INFÂNCIA
O dia prometia bonito, afinal eu estava preste a realizar o sonho de toda menina de 10 anos: pilotar uma cozinhazinha de brinquedo. Toda menina, não. Alto lá Me refiro apenas às quase normais, como eu...
Bem, eu estava esfuziante de alegria Só faltava uma corneta para apresentar o me...Continuar leitura
INFÂNCIA
O dia prometia bonito, afinal eu estava preste a realizar o sonho de toda menina de 10 anos: pilotar uma cozinhazinha de brinquedo. Toda menina, não. Alto lá Me refiro apenas às quase normais, como eu...
Bem, eu estava esfuziante de alegria Só faltava uma corneta para apresentar o meu novo paneleiro e o luxento armário-gabinete com fogão e pés embutidos para minhas super amigas, Flavia, Mônica e Dirce Maria.
Elas também estavam animadas e vinham carregadas de comidinhas prá cá e pra lá para “nóis” esquentarmos no fogãozinho. Ainda bem, porque eu estava zerada de quitutes. Sem autorização de mami, não pude pegar de nossa cozinha nem meia colher de arroz.
Lá fomos nós inaugurar o fogão à vela, acendendo de 2 a 3 na sua barriga, digo, no forno. Cara, parecia de verdade Isso apesar de estarmos em uma cozinha natureba, instalada ao pé da árvore de nosso jardim. Arrumamos a mesa com uma toalhinha que não parava de dançar ao vento. Colhemos algumas flores, que se destacavam em vermelho e laranja na brancura da mesa.
Voando de alegria, tive uma belíssima inspiração, ao ver as vagens silvestres que balançavam na moita ao lado da árvore. Por que não acrescentá-las à nossa comida já pronta? Da palavra ao prato Rapidinho, debulhamos, a oito mãos, algumas vagens e enriquecemos nossa refeição com os legumes fresquinhos.
Bom, depois de tanto exercícios (pega cozinha, monta no jardim, bota a mesa, prepara a comida) estavam famintas, apesar de ser apenas umas 10 horas da manhã. Sentamos e mandamos balinha. Rapamos tudo no maior blá, blá, blá. Lá pelas tantas, já pela hora do almoço, D.
Dirce Maria se lembra de que era hora de voltar para casa.
Aceitei meio a contragosto. Não queria interromper nossa brincadeira. Mas tive de concordar. Nem podia reclamar, afinal a cozinha tinha sido belamente inaugurada e a pança estava cheíssima. O chato é que estávamos perto da hora do almoço e eu nem podia ouvir falar de comida. Me sentia simplesmente empanturrada.
Tudo o que eu queria era cama e travesseiro. Assim que minhas amigas saíram, fui para o quarto e me colei ao travesseiro. Quando minha mãe chegou para almoçar me encontrou maus... Minha cabeça estalava e a barriga pegava fogo e doía.
Minha mãe achou melhor me levar ao médico. Ao sair para pegar um táxi, deparou-se com as mães de minhas amigas. Elas estavam agitadas e nervosas conversando. Minha mãe foi direto até elas, à procura de esclarecimento. Ao saber que minhas amigas também estava passando mal, minha mãe pediu um tempo e voltou para casa. Ela estava furiosa Queria saber o que tinha eu aprontado. Quando lhe falei, orgulhosa, de nosso piquenique e da minha criação culinária (feijão com ervilhas silvestres...), ela arregalou os olhos e começou a gritar: “Que ervilhas, menina? Não te proibi de mexer na dispensa?” Mal conseguindo falar, de estômago prá lá de embrulhado, expliquei que as ervilhas eram fresquinhas e do jardim.
Ela fechou os olhos, respirou fundo. Quando me olhou de novo, tentava demonstrar, de forma pouco convincente, calma. Me perguntou quem tinha sido convidado para o “piquenique” e, ato contínuo, saiu atrás das mães de minhas amigas para explicar o ocorrido.
Agora eu estava perdida, pensei comigo mesma. Minha mãe voltou com sua bolsa a tiracolo, me tirou da cama e conseguiu me botar no carro. Depois de muito piorar, com o sacolejar do carro, simplesmente apaguei. Quando
voltei à tona, estava meio fracote, mas alegre e feliz. Me sentia melhor como minhas vizinhas de quarto de hospital. Diga-se de passagem, amiga que se preze é outra coisa Até lavagem estomacal fizeram, solidárias, comigo. Depois de umas tantas, voltamos para as respectivas casas.
No dia seguinte, acordei ótima e com uma fome danada. Espiei pela janela do quarto a bela árvore de nosso jardim. Nada da minha rica cozinhazinha. Aliás, nunca mais botei os olhos nela. Confesso que o episódio me deu uma boa balançada. Pergunte hoje do meu affair com a culinária. Quando estou muito inspirada, capricho no café. Quando não é mesmo o meu dia, mas é o dia do meu marido, que insiste pedindo algo mais substancial, me lembro da inauguração da minha primeira e última cozinha cantando:
“Era uma cozinha muito engraçada,
não tinha teto, não tinha nada,
ninguém podia comer feijão,
porque as vagens brotavam ali...”
(história enviada em abril de 2010)Recolher