
P/1 – Vinícius Coelho?
R – Não, Coelho não, Marcelo Coelho?
P/1 - Não.
R – Vinícius não sei o que, tem uma coluna assim, da Folha, que ele era um cara… um menino inteligente, hoje é um senhor (risos). Mas o Vera Cruz foi uns anos, foi muito bom para mim, mas eu quis sair, eu queria mais Liberdade, era muito, tudo muito, a gente no
TP, os alunos pegavam, podia escolher história e tal, a matéria sabe assim, porque tinha o papel escrito trabalho de classe, TP… como que era… bom, era assim que cada um escolhia, se queria fazer matemática e tal. Eu tinha alunos com limite, eu nunca esqueço que era limítrofe e tinha o Candinho Malta que era 200 e… sabe, assim a nota podia ser até mais alta para o outro que é limite, porque você tinha que perceber o esforço dele e como aquilo que ele fez era uma coisa de estudar e o outro cara jogando, porque pode fazer, porque é brilhante. Então para mim foi muito importante, mas foi um período duro,
porque esse começo do desaparecimento, eu com o nenezinho, e desaparecimento duro, essa dor, e eu virei… a minha mãe disse que eu virei sabe, onde me mandavam, para a Veja, para o Estadão, para coisa, para passar notícia, para sair matéria, tinha que sair e a dureza que era nessa aí, é difícil sair matéria numa época da ditadura, porque até 80/81…
P/1 – O Regime, a ditadura ela aparecia nas escolas também nesse período? No Vera Cruz, por exemplo?
R – Não, aparecia assim de… provavelmente deviam as donas, as coisas, mas era muito contraditório, porque a gente ensinava, fazia, mostrava… Eu nunca esqueço a aula, para mim o lixeiro era uma figura importantíssima, para eles perceberem, a importância do lixeiro… e no entanto a gente tinha a faxineira, os alunos, você mostrar para eles que eles estavam deixando, mas tinha essa preocupação de deixar, mas éramos todos brancos. Eu não lembro de um aluno meu negro, nenhum lá, tem que rever, uma escola com toda uma pretensão, mas era impressionante.
P/1 – Por isso que não havia muito peso da ditadura dentro do currículo da escola sobre os professores, é isso? Vocês não sentiam um perigo de dar aula lá, por exemplo?
R – Não, eu nunca me senti perseguida por dar aula lá, continuava toda a coisa do medo da ditadura, mas não era assim, “No Vera Cruz é perigoso”. Deixa-me lembrar se teve alguém que teve ali… não, a Cinira com o Boris, como o nome daqueles, mas de ser perseguida por causa do Vera Cruz…
P/1 – Mas você conhece algum professor que foi nessa época, ou depois?
R – Nós éramos muito poucos, porque eu estava formando ainda. Eu não lembro de nenhum professor militante, olha que gozado. A Cinira tinha sido comigo, o Boris e tal, mas não, eles eram bem mais velhos que eu, mas…
P/1 – Na USP também… na USP havia nessa época? Já era aqui no Butantã?
R – Eu estudei na Cidade Universitária e fui, a casa do Boris era bem ali na entrada, acho que ainda é. Ali era complicado, a USP depois que pegaram todo mundo, que os professores, que eu falei que nós tiramos, eu, o Ítalo e o Suyama, nós conseguimos limpar toda a… o CRUSP, todo, todo é besteira, tô dizendo de alguns, até que foram mortos, depois nós conseguimos botar todos os livros, eu tinha um dkv, você nem sabe o que é um dkv; é uma peruinha com… e o Celso Suyama era tão assim esperto, que ele chegou lá e disse que precisava, que tinha licença para entrar, eu sei que os guarda que estava lá deixaram a gente tirar um montão de livro, a… não vou lembrar dela, que teve uma morte tão horrível, ela foi até em casa, eu fiquei onde foi o meu apartamento, a minha casa é térrea com a garagem embaixo e eu fiz uma descida e fiz o nosso apartamento embaixo e as meninas em cima, e ali quem era a garagem, nós tínhamos livro, você não imagina o tamanho que é de livro, e todo mundo que soube que a gente tinha conseguido tirar os livros, tirara as coisas. Depois o Celso teve algum problema, acho que ele deixou o nome, coisa que ele ia, que ele tinha que tirar, que eram coisas dele e tal, e botou vários apartamentos do CRUSP que saíram, que conseguiu…
P/1 – Que os livros incriminassem as pessoas, é isso?
R – É imagina, o vermelho e o negro tinham que rasgar e jogar fora, os caras eram muito… foi um período duro com as turmas que atravessou, que conseguiu sair pelo riachinho, atravessando a água. A minha juventude foi fogo viu (risos) que nunca mais.
P/1 – Como é que foi a abertura para você, para sua família? A anistia, como foi isso? É outro capítulo também, né?
R – Não acreditar muito, aquele medo. Depois eu falo: “Coitado do Brasil”. Porque a gente que foi, eu com as minha filhas, na Praça da Sé pelas Diretas Já, fizemos uma luta, e você encontrava gente que nem era militante, era uma… não sei se seus pais, perguntar para os seus pais, aquela multidão, na Praça para as Diretas… “Não, tá ganho os Diretas já, não tem perigo”. E aí, imagina o Maluf (risos) era o candidato e o Tancredo, não, e ia ser indireta o Tancredo e aí morre e vem Sarney. O Sarney não teve diretas, não tinha nada, mas o Maluf conseguiu botar pra lá, mas foi uma luta braba assim, aquela esperança que agora vai, o Sarney, aquela coisa toda. Você não acredita… como chama o governador lá de Minas, que depois foi amigo do Romeu… aí como chama um governador aqui de São Paulo que ganhou para Senador…
P/1 – Orestes Quércia?
R – Quércia. Quando o Quércia ganhou para senador eu estava no teatro, o teatro inteiro levantou e bateu palma, eu inclusive, porque ele ganhou. Porque teve uma eleição e o cara(risos) o Quércia, imagina, era considerado um esquerdista (risos). Foi uma alegria a vitória, não lembro em que teatro foi que nós estávamos, foi aquela alegria, você imagina, tempos aqueles. Mas assim, foi uma…o dia do AI-5 eu estava indo para um jantar na casa de um que depois foi diretor da CN… como é? Da bolsa? Que o Ítalo foi muito tempo também, boa quem que ia ganhar a bolsa, que você manda a sua tese e tal, o Ítalo foi muito tempo participar disso e esse amigo era o ‘diretorzão’ e nós estávamos indo, quando nós paramos o carro para escutar no rádio o AI-5 e ficamos apavorados, porque ia ter até pena de morte, a prisão… foi um susto danado. Você falou que foi dezembro de 68, né?
P/1 – É, foi novembro ou dezembro, eu sei por ler, foi uma sexta-feira 13…
R – Sexta-feira 13.
P/1 – E aí vocês estavam ouvindo no rádio, é isso?
R – É, nós paramos. Eu lembro assim, nós estávamos indo para esse jantar e eu acho que nós não fomos, acho que nós voltamos para casa, porque nós paramos, não, acho que nós fomos, porque queríamos conversar com o povo, com esse casal amigo e tal. Paramos e ficamos escutando e dali para a frente meu filho, foi um… aí que apertou, porque teve coisa ruim em 64, eu lembro, o Arraes, era outro nordestino que foi carregado, foi empurrado na rua, teve coisas, não é que foi…, mas em comparação, teve peça de teatro, gente assistiu à Betânia com 18 anos cantando… como que é, aquela ave…
P/1 – Carcará.
R – "Carcará, pé…" Nossa que alegria, imagina, foi em 67/68. Nós estávamos tudo no teatro, ainda tinha. Depois do AI-5 não era mais brincadeira, não dava nem para brincar, sabe assim, para fazer coisa de…
P/1 – Me conta uma coisa, você se aposentou em que ano?
R – 10.
P/1 – 2010?
R – Eu fiquei segurando, eu tinha…eu estava com o Ítalo doente, nove anos na cama, um medo de virar só enfermeira, então eu demorei, eu fiquei, porque ganhava mais, na cultura e eu estava fazendo um trabalho, eu fiz uma exposição bonita no Sesc, Sesc centenário, no museu lá que eu trabalhava e só em 10 que eu me aposentei. Aí me aposentei e tal, já estava na análise para saber que eu não estava doente, não podia entrar numa de muito… de ficar…
P/1 – E depois então você cuidou do seu marido, foi isso? Você tem netos hoje?
R – Tenho, tenho a Clara de 21 e a Isadora de 8 (risos) tenho três filhas… falei assim, eu era… como é que a gente chama? Louca para ter um filho homem, aquela coisa, eu fingia que não, mas no fundo no fundo, todo mundo queria dar um menino para o marido e o Ítalo falava: "Eu não faço questão nenhuma". Eu falei: "Você vai levar ele para assistir o Palmeiras com você". (risos) Palmeirense, você sabe que o nosso presidente é palmeirense, então eu tive três… duas meninas, falei: "Agora, vou ter dois meninos". 10 anos depois, 11 anos da Marina e da Alicia veio outra menina, aí tenho um amigo que falou, " Leda, você tá com 35 anos, não tá na hora de cuidar da sua…" Eu falei: "É, tem razão”. E depois aí a primeira neta menina e a segunda neta menina, então são 5 mulheres, não troco por nada, por nenhum menino (risos) estão no coração, e ser avó é uma beleza, você não faz nada, não tem parto, não tem barriga grande, não tem nada e você ganha um neném, você já pensou que coisa gostosa? Ser avó é uma maravilha! (risos)
P/1 – Me conta uma coisa, a gente também tá perguntando como é que acabou sendo a pandemia para você? Como é que você viu? Como é que você passou esse período?
R – Esses tempos, eu com essa casa grande, funcionário esse que quebrou a perna, quebrou o pé ontem, o Odeir, o enfermeiro do meu… do Ítalo, quando eu percebi que eu não dava mais conta, o Odeir foi maravilhoso e tal e hoje ele é meu tudo, ele é meu cozinheiro, mecânico, tudo! Porque aquela minha casa, casa com quintalão, uma Chacrinha, mil metros, não é uma Chacrinha, mas é um… para São Paulo, todo mundo que vai na minha casa: "Leda, pelo amor de Deus, não vende essa casa." Porque tem um quintalão, plantei as árvores, as flores para todo lado e aí eu tive… quando chegou a pandemia, o Odeir foi para casa dele, ele tem casa, casou, teve um menininho e eu fiquei cinco meses praticamente… enquanto a gente… que ia pegar assim, se você olhasse… Primeiro foi o HIV, a doença, que também pegou uma época, eu peguei tudo isso, mas é em todo caso, agora a pandemia que você precisava ficar trancada dentro de casa, sozinha (risos). Minha filha vinha me visitar com o carro assim, ficava na porta e eu aqui no portão de medo, e eu fazendo todo o serviço, todo o quintal, todos os cachorros, tudo, foi difícil. E eu, na minha cabeça, eu acho que eu tinha posto que era 90 dias, que era três meses, e eu falava: "Mas eu sou o máximo, olha, dou conta de tudo, sou maravilhosa". No dia que fez 90 dias eu tive uma crise, comecei com labirintite e depois percebi que eu não ia dar conta sozinha, mas tive uma… depressão, uma coisa doida sabe, que eu não aguentava mais, foi terrível. Aí voltei para o meu médico, doutor Frederico, e depois para o meu analista, fazendo de coisa, aí eu precisei de ajuda, eu percebi que eu não ia dar conta, maravilhosa, mas não aguentava, imagina se eu tivesse aguentado mais. O Odeir foi voltando, acho que eu fiquei cinco meses completamente sozinha, depois ele vinha uma vez por semana, eu nunca parei de pagar, eu tenho aposentadoria completa, porque foi da prefeitura e do Ítalo como… também, porque o Ítalo trabalhou até os 70 anos, da Unicamp eu tenho. Então eu tenho um bom, não sou rica, mas estou razoável, então não parei de pagar o Odeir, ele ficou em casa, eu fiquei, aí ele foi voltando primeiro um dia só, depois dois dias para o quintal, porque é duro cocô de cachorro, folhas das árvores que caem, você não pode deixar, fazer almoço, mas era o que era bom, porque o serviço te distrai, porque se eu não tivesse serviço eu tinha enlouquecido, não tinha dado conta. E aí foram dois anos, e o maior cuidado, porque cabelo branco, você não pode pegar, em casa ninguém pegou, ninguém, a família toda, ninguém, nós tomamos cuidado mesmo, com a máscara, com lavar a mão toda hora e tudo, muito sério. E agora tá sendo gozado, saiu… voltei para casa, porque já trabalhava na Casa do Povo uma vez por semana e trabalho com os cegos, eu sou professora de tear dos cegos ali perto, também há mais de 10 anos, 15 anos que eu sou e tudo isso, cego então, voltamos agora, faz o que? Nem um mês que a gente voltou, porque coitados, porque é muito junto, você tem que tá junto, é beijo, abraço, é põe na coisa, é linha que arrebentou, é um trabalho muito, chama Cadevi, centro de assistência ao deficiente visual, voltei, então estou voltando aos poucos, também não é fácil voltar (risos). Voltei para o metrô, que maravilha, as meninas falam assim: "Mãe". Eu viajei muito com esse grupo de leitura dos clássicos, eu fui para Rússia, eu fui para Portugal e Itália, tem essa coisa, fui visitar a casa do Dostoievski, fomos fazer várias coisas assim, com o programa, uma viagem programada, e as meninas falam assim: "Mãe qual que é o seu, quando acabar isso, qual que é o seu…" Eu falei: "Praça da Sé de metrô". Eu trabalhei 17 anos na Praça da Sé, no museu da cidade, a casa Solar da Marquesa, as exposições e tudo, eu falei: "É, agora eu vou". Agora eu já vou lá para o Bom Retiro de metrô, “oh, glória!” (risos). Mas é isso.
P/1 – O que você diria para os mais jovens hoje, nesse momento que a gente vive no nosso país, alguns inclusive que até olham com simpatia a ideia de haver uma ditadura de novo no Brasil, que acham que vai resolver os problemas do país. O que você diria para essas pessoas?
R – Eu diria o horror que é uma ditadura. Só quem passou é que sabe o que é uma ditadura, de perder os amigos, não é perder a morte doente, você ter uma pessoa, é perder gente no pau de arara, afogado na água, como é que… quando eu vejo uma mulher… eu tenho uns colegas homossexuais bolsonarista, em Caraguatatuba, eu nem, eu falo: "Eu não quero nem…" Sabe porque, eu acho que de uma pobreza, mulher, LGBTQIA+, como pode ser, não olhar o que esse homem fala? Esse horror que é. Nunca nós tivemos um ministério desta qualidade, você viu que ontem o da educação deu um tiro sem querer? Pegou a moça, quer dizer, um pastor anda armado e aquilo que pegaram e saiu pela porta do fundo, todos, você diz assim, você não tem um ministro que você fala: "Não, esse cara é preparado, é de direita mas tem um…" Não, são todos uns boçais, não tem um de qualidade. Então quem ainda aposta no Bolsonaro, precisava ter uma… a história contar, olhar o que foi esse passado que este homem defende a volta. Pra mim, precisavam ler mais, precisavam escutar, eu recomendo para todo mundo o livro Torto Arado dos quilombolas, sem fazer, porque eu fiquei morrendo de medo de um livro, não gosto de livro com… como que é, sabe assim, o bonzinho e tal, o herói, não gosto. Não, é um livro para você saber perceber o nosso Brasil, o negro no Brasil, eu sou apaixonada por negro, quero (risos) porque uma raça superior, porque olha o que… eu nunca tinha… você sabe que…história, museu Olga, eu nunca tinha pensado que não tinha uma lei para os quilombolas, para os negros, isso eu sabia, discuti muito isso, abriram a porteira, "estão livres". Eu conheci um cara que o avô, o pai, levou 20 anos para sair e chegar onde ele queria chegar, em São Paulo, porque abriram a porteira, assim e nada de educação e nada de dar um dinheiro, "Olha vocês trabalharam, fizeram toda essa riqueza." Ah não, não podia libertar porque era (risos) "Precisávamos dessa mão de obra." E sem pagar e aí você abre e não paga mais nada, não… todos os que tentaram, ainda fazer uma coisa mais justa foram… quer dizer, é de uma vergonha, de uma vergonha para o nosso país o que fizeram. Os índios que nós matamos tudo, mas pelo menos tem lei, teve lei já há tempo e dos quilombolas há pouquíssimo tempo, até preciso ver de novo, nada, lei nenhuma, nada! "Não, vai, você está livre." "Sim, tô livre como?" E tudo escravo de novo, esse livro os caras… 30 anos, que eu falei que eu descobri minha mãe nasceu trinta anos só depois da libertação dos escravos. Veja, é outro dia…
P/1 – Como foi contar um pouquinho da sua história hoje para a gente, dona Leda?
R – Eu achei vocês primeiro muito simpáticos, muito agradáveis e deixando falar, que eu espero que vocês vão poder usar e foi muito agradável, mesmo eu chorando, eu choro mesmo, tem dias que as histórias doidas doem muito, mas foi muito… Olha o tempo passou, que coisa incrível, nós estamos aqui há duas horas (risos), e passou o tempo e eu falei, pude recordar, pude pensar, juntar um pouco as coisas… Foi muito bom.Recolher