Projeto Cotidianos Invisíveis da Ditadura
Entrevista de Roberto Buzzo
Entrevistado por Lucas Torigoe (P/1) e Luis Ludmer (P/2)
São Paulo, 07 de abril de 2022.
Entrevista número COIND_HV003
Transcrita por Monica Alves
Revisada por Nataniel Torres
P/1 – Senhor Roberto, obrigado por estar aqui. Fala pra mim o seu nome completo, a cidade que você nasceu e a data, por favor.
R – Meu nome completo, Roberto Donizete Buzzo, nasci em Guaraci, interior do estado de São Paulo, no dia 12/08/1956.
P/1 – E qual é o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Nome do meu pai, Idalino Buzzo, e o nome da minha mãe é Aparecida Boina Buzzo.
P/1 – O seu pai é da mesma cidade, de onde veio a família dele?
R – Bom, a minha família, tanto do meu pai, quanto da minha mãe, são todos
descendentes de Italianos. Agora, eles se conheceram no interior, naquela mesma região do estado de São Paulo, ali onde eu nasci, nas proximidades, porque naquele tempo as famílias moravam só três anos em cada lugar, depois se mudavam.
P/1 – Por que?
R – É porque havia uma instituição, eles eram agricultores, e não tinham terra. E aí, eles arrendavam a terra por três anos, porque o fazendeiro dono da terra, reformava o pasto, que chamava, pra criar gado, então, ele contratava alguém pra plantar no pasto já degradado, plantar capim de novo, e formar um pasto novo, esse processo durava três anos, aí a família vencia o contrato de arrendamento e tinha que se mudar pra outro lugar.
P/1 – Eles se mudaram muito, eles contaram pra você?
R – Bom, depois que eu nasci, foi duas, três vezes. É que, quando eu tinha quatro anos, eles conseguiram comprar uma terra (risos). Então, eles saíram desse processo.
P/1 – Eles plantavam pra sobrevivência deles também? O que eles sabiam fazer, o que eles faziam?
R - Não, era uma agricultura…eles eram os precursores desse sistema que tem agora, do Agronegócio, plantar grãos para vender, plantar em grande quantidade pra situação deles, o que eles conseguiam, a mão de obra era própria, não tinha empregado, nada, e não tinha máquina também. Então, plantava uma parte pra colher, normalmente, algodão, arroz, milho, e também aproveitava e plantava o feijão, arroz pra consumo próprio, e criavam galinha, criavam porco, pra comer, era uma agricultura desse tipo.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram, eles te contaram uma história sobre isso?
R – Sim, havia naquela época uma vida social, rural, acho que 80% da população no Brasil, era rural, morava na zona rural, na década de 50, sei lá, 70, 80%. Então, havia por exemplo, jogos de futebol, havia pequenas localidades na zona rural onde as famílias se reuniam, uma igrejinha, aí um baile no final de semana, e foi aí que eles se conheceram, foi dessa forma.
P/1 – E me conta uma, você nasceu em hospital ou não, como foi?
R – Não, em casa, na cama onde eles dormiam todos os dias. Aliás, eu e os meus dois irmãos.
P/1 – Eles contaram pra você como foi o seu parto, você viu o dos seus irmãos, como foi?
R – Não, eu presenciei o dos meus irmãos, quer dizer, eu assisti o processo dos meus irmãos, mas o meu foi parecido. Havia assistência de uma parteira, uma mulher, normalmente das imediações, que sem nenhuma formação técnica, mas que tinha uma formação prática, e ela assistia o parto de todas as mulheres da região, todas as mulheres.
P/1 – Você conheceu ela?
R – Não, não, até porque desse lugar onde eu nasci, eu me mudei quando eu tinha, sei lá, acho que um ano, sei lá, alguma coisa assim.
P/1 – Você consegue puxar quais seriam suas primeiras lembranças da sua vida?
R – Sim, minhas primeiras lembranças, eu acho que eu devia ter uns três anos de idade, já era no segundo local de moradia, eu já tinha mudado uma vez, numa região entre Guaraci e Olímpia, numas terras arrendadas, e a gente morava em uma casa, que lá na região chama casa de barro, que é uma casa provisória, que o próprio arrendatário constrói, tem que ser uma coisa barata e pra não durar muito, porque daí à três anos ele vai embora, às vezes a casa já existe, aí vai lá e dá uma arrumada, porque ela já tá caindo, porque é fraca. Daí eu morava numa casinha dessas, eu era filho único e a família era aquela família expandida, os avós e todos os irmãos já adultos, e nessa época havia apenas uma tia e o meu pai de casados, os outros eram solteiros, mas, todo mundo trabalhava junto alí naquela terra, essas são minhas primeiras lembranças.
P/1 – Você se lembra do Senhor fazendo o que, brincando, observando?
R – Brincando junto com meu pai na roça, ajudando meu pai, com três anos eu ajudava muito, acompanhava, tinha um tratorzinho, era bem pequenininho, eu ia junto lá, ficava do lado, até inclusive eu cortei esse "dedo aqui" nessa época, no meio do trator, num acidente, naquela ventoinha do radiador, enfiei o dedo lá pra consertar e cortou um pedacinho, três anos de idade. Ganhei um triciclo, sabe? E, eu andava pra todo lado com ele, tinha duas primas da minha idade que a gente brincava junto.
P/1 – E vocês tinham alguma religião nessa época, iam em alguma igreja, como era?
R – Sim, era família católica, a tradição católica, agora, não tinha aquela militância religiosa ( risos). Mas, todos eram católicos e como se morava na zona rural, não dava pra ir frequentar igreja, até porque a igreja mais próxima, o distrito mais próximo, ficava uns três quilômetros. O padre só ia lá uma vez por mês, não tinha padre fixo. E aí tinha os terços nas casas, dia de Santo Antônio, de São João, família católica.
P/1 – E você tem dois irmãos mais novos?
R – Tenho um irmão e uma irmã.
P/1 – Qual é o nome deles?
R – A minha irmã é Luzia, e o meu irmão é o Sérgio. O Sérgio é o mais novo.
P/1 – Como é essa escadinha?
R – Três em três anos, a minha irmã é três anos mais nova do que eu e o meu irmão é sete anos mais novo do que eu.
P/1 – Quando eles nasceram você tinha que ajudar a cuidar deles também?
R – Não. É, quer dizer, sempre sobrava alguma coisa às vezes, como eu já tinha sete anos, pra balançar a cesta onde ele ficava e tal, mas, praticamente nada, até porque a minha mãe ficava em casa e ela cuidava.
P/1 – E nessa infância sua, como era a rotina, vamos dizer assim, vocês acordavam que horas, o que vocês iam fazer? Conta pra gente.
R – É, acordava cedo, seis hora da manhã, e os meus pais tinham toda uma rotina de tratar dos animais, regar horta, sempre teve isso, isso cedinho, tomava apenas um café preto, e aí meu pai ia pra roça, e a minha mãe ficava em casa já preparando o almoço, porque o almoço era no máximo às nove horas, ou seja, quando se levantava, não comia quase nada, mas, comia oito e meia, nove horas já era o almoço, porque normalmente o almoço dos homens era na roça, as mulheres iam levar, minha mãe ia levar o almoço do meu pai lá na roça, às vezes se estava mais ou menos próximo, ele vinha até em casa.
P/1 – Comia o que?
R – Arroz,feijão, era o básico que tinha todos os dias, e aí alguma abobrinha, sempre um legume, tudo de produção própria, e tinha muito ovo, porque tinha a produção das galinhas, tinha a carne que era mais de galinha ou de porco, porque porco também se criava e era isso, sempre tinha uma saladinha, uma alface, tudo produção alí da horta, mas não na roça, porque era difícil levar, era pouco prático.
P/1 – Aí depois do almoço, o que vocês faziam?
R – Depois do almoço como? Eu criança, minha mãe, meu pai?
P/1 – Todos vocês da sua família.
R – Ah, minha mãe ficava ali o dia inteiro cuidando da casa sem parar, varria o terreiro, tinha que varrer, sabe? Tinha essa coisa. E varrer com a vassoura, o terreiro era em terra batida, tinha que varrer todo dia, não podia ter nenhuma folha seca ali em cima, e meu pai trabalhando lá na roça e as crianças brincando, solta, ali naquele mundo, não tinha nenhum controle, num mundo fora da casa - casa era só pra dormir - a gente entrava só pra dormir e pra comer, brincando.
P/2 – Vocês brincavam do que?
R – Então, tinha esse triciclo, era uma época que ficávamos correndo pra lá e pra cá. Nessa época, criança com três, quatro anos não tem assim, fica fazendo coisa bobas, e tinha muito brinquedinho, ainda não era fase de jogar bolinha de gude, rodar pião, isso aí é mais tarde, essa época era…eu me lembro mais desse triciclo, e as nove horas, tinha o almoço, e ao meio dia, tinha o café, aí os homens, no caso meu pai, vinham pra casa pra tomar o café, chamado café, aí era como se fosse o café da manhã nosso de agora, aí tinha bastante comida, mas, não arroz e feijão, aí tinha um intervalo de uma hora, uma hora e meia do trabalho, os homens ficavam em casa, tinha até alguns que davam uma deitada lá, rápida, depois voltavam pra roça. E a comida, essas coisas, eram todas feitas na hora, até porque não havia geladeira nem luz elétrica, não havia eletricidade, então não dava pra guardar nada, e lá no Noroeste de São Paulo era muito calor, então feijão por exemplo, se você faz hoje, amanhã ele está completamente azedo, se fica fora da geladeira, então as mulheres ficavam cuidando dessas coisas o tempo todo, cuidando das galinhas, cuidando dos porcos, da horta, e as mulheres plantavam, no caso minha mãe sempre plantava alguma coisa por fora do quintal, um quiabo, uma abóbora lá, fora da horta, e ela ficava cuidando dessas coisas. Chegava a tarde, eu não estava na escola, escola era só depois dos sete anos, não havia pré-escola, berçário, essas coisas, porque todo mundo tinha que se virar dentro da própria família, não tinha como deixar a criança fora da família, e aí lá pelas cinco horas, meu pai vinha e jantava ali pelas cinco e meia, seis horas no máximo e oito e meia da noite, no máximo, estava todo mundo na cama, até porque, não havia televisão, não havia rádio, nessa época, nem rádio a gente tinha, isso era década de 50, pouca gente tinha rádio, isso eu tô falando de pessoas pobres, pouca gente tinha rádio, TV é claro que não tinha, e não tinha luz elétrica, então era uma lamparina, querosene, ficava escuro, e estava todo mundo cansado, trabalhavam na roça, era um serviço pesado, aí todo mundo ia pra cama, porque no outro dia tinha que levantar cedo também, e era isso. Que eu me lembre, na minha casa não havia nenhum livro.
P/2 – Vocês contavam histórias uns para os outros?
R – Então, antes de dormir sempre havia uma reunião da família toda, lá na casa do meu avô, que era próxima, uns cem metros da minha casa na casa do meu avô, ia meu pai, às vezes a minha mãe, às vezes não, mas meu pai sempre ia, e a gente sempre estava por ali. Aí sentamos lá no terreiro, algum lugar assim, e ficávamos entre seis e meia, oito, uma hora e pouco, sei lá, as pessoas ficavam conversando, porque não tinha outra coisa pra fazer, todo mundo junto, mulheres, homens, mas só da família, as crianças também, tudo que se falava, todo mundo ouvia, e todo mundo falava também (risos), inclusive as crianças, claro, eu com três anos não, mas continuou esse processo até quinze anos.
P/1 – E vamos dizer assim, até os quinze anos vocês faziam isso, tem alguma história que você se lembra bem, te marcou, que você queira contar, que alguém da sua família contou?
R – Não tem nenhuma história, porque haviam muitas histórias, mas elas eram contadas, vamos dizer assim, sem aquela intenção de fazer sucesso, elas eram contadas naturalmente, então eram coisas que aconteciam na vizinhança, com outras pessoas, dos parentes, contadas naturalmente e as pessoas faziam comentários, tudo de forma natural, então tudo que acontecia era o nosso…não havia jornal, nessa época não havia rádio também, era a nossa forma de saber das coisas, saber dos acontecimentos, e todo dia tinha informação, era como as notícias que a gente vê diariamente, a gente procura ver alguns locais com notícias e com informações, pra gente se manter mais ou menos ligado no mundo, e o nosso processo era esse.
P/1 – E quem trazia mais notícias, digamos assim, de fora, tinha alguém que fazia mais isso?
R – Bom, aí entra a história do machismo, do patriarcado, sei lá, porque que saia mais fora da família eram os homens, as mulheres saiam menos, mas saiam também, mas menos. Então, quem trazia normalmente eram os homens, no caso, nessa época mais ou menos, meu avô deveria ter uns cinquenta anos de idade, que era o patriarca ali, ele era como se fosse meu pai, o meu pai mesmo, era mais restrito em relação a mim, então era isso, tinha sempre algum vizinho, tinha muita interação entre os vizinhos, normalmente ai no final de semana, nessas reuniões também vinha algum vizinho, e aí era o fulano, que falou pro ciclano, e aí eu fiquei sabendo e tal, e aí acontecia e todo mundo ficava sabendo das coisas assim.
P/1 – Eu vou entrar um pouquinho no tema, nessa se falava de prefeito, de política, ou não?
R – Na década de 50, o município onde havia a eleição para prefeito, era Olímpia, que ficava em um lugar que tinha uns quinze quilômetros de distância e era uma cidade onde a gente ia uma vez por ano, para fazer compras, então a gente não conhecia ninguém de lá, que morava lá na cidade, aliás a maior parte dos habitantes daquele município morava na zona rural, e a cidade era pequena pra quem morava ali na zona urbana, e a eleição, para prefeitura no caso, isso era algo que só acontecia assim, na época da eleição e era naquele sistema totalmente alienado, os eleitores eram alienados, normalmente os políticos, os prefeitos, eles iam buscar os eleitores no dia da votação com carro, para votar, porque era longe da cidade, era difícil pra eles votarem, era uma viagem, imagina, quinze quilômetros naquela época, eles iam, não tinha ônibus, não tinha nada, eles tinha que ir ou andando ou a cavalo, ou de bicicleta, nessa época tinha um pessoal que tinha bicicleta, era tudo por estrada de terra, se chovesse então, nem carro passava, então era muito difícil, se deixasse por conta das pessoas de lá, eles não iriam votar, aí os candidatos iam buscar, aí a pessoa votava no candidato que fosse buscar.
P/1 – E o que, uma caminhonete parava? Um caminhão, um carro?
R – Nessa época, década de 50, nem kombi havia, aí logo depois foi lançado a kombi, aí a kombi virou o….pra esse processo, mas então era caminhão, no caso, caminhão na carroceria ali, caminhãozinho pequeno, caminhonete já tinha, então era assim, mas eu nessa época de 50, eu não me lembro, eu só me lembro mais quando era maior.
P/1 – E quando você entrou na escola o senhor tinha sete anos, é isso? Onde o senhor foi estudar?
R – Então, aí eu já morava em outro lugar. Na década de 60, minha família se mudou deste local, conseguiu comprar um sítio, já no Município de Severínia, que fica uns trinta quilômetros longe desse primeiro local, mesma região ali, mais uma cidadezinha pequena. Eu estudei em uma escola rural, o sítio ficava a cinco quilômetros longe da cidade e naquele tempo havia escolas rurais, a população morava na zona rural, então se distribuiam as escolas, e a professora, normalmente era mulher, né, e ia até a escola lá, havia uma perto da minha casa, onde tinha uma venda, a escola, um campo de bocha e um campo de futebol na beira da estrada. Nessa escola havia primeiro, segundo e terceiro ano, chamava-se primário, entrava-se com sete anos, era uma sala só, uma professora só que dava aula para os três anos todos juntos, e as crianças estudavam primeiro, segundo e terceiro ano e não estudavam o quarto ano, porque não tinha ali, se quisesse fazer o quarto ano e se formar, recebia diploma no quarto ano, completava o primário, recebia o diploma, mas lá não era possível, porque não tinha o quarto ano, se quisesse receber o diploma tinha que estudar um ano lá na cidade, coisa que ninguém fazia. Eu estudei nessa escola, eu tinha completado seis anos em agosto, aí fui fazer a matrícula do ano seguinte, a professora não aceitou, a matrícula era direto lá com a professora, minha mãe foi comigo lá, a professora não aceitou, dizendo que eu ainda não tinha idade suficiente, isso eu me lembro perfeitamente, desse dia que foi uma tristeza terrível pra mim, eu me senti arrasado pelo fato de não estudar aquele ano, eu só ia estudar no ano seguinte, não tanto pelo que ia aprender não, era porque meus amigo todos, a maioria deles já estavam lá, tinham alguns meses mais do que eu, e já estavam na escola, e a escola era um local para se encontrar os amigos e brincar, e eu, aquele ano ia ficar em casa sozinho no período das aulas, que eram de manhã, enquanto os meus amigos ficavam lá, todo mundo ali junto, foi assim, e essa professora se chamava dona Rosa, vinha de Olímpia de ônibus, num ônibus que passava numa estrada, a quase dois quilômetros de distância, ela descia com o filho excepcional dela, que era da minha idade, vinha andando aqueles dois quilômetros, chegava até a escola, aí dava aula pra três, eu aprendi e fui alfabetizado por ela, junto com o primeiro, segundo e terceiro ano. Estava lembrando com a minha irmã outro dia, que nessa escola, era uma sala, construída assim, na beira da estrada, ficava numa propriedade particular, num sítio, e nessa sala não havia eletricidade, e não tinha nenhuma torneira pra gente lavar a mão, porque não havia água encanada, uma caixa lá com os canos, isso não havia em lugar nenhum, em nenhuma casa, nem na escola, pra fazer as necessidades havia uma casinha com um buraco no chão lá no quintal, só isso, e não havia torneira pra lavar a mão não (risos) mas isso não era necessário.
P/1 – E como era ter aula nessa escola com três turmas ao mesmo tempo? Como a professora se virava, você lembra disso?
R – Sim, me lembro perfeitamente, porque quando eu passei para o segundo ano, foi implantado essa escolinha e eles dividiram em duas turmas. Aí, de manhã era primeiro e segundo ano, uma professora para primeiro e segundo ano, e a tarde…porque só tinha uma sala. Então, a tarde era terceiro e quarto ano, com outra professora, mas eu fiquei no primeiro ano ainda com, primeiro, segundo e terceiro ano com dona Rosa, era assim, ela chegava um pouco mais cedo, e as crianças brincando lá no pátio, antes do horário, ela passava na lousa, escrevia os problemas para o…acho que o segundo ano já fazia também, não me lembro, não tenho certeza, mas, o terceiro ano com certeza, fazia os problemas, chamava problemas, problemas era aritmética, matemática, sei lá, onde tinha uma enunciado, um enunciado com cinco, seis linhas no máximo, em que as pessoas tinham que resolver: “Fulano foi à feira, comprou tantas pêras, tantas maçãs, não sei o que, aí deu duas para o vizinho, com quantas ele ficou?” Era assim, o aluno tinha que ler, entender e resolver, dar o resultado que era um número, então ela passava esses 3/4 por dia ali, não sei se para o segundo ano também, aí todo mundo entrava, fazia uma fila, os meninos de um lado, as meninas do outro, a gente entrava e aí, enquanto os grandes resolviam os problemas, porque eles tinham que copiar primeiro, depois resolver, e isso demorava um pouco, ela ficava dando a lição para o primeiro ano, porque o primeiro ano tinha que ficar ali em cima e tal, eu tinha sete anos e alguns meses quando entrei, você começava treinando a mão, eu, por exemplo, era canhoto, fazia tudo com a esquerda, mas eu não tinha quase pratica nenhuma antes de escrever, antes de entrar na escola, na minha casa tinha lá um lápis, papel era difícil, e ninguém ficava lá me treinando, e eu fazia tudo com a esquerda, inclusive para comer ali era tudo com a esquerda, e aí as pessoas, os adultos, familiares falavam “Olha você não deve escrever com a esquerda, você deve escrever com a direita” Então quando eu comecei, eu já fui com a direita, sem ninguém me falar, a professora nem sabia, então esse processo de educação da mão assim, tal, no papel, aquele papel de pão que ela trazia, sabe? Aquele papel pardo, que naquela época se embrulhava pão, agora também não tem mais isso, aí fazia vários exercícios assim, durante vários dias, de novelo da vovó, sapinho sobe e desce, fazia enquanto cantava, um processo, e depois começava com a cartilha, chamava Cartilha Caminho Suave, que tem até hoje por aí, e os outros lá fazendo problemas, e ela deixava a gente do lado e ia lá ver com os outros e correndo pra lá, pra cá, e desse jeito, mas ela não perdia o controle nunca.
P/1 – Tinha castigo?
R – Tinha castigo, tinha assim, não era nada (risos) traumático, nada pesado, mas tinha castigo. Por exemplo, ela às vezes puxava a orelha da gente, às vezes dava um croque, às vezes puxava o cabelo, só isso, tapa não tinha não, e às vezes mandava ficar lá no canto, não tinha essa história de ficar em cima do grão de milho, isso não tinha não, mas ficava lá no canto, era uma desmoralização para a pessoa castigada, tinha esse tipo de coisa sim.
P/1 – E como era você enquanto aluno nesses quatro anos?
R – Eu me destacava na aprendizagem; Primeiro porque a minha família valorizava muito o estudo, eles eram todos semi analfabetos, não tinha livro na minha casa, nada, mas eles valorizavam muito e tudo que a professora pedia pra comprar, eles compravam, e até aí eles tinham condições de comprar e queriam ver o que eu fazia, os meus cadernos, não só, menos até o meu pai, mas os tios, meu avô, porque a família ficava todo mundo ali, e todo mundo queria ver, então isso, era um incentivo muito grande, e eu digo isso porque os outros, os colegas, a maioria eram…quer dizer, a gente era muito pobre, só que, a gente tinha terra própria, em relação aos outros, a maioria não tinha terra própria, quer dizer, já era um diferença aí, e tinha muitos alunos que a família não podia comprar aquele material básico, a professora levava muita coisa e certamente lá na casa deles, dos alunos, a família nem olhava pra eles. Então, no meu caso, eu levava uma tremenda vantagem nesse aspecto em relação aos outros, então eu me destacava na aprendizagem.
(37:23) P/1 – E você ficou nessa escola até uns onze anos?
R – Até o quarto ano. É onze anos, né? Até 1967, de 1964 a 1967. Eu fiz os quatro anos ali com quatro professoras diferentes: a professora do primeiro ano, uma no segundo, que ela dava aula pro segundo e pro primeiro, depois eu passei para a parte da tarde, que era a outra professora que dava aula para o terceiro e quarto e depois no quarto ano, outra professora que dava aula para o quarto ano e terceiro.
P/1 – E as matérias eram português e matemática, só isso?
R – Não havia matemática, havia aritmética, e também não havia português, essa palavra português, assim, era aprender ler, escrever e fazer cálculos, esses básicos, as quatro operações. Agora tudo misturado tinha, tipo geografia, história já tinha. Tinha um livro texto que é muito bom, eu lembro dele até hoje, tenho até hoje, quer dizer, eu não, a minha irmã, esse livro era passado de um para o outro, um livro texto onde tinha uma historinha, essas historinhas clássicas que você encontra até hoje de várias formas, e lá para o final tinha algumas perguntas e aí a gente lia aquilo, isso ai na parte de, vamos dizer, português, não era assim conhecido, e na parte de cálculos, aprender os cálculos, tinha a que se chamava tabuada, você tinha que decorar a tabuada, do dois, do três, do quatro até a tabuada do nove, ‘nove vezes oito é setenta e dois’, isso aí eu sei até hoje de cabeça, ‘seis vezes oito, quarenta e oito’, você tinha que saber, chegava lá para a professora e fazia oralmente, “três vezes um, três vezes dois, três vezes quatro”, e ia dando o resultado, depois tinha que falar aleatoriamente os resultados, porque isso era usado na hora de fazer as contas.
P/1 – Agora só uma coisa, como era esse livro texto, o que tinha, qual era a história nele, você se lembra?
R – Lembro de várias histórias desse livro, porque tinha um livro pro segundo ano, outro pro terceiro e outro pro quarto. Normalmente, quem tava no segundo ano passava o livro, às vezes até vendia pra um vizinho ou pra um irmão, pra outra criança que vinha e assim por diante. Os meus livros, por exemplo, eu tinha um vizinho que tava sempre um ano na minha frente, que foi esse caso aí, quando ele entrou, ele era alguns meses mais velho que eu, então ele entrou e eu não, então ele ficava um ano na minha frente, aí ele pegava esse livro e minha família comprava dele,o mesmo livro e assim por diante.
P/1 – Mas qual era o nome do livro, como que era ?
R – Parece que o livro chamava “Brasília”, eu não tenho certeza, era a mesma coleção pro segundo, terceiro e quarto ano. São histórias clássicas né… era dos Irmãos Grimm, tem várias, são histórias clássicas que eram adaptadas, normalmente uma página só, eu me lembro de várias história se você quiser saber…
P/1 – Pode contar, por favor.
R – Bom, era a história de um rei que era muito malvado e queria contratar um pintor para pintar um retrato dele. O rei tinha um olho furado, na época havia muito isso, então o olho ficava fechado, às vezes o olho da pessoa é vazado, eles colocam um de vidro, mas na época não tinha isso, a pessoa furava o olho, isso acontecia, o olho fica fechado, é horrível, tinha um colega que teve esse problema… esse rei tinha esse problema, quando isso acontecia, a pessoa se considerava feia, quando havia isso, era considerado um defeito no rosto, um olho ficava assim, fechado. Esse rei queria contratar alguém que pintava, isso há um tempo antes das máquinas fotográficas, aí o pintor ia lá e pintava o retrato dele, pintava naturalmente, do jeito que ele era, ele via o quadro e que estava com um olho fechado, então mandava matar o cara porque pintou e ele ficou feio, você sabe né, um rei absolutista. Até que um pintor foi contratado e o pintor quando era contratado, ficava desesperado “e agora? como é que eu faço?”, aí pintou o rei caçando, por isso ele podia adotar qualquer pose, pra você atirar com a espingarda no caso, você precisa fechar um olho para fazer a mira, o rei tinha que fechar justamente o olho que ele não tinha, então o pintor fez e o rei viu que não tinha nada demais ali, gostou e perfeito. Era esse tipo de coisa, tinha outra que era “O homem dos cem olhos”, um homem muito malvado que tinha um rebanho de ovelhas, e aí parece que um outro animal, um veado, um outro animal qualquer, foi se refugiar lá no meio dessas ovelhas, fugindo dos caçadores ou de alguém, mais de cem ovelhas lá o meio, aí as ovelhas falando, tinha isso, os animais conversavam entre si, as ovelhas falavam pra ele que o dono delas que era o homem no caso, não deixava passar nada, nos detalhes, e quando o homem bateu o olho ele logo viu, eram histórias desse tipo, histórias clássica de autores europeus, tudo europeu.
P/1 – Queria perguntar agora, sobre história e geografia, que você disse que começou a estudar. Como eles ensinavam isso naquela época?
R – Então, aí a professora, isso não me lembro os detalhes, mas acho que ela colocava na lousa, tipo “quem descobriu o Brasil”, “história de Tiradentes”, tudo coisa assim, elementar, tinha muita musiquinha e eu me lembro das musiquinhas que tinham sobre quem descobriu o Brasil, Dom Manoel de Portugal, quem Pedro Álvares de Cabral escolheu as Índias, era assim a musiquinha, a gente cantava, todo mundo junto e eu acho que ela passava na lousa essas informações e a gente copiava no caderno, informação de história. Geografia, não me lembro de detalhes, mais de história. Tinha ciências, chamava ciências, tinha algumas informações sobre biologia e botânica, mas também não me lembro dos detalhes.
P/1 – Na época, não se falava da história da própria época?
R - Não de jeito nenhum.
P/1 – Mas nessa época já tinha algum ritual na escola, de bandeira, hino?
R- Não, eu não tenho certeza se a gente chegou a cantar o hino nacional uma vez, foi muito pouco, da bandeira não tinha, era zona rural e só tinha a professora, diretor e essas coisa, essa escola era vinculada a uma delegacia de ensino, eu me lembro que eles iam lá uma vez no final do ano, ministrar um exame final, parece que ia um representante, um funcionário, a gente não conhecia, mas era desta delegacia. No dia do exame final, você fazia uma prova e ele ia lá só fazer isso e não havia bandeira de ninguém de jeito nenhum e não havia nenhum ritual.
P/1 – Antes de passar a palavra pra próxima parte da escola, queria voltar um pouco, na região, sua família contava alguma dessas histórias que a gente vê que tem até hoje, uma lenda da região, alguma história de terror, sabe?
R – Não, da região especificamente não, mas história de assombração, eram uns fantasmas, alma penada, tinham muitas almas penadas lá, mas sobre local onde aparecia uma luzinha misteriosa, cruzes na beira da estrada, normalmente naquelas estradinhas onde só passavam cavaleiros antigamente, só carroças, charrete e gente a pé, de vez em quando morria alguém por lá, de vez em quando tinha algum assassinato. Eu nunca presenciei, e no nosso bairro nunca teve isso, daí colocavam uma cruzinha na beira da estrada e lá era um local onde as pessoas tinham medo de passar, durante o dia não, mais a noite e nessas conversas de noite, sempre tinha alguém, geralmente um vizinho que vinha e começava a contar as histórias, então a gente ficava ligado.
P/1 – Tinha alguma alma penada que te marcou mais? Que você tinha medo, que você pensava assim?
R – Por exemplo, para a gente chegar na cidade, o cemitério da cidade ficava fora da cidade, todo cemitério ficava fora da cidade, e para ir à cidade precisava passar na frente. Durante o dia, ninguém tinha medo, não tinha problema nenhum, mas quando escurecia, passar na frente do cemitério não era fácil não, claro que ninguém nunca foi atacado por nenhuma alma, mas a gente não facilitava também(risos). As pessoas tinham essas coisas com os mortos, com o misterioso, tinha muito a ver com o escuro, porque na hora que a noite caía, quando tinha lua e até pior, porque ela fazia uma sombra, quando não tinha lua, não tinha sombra e você não via nada, mas a lua cheia fazia sombra e aí é terrível, quem tinha medo de fantasma via em todo lugar.
P/1 – E vocês pregavam peças em alguém?
R – Pregava, tinha muito.
P/1 – Como vocês faziam isso?
R – Assim, na minha família não, ninguém tinha esse costume, de vez em quando a gente ouvia falar de alguém que pregou uma peça em uma pessoa conhecida, às vezes podia ser até mentira, mas tinha essa idéia, a pessoa se cobria com um lençol branco, todo lençol era branco nessa época aliás, e ia numa encruzilhada, tinham muitas histórias de encruzilhadas em que você encontrava o capeta, capeta era muito famoso na época. Tinha histórias de uma pessoa rica da região, porque isso era muito pouco, normalmente nas cidadezinhas, tinham duas, três ou quatro pessoas ricas, o resto era pobre, praticamente não tinha classe média, que chamava. Nessa cidadezinha tinha uns dois ou três mil habitantes, zona rural e urbana, três ou quatro pessoas ricas, uma mais rica ainda, aí um que era mais rico ainda, dizia-se que ela havia vendido a alma ao diabo, história do “Pacto do Guimarães Rosa” com o Demo, tinha muito isso.
P/2 – Eu ia falar das brincadeiras, no intervalo da escola…
R – Ah sim, eu chegava na escola nessa época do primário, ia sozinho claro, chegava no mínimo uma hora antes do horário e os outros meninos também chegavam para brincar, sem nenhuma supervisão, só a gente lá, a professora ainda não tinha chegado, era a gente sozinho no pátio grande, os meninos de um lado e as meninas de outro, não se misturavam as brincadeiras.
P/2 – Quais eram as brincadeiras?
R – As brincadeiras, então, eram muitas, umas sete, oito, nove, dez, tinha “bolinha de gude”, tinha “pião”, tinha “bito”, “bito” eram aquelas cinco pedrinhas que você jogava com a mão, a minha professora do quarto ano jogava isso com a gente, já jogávamos bola, bola de meia, brincadeira “pega-pega”, as brincadeiras tinham a sua época, tinha uma época que só se brincava de pega-pega o tempo todo, um mês, por aí, daí a pouco todo mundo jogava “bolinha de gude”, isso os meninos, tinha pião bolinha de gude que era só menino, bito, em ambos os sexos, pega-pega era também em menino e menina, mas separado, e bola só os meninos. Tinha brincadeira de luta, um lutar com os outros entre os meninos, pegar e derrubar, mas sem violência, tudo controlado. Teve uma época que tinha brincadeira de “bang-bang”, não tinha TV, tinha cinema na cidade, mas ninguém ia lá, mas teve a brincadeira de “bang-bang”, cada um pegava um ´pedaço de pau como se fosse um revólver, estilingue era direto e todo mundo tinha o seu, andava no bolso, da calça era sempre curta, até uns 11 anos, os meninos usavam uma calça curta com bolsos, normal, mais curto, de um lado o estilingue e do outro a munição para jogar nos passarinhos, muitos passarinhos, de vez em quando jogava para matar.
P/1 – Você torcia para algum time nessa época?
R – Então, nós meninos não, mas os adultos já tinham os times de São Paulo, tudo pelo rádio porque nessa época do primário já começou a ter mais rádios, TV não, rádio a pilha porque não tinha eletricidade também, rádio a pilha com aquelas quatro pilhas “Rayovac”, só tinha essa marca, aquelas quatro pilhas grande, precisava de uma antena fora da casa com aqueles fios e bambu. Então já aparecia Palmeiras, São Paulo, Corinthians e Santos, na região não tinha nenhum time que jogava, mais próximo era de Rio Preto e ficava uns 70 km de distância.
P/1 – Você ou a sua família ou os seus amigos torciam pra algum time?
R – Minha família não torcia, meus tios e meu pai nunca torceram, mas tinham uns vizinhos da idade deles que torciam. Na minha família, só copa do mundo, daí eles ouviam, mas fora isso não.
P/1 – E você gostava de futebol? ou gosta?
R – Sim, lá tinha um campo na frente da escola, era um campo que a comunidade mesmo construiu no meio do pasto, onde tinha gado era mais ou menos gramado, bem baixinho e era meio caído, não era plano, as duas traves com madeira, que eles mesmos fizeram e as crianças jogavam lá. Na aula a gente brincava no pátio da escola que ficava em frente, mas aos fins de semana a gente jogava lá e alguns adultos jogavam também, mas separados, ninguém tinha chuteira então era todo mundo descalço, tênis nem pensar. A bola era uma dessas que chamamos de "capotão" e só tinha uma bola, quando tinha. As vezes, ela furava e tinha que consertar, enquanto não consertava, não tinha jogo, só tinha uma bola porque era um artigo caro. Nós meninos, até uns 11 anos jogávamos com uma bola um pouco menor, mas de cor também, normalmente tinha um menino que era “dono da bola”, eu nunca fui, minha família achava que não era um investimento que valia a pena, então, tinha um menino que tinha a bola e ele era o “dono da bola”. A gente sempre jogava muito aos fins de semana, eu gostava demais.
P/1 – Tinha algum cara que você queria ser no futebol, um ídolo, um atleta?
R – Não, porque nessa época na minha família nem se ouvia, eu às vezes ouvia o jogo na casa dos outros, a transmissão pelo rádio, tinha um lá o “Dudu” que era pai de um amigo meu que estudava comigo, tínhamos a mesma idade, às vezes eu via na casa dele, o filho era “Duzinho”, nem sei se o nome do “Dudu” era “Eduardo”, mas na época no Palmeiras tinha um jogador que chamava de Dudu, na década de 60, vocês devem até ter ouvido falar Dudu e Ademir, era craque, o pai desse meu amigo era palmeirense. É a única coisa que eu lembro dessa época, na copa do mundo de 62, eu não me lembro, lembro alguma coisa muito vaga, a gente já ouvia falar no Pelé, mas não tinha admiração nenhuma por ninguém, eu, os meus amigos e ninguém da minha família.
P/1 – E quando começou a ter rádio na região, os vizinhos,vocês tiveram rádio em algum momento nessa época?
R – No começo, nessa época na década de 50, o meu avô comprou um rádio, lá na casa dele, um dos primeiros, e a gente ia na casa dele ouvir. Na minha casa quando comprou um rádio, eu já tinha uns nove anos de idade, mas antes disso, na casa do meu avô tinha, então depois do jantar, a gente ia lá para ouvir musica sertaneja, daqui de São Paulo, não tinha rádio ali perto e a gente chamava de “zonas curtas “, que mandava daqui para lá, um programa de meia hora, chama “Rádio Nacional” que depois virou a “CBM” que é a sucessora, inclusive no mesmo endereço, rua das Palmeiras, antes se chamava rádio nacional, um programa de meia hora, com duplas sertanejas, “caipira” chamava, oriundas lá da região.
P/1 – Quem, por exemplo, você lembra?
P/1 – Tinha uma cidadezinha, perto de Catanduva que tinha uma família com três duplas, que cantam aqui em São Paulo, família que saiu da roça. Tinha uma dupla chamada “Zico e Zeca” a outra era “Lio e Léo”, quatro irmãos, venderam muito disco e morreram faz pouco tempo, na Inezita Barroso até pouco tempo atrás, fizeram muito sucesso na região. Os primos deles eram “Vieira e Vieirinha”, eram primos e essa cidade chama Itajobi, perto de Catanduva, tinha outra dupla do mesmo lugar que chamava de "Abel e Caim", olha o nome, pura ignorância, você sabe que um matou o outro, né? Então, eu tô dando um exemplo de concentração, mas tinham outras, nesse programa, cada dupla fazia meia hora uma vez semana e eles aproveitavam pra fazer a propaganda dos circos onde iam cantar. Nessas cidadezinhas havia um circo chamado "Circo Teatro", era muito pequeno, não haviam animais, nem malabaristas, só havia um palhaço muito "xinfrim", era uma lona que armava na cidade e ficava ali três ou quatro fins de semana, levantavam e iam para a cidade próxima e assim ia correndo o interior, no interior todo tinha isso. Também tinham os empresários, os donos do circo, que era o meio de vida deles. O circo consistia em uma dupla caipira ou sertaneja, que não tem nada a ver com sertanejo universitário e normalmente era uma dupla, duas pessoas, normalmente eram homens, mas tinham também algumas mulheres e eles iam lá, faziam um show, não tinha microfone nem nada, era no ao vivo assim, não tinha microfone ou sistema de som, eles faziam esse show e cantavam cinco ou seis músicas e depois encenavam um drama, uma peça de teatro onde eles participavam junto do pessoal do circo, os personagens, tinha o pessoal do circo e os dois ali faziam uma peça. O palhaço ficava nos intervalos só para preencher o espaço, ele era insignificante, o palhaço é malabarista também, um palhaço tradicional desses de circos grandes, ele é malabarista também, mas esse era só engraçado e fazia umas coisas bobas só enquanto mudava o cenário, esse tipo de coisa. Eu cheguei a assistir um espetáculo desse só uma vez com meu tio, eu tinha uns onze anos de idade, porque esse sistema já estava em extinção, já tava se acabando na década de 60. Na década de 70, já quase não tinha mais, eram poucos, mas até meados da década de 60, ou final da década de 60, isso no interior era massivo, em toda cidade tinha.
P/2 – Queria agora dar um passo adiante e falar da transição do primário para o ginásio, porque nem todo mundo naquela época, como você falou, fazia o quarto ano. Você fez o quarto ano, a escola passou a ter o quarto ano, mas tinha o diploma e muita gente não passava disso. Por que você seguiu estudando e como era essa escola?
R - Sim. De fato, da minha turma que terminou o quarto ano, apenas dois continuaram os estudos, foram fazer o ginásio, eu e outro colega lá. Eu me destaquei, me destacava ali na aprendizagem, e a professora que se chamava Marlene, do quarto ano falou com meu avô, falou que era bom que eu continuasse a estudar, porém o estudo ficava a cinco quilômetros de distância, na cidade, e o meio de transporte que a gente tinha era cavalo e charrete só. E, naquela época, cinco quilômetros era muito longe, interessante porque hoje cinco quilômetros a gente vai andando, mas naquela época não, a gente não ia andando e andar era algo inadmissível, você ir daqui até lá a pé, tinha que ir com alguma condução ou a cavalo ou de charrete, se você tivesse carro, mas ninguém tinha carro, nem os fazendeiros tinham carro nessa época. Eu me lembro quando o primeiro fazendeiro comprou seu primeiro carro que era uma kombi pra família toda, e tinha o trator também, o trator às vezes era usado como um meio de transporte para ir na cidade, e eu queria muito continuar estudando, mas sabia dessa limitação, meu pai trabalhava na roça, então como é que faz? Não tem essa história do pai sair pra levar o filho na escola, depois tem que ir buscar, isso era impensável, se ele fosse fazer isso, ele não ia fazer mais nada na vida, porque só pra ir era uma hora, porque você tem que arriar o cavalo, uma hora pra ir, uma hora pra voltar. Depois buscar, mais uma hora pra ir e uma hora pra voltar, quatro horas, era impraticável, eu poderia morar lá com alguém, mas primeiro que não tinha nenhum conhecido lá, nenhum parente que morasse lá na cidade e era uma coisa que a gente não estava acostumado, não era uma opção eu com onze anos ir morar lá, sair da família. O meu pai até resistiu um pouco, assim, considerando um pouco, mas o meu avô que nessa época não trabalhava mais direto na roça, falou: “Não, vamos ver aí, vamos dar um jeito” E aí eu fui, tinha que fazer um exame de admissão pra eu entrar, uma espécie de vestibular, chamava exame de admissão, pra você entrar na primeira série do ginásio você tinha que fazer, como se fosse um vestibular, e eles resolveram o problema com eu indo sozinho a cavalo, eu tinha onze anos em 1968, nasci em 1956 e fiz doze anos em agosto e comecei a ir em fevereiro no caso, tinha onze anos, eu ia a cavalo, ia lá no pasto e pegava o cavalo, levava pra casa, arriava o cavalo, chamava arriar o cavalo botar o arreio e tudo, montava no cavalo…e esse meu outro amigo fazia a mesma coisa, ele era meu vizinho e a gente se encontrava lá na frente, mais ou menos um quilômetro na estrada, se eu chegasse primeiro, eu esperava ele e se ele chegasse primeiro, ele me esperava, e daí a gente ia e deixava os cavalos "estacionados" no pátio de um posto de gasolina, aliás, o único posto de gasolina que tinha na cidade, mas era um quintal, era tudo terra, um quintal arborizado, posto de gasolina você vê (risos) cavalo não usa gasolina (risos), a gente deixava porque era conhecido, as famílias se conheciam, deixava o cavalo lá amarrado o tempo todo, acho que era a tarde que a gente estudava, era no período da tarde, deixava o cavalo lá umas três ou quatro horas por aí e ia estudar e depois voltava pra casa. Fiz isso um ano, depois a minha família se mudou para outra região, a minha família se mudou para uma cidade que fica a cento e setenta quilômetros distante dessa outra cidade, aí já era uma outra realidade.
P/1 – Como se chamava?
R – Fernandópolis, era de Severínia, onde a gente morava em Fernandópolis lá no Noroeste do Estado, depois de Rio Preto, São José do Rio Preto. A minha família se mudou pra lá em setembro, mas o ano terminava em dezembro, então eu fiquei esses dois meses, setembro, outubro e novembro, três meses, morando na casa de um vizinho pra terminar o ano, porque se eu saísse, eu perdia aquele ano, então pra terminar o ano eu fiquei, foi a primeira vez que eu fiquei longe da família, três meses com uma família que era vizinha ali. No segundo ano já em outra cidade, eu também ia a cavalo, mas aí sozinho, na mesma distância, mas aí eu já era mais velho, um ano mais velho, e na terceira e quarta série do ginásio eu já ia de bicicleta, aí o cavalo já tinha saído de moda, o cavalo já era insuportável porque só tinha eu que andava a cavalo lá, era algo que eu já não tinha condição, pedia para o meu pai comprar uma bicicleta, porque lá nessa cidade tinha muita bicicleta, nessa outra, Severínia, onde eu estudei a primeira série, não tinha bicicleta, tinha assim, uma ou outra, muito pouco, mas lá em Fernandópolis era muita bicicleta, todo mundo ia pra todo lado de bicicleta e eu a cavalo, só tinha eu a cavalo, lá na minha escola, no pátio tinha mais de cem bicicletas, todo mundo ia de bicicleta, só eu ia de cavalo e ainda tinha que deixar em um lugar longe, o cavalo “estacionado”. Aí fiz isso um ano e convenci meu pai a comprar uma bicicleta usada, velha e eu fui os dois anos com a bicicleta.
P/1 – E qual é o nome da escola em Fernandópolis?
R - Lá era a maior escola da cidade, já era uma cidade maior na época, devia ter uns trinta mil habitantes, já era bem maior que essa cidadezinha onde eu comecei no ginásio. Aliás, foi nessa cidade onde eu conheci o que chamava “semáforo”, foi o primeiro lugar que eu vi. Olímpia que era uma cidade maior, por outro lado não tinha semáforo.
P/2 – O nome da escola…
R - O nome da escola é IEEF (Instituto de Educação Estadual de Fernandópolis).
P/2 – Uma escola grande?
R - Uma escola grande, um prédio novo, com três pavimentos. Um prédio comprido e embaixo era como se fosse um pátio. Em cima, o primeiro pavimento, o segundo pavimento com salas, quase um quarteirão inteiro, o prédio novo, sei lá, uns dois ou três anos, quase um quarteirão inteiro, aí tinha uma quadra coberta, tinha uma quadra descoberta, tinha uma biblioteca, uma sala no nível do pátio, uma sala grande que era a biblioteca, era uma beleza.
P/1 – Como é que foi os estudos lá, os professores, seus colegas?
R - Então, na época a gente estudava o primeiro e o segundo ano tinha língua francesa, no terceiro e quarto ano inglês, mas era só pra constar, os professores em geral era da mesma forma como é hoje, o nível dos professores era muito baixo, porque afinal os professores tinham saído de lá, de família que nunca tinham tido um livro em casa, pais semianalfabetos, de repente aquele professor conseguiu ser professor, os professores do ginásio tinham que fazer um curso superior né, que chamava…
P/1 – Magistério?
R – Como?
P/1 – Magistério?
R – Não, magistério é no primário.
P/2 – É licenciatura né, em algum?
R - Licenciatura. Aí já era uma faculdade, que chamava, só que nessa época já tinha no interior, não em todas as cidades, mas já em várias cidades, o que chama de “Faculdade de filosofia, ciências e letras” esse era o nome, em várias cidades tinha, só tinha esse tipo de escola, e ali basicamente era licenciatura para dar aula de portugues, matemática, história, geografia, biologia, química, essas coisas, ciências, sei lá, era isso, a escola formava isso, era um curso superior. Então os professores vinham desse tipo de escola. Os próprios professores, eram todos daquela região, não tinha ninguém que vinha de fora, percebe, ou seja, criatividade nenhuma. Eventualmente, de vez em quando aparecia um lá, criatividade nenhuma, burocratas do ensino, davam aquele programa mínimo e tal, sem nenhuma criatividade.
P/2 - Mas isso senhor tá falando já com o olhar de hoje né, pensando naquele período, como que era pra você estar naquela escola e a rotina daquela escola?
R – É então, eu me lembro de um detalhe, do professor de geografia pediu pra a gente comprar o ATLAS Geográfico, que era dessa largura, desse tamanho, coisa que era difícil naquela época um livro nesse tamanho, e tinha os mapas, tinha um mapa do estado de São Paulo no meio daquela página dupla, sabe aquele amarelo, aquele grandão, tinha todas as cidades, inclusive as nossas, aquelas que a gente conhecia e aquele ATLAS fez o maior sucesso na minha família, os meus tios, todo mundo ficava olhando aquilo o tempo todo, olhando o mapa, olhando as cidades e as informações todas que tinha ali, distância da Terra a Lua, sabe, esse tipo de informação. Eu lembro que fez o maior sucesso com a minha família, os meus tios que já eram adultos. Agora, no ensino por exemplo, matemática, equação do segundo grau, pra que serve isso? Tudo bem porque na escola você aprende fazer a tabuada, a tabuada tinha uma utilidade muito grande, na hora de fazer a conta você tinha que saber a multiplicação, subtrair, somar, isso no primário, então isso tinha uma utilidade grande, uma aplicação grande, agora equação de segundo grau? Qual a aplicação disso? Não passava pela idéia do professor explicar qual a aplicação daquilo com a prática, com a vida, até porque o tipo de vida que tinha ali, dos adultos, você não ia aplicar equação do segundo grau nunca, por exemplo cálculo de área, aí já tinha uma utilidade grande, mas assim, era uma coisa que a gente fazia, porque diziam que era bom, então cê tinha que aprender, passava ali, tinha uma prova, você estudava para tirar a nota da prova e passar de ano? Só isso.
P/1 – Mas já tinha alguma coisa que você queria ser? Alguma profissão ou era mais continuar ali com seus pais, trabalhar ali na plantação da família…
R – A gente não pensava muito nisso, mas uma coisa a gente tinha mais ou menos subentendida, na família toda, não só comigo, que tinha que mudar de vida, ou seja, aquela coisa de ficar ali trabalhando na terra não tinha muito futuro, não era grande coisa, porque era muito sofrido e pouco compensador.
P/1 – Pra você e seus irmão também?
R – Sim, não todo mundo. Agora, para os adultos, adulto que eu digo, é mais de vinte anos, porque aí assim, um cara com vinte anos não pensava que ele podia mudar de vida, com vinte anos, ficou adulto eles já casavam, tinham filho e aí acabou, aí era tocar aquela vida até morrer e acabou, que foi o caso do meus tios, eles já eram agricultores, semianalfabetos, aí vinte e poucos anos já casava e aí pronto, acabou a vida. Agora no meu caso, onze anos, doze anos, treze anos ainda tava em tempo né…
P/2 – E essa incumbência de ter que mudar de vida era um desafio bem-vindo, te assustava, ou você não sabia o que fazer com isso?
R – Sobre isso, eu tinha a maior tranquilidade possível, não tinha nenhuma apreensão sobre esse futuro, não pensava muito também “o que que eu vou fazer?”, “o que que eu vou ser?”, e também tudo coisa boba, mas em nenhum momento eu fiquei apreensivo, fiquei com medo ou inseguro em nenhum momento.
P/2 – E nessa escola por acaso, era no período que a gente chama de “os anos de chumbo” na ditadura, que é pós- AI5 né?
R – 1969, 1970 e 1971.
P/2 – Bom, eu sei que você era bem jovem, não acho que você precisava refletir sobre isso, mas na escola tinha educação moral e cívica? Tinham hinos para cantar a educação física? Tinham rituais pra cantar mais em questão de ordem?
R – Não, não tinha, assim, bandeira aí já tinha a bandeira lá, mas ninguém ficava hasteando e sei lá, às vezes a gente cantava, tinha aula de música, e a gente aprendia a cantar o hino na aula de música, não só o hino nacional, mas o hino da bandeira, sei lá, tem vários hinos aí, mas solenidade, essas coisas não, isso foi no colégio.
P/1 – Mais pra frente…
R – É.
P/1 – Como é que era a educação moral e cívica ? Você lembra?
R – É, no ginásio eu não me lembro o que a gente aprendia em educação moral e cívica.
P/1 – Mas no colégio também?
R – No colégio eu lembro…
P/1 – É, uma coisa, no rádio ainda nessa época, cês ouviam Hora do Brasil, tinham notícias também pelo rádio ou não?
R – É, tinha notícia sim, “Vozes do Brasil” tinha, mas a gente não ouvia, a gente só ouvia introdução, o guarani, aquela introdução, Carlos Gomes, a voz do Brasil, não sei se é ainda hoje, acho que não tem mais, tem ainda? Digo, o Guarani ainda é “Vozes do Brasil''? Não, né? Isso aí a gente ouvia porque era o começo, ai desligava, (risos) agora notícias, tinha um que chamava "Repórter Esso", eventualmente a gente ouvia, mas não com regularidade, criança menos ainda, mas a gente ouvia notícias do país, São Paulo e tal, dessa época, década de 60, eu me lembro de que havia o Movimento dos Estudantes, interessante, foi em 68, a passeata dos 100 mil, foi em 68, né? Então, eu me lembro desse movimento que teve em São Paulo, não eram 100 mil, mas teve em São Paulo, mas das notícias, dos comentários, os adultos, a gente lá considerava e todo mundo falava que eram os estudantes, um movimento dos estudantes, uma coisa que eu me lembro é que assim, estudantes, só que a gente via ou ouvia falar, tudo adultos na rua que ficavam fazendo as passeatas que a gente ficava sabendo, uma coisa que eu me lembro era o seguinte, “estudantes” mas poxa é tudo adulto, como “estudante”? Estudante pra mim não podia ser adulto, estudante pra mim era até no máximo quinze anos, passou disso, pra mim não era mais estudante, e esses povo que chamavam de estudante eram tudo adulto, não tinha nenhum moleque pra passeata e eu me lembro disso, e lá em Fernandópolis, aí a gente já ouvia notícias dos terroristas, não só ouvia as notícias como via os cartazes no correio, na prefeitura, na estação de trem, na estação rodoviária tinham os cartazes desse tamanho assim, pregados na parede e todo mundo via, com as fotografias, no cartaz tinha assim, vinte fotos do que eles chamavam de “terroristas”. E os “terroristas” eram as piores pessoas do mundo, pessoas malvadas, desumanas, matavam pra ver o tombo, enfim, era o que tinha de pior, era isso o entendimento da população, não tinha nenhum questionamento, aquelas fotos assim, com aquelas caras de mal, só uma coisa que já intimamente me botava é que tinha muita mulher ali no meio dos terroristas, na foto né, “que esquisito,né?”. Gozado, no nosso entendimento lá, essas brigas eram coisas de homem, mulher não se metia nisso, mas tinha muita mulher no cartaz lá, tudo bem né?
P/1 – E o cartaz era pra que, pra vocês ajudarem os civis?
R – Sim, procura-se quem souber o paradeiro, tinha às vezes, uma pequena indicação de quem era o cara, “assaltou, matou não sei quem”, esse tipo de coisa, não tinha um telefone pra você denunciar se você soubesse.
P/1 – Essas palavras, como “terrorista”...
R – Sim, “Terrorista” bem grande, só tinha isso, terrorista era bem grande em cima…
P/1 – E outras como “subversivo” ou “revolução” apareciam?
R – Não, de jeito nenhum, a revolução tinha muito essa palavra, mas a “revolução de 64”, qualquer coisa que ia falar do governo era “revolução de 64”, mas do outro lado no caso, “guerrilheiro”, nem pensar, “subversivo”, parece que subversivo às vezes era usado sim, mas a gente não entendia bem o que significava. Quer dizer, a gente entendia que era sinônimo de “terrorista” sim, mas era mais terrorista.
P/1 – E aparecia muito “revolução”, a "revolução" com R maiúsculo assim?
R – Sim, revolução, até hoje eles usam…
P/2 – E na escola se falava da Revolução nos estudos?
R– Então, eu me lembro vagamente no colégio, mas no ginásio eu não me lembro vagamente.
P/2 – Então vou pedir pro senhor narrar pra a gente como foi esse término do ginásio e a decisão de novo, “por que então estudar?”, continuar os estudos…
R – Sim, aí foi importante, porque eu tinha quinze anos quando eu terminei e então eu podia muito bem ajudar meu pai na roça, era um trabalhador a mais e isso era importante, porque ali, a maior parte das tarefas eram manuais então a mão de obra, o braço era importante, e outra coisa, esse negócio de continuar estudando e comendo em casa, ou seja, era uma boca a mais e essa boca não tinha braço, isso era complicado para continuar estudando, fazer o colégio, porque se eu continuasse ali, era o mesmo esquema, eu ia de bicicleta, tinha tudo lá, só não tinha curso superior, mas até o colégio tinha, aí foi fundado numa cidade vizinha em Votuporanga, fundaram no ano anterior, o colégio agrícola, um colégio estadual, um colégio interno, colégio agrícola era técnico, já era um ensino profissionalizante de nível médio, técnico agrícola, assim como tem “técnico em eletrônica”, técnico agrícola e interno. Foi uma beleza né, porque aí a gente comia lá, ou seja, não dava despesa para família, morava lá e estudava lá, não tinha problema de transporte porque era interno, era uma fazenda e ainda ganhava uma profissão de técnico agrícola ali, ótimo, aí eu fui pra lá e era uma escola dirigida não rigorosamente, mas pelo menos formalmente, dirigida pelos filhos dos sitiantes, pessoas que trabalhavam com agricultura. Tava perfeito.
(01:36:58) P/1 - Que matérias você tinha lá, além das técnicas?
R – Então, aí tá o problema, porque era um curso equivalente ao curso médio, porém, a carga horária das matérias, aquelas que caíam no vestibular, você sabe, ou não tinha, ou era muito reduzida em relação aos outros colégios normal, era muito reduzida, matemática, biologia eu acho que nem tinha, química, acho que nem tinha, tinha física pouca coisa, matemática pouca coisa, pouca coisa que eu digo é uma carga horária menor do que nos outros colégios e tinham algumas matérias adicionais da parte técnica, a gente trabalhava na fazenda, nos serviços da fazenda por um período de três horas ou na parte da manhã, ou na parte da tarde e na outra parte do período a gente estudava.
P/1 – Aí você se lembra mais da educação moral e cívica é isso?
R – O professor, que era o professor dessa área, era o tenente da cidade, o Tenente da Polícia Militar, ali ele era a autoridade máxima da cidade, Polícia Militar, Tenente e ele dava aula lá de educação moral e cívica.
P/1 – Como era, o que ele falava? Você lembra dele?
R – Foi estudar comigo um japonês, isso aí foi meu primeiro contato com o outro lado do mundo, contato assim, alargamento de visão de mundo, ele veio do Japão e era uns três ou quatro anos mais velho do que a gente, ele veio direto pra lá, não sabia falar português, não sabia nada, quer dizer, ele tinha estudado lá no Japão, mas na hora do vamo ver, ele não sabia falar nada, sabia escrever mal e tal. Foi lá morar com a gente e estudar na mesma classe e aí a gente ajudava ele, vivia ali, convivia ali direto, ajudava ele e ele falava de onde ele era, da vida dele lá, e ele estudou lá os três anos e saiu de lá falando o português bem. Esse Tenente eu me lembro de uma vez ele se dirigindo a esse japonês, esse japonês ele lutava judô e ele tinha uma máquina fotográfica Yashica, na época aqui pra gente, até aqui pra São Paulo era um luxo, você não podia importar as coisas assim e ele tinha uma máquina fotográfica Yashica! E ele lutava judô né, porque ele já…a gente tinha uns quinze, dezesseis anos e ele já tinha uns dezenove e eu me lembro desse Tenente conversando com ele na sala de aula, falando assim: “ Ah, o que você está fazendo aqui? “Você é espião, espião” Assim, meio que de brincadeira, eu me lembro desse detalhe.
P/1 – Ele tentava ensinar alguma coisa pra você?
R – Então, ele era tipo boçal, até fisicamente, meio gordinho, ele não era aquele tipo másculo que às vezes a pessoa pensa que é esses militares, ele não, ele até que nem tinha esse tipo militar, ele era um tipo normal fisicamente, mas acho que, sei lá, não tinha nenhuma visão crítica, ele só assimilava aquilo que vinha de lá de cima, era medíocre, completamente medíocre, eu não me lembro exatamente o que ele ensinava. Sobre essa questão mais ideológica eu me lembro do professor de química, não sei se era química ou física, ele era um dentista lá da cidade que dava essas aulas pra gente, e eu me lembro que ele vivia falando da União Soviética, de Mao, Mao Tsé-Tung e fazendo alguns comentários sobre isso, eu me lembro.
P/1 – E nesse tempo você se sentia ou a sua família numa Ditadura?
R – Não, não porque a primeira coisa, tinha a…sobre eleições especialmente, tinha eleições, tinha eleição para Prefeito, Deputado, para Vereador, que isso era o que mais interessava a gente, Prefeito e Vereador, eleição normal com disputa porque era tudo família, não tinha nada a ver com partido, até hoje é assim o partido é só Proformas, lá nas cidades do interior, a eleição é entre famílias, entre grupos, entre pessoas e entre personalidades. Então tinha essa eleição, normal para Deputado, e tinha eleição até para Senador. Não tinha eleição nem para Governador e nem para Presidente, mas isso também era tão longe, partido só tinha dois que era ARENA e MDB, que todo mundo conhecia porque só tinha esses dois, todo mundo sabia que o MDB era da oposição e ARENA era da situação, mas todo mundo também sabia que era um jogo que os dois concordavam. O MDB oposição, Ulisses Guimarães era tudo farinha do mesmo saco, realmente isso as pessoas entendiam, então se alguém fosse falar “ninguém ia” mas se fosse falar que era Ditadura e não tinha eleição, não tinha eleição! Todo mundo participava da eleição. Aí chegou uma época que o ARENA começou a perder a eleição para Senador e aí o Geisel baixou o pacote de abril e um Senador era nomeado, mas isso era (batendo palmas) isso era detalhe, então os partidos eram Proforma, como são até hoje lá no interior, e só tinha dois, Comunista era algo que não tinha nada a ver com a nossa realidade, eu não conhecia ninguém que fosse Comunista ou que fosse parente de algum Comunista, a gente só sabia de ouvir falar, nem os padres falavam mal dos Comunistas.
P/1 – Agora nessa época, eu entendo, você estava na preocupação maior de terminar esse técnico, mas você queria seguir nessa profissão? Como que era isso?
R – Sim, então, o técnico quando eu terminei eu já tinha dezoito anos, em 1974, e é claro que aí era ótimo pra mim, porque eu ia continuar na área de agricultura que era o meu mundo, mas aí já em um patamar superior, como técnico eu certamente…claro que não lá com a minha família, porque lá eu nunca fui considerado técnico agrícola coisa nenhuma, imagina se eu chegasse lá dando um palpite técnico…mas é claro que eles sabiam muito mais do que eu também, e mesmo que não soubessem, ou seja, santo de casa não faz milagre, isso é verdade, ali eu não tinha espaço e nem tinha espaço porque ali era muito pequena a área deles, não era o caso, eu tinha que trabalhar como empregado em algum lugar, mas não tinha emprego, esse tipo de emprego que eu queria de técnico agrícola não tinha, tinha mas era muito pouco e assim, normalmente era um alguém conhecido que tinha algum conhecido que indicava e a minha família não tinha ninguém pra indicar, não tinha relações com essas pessoas, na própria região tinha pouco espaço pra isso, se eu quisesse eu teria que sair de lá também, se eu fosse para uma cidade maior aí já começava a ter mais oportunidade, esse era o meu projeto, só que quando eu saía nas férias do colégio e ia pra casa aí eu ia pra roça também. E no ginásio quando eu morava lá meio período eu ia pra roça também, com treze, quatorze anos.
P/2 – Havia um descompasso entre quem você já tinha se tornado e o universo da sua família? Porque você foi conhecendo outras cidades, conheceu o japonês, tinha ensino médio já, o colégio feito, então voltar a morar com os pais ou trabalhar em uma cidade muito pequena ainda te interessava? Independente do que eles achavam.
R – Então, o problema que aí é o seguinte, as terras do meu pai no caso eram pequenas, ou seja, só dava para aquele tipo de agricultura que ele praticava, só dava pra sustentar uma família mal e porcamente, se eu quisesse ficar lá, porque aí eu tinha dezoito anos, a praxe era daí a pouco tempo eu constituir uma família minha, se eu quisesse ficar lá aí aquilo que dava mal para uma família ia ter que ser dividido pra duas e depois vinham meus irmãos, era pouca terra, então isso daí já estava descartado, eu já tinha que sair de lá, mesmo que eu quisesse continuar como agricultor, eu ia ter que retomar aquilo que a minha família tinha sido no começo, ia ter que arrendar alguma terra, fazer esse tipo de coisa, mas então como eu já tinha o nível médio, lá naquela realidade pouca gente tinha, eu já tinha um diferencial razoável, eu já não aceitava mais aquele tipo de vida do meu pai, mas eu logo já percebi também que se eu quisesse trabalhar como técnico agrícola também seria muito difícil, era meio que na base da sorte porque tinham poucos empregos nessa área, ainda era uma coisa que estava começando, tinha mais pra agrônomo, que era o nível superior, o técnico agrícola era ainda uma coisa muito nova, desconhecida. Então logo eu já percebi que eu não devia me prender a esse negócio de querer trabalhar na área, qualquer que fosse o emprego eu aceitava, desde que, não, não é que eu estava me sentindo infeliz lá com a minha família ou com aquele tipo de serviço, não tinha nada disso, era uma análise em cima da realidade e eu sabia que alí não tinha espaço, ninguém da minha família veio falar isso pra mim, era algo que todo mundo entendia.
P/1 - Você ficou esperando uma oportunidade com estudo que você tinha, né?
R– É, eu tinha o nível médio e aí você já pode exercer outras profissões, como ser bancário por exemplo.
P/1 – Isso apareceu na época?
R – Um vizinho que conhecia alguém do Banco Itaú lá da cidade, já tinha todos esses bancos lá, uma agência só de cada um, Bradesco e muitos outros. Apareceu uma vaga lá na agência de contínuo, sabe o que é contínuo?
P/2 – O office boy, não?
R – Um office boy maior de idade, porque o office boy era sempre menor de idade, o contínuo faz a mesma coisa, só que ele é maior de idade e apareceu essa vaga lá, aí ele falou: " Vai lá, começar lá". Aí eu falei: “Ah, tudo bem, eu vou”. Fui lá, aí eu tinha que fazer um teste pra ser admitido, o teste era em São Paulo, o departamento do Banco Itaú era tudo em São Paulo, fazia esse tipo de teste, coisa simples. “Bom, tudo bem. Então vamos pra São Paulo”, você sabe que eu nunca tinha…o máximo que eu tinha passado de cidade era São José do Rio Preto que é uma cidade grande, não só eu, como ninguém, peraí, acho que apenas o meu avô e a minha vó, ou só meu avô…que tinham vindo em São Paulo uma vez, meu pai, minha mãe, ah, a minha mãe já tinha vindo em São Paulo quando ela era solteira uma vez também, o resto ninguém nunca tinha vindo em São Paulo. Aí eu tinha que vir aqui fazer esse teste, “ah tudo bem, vamos embora!”. Tinha uma tia minha que já morava em Santo André, que já tinha sido vítima daquele êxodo rural, que a gente conseguiu escapar porque conseguimos comprar a terra, se não tivesse conseguido, teria que ter vindo também pra cá, a gente que eu falo é minha família. E tinha essa tia da minha mãe e aí eu vim sozinho de trem, já tinha o trem na época, doze horas de viagem, trem da Fepasa, e desci ali na estação da Luz, fui pra casa da minha tia e de lá vim fazer esse teste. O que acontece é que eu conheci um colega da cidade da minha tia, próxima lá da nossa região também, conheci alí na casa da minha tia um colega que trabalhava em um Banco aqui da minha idade, ele já trabalhava aqui em São Paulo e morava com a tia dele, porque a família dele também tinha ficado no interior e ele morava com a tia dele e trabalhava em um Banco aqui, "Banorte" Banco Nacional do Norte, um Banco de Recife, a família dona do Banco era de Recife, Banco privado, aí ele falou: "Olha, tem uma vaga lá, de escriturário no Banco que eu trabalho, no Banorte, não quer fazer o teste?" Bom, aí eu fiz também, porque eu já ia fazer o teste do Itaú, não custava nada, não estava fazendo nada ali, fiz o teste também, interessante que eu só me lembro de onde eu fiz o teste de um local o outro local eu não me lembro. Aí fiz o teste, a gente sentava umas três, quatro hora em uma sala sozinho lá, era um teste básico, aquele teste psicológico de inteligência eu acho, só isso, não era de conhecimentos nada, só pra saber se você não era doido (risos) uma coisa assim, se era normal, fiz os dois testes e voltei pra minha casa lá para o interior.
P/2 – Então antes de continuar conta pra mim, pra nós, como foi chegar em São Paulo, pela estação da Luz na primeira vez da sua vida que você viu essa cidade?
R – Tem uma história boa (risos) Cheguei era…o trem acho que saia de lá às oito hora da manhã e chegou aqui às oito hora da noite, porque eram doze horas, aí já haviam uns colegas meus que estudaram no colégio interno, portanto eram amigos recentes, eles já estavam aqui, isso era dia 01 de abril, cheguei aqui dia 02 de abril, eles já estavam aqui em São Paulo trabalhando e moravam em uma pensão na Liberdade, eu acho que tinha dois ou três amigos meus que fazia pouco tempo que a gente tinha morado junto no colégio interno, eram amigos próximos. Eu tinha o endereço deles, rua Fagundes na Liberdade, só não lembro do número, ali tinham muitas pensões, então eu tinha o endereço deles, só que naquela época não havia telefone, ninguém tinha telefone, se você ia na casa de alguém você chegava lá de surpresa porque não tinha como avisar, certo? Então eu tinha o endereço deles e a minha idéia seria descer do trem e ir lá pra casa… pra casa deles, não pra pensão, e eu ia dormir como? Ia dormir na pensão, mas como ia dormir na pensão, ora, lá no interior naquela época, pensão era sinônimo de hotel ou pousada, uma pousada ou um hotel hoje você pode chegar assim: “Olá, tem uma vaga aí pra mim?” Se tiver, você fica alí, então lá no interior pensão naquelas cidadezinhas pequenas aparecia escrito assim “ Pensão Nossa Senhora de Fátima”, era o hotel, o viajante chegava lá sem reserva nenhuma e se tivesse vaga ele podia ficar, eles tinham me falado que moravam numa pensão e eu falei: “Ótimo!” Eu tinha trazido dinheiro para o mínimo alí, tá ótimo, “chego lá, passo a noite lá e depois vou para Santo André”, eu sabia que era meio longe, então no outro dia cedo vou para Santo André. Aí cheguei lá na pensão deles, bati na porta e cadê eles, eles trabalhavam a noite, eles não estavam lá, alguém que me atendeu lá, sabe esse povo que mora em pensão, eles sempre foram essas pessoas meio desligadas, é uma vida tão difícil dessas pessoas que eles ficam meio transtornados e às vezes não agem naturalmente né? (risos) em determinadas situações e a pessoa que me atendeu que eu não lembro exatamente como era, ela falou: “ Não, eles não estão aqui, eles estão trabalhando”, aí eu acho que resmunguei que eu queria ficar lá, alguma coisa, acho que o cara pensou “Esse cara é meio doido, quer ficar aqui assim desse jeito” Aí ele falou: “A dona da pensão mora ali assim, assim…” Era na mesma rua, a uns cem metros pra cima, ai eu falei: “Tá bom, eu vou lá”, e fui lá, e já devia ser uma nove horas, aliás, antes, quando eu desci lá do trem, que eu saí da estação da Luz para o lado do Jardim da Luz, eu olhei assim para lado da Avenida Tiradentes e eu vi um Trólebus, não tinha TV, ou seja eu não sabia que poderia existir um ônibus daquele tipo com aquele negócio ligado ao fio, aquilo além de eu nunca ter visto, eu não imaginava que podia existir e eu olhei e vi assim passando esse trólebus, eu nem sabia o nome. Bom, mas aí retomando a história da pensão, eu fui lá nesse endereço que o cara passou, que era o endereço da dona da pensão, cheguei lá e bati ou apertei a campainha, eu não me lembro, não tinha ninguém, ninguém atendia, uma casa com o corredor “assim” e ninguém, não via ninguém e aí eu insisti, insisti, até que veio uma mocinha, eu acho, eu não me lembro exatamente o que eu falei, mas eu acho que eu falei alguma coisa no sentido de que eu queria ficar na pensão, queria passar a noite ou alguma coisa assim e essa mocinha saiu feito doida lá para o fundo e aí eu acho que eu fiquei bem uns…não me lembro quanto tempo eu fiquei e ninguém aparecia, fiquei muito tempo esperando e ninguém aparecia de volta, aí eu comecei a ficar incomodado, aí eu acho que eu falei: “Quer saber de uma coisa, eu vou lá pra casa da minha tia agora mesmo” e isso era mais de nove horas da noite, depois eu fiquei sabendo que alí naquele lugar era pensão das meninas, só tinha elas, não tinha dona de pensão nenhuma, a dona eu sei lá onde morava, ali era a pensão feminina e lá embaixo era a pensão masculina, entendeu? E certamente a mocinha entendeu como se eu fosse um alguém querendo sei lá, com más intenções, uma coisa assim, e eu desisti, conversei com alguém na rua e perguntei como ia pra Santo André, eu não sabia direito, porque eu estava contando com a instrução dos meu amigos que depois no outro dia iam me ensinar como fazia pra ir para Santo André, aí eu conversei com uma pessoa na rua, eu não me lembro direito e ele falou: “Oh, você vai lá no Parque Dom Pedro e pega o ônibus assim e tal”. Eu sei que não sei como eu cheguei lá no Parque Dom Pedro e peguei o último ônibus da viação São Camilo, que era a viação que faz essa linha, aquela linha urbana né, de Parque Dom Pedro até Santo André, mais de uma hora de duração a viagem, passava em São Caetano, peguei esse ônibus, acho que devia ser o último da linha porque devia já ser quase onze horas da noite, por aí, aí desci lá em Santo André, eu tinha o endereço da minha tia, da casa, cheguei lá acho que já devia ser uma meia noite por aí, não sei e aí pronto.
P/2 – Você tava falando e eu te interrompi, que você tinha feito os exames admissionais pra ver se conseguia vaga nos bancos e que você só lembrava de uma das duas provas que você fez.
R - Eu me lembro do local que eu fiz, na avenida São Luís, eu acho que já era aquele esquema terceirizado, sei lá, devia ser algum escritório especializado nesse tipo de coisa, na avenida São Luís tem algumas galerias, têm até hoje lá, quem tá na Praça da República, do lado direito tem umas galerias onde tinha um hotel, não sei se continua tendo ali próximo, todo quarteirão tem várias galerias era um local agradável de escritórios, mas só que eu não me lembro de qual Banco era, se era itaú ou Banorte.
P/1 – E o que você achou dos prédios, você chegou bem no centro de São Paulo, como foi pra você?
R – Só que eu cheguei a noite e eu tava assim tão ligado que nesse dia que eu não tive nem tempo nem preocupação para olhar prédio, porque eu tava muito, imagina, depois quando eu fui, eu passei por essa saga das pensões, depois tive que ir até o Parque Dom Pedro pegar ônibus chegar em Santo André e encontrar um outro endereço e na época não tinha Google, não tinha Google maps, nem mapa tinha, não tinha nada, não tinha telefone em lugar nenhum, quer dizer, nos locais das minhas relações, meus parentes ninguém tinha telefone, telefone naquela época pouquíssima gente tinha, eu tava 100% concentrado nessas preocupações, nesse dia aí eu não vi nada não, a única coisa que eu vi foi o trólebus que foi quando eu saí da estação, primeira visão, só isso que eu lembro.
P/1 – Mas no dia seguinte você teve que voltar lá, é isso?
R – Aí no dia seguinte, aqui em São Paulo, porque ali era Santo André e onde eu ficava não tinha prédio alto, lá em Santo André, não dava pra ver nem de onde era a casa da minha tia, mas aí eu não me lembro qual dia que eu vim aqui em São Paulo fazer o teste, não sei se foi no dia seguinte, dois ou três dias depois, isso eu não me lembro.
P/1 – Mas aí você fez a prova e ficou esperando o resultado depois é isso?
R – Sim, fiz as duas provas e voltei lá pro interior.
P/1 – Para Fernandópolis?
R – Pra esperar o resultado, porque o resultado demorava, não me lembro exatamente quantos dias, mas demorava vários dias o resultado.
P/1 - Veio um telegrama ?
R – Isso eu não me lembro, mas acho que foi, como eu fui comunicado também não me lembro esse detalhe, lá onde a gente morava não chegava correspondência, você tinha que ir buscar lá no correio, no que chamava de posta restante, porque não tinha caixa postal também, tinha a posta restante, chegava no correio, no balcão do correio e falava “quero ver se tem carta pra mim da minha familia”, ai a funcionária do correio pegava a posta restante, ou seja, a posta restante era aquilo que não tinha encontrado o endereço, porque eles já entregavam na cidade, onde tinha endereço, era aquele pacotão de cartas, aquela coisa “ah tá aqui" ou “não tem nada”, não me lembro desse detalhe, sei que eu fiquei sabendo que passei nos dois, “e agora? Passei nos dois”, podia escolher, se eu escolhesse o Itaú, eu continuava lá com a minha família e provavelmente ia trabalhar de bicicleta, coisa que eram cinco quilômetros era fácil, aí eu já tinha a preocupação de continuar os estudos, quer dizer, eu já tinha alguma pretensão de continuar e fazer uma faculdade, e lá não tinha nem isso, aí eu também pensei o seguinte aquela idéia de ser continuo lá não tava me agradando, porque o contínuo é um funcionário do banco, o contínuo é maior de idade, diferente do office boy, o office boy tá ali fazendo aquela atividade menor, a mais subalterna, mas é uma coisa provisória, quando ele for maior de idade ele já vai, agora o contínuo é um sujeito maior de idade que não teve capacidade de fazer nada melhor do que aquilo, no geral, ele fica a vida inteira ali, até porque normalmente, a função dele não se comunica com as outras imediatamente superiores, escriturário, por exemplo. O contínuo é visto pelos outros funcionários como um sujeito menos capaz, não que eu já tinha essa consciência que eu to falando agora, mas tinha um desconfiômetro desse tipo de coisa, que não tá me agradando sem contar que o salário era muito pequeno, o salário de um escriturário já era uma porcaria, imagina do contínuo, tudo bem que ficar na casa dos meus pais não ia ter que pagar aluguel nem nada, mas mesmo assim. E outra coisa, lá não tinha faculdade nenhuma, não tinha onde continuar os estudos. Outra coisa também foi que quando eu vim em São Paulo, eu fiquei aqueles dias, não me lembro exatamente de quanto fiquei, não sei se foi uma semana aqui pra fazer os testes, poxa, aquele mundo me deixou fascinado, a cidade grande, essa coisa aquela zoada, aquele monte de gente, aquilo pra mim era uma beleza, não me assustei nem um pouco com isso, pra você ver que eu era criado na zona rural e tudo, mas eu não me assustei nenhum pouco com esse mundo da cidade grande, eu achei fascinante, gente de todo tipo, de toda cor, aquelas pessoas bem diferentes do jeito de ser e de se comportar, um monte de japonês, se bem que lá já tinha japonês, até os doze anos eu nunca tinha visto nenhum descendente de japonês naquela região ali onde eu morei até os doze anos, mas lá em Fernandópolis já tinha muito, estudava comigo já tinha muitos amigos, mas aqui tinha mais ainda, e de outras nacionalidades, aquela possibilidade infinita, eu podia escolher o que quisesse estudar, escolher era o que eu pensava, que mais…
P/1 – As roupas, os costumes eram diferentes também do que você tinha?
R – Assim, a minha tia, essa minha tia, que era tia da minha mãe na verdade, que eu tava lá e fiquei esses dias, os filhos dela também eram um pouco mais velhos que eu…
P/1 – Fora que tinha uma questão com relação a temperatura de São Paulo, você sentiu essa diferença como que foi?
R – É então, onde eu nasci e onde a gente sempre tinha vivido antes era muito quente, o ano inteiro quente, lá faz frio, um frio tipo 15 graus que é considerado muito frio, três ou quatro dias por ano no máximo, depois acaba, ou seja, é calor o tempo todo, de janeiro a janeiro, calor 30 graus, 30 graus lá é temperatura mesma, e o ano todo, junho, julho, agosto e aí no inverno tem às vezes, dois ou três dias de frio e ninguém tem agasalho forte, e todo mundo tem mangas, usa muito pouco e principalmente na época desses três quatro dias de frio ninguém sai de casa, eu quando vim de lá, eu trouxe um agasalho que eu tinha, era blusinha dessas, sei lá, de malha, eu acho que é malha, fininha, uma das primeiras coisas que eu comprei aqui foi o que chamava na época de “japona”, eu acho que hoje eu nao sei se nao tem ou não usa mais esse nome, mas era um agasalho que tava na moda na época, todo mundo usava aqui, esse tipo de tecido sintético, meio parecido com plástico, grandona assim, com aquele recheio, assim pelo menos acho que ela esquentava mais psicologicamente, pelo tamanho dela, dava a impressão que era uma coisa potente, mas realmente era muito mais potente do que aquela q eu tinha, a primeira coisa que eu fiz foi comprar uma dela e minha mãe disse que a primeira vez que eu fui lá, uns seis meses depois que eu fui pra passear lá e eu cheguei com essa japona, ela ficou admirada, um agasalho potente pro frio, lá no interior como ninguém conhecia aquilo, porque praticamente ninguém tinha vindo, e aqueles que vinham falavam que aqui fazia muito frio, que era um exagero de frio, que era muito frio, então a gente tinha aquela "pô, em São Paulo faz muito frio”, frio e não sei o que, então o frio a gente associava a São Paulo, todo mundo sabia disso, só que quando eu vim aqui pra ficar aqui, a gente não tinha essa preocupação, em geral, quando você vai pra um lugar mesmo que seja a passeio, um lugar que você sabe que é frio, se você não tem, você dá um jeito de arrumar ou sei lá pra não ser pego de surpresa, mas eu, até porque não tinha discussão de viajar, isso é mais pra pessoas que estão acostumadas a viajar, a gente não tinha discussão de viajar, a gente faz viagens pequenas ali na região, não tinha discussão e portanto não tinha essa esperteza de se prevenir pro frio e tal, cheguei aqui com meu agasalhinho mixuruca.
P/2 – Chovia muito também?
R – Ah, então, se falava na neblina de São Paulo, era comum, mas quando eu vim pra cá, eu acho que tinha mais do que agora, era pouca coisa, não era muito.
P/1 – Agora você recebeu a notícia dos bancos, você que escolheu e por que, onde você veio morar?
R - Então, eu tava te falando da história de ser contínuo no banco Itaú, que eu não tava gostando, a coisa de parar de estudar, e a terceira coisa, foi que já conhecia São Paulo e fiquei fascinado, por esse novo mundo. Uma outra coisa que eu acho também, era a história de ficar longe da família, eu não acho que foi a coisa assim consciente, mas eu acho que eu já achei interessante essa ideia de ficar longe da família, longe da mãe principalmente, sabe aquele controle, aquela coisa quando você fica morando com os pais na família, mesmo que você tenha quarenta anos de idade, tem certa coisas que você só conhece, só adquire se você sair de longe, de perto, do dia a dia dos pais, ou de quem te controla ali desde criança.Então isso também contou, que dizer, eu já tinha ficado longe da família no colégio interno, então eu só ficava na família nas férias, e eu já ficava meio incomodado, as insistências da minha mãe principalmente sobre o controle. Aí, considerando tudo isso, eu acho que não titubiei nem trinta segundos, peguei os dois resultados e falei “vou pra São Paulo”.
P/1 – E aí, tinha o Itaú e o Banorte, é isso?
R – Não, em São Paulo era Banorte, se eu quisesse ficar lá era o Itaú, em São Paulo era Banorte na Rua Helvétia , próximo de onde está a cracolândia hoje, eu passava na Praça Princesa Isabel todo dia, mas agora tá ocupada.
P/1 – E você foi morar onde, em São Paulo ou em Santo André com sua tia?
R – Sim, então eu fui pra casa dessa minha tia, mas provisoriamente e vinha todo dia de trem, tinha que um ônibus da casa dela e ia até a estação de trem de Santo André, depois pegava o trem, esse trem suburbano, era terrível na hora, atrasa, parava no meio do caminho, ficava superlotado, e demorava mais de uma hora, aí eu fiz isso uns dez dias ou duas semanas, por aí.
P/2 – Que ano que era?
R - Abril de 75. Eu vim fazer o teste, devia ser fevereiro ou março, quando vim definitivo, vim no dia 2 de abril e comecei a trabalhar dia 7 de abril de 1975, no Banorte na rua Helvétia, não me lembro o número, mas era o primeiro quarteirão próximo da praça Princesa Isabel, um dos maiores clientes dessa agência do Banorte era a Folha de São Paulo, que fica na Barão de Limeira, ali do lado, fiquei lá na casa da minha tia duas semanas e esse mesmo amigo que a familia dele tambem morava no interior
que trabalhava no Banorte e que me indicou pra fazer teste, morava com a tia dele que era parente dessa minha tia também, ali próximo, e ele também estava querendo sair de lá, porque ele morava de favor também junto da tia, ai ele disse que tinha uns colegas dele que já trabalhava no Banorte aqui em São Paulo que tinha uma república que tinha duas vagas, que dois tinham saído, se eu nao queria ir com ele, era tudo que eu queria. Viemos, eu e ele já tinha três, ficamos em cinco lá no Brás na rua do Gasômetro, apartamento de sessenta metros quadrados e a gente morava em cinco lá, então fiquei ali e eu ia andando, porque era ali, atravessava o Parque Dom Pedro, acho que ia pela rua Senador Queiroz ali, ou atravessava o Parque Dom Pedro, não o Parque Dom Pedro foi depois quando eu mudei para 7 de abril, nesse início que era a rua Helvétia, eu ia pela Senador de Queiroz, passava em frente ao Mercado Municipal, a zona Cerealistas, Avenida Ipiranga, Avenida Rio Branco, Praça Princesa Isabel eu assisti o transplante de todas aquelas árvores que hoje são enormes, passava ali no meio em diagonal, saia na rua Helvétia, era perto assim, ia andando, no dia 7 de abril.
P/1 – Como que era viver no centro, antes de perguntar sobre o banco, como era viver no centro nessa época?
R – No centro, o metrô ainda não tinha sido inaugurado, metrô da linha norte e sul, eu vi no dia em que eles demoliram o edifício Mendes Caldeira, lá na Sé, onde é a estação do metrô, foi implodido, lá do prédio onde eu tava, dava pra ver esse edifício, mas eu não vi caindo, eu fiquei sabendo que ele foi implodido, eu não vi a implosão, não tinha o metrô, tinha o ônibus, rua do Gasômetro, ali atualmente tem muita loja de madeira, um prédio de 8 andares, tudo quitinete, quarto que a gente morava, eram duas quitinetes que a pessoa que comprou, comprou duas quitinetes e juntou. Naquele tempo, a exemplo de agora, que agora voltou a ser permitido a junção de apartamento pequenos, teve uma época naquele tempo, no início da década de 70, um monte de construção de quitinetes, que é no máximo 30 metros quadrados, menos até, aqueles apartamentos minúsculos. Então era esse prédio, morei uns quatro anos ali na república ou mais.
(02:22:50) P/1 – Vocês gostavam de sair, ia pra algum bar? O que vocês faziam para se divertir naquela época ali?
R - A gente ia muito no cinema. O cinema era barato e tinha muito ali. Na Avenida Paulista a gente não ia nunca, nem me lembro se eu cheguei a ir uma vez naquele tempo, porque depois eu fui trabalhar lá. A gente ia no centro, na avenida São João, Barão de Itapetininga, avenida São Luís, rua 7 de abril, ali tinha muito cinemas, do Viaduto do Chá em direção ao Teatro Municipal, chamava Centro Novo, ou seja, era considerado uma região mais ou menos nova, chamava Centro Novo, que o centro velho era aquele da praça da Sé, e a gente ia muito ali e os cinemas diferentes de agora, que agora os cinema tá muito caro, se fosse naquela época, com o preço de agora, a gente não ia no cinema nunca, a gente nao tinha condiçoes de ir, o preço era barato relativamente, a gente ia no cinema com alguma frequência e logo eu fui estudar, fazer cursinho, então não tinha muito tempo também não, mais final de semana.
P/1 – Você lembra de algum filme que você assistiu nessa época que você gostou ou te marcou?
R – Acho que não, eu não me lembro, acho que um filme que me marcou um pouco, acho que assisti no interior ainda quando eu estava no colégio, chamava Quelé do Pajeú, com Jece Valadão, com a temática do nordeste.
P/1 – Olha, voltando pra São Paulo, então você morava lá no centro, você andava muito pelo centro, você gostava de andar? Como é que era isso?
R – Andava muito. Então, a gente não tinha muito tempo, era uma vida entre os colegas, todo mundo ficava ali, eram cinco e no final de semana, todo mundo era do interior, portanto ninguém tinha família ali, não tinha aonde ir, e o dinheiro não dava, eu era escriturário do banco, só um era padeiro, todos os outros eram bancários, mas o salário era pequeno, não dava pra nada e eu ainda comecei a fazer cursinho e teve uma época nesse começo que eu arrumei dois empregos e comecei a trabalhar a noite também, fique dois ou três meses fazendo isso, nao me lembro exatamente quando foi, foi quando eu não passei a fazer o cursinho, porque eu acho que não foi logo de cara, foi no primeiro ano que eu comecei a fazer o cursinho, no ano seguinte, em 1976. Então, nesse primeiro ano, 1975, eu trabalhava no banco e só. Aí, aqueles meus amigos da pensão trabalhavam num local à noite que fazia controle de comercial de televisão, as pessoas ficavam assistindo à TV até fechar, que fechava as 02 da manhã, cada um fechava num horário, chegava uma hora que as TVs desligavam, tinham três ou quatro canais cada, cada funcionário ficava assistindo a TV e quando chegava os intervalos, ele aciona o gravador e ficava anotando os comerciais e a duração, era uma casa lá na Aclimação, acho que devia ser algum serviço terceirizado de alguma agência de publicidade que contratava o comercial na televisão e depois tinha que controlar. E o controle não era como agora digitada, e eu então fui trabalhar nesse lugar, eu trabalhava 8 horas no banco, das 8 e meia ou 9 horas e ia até às 18 horas, saía de lá e ia para esse serviço, começava não sei se era às 19 horas, não sei que horas, e ia até fechar a TV, ou seja, ia até 2 da manhã ou mais, e de lá eu saia e vinha, atravessava o Parque, já não tinha mais ônibus, então na maioria das vezes eu vinha a pé, da Aclimação até o Brás, umas 3 horas da manhã, e aí dormia 3 horas por noite, 4, nem isso.
P/2 – E a rotina do banco, como era? O que faz um escriturário no banco?
R – Eu não trabalhava numa agência, eu trabalhava numa sessão da matriz, na verdade não era uma matriz, porque a matriz era em Recife, mas aqui em São Paulo tinha uma espécie de filial da matriz, uma área centralizadora que ficava na rua 15 de novembro. e na época tinha o FGTS, Fundo de Garantia, que tinha sido implantado em 196, isso era em 75, portanto fazia oito anos e as empresas recolhiam esse fundo de garantia, que tem até hoje em bancos, que hoje é tudo na Caixa Federal. Naquela época, cada empresa recolhia no banco em que ele era cliente e eu trabalhava na sessão que controlava isso, a sessão ficava junto a essa agência da rua Helvétia só por conveniência de prédio, porque tinha lá um espaço a mais, mas era uma sessão da matriz e eu ficava fazendo isso o dia inteiro com as fichinhas lançando numa máquina lá, uma máquina de escrituração. Cada funcionário das empresas tinha uma conta onde era lançado mensalmente o valor do fundo de garantia, ai depois ele era demitido, Ia receber o dinheiro lá e era a gente que calculava quanto é que ele tinha que receber, via na fichinha e calculava e tal, tinha lá um papel que tinha que preencher, ia no caixa e recebia, o dia inteiro fazendo isso.
P/1 – E você ficou quantos anos nessa sessão?
R – Nesse banco, fiquei nessa sessão dois anos e pouco, menos de três anos, só essa questão de tempo que eu trabalhei em dois empregos, a noite, teve um feriado que eu fui lá pro interior na casa dos meus pais visitar, tava trabalhando nesses dois empregos, dormindo três horas por noite, eu tinha dezenove anos já, aí contei a história o que eu tava fazendo e acho que foi a única vez que meu pai me deu um conselho, ele falou assim diretamente, que eu não devia fazer aquilo, ou seja, que era algo desumano “mas onde já se viu? Se quiser trabalhar em dez empregos, você trabalha, mas você tem que dormir o suficiente”, aí eu voltei pra cá. Quando eu voltei pra cá, eu tinha sido demitido porque eu faltei no dia do feriado pra ir lá, então eu nem tive que ir, porque pedir a conta evidentemente, eu ia seguir o conselho do meu pai, realmente não tinha condição, mas nem precisou e eu nem tinha sido registrado, era ainda informal, dois ou três meses só foi, porque eu faltei sem avisar, eu achava que não precisava avisar também, eu tinha essa inocência, no banco eu cheguei a faltar, não falava nada pro chefe lá, no outro dia, chegava “ah você não veio ontem”, “ah, não vim” sei lá, dava uma desculpa ou avisava, e eu fiz isso nesse lugar, mas aí nesse lugar eles me demitiram, no Banorte eles não me demitiram não sei por que, mas nesse lugar eles me demitiram e foi a primeira vez que eu fiz isso e me demitiram e era tudo que eu queria.
P/2 – E daqui a pouco você pode falar do próximo emprego, mas a sua família, o que eles achavam de você morar em São Paulo e já ser independente?
R – Eles achavam muito bom. Minha mãe especialmente não gostava, por causa da distância, e eu ia lá só umas duas vezes por ano, é longe 560 km, no trem era doze horas, pra ir, tinha que ser feriado prolongado e, mesmo assim, doze horas pra ir e doze horas pra voltar, além da passagem que contava, então a minha mãe não gostava desse aspecto, mas do aspecto da independência, de eu estar me virando por conta própria, eles não tinham mais nenhuma obrigação financeira comigo, nenhuma, então eles achavam isso muito bom, que era isso que eu tinha que fazer, e também porque eles tinham clarezas de que ali eu tinha perspectivas novas, diferentes, amplas, que lá eu não tinha.
P/1 – Agora, você foi demitido então e você já tava fazendo cursinho nessa época?
R - Não, nessa época não, eu fui demitido só nesse emprego que eu nem era registrado, que aquele no banco eu continuei, eu fiquei só com aquele, por aquele ano 75 e aí, no ano seguinte, eu acho que eu comecei a fazer um cursinho à noite, Depois prestei vestibular lá na FATEC, e nesse banco eu trabalhei até acho que agosto de 77.
P/1 – Você passou na FATEC?
R – É, passei na FATEC em 1976, a FATEC tinha 3 turmas parece, não era semestral, era quadrimestral, parece que era assim, eu não me lembro exatamente, eu acho que eu passei na última turma de 1976 ou na segunda, eu não sei, FATEC, movimento de terra e pavimentação, tecnólogo que chamava né, eles diziam que era um curso superior, quer dizer, sei lá, tinha que fazer vestibular e tal, a FATEC era estadual, você não pagava nada e se dizia que todo mundo que se formava lá, arrumava emprego direto, que era bem conceituada, o ensino profissional. Na verdade, eu prestei vestibular para agronomia na USP em Piracicaba, mas não entrei, não passei, eu ainda tava ligado nesse negócio, agronomia, técnico agrícola, tinha ainda essa ilusão, mas ao mesmo tempo fiz na FATEC, eu gostava muito da área de exatas, cálculos, matemática, não sei o que, física, engenharia, área da engenharia, contrução de estradas principalmente, asfalto, terraplenagem, era isso, perto lá de casa, dava pra ir andando, avenida Tiradentes, funcionava a Poli, depois veio a FATEC no prédio da Poli, quando a Poli foi pra cidade universitária, eu fui lá e prestei.
P/1 – E como é que foi esse curso, ele parece pra gente hoje bastante específico.
R – É, o curso então, tinha bastante gente que ia lá querendo ser engenheiro. É aquela história lá, só que não era engenheiro, era tecnólogo, mas era coisa nova também, no mercado era novo esse negócio de tecnólogo. Na verdade, o tecnólogo era o auxiliar do engenheiro na obra, um subalterno, aquela história da hierarquia, do prestígio, as pessoas sempre levam isso muito em conta, aí muita gente chegava lá, que não era engenheiro, só ia descobrir quando se formava e ia trabalhar. Eu não, eu já sabia disso, já tinha noção, só que era o que tinha pra mim, até porque se eu quisesse fazer engenharia, não tinha condição, porque engenharia era só de dia, por mais que eu passasse no vestibular, não tinha condição porque tinha que trabalhar, eu sabia que era o possível pra mim, fui fazer tranquilo…
P/1 - Mas você não exerceu a profissão nessa área?
R – Não, eu não exerci porque quando eu estava no primeiro ano já, eu prestei concurso num banco federal e passei, eu comecei a trabalhar nesse outro banco era o final de 1977, acho que fazia um ano que estava na FATEC.
(02:38:17) P/1 – Qual Banco que foi?
R - Banco do Nordeste, era um banco federal lá da região nordeste, regional que chama, né? E eles abriram uma agência aqui em São Paulo, não tinha, existe até hoje, tem banco da Amazônia lá pra região da Amazônia, tem banco do nordeste pro nordeste, banco de desenvolvimento né, e é equivalente ao banco do Brasil, só que era do nordeste, o salário era umas três vezes maior do que eu ganhava no Banorte, o salário era bom.
P/2 – E o cargo?
R – O cargo era escriturário, mas aí era uma agência, não era aquela sessão, já era mais diversificado, mas o cargo era o mesmo, escriturário de Banco.
P/1 – E a agência ficava onde?
R – Avenida Paulista, 460. Tem um escritório deles lá até hoje, não tem mais a agência, mas tem o escritório, trabalhei lá o tempo todo depois, até me aposentar, perto da Brigadeiro.
P/1 – Agora, você explica pra quem não entende muito, porque um banco do nordeste tem uma agência em São Paulo.?
R – Por que o Banco do Brasil tem uma agência em Nova Iorque? Pelos mesmos motivos, porque os bancos tem operações, as vezes é interessante o banco ter uma agência fora do seu local, da sua área de atuação, tem transferência de valores, enfim, tem uma série de conveniências que naquela época era maior ainda, porque não tinha internet, você mandar dinheiro daqui pra lá era complicado, não era fácil, hoje em dia você faz um crédito, naquela época não era assim, se você quisesse mandar um dinheiro pra outro lugar, você tinha que ir numa agência bancária e fazer uma ordem de pagamento e pagar uma taxa inclusive, completamente diferente de hoje, e eles abriram essa agência aqui, só por causa disso, aí podia fazer negócios aqui também e aqui era a maior praça financeira do Brasil então… da mesma forma como todo grande Banco tem uma agência em Nova Iorque e outra remondes, o Banco do Brasil, por exemplo, todos eles têm, por isso.
P/2 – Aí eu entendo que sua carreira vai ser como bancário, daqui em diante a história da sua vida é como bancário.
R – Pois é, acontece que quando eu passei a trabalhar nesse banco e continuei estudando na FATEC, ainda faltava acho que mais uns dois anos pra terminar, porque lá o curso era de quatro anos. Eu terminei o curso e cheguei a fazer até uns estágio nas área, só que além de não ter tanto emprego assim, até porque já era anos 80, aí já tinha batido a crise do petróleo, já tinha desemprego, inflação alta, a coisa já tava feia aqui, Delfim Neto já estava desmoralizado, que era o ministro da fazenda, a ditadura já teve a anistia em 1979, ou seja o pessoal já tava votando, então, tava uma crise brava, crise econômica, política, enfim, pra trabalhar na área, já não tinha tanto emprego assim. Pra você ver, quando a crise bate, o primeiro setor afetado foi o de construção e eu ia trabalhar de construção, não tinha tanto emprego assim e o que tinha, o salário era menos da metade do que eu já ganhava, sem contar os benefícios, porque, agora não, mas na época, Banco do Brasil, Banco do Nordeste tinham muitos benefícios além do salário, todo mundo queria aquele tipo de emprego.
P/2 – Vou te perguntar um pouco sobre essas crises todas, você falou sobre crise econômica, política, desemprego. Naquele momento isso estava associado ao Governo? Como você viveu esse momento? Como isso impactava a sua vida e o seu dia a dia? Fora a sua decisão de não mudar de emprego.
R - Então, em 1978, 1979, não existia Lula ainda, não existia PT, nem CUT, nem greve de ninguém, greve era algo impensável, certo? Eu acho que foi em 1978, que foi a primeira lá em São Bernardo, muito localizada ainda, aí veio 1979/1980, aí aumentou. Mas entre os bancários, eles ensaiaram a greve em 1979 e não virou nada, só foi ter greve em 1975 entre os bancários, os sindicatos servia pra fazer, no nosso caso os bancários, até íamos almoçar lá todo dia, eles tinham refeitório com almoço, porque a gente não tinha condições de comer na rua, não tinha ticket refeição, essas coisas, você recebia só o salário e o salário não dava pra você ir almoçar lá no boteco todo dia, aquele pf (prato feito) lá, então o sindicato tinha o refeitório que era subsidiado, então a gente ia lá, tinha um barbeiro e a gente ia cortar o cabelo, que era mais barato, o sindicato servia pra isso, e o Delfim Neto era o chefe da economia e todo mundo falava dele o tempo todo na TV. A inflação começou a subir, era 30% ao ano, que já é altíssimo, depois a coisa começou a ficar descontrolada, o salário ia perder, mas ao mesmo tempo não havia sindicato, quer dizer, havia o sindicato assistencialista, que na prática não é sindicato, e o salário perdendo aquele valor terrível, olha uma inflamação de 30%, agora tá 10% você já sente, imagina 30% e a crise do petróleo, a guerra lá no Oriente Médio em 1973, e ao mesmo tempo aquele monte de carro indo pra rua, foi a época dos carros, todo mundo podia comprar carro, carro era barato, a crise do petróleo e o carro era barato e eu me lembro que eu comprei um carro no final de 1977, um fusca quase novo, você vê, quando eu entrei lá no outro Banco, todo mundo tinha carro e todo mundo queria ter e o trânsito entupido e baixou aquele desemprego e se falava já em anistia, isso era uma coisa que a gente ouvia muito, esse amplo geral e restrita, mas a discussão ainda havia censura, os próprios jornais, havia poucos jornais, o Estadão, a Folha, a TV Globo, eles mesmo, nem precisava ter censura, mas se eles quisessem ousar…sabia que tinha censura, os caras iam lá e acabavam e não tinham as greves ainda no ABC, portanto, de quem é a culpa da situação que estava ficando cada vez pior, desemprego, salário que não dava pra nada? Bom, aí já começou vagamente, é do Governo, mas daí porque é Ditadura não, não é porque era Ditadura, é porque era do Governo, qualquer que fosse o Governo, o que mudou drasticamente uns dois ou três anos depois, que aí já começaram as greves, surgiu o PT, Lula muito popular ia pra televisão, e os sindicatos começaram a ser retomados pelas oposições que ficavam ali em cima, e o Brizola tinha voltado, o Zé Dirceu, o Zé Dirceu não é que ele tinha voltado, ele tinha assumido a sua identidade real, porque ele já morava aqui e disfarçado, e o Brizola principalmente, o Lula nessa época nem gostava de político, declarou isso várias vezes publicamente, até que ele foi convencido a fundar um partido político, quer dizer, ele se juntou a esses anistiados, porque esses anistiados voltaram, muita gente, todos intelectuais, pessoal da Universidade, esse povo todo, eles foram em massa ali para o ABC, porque os operários estavam fazendo um movimento economicista pra resolver o salário, pra repor aquela inflação, fazia greve por causa disso, não era pra derrubar Ditadura não, mas aí esse pessoal, os anistiados que não tinham nada a ver com aquilo, foram lá em peso e aí começou a politização, não adianta nada a gente pegar e fazer a greve porque a inflação continua, quer dizer, a questão é muito maior, é política, a coisa começou desse jeito. Só a partir daí que uma pessoa como eu, que já estava fazendo curso superior, comecei a entender a situação, claro que tinha um pessoal que estudava na USP, por exemplo, e um pessoal que estudava na PUC, apenas esses, até porque não havia esse monte de faculdade que existe hoje, era USP, PUC, Mackenzie, tinha no caso a FATEC, mas a FATEC não tinha nada disso, o pessoal de lá era totalmente alienado, então era basicamente USP e PUC, mas eu não conhecia esse mundo, então eu estava alheio, aliás, eu tenho testemunho sobre o movimento estudantil de 1977, eu passei por uma situação nesse movimento.
P/1 – O que aconteceu?
R – Então, em 1977 eu ainda estava alheio a tudo isso, trabalhava no Banorte na rua 7 de Abril, ali no Centro novo, e estudava na FATEC, trabalhava durante o dia até às 18 horas, a FATEC acho que começava às 19 horas, eu saia já com a minha bolsa, aquele tempo não havia mochila, mochila era uma invenção nova, aquele tempo ninguém tinha mochila, acho que ela nem tinha sido inventada ainda, é interessante isso, atravessava alí todo aquele trecho, passava no meio da Estação da Luz, no meio do jardim da Luz e ia sair lá na FATEC, fazia isso todo dia entre 18/19 horas, acho que foi em 1977, porque o movimento operário lá no ABC foi precedido deste movimento estudantil daqui de São Paulo em 1977, em 1977 não tinha nada lá no ABC, lembra que eu morei lá no ABC em 1975, né? Morei alguns dias, depois eu ia lá visitar minha tia com frequência, então é um ambiente que eu conheci muito nessa época, não tinha nada em 1977, não tinha nada no ABC, e eu estava lá e estava tendo esse movimento estudantil lá na rua, o secretário da Segurança Pública era o Erasmo Dias, aqueles caras truculentos, o Maluf acho que era o Governador, tudo nomeado e tudo jovem, e eu saia do Banco e ia pra escola e o movimento estudantil na maior guerra, eu fiquei sabendo quando eu saí e botei a cara na rua e percebi alguma coisa diferente, um cheiro, porque teve bomba de gás lacrimogêneo, eu percebi um cheiro e um barulho, porque lá na rua 7 de Abril, que era uma rua estreita não era o centro da coisa, mas eu já percebi um cheiro e um barulho diferente, fui atravessando ali a rua Barão de Itapetininga, quando cheguei na rua 24 de Maio, percebi que não tinha mais ninguém na rua, eu olhei assim, e quando eu vi, estava vindo uma vaga, como se fosse uma onda do mar que vinha lá, só que era de gente, de um lado da rua e do outro lado da rua outra onda, que era os caras lá do choque com aqueles capacetes e indo numa marcha característica, e a rua alí, seis horas da tarde era só pedestre, como a rua ficava normalmente, você só via aquela multidão de gente, eu olhei assim e não tinha ninguém, só tinha eu e o choque desse lado e do outro lado vinha os estudantes, os estudantes estavam por alí, os manifestantes, e eu com os meus cadernos o que eu era? Eu era estudante também, né? Eu sei que providencialmente tinha uma loja de eletrodomésticos alí, acho que se eu forçar bem acho que até lembro o nome da loja, claro que não tem mais, tudo de vidro assim, com aquelas portas de grades de correr e o comércio tudo fechado, alguém lá de dentro da loja que já estava fechada, vendo eu lá sozinho naquela situação levantou a grade eu entrei, levantou só até essa "altura aqui" eu entrei e já tinha bastante gente lá dentro, fechou de novo e o choque passou assim na rua, porque eles estavam…lembra que teve a invasão do teatro da PUC nessa época? Parece que botaram fogo lá, o Erasmo Dias era daquele tipo que ia na televisão e falava que ia bater, que ia nos estudantes no caso, porque eram os estudantes da USP e da PUC era só isso, Mackenzie, por exemplo, era do lado contrário, os estudantes do Mackenzie eram da direita, só que eles não estavam se manifestando nessa época, a manifestação dos estudantes do Mackenzie foi na década anterior em 67, 66 por aí, que teve aquela história da rua Maria Antônia, então os estudantes do Mackenzie não estavam fazendo nada, era só a PUC que era de esquerda e o pessoal da USP da FFLCH só, sempre foi.
P/2 – E o que esse episódio te fez pensar quando você viveu esse momento?
R – Então, isso foi em 1977, não tinha Lula, não tinha greve no ABC, ou seja, a gente ainda estava…tinha crise econômica, mas daí…pobre vive em crise econômica o tempo todo, eu vivia em crise econômica desde que eu tinha nascido, então isso pra gente não é grande coisa, não é motivo de grandes tragédias, crise econômica, o poder de perda aquisitiva do salário também não é grande coisa, porque a quantidade de pobre que fica desempregado sem salário nenhum, isso sempre teve, então a gente não tinha consciência nenhuma, de repente aqueles estudantes, aquele tiroteio, aqueles brucutus, brucutu era uns carros blindados, um negócio feio pra caramba, aquilo devia ser ineficiente pra caramba, jogava água, canhão de água, gás lacrimogêneo, mas principalmente tinha a cavalaria, ainda tem hoje, de vez em quando vocês vêem aqueles cavalos, mas hoje é só de enfeite, mas na época não, usavam aqueles cavalos pra ir pra cima da turma e tinha muito mais, principalmente o choque, aqueles policiais da PM a pé com aqueles escudos,com aqueles capacetes e iam varrendo, dando cacetada e prendendo e essas coisas todas. Esperamos uma meia hora ou coisa assim, até acalmar ali e todo mundo foi embora, porque quando baixava essa repressão não tinha mais o que fazer, os manifestantes iam embora e pronto acabou, daqui a pouco ficava tudo normal, e eu fui lá pra FATEC e continuei meus estudos, lá na FATEC nenhuma palavra, nada sobre isso, nem eu pra eles nem eles pra mim, pronto, evidentemente que a gente na hora não percebe, mas aquilo cala fundo na gente, quer dizer, você passou por aquela experiência, na hora e até por vários dias depois, sei lá, meses, anos até, as vezes você pensa que até esqueceu aquilo, mas de repente aparece algo na imprensa num local próximo, que era lá no ABC, tem um cara que aparece e começa a falar contra o Governo, contra o Ministro, aí você que já viveu aquela experiência, por exemplo, se eu tivesse ficado lá no interior…aí você começa, você não, talvez o seu subconsciente faça a ligação, a ligação de uma coisa com a outra de tal maneira que eu acho que foi por volta de 1980, eu já trabalhava em um Banco Estatal Federal há três anos e eu acho que demorou ainda uns três anos lá pra 1980, 1981 por aí, eu já tinha vinte e cinco anos quando eu me dei conta do que estava acontecendo, da situação real, eu me dei conta realmente do que estava acontecendo, fiz associações, essas coisas.
P/2 – Eu vou pedir pra você explicar quando você se deu conta o que é que você passou a pensar, mas, tem uma coisa desses manifestantes que você falou que era uma crise econômica, uma crise política, a hiperinflação, crise de abastecimento, mas as pessoas dizem que quem se manifestava era comunista, ficou para a história dizer que quem se manifestava era comunista. As pessoas achavam que todo mundo que estava se manifestando era comunista?
R – Na época, não havia isso, sabe? Essa coisa de comunista. Comunista havia quando se referiam aos terroristas, só que nessa época, a luta armada tinha acabado, em 1975 já não tinha mais, acho que em 1975 teve o massacre da Lapa, parece que foi em 1975, depois teve o Vladimir Herzog em 1976?
P/2 – 1975.
R – 1975, mas foi um episódio meio isolado, não foi decorrente de luta armada. Teve o assassinato do Manoel Filho na mesma época, também episódio isolado, agora a luta armada já tinha acabado e teve esse episódio do massacre da Lapa que foi…não sei se foi em 1976, acho que o pessoal do PC do B, parece, mas também foi episódio isolado, porque eles estavam reunidos lá e tal, mas então, isso aí no ponto de vista da população, já tinha passado essa época de terrorista, ninguém mais falava em terrorista, até porque os terroristas já não eram mais terroristas, porque já tinha voltado, já tinham sido anistiados, o Brizola entes era terrorista e ele era tão perigoso que nem aqui no Brasil ele estava, o Luís Carlos Prestes, João Amazonas, o Zé Dirceu, o Zé Dirceu era um terrorista lá nos anos 70, um terrorista terrível, mas ele já estava andando aqui na rua em 1979, certo? Então ele não era mais terrorista, então essa onda de terrorista já tinha passado, comunista não havia, até porque não havia partido comunista legalizado, os comunista eles estavam no MDB e não havia PT EM 1979 não havia PT, nem em 1980, PT foi fundado em 1980 eu acho, né? Não havia PT em 1979, o Lula eu acho que foi em 1979, se brincar no início de 1979 ele era contra político, ele era dessa mesma turma aí que hoje em dia vocifera contra político em geral.
P/1 – Tinha esse preconceito, digamos assim, “Olha quem manifestar é subversivo, e terrorista" ou não?
R – Se tinha esse preconceito? Então…
P/2 – É, então, nos lugares onde você se socializava, as pessoas julgavam muito quem se manifestava?
R – Ah sim, nessa época, 1979 começaram as greves do ABC, mas eram greves tão massivas que ficou claro para a população…e a inflação estava claro pra todo mundo, todo mundo entendia e entendeu naquela época a questão da perda do poder aquisitivo do salário e da necessidade de fazer alguma coisa pra recompor, e os operários lá do ABC o que eles queriam? Pelo menos era o que eles expressavam publicamente, eles queriam repor o salário, nada mais do que isso, estavam fazendo greve por causa disso, então a população achava que estava certo, a população falava: "Tem que fazer isso mesmo, a gente aqui só não faz porque a gente não tem condições, mas a gente deveria fazer também" foi daí que surgiu o Lula com a força dele e o PT, etc…, porque a população achava que estava certo e não tinha nada a ver com comunista, até porque esse movimento inicial era majoritariamente apoiado pela igreja católica, que a igreja católica, você sabe, que sempre foi contra os comunistas programaticamente e, na população, isso era mais claro ainda, ou seja, se tinha um padre no meio, a gente sabia que não tinha nada a ver com comunista, aí nós estamos tranquilos, a população, de fora "Não! Lá tem padre não sei o que, pá, pá, pá…Era isso mesmo que eu estava pensando, eles estão lutando pelo salário, só isso, tá certo, tem que ser assim mesmo e muito bem".
P/1 – Então, no banco havia seus colegas, seus amigos. Eles tinham uma amizade com esse movimento, você acha?
R – Não, no Banco já era outra realidade, porque primeiro estava muito longe do ABC. Segundo, bancário não era considerado operário. Em geral, nas famílias, bancário era um funcionário diferenciado, ele não sujava a mão de graxa, ele trabalhava com gravata, todo mundo tinha que trabalhar com gravata nessa época, eu inclusive que era escriturário, ele trabalhava em um lugar limpinho, tinha telefone, então bancário era outro mundo segundo a população, e segundo os próprios bancários, só que o salário era menor do que o dos operários do ABC, assim, claro, tinha os peões, que o salário era baixo também, mas já estava surgindo muitos metalúrgicos especializados, ferramenteiro, torneiro, o salário deles era muito bom em relação aos outros, e eram exatamente os líderes da greve, quanto melhor era o salário dos metalúrgicos, mais entusiastas da greve ele era, a resistência maior era junto aos peões, depois mais tarde isso aconteceu com os bancários também, mas bem mais tarde.
P/1 – E durante esses anos você começou a se engajar em sindicato bancário também? Como é que foi isso?
R – Eu só me engajei no sindicato dos bancários, não, quer dizer (risos) eu tinha dois tipos de engajamento, o primeiro foi quando eu trabalhava no Centro Novo no Banorte, quando eu me engajei no sindicato pra cortar o cabelo e comer, ir almoçar (risos) entendeu? Porque o sindicato ficava na rua São Bento e era só atravessar o Viaduto do Chá, era pertinho e eu ia lá todo dia, ficava no vigésimo andar, iá lá todo dia almoçar, era a única alternativa que eu tinha, se não eu tinha que levar marmita, e pra levar marmita, eu mesmo tinha que fazer, não tinha ninguém pra fazer em casa, então eu ia lá todo dia almoçar, era baratinho, comida boa, bandejão, mas comida direitinho, tudo certinho com a comida barata, que a gente podia pagar tranquilamente, e eu ia lá cortar o cabelo também, tinha vários barbeiros que cortavam muito mais barato do que nos outros lugares, então primeiro eu tive esse tipo de engajamento, era o sindicato controlado pelos pelegos que a gente chamava, pelo pessoal da Ditadura. A Ditadura não fechou nenhum sindicato, o máximo que ela fez, foi destituir a diretoria eleita e botar uma diretoria Títere, uma diretoria da confiança deles, só isso. Então, teve esse engajamento, depois em 1977, eu saí aqui do centro e fui lá pra Paulista e o sindicato ficava aqui no centro, lá na Paulista já era muito longe. Em 1979, houve uma eleição sindical onde a oposição, que era ligada a turma do ABC já nesse processo, ganhou a eleição aqui, só que eu não estava mais aqui eu estava na Paulista, o sindicato fazia algumas atividades, mas só aqui na região central e a gente nem ficava sabendo lá na Paulista e era Ditadura ainda, então o sindicato não podia…tanto que essa diretoria, depois teve a intervenção do Ministério do Trabalho. Em alguns meses, eles tentaram fazer uma greve lá que não deu e ela foi destituída, foi lá um interventor no sindicato e aí fechou tudo de novo, acho que três anos depois, teve outra eleição e eles voltaram, aquele mesmo pessoal, foi destituído de novo e presos, só que assim, coisa rápida, e eu alheio a tudo isso lá na avenida Paulista, alheio por dois motivos, por falta de consciência política, de saber o que estava acontecendo e por motivo geográfico, porque ficava longe das atividades que ficava só aqui no centro, aí teve o movimento das Diretas Já em 1984, que eu também não participei ainda, quer dizer participei só no sentido de acompanhar pelos jornais, de torcer, mas de ir lá não, lá na Praça da Sé, onde disseram que foi cerca de 250 mil pessoas, na Folha de São Paulo. Diretas Já ainda era um general que era o Presidente da República um sujeito chamado João Figueiredo, escroto pra…terrível, só que aí já tinha PT formado, já tinha a CUT, já tinha Lula, Brizola, Mário Covas, Fernando Henrique, aí não sei se os partidos Comunistas já tinham sido legalizados ou se só foram legalizados com a constituição de 1988, não me lembro, mas de qualquer maneira eles estavam todos na rua já, não tinha mais repressão, mas ainda formalmente ainda era Ditadura até 1985. Foi 1985 a eleição do Tancredo? O Sarney era o cara do congresso da Ditadura, não sei se era Senador ou Deputado, era o representante da Ditadura, o ARENA que chamava, Aliança Renovadora, mas aí já permitiram alguns partidos como o PT, o Brizola quis retomar o PTB dele, a filha do Vargas entrou na justiça dizendo que era dela e de fato ela ganhou, aí o Brizola fundou o PDT, o negócio dele era trabalhista, ele queria ter o trabalhismo, mas ele não conseguiu o PTB, aí fundou o PDT, e aí já teve eleição para Governador em 1982, coisa que não tinha antes, não tinha eleição para Governador, o Governador era nomeado, e em 1982 já teve eleição para Governador.
P/1 – A situação econômica só piorava.
R – E a situação econômica naquela crise, desemprego, inflação cada vez mais retomando e aí…
P/1 – Você sentia isso pra comprar comida, pra cortar cabelo? Você sentia isso também? Claro no seu salário, mas como você sentia isso em casa?
R – É aquilo que eu falei, na crise econômica, o pobre sente a crise econômica de maneira diferente de quem não é pobre, porque na realidade no dia a dia concreto, o pobre vive em crise econômica sempre seja o país crescendo ou não, o pobre vive em crise econômica porque o que ele ganha sempre é insuficiente, o salário base mal e porcamente dá para aquelas coisas mínimas, sempre, mesmo que, por exemplo, você pega qualquer funcionário subalterno dessas funções iniciais, ele ganha pouco mais que um salário mínimo, mesmo que ele ganhe três vezes o salário mínimo, vamos supor, pouca gente ganha três vezes o salário mínimo, mas o que que dá para uma família três vezes o salário mínimo? Assim, normalmente, pra que que dá? Com abundância ou não no supermercado, três mil reais para uma família, o que que dá? Quer dizer, essas pessoas vivem em crise econômica permanentemente, com a economia crescendo ou não, veja o caso aí que nós depois vivemos, depois especialmente do Governo Lula, que teve um crescimento, teve quase prêmio emprego, etc, uma coisa que eles não atentaram direito, tinha crescimento econômico, o país estava se formando Brics, o país estava…mas o pobre continuava lá na miséria dele, aquilo foi fermentando, aquela insatisfação, aí o povo foi se associando às igrejas, o pentecostal, porque eles queriam uma hora sair daquilo ali, mas não sai, o pobre não sai, enquanto tem essa desigualdade não tem jeito, o país pode crescer o tanto que for que ele vai ficar na crise, era o que acontecia com a gente, então a inflação deu um salto, é verdade, mas os pobres, porque eu se eu quisesse almoçar todo dia lá, o pf aquele prato mais barato do boteco, você vê eu era escriturário de Banco quando eu estava no Banorte, mas se eu quisesse almoçar pra não ter que levar a minha marmita, eu não podia, eu que era sozinho, não tinha filho, não tinha ninguém, imagina se eu fosse casado e tivesse um filho, tivesse que pagar aluguel, eu pagava uma mixaria lá na república, a gente dividia em cinco e era barato, entendeu? Então, quer dizer, essa é a questão, agora evidentemente se chega um grupo de sindicalistas e faz uma greve para repor o salário todo mundo apoia, “Poxa isso tem que fazer mesmo, tá certo”, todo mundo apoia, agora quando a coisa começa adquirir uma conotação política, aí entra o problema, são oportunistas, o povão vê, o povão completamente alienado do processo, porque é o seguinte: sempre teve o político oportunista desde do Império, isso é histórico, daquele cara que faz carreira, dava o jeitinho dele e ele sempre se dava bem, na época da eleição, ele ia lá pegar o voto do cara e depois esquecia, então o povo sempre cresceu com isso, sempre teve isso e continua tendo, qualquer que seja o partido, o cara pede voto pra ser eleito e o povo “Ah, sabia!” Se chega lá uma pessoa e começa a organizar, eventualmente fazer greve ou outra atividade no dia a dia, aí chega na eleição, ele vai lá pedir voto, "A decepção, sabia que esse cara estava com segunda intenções”.
P/1 – Me conta como é que foi entrar na atividade sindical de fato?
R – Então, foi em 1985, eu já tinha vinte e nove anos e já era bancário há dez anos desde 1975, eu tinha trabalhado em dois bancos. A diretoria do sindicato finalmente depois de várias intervenções, a diretoria do sindicato nosso, que era da minha área, conseguiu se estabelecer e desenvolver a sua atividade sindical normal e aí, nessa altura, o processo inflacionário já estava ficando pior ainda do que era, porque não sei se vocês viveram essa experiência, mas até 1994, quando teve o plano Real, a questão da inflação no Brasil era uma coisa que…vocês viveram? Qual é a sua idade?
P/2 – Eu tenho quarenta e cinco, eu estive nas Diretas Já.
R – Não, mas você era um menino!
P/2 – Eu era criança, mas já sabia o que estava se passando.
R – Nessa época você não ia ao supermercado.
P/2 – Não , mas meu pai era editor de jornal (risos), então eu sabia.
R – Mas isso em 1994, há trinta anos.
P/2 – Mas eu lembro de overnight, eu lembro das questões que se discutiam em casa.
R – Você lembra do que era inflação de mais de 10% ao mês, e aí aquilo ia assim, esse mês era 10%, o mês que vem passava a ser 15%, o outro mês já era 18%, até que um ano, o governo baixava um plano econômico, tirava três zeros da moeda porque era 1000% ao ano, se faz 20% ao mês, o cálculo composto que chama, pra quando, 15% ao ano, certo? E imagina, então, se você fizesse a mãe pra falar em greve, pra quê? Para recompor o salário, todo mundo aderir, não só aderir, como concordava, pra você ver, hoje eu tenho meu salário, vamo supor que ele ta recomposto, daqui a dois meses ele já está 30% menor, dois meses, o salário recomposto já é abaixo da maioria, 30% a menos, quer dizer, processo inflacionário. Então, em 1985, o sindicato dos bancários finalmente chamou uma greve, na campanha salarial em setembro, porque a categoria, quer dizer, agora com essas reformas aí, mas continua aí, mais ou menos em alta, mas naquela época era sagrado, uma vez por ano tinha uma campanha salarial com negociação, em que pela CLT o patrão era obrigado a sentar em frente ao representante dos empregados para negociar, se ele concedia, era outra história, aí ia depender da correlação de forças e o patrão só entende, sempre foi e sempre vai ser, pra conceder algo mais do que o obrigatório, é sempre com greve, só é greve, não tem outra coisa, não adianta nada você chegar lá e fazer um discurso bonito, eles falam ‘tá certo, eu concordo’, ai você faz a greve e ele concede, na medida da força da greve, não concede tudo não, então o sindicato chamou essa greve, e eu já era bancário há 10 anos, já tinha vinte e nove anos, já era casado, já tinha um filho, casa, já tinha acho que até telefone em casa, enfim, lia jornal todo dia, que mais… já tinha tido as diretas, o Lula já era uma celebridade, o PT já fazia seus proseletivos direto, eu já tinha até assistido palestras do Luiz Carlos Prestes, que era lenda, ele veio e voltou pra cá, vi palestras dele pessoalmente, era uma lenda, como se fosse um Deus, porque tem muito isso, aí, então em 85, eu no banco lá onde eu trabalhava, o meu salário era bom em comparação com os outros bancos, é aquilo que eu falei pra você, quem liderou essa greve de 85, se vocês pesquisarem, vocês vão encontrar, essa greve parou o sistema bancário durante 3 dias, nao teve nada, nenhum banco funcionou, nada no brasil inteiro, essa greve é histórica, e quem que liderou? Nós Banco do Nordeste, Banco do Brasil, Caixa Econômica, a elite dos bancários, que esse pessoal ganhava muito mais que o pessoal do Bradesco, do Itaú, e naquele tempo, ainda tinha muitos outros Bancos, tinha BCN, tinha Comind, tinha Banco Real, Banco Mercantil de São Paulo, Bamerindus, tinha muitos outros bancos e as agências eram cheia de bancários, tinha 800 mil bancários no Brasil inteiro, hoje não tem, quem vai em agência de banco? E não tinha internet, ninguém sacava, não tinham aquelas máquinas ali na frente, pra você pagar cinquenta reais, você tinha que ir no caixa, era um caixa de carnê e outro que te dava o dinheiro, se quisesse pagar uma conta de luz, tinha que ir no caixa pra pegar a fila, então as agências eram cheias, os bancos, aquela inflação alta dava muito lucro pro banco, porque qualquer dinheiro que ficava parado no banco, o banco aplicava e ganhava aquela renda enorme da inflação e não pagava nada, quem deixava dinheiro, lucro enorme, os bancos colocam agência em tudo quanto era lugar, São Paulo, tinha uma regiaozinha comercial aqui, não só um, mas tinha mais de dez bancos, uma agência, uma do lado da outra, ai eu entrei em 1985, e a gente começou a organizar essa greve e eu comecei desde o começo a organizar junto, lá na Paulista, longe do sindicato, e era ditadura ainda. Quando é que foi a eleição?
P/2 – Foi em 1985…
R- Mas foi no final de 1985, não foi? Novembro …
P/2 – O Sarney governa acho que 85,86,87,88, e 89 tem eleição.
R – Não, Não, tudo bem, mas eu digo, que teve a eleição do Tancredo.
P/2 – Foi em 1984. Foi diretas já.
P/1 – Acho que é novembro de 85. Que é eleição indireta.
R – Novembro, né?
P/2 – É.
R - Então, nós fizemos a greve em setembro, ou seja, o presidente da república era o João Figueiredo, era ditadura ainda, claro que já desmoralizada, portanto, não tem nenhum poder de repressão, aí a censura acho que já nem mais, até formalmente já tinha caído, mas, na prática, também não existia, então formalmente ainda era ditadura ainda em 1985 quando eu fiz a greve, minha primeira greve, eu não só fiz como ajudei a organizar e eu não tinha nenhum cargo sindical, nenhuma imunidade, porque o diretor do sindicato tem proteção, ele não pode ser demitido, eu não tinha nada disso e o banco que eu trabalhava era federal, em tradição de repressão para quem fizesse esse tipo de atividade, não só eu, como também meus colegas e bancários no Brasil inteiro; bom, bancário que já tinha feito greve era aquele que já trabalhava antes de 1964, se tivesse algum, eu não conhecia, certamente devia haver algum, mas eu não conheci nenhum, que trabalhava antes de 1964 e continuou trabalhando até 1985, 21 anos depois, então ninguém tinha feito greve, tinha tido um arremedo de greve em 1979, mas que participou só uns três ou quatro, mas que não tinha virado nada, então quem tinha feito greve, e eu lá, foi nada de clandestino, escancaradamente comecei a organizar a greve no meu local de trabalho onde tinha cerca de 100 funcionários, mas havia uma conjuntura nacional, se eu tivesse como, já teria acontecido em 1979, nós tivemos um colega que foi demitido porque começou a organizar a greve lá, no mesmo local, só que eu nem fiquei sabendo, quer dizer, fiquei sabendo tempos depois, porque nem podia ser uma coisa clara, nem tinha espaço, ele tentou fazer a coisa por baixo do pano e eu trabalhava longe dele, eu nem fiquei sabendo e ele foi demitido. Em 85, eu fiz a mesma coisa, só que aí já foi às claras, e organizando a greve na cara dura. Chegou o dia da greve e todo mundo lá na rua e os bancos privados, aí sim eles podiam ser demitidos sem justa causa, não por motivos de greve, e o pessoal mais medroso, mais novo, sem nenhuma consciência política, evidentemente. E nós todos do Banco do Brasil, da Caixa Federal, Banco do Nordeste, fomos pra todas as agências próximas desses bancos e fechamos, ficamos lá na frente com faixas, e ninguém funcionou, ninguém abriu, mas só durou três dias, e a polícia na rua, mas não tinha violência nenhuma da nossa parte, e a polícia não podia fazer nada, e a gente não podia também barrar a entrada, mas os outros bancários só queriam um pretexto pra não entrar, não é que eles queriam entrar de qualquer maneira e nós não deixamos, então a gente ficava lá na frente e eles usaram como justificativa “só não entramos porque eles tavam lá na frente”, mas só durou três dias.
P/1 – Mas a pauta, vocês conseguiram reajuste?
R - Evidentemente não conseguimos tudo que a gente queria, mas conseguimos. Aí começou, falei que antes não tinha ticket refeição, ticket alimentação, que é mais um direito, vale transporte, auxílio creche, que mais quem hoje, foi aí que começou isso, além da questão salarial, o problema da inflação e tal, ainda teve uma série de direitos que é, delegados sindicais, foi uma série de direitos que nós conquistamos.
P/1 – Agora, você ficou no Banco do Nordeste até que ano e você sofreu algum tipo de represália por isso, você acha?
R – Então, eu me aposentei lá, só que em 88, isso foi em 85, na próxima eleição pro sindicato, o mandato sindical é de três anos, a próxima eleição era em 1988, aí eu fiz parte da diretoria, então quer dizer, fiquei 85, 86, 87 trabalhando no Banco, mas a gente passou a fazer greve todo ano, 1986 outra greve, 1987 outra greve, esse tipo de greve, greve econômica porque a inflação estava alta, cada vez ficava mais alta, plano Bresser, Plano Cruzado, você já ouviu falar? Então, Plano Cruzado foi do Sarney, também teve o Plano Bresser, o Bresser Pereira que hoje é petista, era Ministro da Fazenda do Sarney, era assim: cortar três zeros da moeda, porque a moeda tava parecendo o Paraguai, você vai comprar um café e paga vinte mil Guaranis ou mais, a moeda lá é assim, então, uma vez por ano, no máximo duas vezes por ano eles baixavam um plano, Cruzado, Bresser, Plano Collor…
P/2 – Verão um, verão dois…
R – Verão um, verão dois, e depois finalmente veio o Plano Real em junho de 1994, e estamos aí nessa moeda até hoje.
P/1 – E o senhor se aposentou em que ano?
R- Então, tava dizendo que 1988, fiquei três anos afastado do banco exercendo atividade sindical, mas só três anos, Em 1991, eu voltei novamente pro banco e fiquei lá até 2014, faltavam três meses pra eu completar quarenta anos de Banco quando eu me aposentei, final de 2014, fiquei lá o tempo todo. Você disse se eu senti repressão? Então acontece o seguinte, eu fiquei marcado, no ponto de vista profissional, porque eu me destacava enquanto líder daquele pessoal, quer dizer, então eu que ia, eu que falava, eu que comprava as brigas, e aí eu que falava de igual pra igual com o chefe, com o gerente, eu só não era demitido, primeiro porque não é uma política de bancos federais, bancos oficiais, bancos do governo, seja estadual, seja federal, pessoal era do Bradesco, era do Banco do Brasil, da Caixa Federal, eles nunca são demitidos sem justa causa, quando tem um problema, eles são encostados, ficam marcados, que a gente chama, foi o que aconteceu comigo, do ponto de vista profissional, de eu evoluir, ser promovido, passar a ser gerente, coisa desse tipo, porque tem muitos caras que são chefes disso, chefes daquilo, e tudo isso significa dinheiro, tem o que chama de comissão, que é um acréscimo, um valor muito significativo, no geral, um chefe intermediário, tem um salário duas ou três vezes maior do que eu tinha de escriturário, então eu tinha esse problema, que eu acabei como escriturário, no final eu fui pra ser caixa, caixa lá tem um acrescimozinho, pouca coisa, uns 20%, fiquei uns dois ou três anos como caixa e não sempre como escriturário ganhando piso daquela carreira.
P/2 – Eu queria só fazer uma pergunta antes do bloco final, a sua vida pessoal, desde de 1979, 1980 quando você começou a narrar esse processo, o que vinha acontecendo na sua vida pessoal, tinha o Banco e esse papel na greve etc., nessa cronologia, você poderia narrar sua vida pessoal? Fora da profissão.
R - Então, quando eu entrei nesse banco, no qual eu me aposentei, eu tinha vinte anos de idade, vinte e um anos de idade, sabe o que é isso?E morava ainda naquela primeira república, não sei se hoje ainda chama república, tem isso ainda? Então, morava lá ainda, e minha família lá no interior, eu praticamente sozinho aqui, cheguei lá, tinha cerca de cem funcionários, tudo na mesma situação que eu estava, tudo gente nova, daqui de São Paulo, que teve o concurso, aqui, só com gente de São Paulo, e só os chefes que vieram de lá, do nordeste, os funcionários comuns eram daqui, o salário três vezes maior que o normal, jovem de vinte e um anos, não só eu como os outros, a maioria vinha numa situação social igual a minha ou pior, a maioria morava com a família e sustentava a família lá na periferia, desses jovens, e assim, meio a meio, mulher e homem, tinha sei lá, mais ou menos meio a meio, e teve esse concurso e era um concurso pesado no ponto de vista do conhecimento, parece que teve duas redações nesse concurso que fiz, tinha testes de datilografia também, separado, acho que vocês nem sabem o que é isso, datilografia, porque a gente trabalhava na máquina, não tinha computador, era tudo na máquina de datilografar, concurso pesado, testes de inteligência, testes psicológico e testes de conhecimento de matemática financeira, de contabilidade, essas coisas, claro, isso era elementar, mas o pesado era a redação, essas coisas, eu acho que eu consegui passar porque da área de matemática financeira e contabilidade eu não sabia nada, mas devo ter ido bem na redação, nos outros testes, não passei bem não, mas passei e sobre o que eu tava falando?
P/2 – Sobre a sua vida pessoal.
R – De tal maneira que as pessoas de lá estavam deslumbradas, quando elas chegaram ali naquele mundo pra elas se reunir, havia um deslumbramento com duas coisas, primeiro com o salário e segundo com o próprio ambiente de direitos porque havia vários direitos, que não foi conquistado pelo sindicato, mas era um banco federal, a gente já tinha ticket, os outros Bancos não tinham, e outras que na época chamava de mamata, de sei lá, entendeu, então as pessoas estavam felizes, tudo jovem, então havia esse clima, com vinte e um anos eu, e o resto todo com vinte e um anos, o mais velho com vinte e cinco, e o fato é que todo mundo começou a arrumar namorado e namorada naquele povo e eu arrumei uma namorada que trabalhava ali, casei com ela e tô com ela até hoje, casei, não sei se foi 1981 ou 1980, eu sempre faço confusão, não sei se foi em fevereiro ou janeiro parece, janeiro de 1981 ou janeiro de 1980, acho que foi janeiro de 1981, acho que fez quarenta anos agora. É, em 1983 tivemos um filho, tivemos, o primeiro filho, a greve foi em 1985, aí a minha mulher tinha que sustentar os pais dela, estavam já bem velhos e ela tinha que sustentar sozinha, que os irmãos não tinham condição, ela tinha muitos irmãos, mas um pior do que o outro, pessoal que veio do interior, ela que tinha que sustentar, mas dava pra sustentar, a gente juntava dois salários, percebe, então, 1983 o primeiro filho Ricardo, e aí a vida sem nenhuma novidade, a gente era pobre,vinha daquela situação de contenção, e aí é o seguinte, até que a gente juntou algum dinheiro, porque tinha a inflação alta, mas no nosso salário tinha um mínimo de correção e tinha a história do Overnight que você falou, o povão não tinha acesso, não podia nem abrir conta em banco, mas a gente podia, deixava o dinheiro rendendo, não perdia valor, crescia, quer dizer, não é que crescia, é que acompanhava a inflação, enquanto que do povão não acompanhava, o cara pegava o dinheiro e botava debaixo do colchão ou ele corria logo pro supermercado comprar o que podia se não ele perdia, final do mês tava valendo 15%, 10% a menos, a gente não, a gente podia deixar o dinheiro na conta e o dinheiro ia rendendo diariamente.
P/1 – E você pode falar então o nome da sua esposa, dos filhos e como é que foi criar 3 crianças nos anos 1980, 1990.
R – Bom, então, é que a gente foi ter a segunda filha, seis anos depois, quer dizer teve um e ficou seis anos só com um e a gente tinha condições de pagar um berçário, por exemplo, naquela época não tinhas essas creches da prefeitura e a gente não tinha com quem deixar o filho no caso, então o meu filho, aliás todos eles, mas esse primeiro, foi pra creche com três meses de idade, porque a licença maternidade durava três meses, então ela ficou com licença, três meses depois, ele foi pra creche, ficava o dia inteiro lá e a gente ia lá pagar, era cara, mas a gente tinha condições, ali na rua José Maria Lisboa, era duas chilenas que tinham, numa casa assim, eu lembro o primeiro dia que eu fui na creche deixar ele, porque eu ia almoçar em casa, a minha mulher trabalhava tarde e eu ficava lá com ele, eram uns três quarteirões, levava ele no colo, deixava ele lá, subia até o Conjunto Nacional, pegava o ônibus, ia até depois da Brigadeiro e continuava trabalhando, a tarde fazia o inverso de lá eu pegava ele, e a gente não tinha com quem deixar, e minha mulher nem permitia, ela não queria, ela era desse tipo, não queria depender de ninguém, então deixava lá e foi assim três meses de idade, sempre direto e a gente que fazia tudo em casa, nunca tivemos empregada, essas coisas, trabalhava o dia inteiro, quer dizer, nessa época a gente não estudava mais, porque a minha mulher continua estudando depois de casar, mas ela terminou o curso, eu também continuei, não e tinha terminado a FATEC e não estudei mais, ou seja, não estudei mais porque, filho, não tinha mais jeito, e eu também não tinha mais ambição de estudar mais, ela também aconteceu a mesma coisa.
P/2 – Mas você voltou a estudar depois?
R – Eu voltei a estudar já tinha cinquenta anos, em 2007, a filha mais nova já tinha dezesseis anos.
P/1 – Aí você foi fazer Letras, então?
R – Sim, aí fui fazer Letras, mas aí…
P/1 – Mas por que você escolheu Letras? Como é que foi?
R - Então, depois com o tempo, eu descobri que eu tinha alguma facilidade pra escrever qualquer coisa, aí comecei a me interessar por literatura, chegou uma hora que falei ‘poxa”, ficava em casa, aí eu já trabalhava seis horas, porque antes eu trabalhava oito horas, depois em 1994 parece, a gente foi obrigado a cumprir a hora de bancário mesmo que era seis horas, e era um serviço tranquilo, eu ia andando, onde eu trabalhava era perto de onde eu morava, aí sobrava tempo pra mim, aí eu comecei a sentir uma necessidade, o meu filho mais velho já tava lá na FFLCH, na História, e eu falei “quer saber de uma coisa? Eu vou prestar vestibular”, mas eu achava que eu não ia passar, mas aí prestei, passei, naquela época já tinha o ENEM, que aí acrescentava, mas eu nem fiz, aí caiu coisa de física, química, física mas como eu não estudei nada, eu não sabia fazer, isso aí é coisa de treinamento, especialmente essa área de matemática, você tem que treinar, porque se não, porque se você não treina, você não faz, mas aí eu fui bem nas outras áreas e tal, e tinha inglês, eu não falo nada de inglês, não sei nada, mas fui bem nas outras áreas, e também não precisava de muito pontos pra Letras, tinha muitas vagas, acabei passando. Eu fui, ia todo dia, saía à tarde, pegava o metrô até a Vila Madalena, depois pegava um ônibus e ia todo dia, saia de lá 22h30 da noite, chegava em casa 00h, todo dia, durante quase cinco anos.
P/2 – E essa experiência foi boa, de fazer uma faculdade aos cinquenta anos?
R – Foi muito boa…primeiro eu fiz Italiano e português, então isso também ajudou muito, porque a minha família é Italiana e eu sempre fui muito ignorante em relação aos meu ancestrais lá da Itália, não sabia falar nada, não sabia praticamente nenhuma palavra de Italiano, aquela coisa, então estudei e a gente aprende a literatura, eu leio fluentemente em Italiano porque eu aprendi lá, só ler, falar não, e a gente lê muita coisa, aí a gente aprende a história através da literatura, isso foi muito bom e o ambiente alí realmente aquilo que eu tinha vivido na FATEC, eu percebi depois que não era realmente um ambiente de curso superior, curso superior é aquele que eu vivi lá na FFLCH, a USP vamos dizer assim, é o ninho da intelectualidade, não que quem estude lá seja intelectual ou passe a ser só porque estuda lá, mas, ali tem muitos intelectuais de prestígio que são de lá, os professores…enfim, tem todo um ambiente que é outra história, outro mundo.
P/2 – E os seus pais estão vivos ainda?
R – Só a minha mãe, meu pai morreu em 2009. Eu entrei lá na FFLCH em 2007, meu pai morreu em 2009, a minha mãe ainda tá viva noventa e um anos.
P/2 – E o que você acha que eles pensam da história da sua vida?
R – Da minha vida? (riso alto) A minha mãe não é só em relação a mim, mas em relação aos três filhos dela, ela acha o máximo, maior sucesso! Pelo simples fato de que os três conseguiram se aposentar como assalariados…minha irmã lá na Caixa Federal, com um salário também mais ou menos, que dá pra viver normalmente, só por isso já pra ela é motivo de sucesso, não pelo fato de eu ter estudado na FFLCH (risos) não é por isso, assim criado os filhos sem depender de favor de ninguém, essas coisas todas, o maior sucesso.
P/2 – Faltou você dizer qual é o nome da sua mulher e dos seus três filhos.
R – A minha mulher é Marley, que aliás, esse nome é mais comum no interior, de antes do Bob Marley (risos). Ela nasceu em 1953 que é muito antes. O meu filho mais velho é Ricardo, a do meio que nasceu em 1989, Bruna, e a mais nova 1991 é Nara.
P/1 – E me conta uma coisa, eu sei que hoje você faz trilha, anda de bicicleta, inclusive você veio pra cá de bicicleta, lá da Bela Vista. Como é que foi, você fazia isso antes?
R – Ah sim, isso aí é outra história muito interessante. Quando eu era jovem, até pouco antes de me casar, com uns vinte dois, vinte três, vinte quatro anos, a gente alugava uma quadra e jogava futebol de salão, com o pessoal do banco, no final de semana, só isso que eu fazia de atividade física e uma vez por semana era muito pouco..
P/2 – A história da bicicleta, né?
R – É, então, eu sempre fui muito magro, eu era mais magro ainda do que eu sou agora, eu sempre fui e fazia essa atividade, aí as pessoas foram se casando e aí todo mundo parou e acabou, atividade física nenhuma, atividade física era a correria do dia a dia, levar filho na creche, fazer comprar, a gente sempre fazia isso, ia na feira, cozinhava, lavava a louça, arrumava a casa, sempre revezando a gente, mas isso não é atividade física, isso não é suficiente, o fato é que eu fui levando essa vida e aos trinta e sete anos de idade, eu tive uma crise de dor de cabeça, sem nenhuma explicação, acho que foi no ano de 1993, eu tinha passado pelo sindicato, já tinha sofrido alguma desilusão política, a União Soviética já tinha sido desmantelada, o Collor já tinha sido eleito, eu sei que eu tive uma crise, uma dor de cabeça constante, pequena, aquela coisa, quase não incomodava, mas ficava o dia inteiro, dia e noite, aquela dor de cabeça, consultei todos os médicos, fiz todos os exames e não deu nada, e tava tudo normal, até que um médico lá me receitou um comprimido daqueles de tarja preta “olha, compra isso aqui, toma isso aqui” como se fosse, “ó, não tem outra coisa”, tarja preta, peguei aquilo, não sei sei se joguei na cara dele, ou se joguei no lixo depois que saí, aí, imediatamente, eu tinha um tênis antigo que eu jogava futebol de salão, aqueles tênis duro, que tava ali encostado já fazia uns quinze anos, e quando eu calçava nem conseguia, aí comprei um tênis lá, eu não sabia, o vagabundo, fui correndo no Ibirapuera, naquele tempo não tinha essa história de corrida, não tinha essa febre de corrida, corrida era uma coisa assim, nem sei porque eu fui correr, na verdade, eu sempre tive noção, todos aqueles anos depois que eu parei de jogar futebol de salão, eu sempre tive vontade de voltar a jogar, mas como não tinha turma, não tinha onde, além do problema do tempo, dos filhos, porque filho sempre toma 100% do seu tempo, dia e noite, às vezes não literalmente, mas você tem que estar ali de prontidão, coisa complicada, mas eu sempre ficava com aquela vontade e o tempo foi passando, quando eu tive essa crise, que não teve nenhuma explicação, aí eu falei: “quer saber de uma coisa? Jogar futebol eu não vou mesmo porque não tenho turma, tem que ter um lugar, tem que ter um horário, a melhor maneira é eu ir correr, porque aí eu vou aonde eu quiser, quando eu quiser, no horário que eu quiser, a quantidade de tempo que eu quiser, o fato é que eu preciso é fazer uma atividade física”, eu tive uma noção, assim, uma noção muito leve, muito despretensiosa e fui, a primeira, sei lá, depois de uns dois, três dias, meus dois tornozelos ficaram inchados, depois eu descobri que era o tênis que era inapropriado, aliás ele tinha muito amortecimento, ele era mole, o pé torcia, e o segundo é que meus tornozelos não estavam treinados, isso é normal, ou seja, não tá treinado, não corre nunca, vai lá um dia, dois ou três e corre três dias seguidos, 5km o seu tornozelo ou o seu joelho, ou qualquer, alguma parte vai ter problema e foi o que aconteceu, ai fui no ortopedista e ele falou “não, é simples” receitou lá um molho de contraste e falou para eu maneirar, e eu insisti, nunca mais parei, até hoje, nunca mais parei de fazer atividade, especialmente de correr, no começo era só corrida, não tinha bicicleta, bicicleta eu comprei acho que em 2015, correr, jogar bola, nada, nenhuma musculação, não tinha também essa febre de academia, não tinha academias, e eu também não gostava, só correr. E era muito bom pra mim e principalmente, mas e o tempo, porque isso foi em 1993, eu tinha uma filha com dois anos, outra com quatro e um filho com dez, imagina, três filhos, a mulher também que trabalhava fora e que não admitia que os filhos ficassem com alguém, qualquer que fosse esse alguém, podia ser a tia, podia ser a vó, enfim, qualquer pessoa, como é que faz? Então o que eu fiz, eu ia correr de madrugada, eu tinha que começar as atividades com filho etc., tipo sei lá, 7h30, então eu levantava 5h30 ou 5h, corria tipo 1h mais ou menos, mais do que o suficiente, e voltava, chegava 7h30, tava perfeito, eu tava ali à disposição pro dia inteiro e descobri rapidamente que não só estava disponível, como também melhor, muito mais disposto e aquela dor de cabeça nem sei mais o quanto ela durou, mas pouquíssimo tempo ela desapareceu e até hoje, nunca mais.
P/1 – Tinha outras perguntas pra fazer, mas pelo passar do tempo a gente pode ir pras finais, pode ser?
P/2 – Sim, mas as finais incluem perguntar se a gente esqueceu alguma coisa também.
P/1 – Tem alguma pergunta? Algum aspecto que você gostaria de falar e a gente não perguntou pelo andar do tempo? De repente, como é ser pai, por exemplo, tinha uma coisa que eu gostaria de perguntar antes de ir pras últimas questões…
P/2 – Se você veio pra cá, pensando na entrevista e alguma das coisas que você achou que contaria aqui hoje e por ventura a gente não abordou e você não contou…
R - (risos) Acho que não, porque na verdade, como vocês viram, não tem nada de excepcional na minha vida, um cidadão comum, não teve de nada, não aconteceu nenhum milagre comigo, nada nem pra mais nem pra menos, nenhuma tragédia assim. Talvez, em 2004, eu fui a pé daqui até lá na minha cidade com uma mochila nas costas, quinze dias. Isso foi muito interessante pra mim e eu acho que teve muita repercussão da família, eu virei herói na família só, que ficou sabendo, o pessoal gostou da ideia, meu pai já tinha sofrido um AVC, dois ou três avc’s, ja nao tava andando direito, em 2004, já não falava direito mais, ele ficou assim durante uns sete anos parece, foi morrer em 2009, sem falar e sem andar, um lado todo do corpo paralisado por motivo, fumava muito, nunca tinha feito atividade física ideal, e era magro, mas tinha colesterol alto, teve problema cardíaco, circulatório AVC e também teve problema do coração, isso também foi um fator que me levou, mas ele tava vivo ainda e eu fui lá e quinze dias, aí eu fiz varias, três dias nunca mais parei, e isso foi interessante, 2004, e foi aí que meu mundo foi se abrindo mais, aí foi ao ponto de eu chegar a fazer Letras três anos depois, em 2007, eu escrevi um livro sobre essa aventura e é isso.
P/1 – Então se você tiver fotos dessa travessia, se você tiver a capa desse livro que você escreveu, pra a gente colocar junto com esse seu depoimento, por favor.
R – O livro eu escrevi em 2006 e eu comecei lá na FFLCH em 2007, aí eu fui adquirindo também uma consciência literária que eu não tinha, aí veio as redes sociais, a gente começou a escrever nas redes sociais, porque antes a gente escrevia e deixava na gaveta, e isso teve alguma repercussão e de tal maneira que, quer dizer, praticamente até quarenta anos de idade eu num tinha escrito nada, e depois eu escrevi esse livro, mais ou menos tudo crónica, escrevi dois ebooks, tenho outro agora que vai sair logo também e tem isso. Mas aí essa é uma atividade, posso te dizer que começou com a FFLCH, depois de cinquenta anos de idade, hoje eu tenho sessenta e cinco.
P/1 – Você tem planos pro futuro, tem alguma coisa que você fica pensando em fazer ou não?
R – Então, eu não sou desse tipo que planeja o futuro. Eu sempre fico atento à conjuntura e ao conjunto, mas não tenho planos pessoais.
P/1 – E desse período que a gente comentou todo, que você contou que a gente chama de Ditadura, você tem alguma reflexão sobre essa questão,que você falou “Olha, não sabia, vim a saber", como isso teria um saldo na sua vida, pro país o que que foi essa ditadura?
R – Então, isso aí eu estive muito claro, o significado prático da ditadura, eu tive muito só depois, muito tempo depois, e muita coisa a gente vai descobrindo ainda até hoje, a gente não para de descobrir efeitos nocivos da ditadura, que eu vejo, olha só, eu passei toda minha infância, porque eu entrei na escola em 1963, ainda não era ditadura, mas um ano depois, foi ditadura, mas fui alfabetizado junto com a ditadura e vivi até os vinte e nove anos de idade, toda minha adolescência, juventude, casei, tive filho, tudo na ditadura, e assim, depois disso, de todo esse processo, às vezes, eu me pego assim, refletindo e vejo o absurdo que é uma população, como um país de duzentos milhões na época, em 1970 tinha setenta milhões, em 1975, tinha menos da metade da população que tem hoje, isso significa que todas as cidades, é no mínimo metade do que são hoje, sendo que aquelas cidadezinhas lá que eu vivi, que eu era pequeno, triplicaram ou mais a população, por alguns fatores locais e assim, e essa coisa do poder vir, baixar do céu, porque quando é um ditador, ele baixa, ele baixa, você não sabe, quem é que chancelou aquele governo, quem é que indicou, que colocou lá? Você não sabe, você tem certeza que não foi ninguém ali do povo. Isso tem desenvolvimento até psicológico das pessoas, no dia a dia comum, de você falar, de você organizar uma atividade coletiva. A ditadura poda isso, uma atividade no seu bairro, isso era visto como subversão, uma atividade na escola, então eu, agora não né, já passou muito tempo, mas ali logo depois, quando eu tinha uns vinte nove ou trinta anos, depois de 1985, que eu participei da primeira greve, aquela coisa, eu às vezes falava ‘como é que fizeram isso’, isso é um crime, é um crime que fizeram com a gente, com a população de cortar, por exemplo, as liberdades de o cara publicar no jornal qualquer coisa, de você fazer uma atividade numa reunião, uma coisa de cortar, de cercear, isso é um crime, eu então, eu fiquei bem uns dez anos sei lá, depois de 1985, muito assim, com essa coisa, mas era sempre uma reflexão pessoal.
P/2 – Você acha que o fato de ter existido essa Ditadura, tem alguma conexão com as crises que a gente vive no país hoje?
R – Então, tem tudo a ver. Por exemplo, a questão da desigualdade econômica, hoje a gente pega 70% da população brasileira, sei lá, uns cento e cinquenta milhões de pessoas, cento e quarenta milhões de pessoas, 70% tem dificuldade com coisas básicas, com comida, com aluguel, com moradia, com escola para a criança, com saúde, dificuldades graves. Isso aí é uma decorrência direta de um processo histórico de falta de participação e a coisa vai se agravando, porque vejam, em 1975, que eu cheguei aqui, eu acho que não era pior do que é agora, talvez agora esteja pior do que em 1975 do ponto de vista da desigualdade, aí você fala “Bom, mas a gente já teve aí quantos anos de Democracia?” Então o problema é que a formação histórica é ditatorial e isso nunca acabou, esse processo de falta de participação popular, falta de responsabilização popular também pelos destinos, continua, até porque a Ditadura nunca deixou de existir de fato, através dos meios de comunicação que são monopolizados, através dos grupos econômicos, você vê que esse pessoal continua por cima, eles nunca foram desmoralizados. Eu assisti ao processo, o Sarney era o cara da Ditadura, de repente, ele passou a ser o nosso Presidente e nem foi eleito, mas já era um Presidente que era da Ditadura, estava no lugar do Tancredo, o Tancredo seria o nosso representante salvador da pátria, mas ele não foi eleito também, depois a primeira eleição que a gente fez quem a gente elegeu? O cara típico da Ditadura, depois na próxima eleição quem a gente elegeu? Tudo bem não era um cara típico da Ditadura, mas pra ele ter sido eleito, ele teve que se aliar ao pessoal da Ditadura, você vê? O PFL antes era…não sei se começou PFL depois foi Democratas, mas era o pessoal da ARENA, chamava PDS, PFL, os partidos que continuaram dominando o Congresso eram todos oriundos da ARENA, Aliança Renovadora Nacional da Ditadura, era o partido oficial do regime, continuaram do mesmo jeito e continuam, centrão, o que é o centrão? O Centrão é esse pessoal. Essa desigualdade que nós vivemos ela é processo dessa Ditadura, claro que não…porque esse processo de Ditadura não começou lá em 1964, ele é histórico desde a época do Império, quer dizer, pra não remontar antes, mas aí teve a questão dos escravos e depois teve a libertação dos escravos, que foi uma tragédia a maneira como foi feita, que a consequência a gente vê até hoje, depois vem a República velha, quer dizer, aí veio aquele movimento de 1930, mas que aí baixou outra Ditadura e aí depois veio aquela coisa dos anos, dez anos, porque o sucessor do Getúlio era um general também, dez anos, percebe? Então, essa questão da Ditadura, essa de 1964, tudo bem, mas ela não começou aí, não é um processo histórico e praticamente todas as democracias, períodos democráticos que nós tivemos, aqueles intermediários antes, tem esse agora que nós estamos vivendo, teoricamente, é uma coisa muito limitada, na prática os malefícios do fechamento político continuam, tanto que o povão ainda continua achando que todo político é safado, desonesto, o que mais? “que não tem jeito mesmo” “que a esperança é rezar”, “Que isso é uma fatalidade”, “que ele é pobre porque ele não merece”, “ele não é rico porque ele não merece”, ou seja, “ele é pobre porque ele é incapaz”, “ele é vagabundo” ou sei lá, a história da meritocracia, tudo isso é consequência de um processo social de não participação, a história de que a pessoa só melhora de vida quando cai do céu, eventualmente tem as loterias, o cara, de vez em quando tem um cara que fica rico quando ele ganha na loteria. Aí, às vezes, tem um cara rico que o sujeito cai nas graças dele, aí o cara favorece ele e ele consegue melhorar um pouco de vida, recebe um favor, a história do favor. A população continua assim, nunca assume o próprio destino, porque a Democracia consiste nisso, as pessoas assumirem o próprio destino e eu acho que no Brasil esse período agora recente que a gente vive ainda é muito elitista e a prova foi agora nessa última eleição, você vê, a gente tinha passado aí por um período até, sei lá…treze, quatorze anos, na verdade é um piscar de olhos, mas que não significou nada, porque é uma gota no oceano, então é isso, a Ditadura…eu tomei essa consciência, tinha mais de trinta anos de idade.
P/1 – Como é que foi contar um pouco da sua história hoje, o que você achou?
R – É bom. Eu estava falando pra ele no intervalo que é muito bom quando você tem assim toda uma coisa sofisticada ouvindo as suas coisas questiúnculas pessoais, porque no dia a dia quando você começa a contar, quem é que quer ouvir as suas histórias pessoais? Ainda mais quando as histórias são comuns, ninguém, né? Em geral, você tá conversando e começa a falar e o cara “Ah…” se for um parente como acontece com a minha mãe, que às vezes eu chego lá e ela sempre repete a mesma história e eu falo: “ Tá bom, mãe. Eu já ouvi essa história, eu conheço”. Com os meus filhos acontece isso também às vezes, começo a contar uma coisa e eles dizem: "Você já contou isso, eu já sei isso”. Coisas assim, passagens, então corta na hora e é assim com todo mundo, quando é uma pessoa estranha, se você chega em um lugar e a pessoa começa a contar da vida dela, “Aguentar isso, o cara contar” e aqui vocês ficaram me ouvindo durante todo esse tempo (risos) eu achei ótimo. Não sei o que vocês vão fazer com esse material.
P/2 – Ele vai virar uma história de vida no Museu da Pessoa, que outras pessoas poderão ir lá assistir.
R – Então, eu não sei, porque em geral, as histórias pessoais dos cidadãos comuns que é a maioria, sei lá 98% da história de todo mundo, são histórias absolutamente desinteressantes e eu não sei o que elas acrescentam, não sei.
P/1 – De vez em quando, na verdade, quase todas as vezes surgem coisas e acho que apesar disso que você falou surgiu sim.
R – Pra vocês enquanto pesquisadores ou catalogadores, eu acho que aí é possível, vocês são os profissionais disso, avaliam, são meticulosos em separar, garimpar, então eu acredito que talvez sobre alguma coisa (risos), não sei.
P/1 – A gente manda pra você, inclusive. Obrigado viu!