Entrevista de Maria Holanda Lopes Carvalho
Entrevistada por Luiz Egypto
11/03/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número SINPRO_HV003
Transcrito por Aponte
Revisado por Luiz Egypto
00:30
P/1 - Bom dia!
R - Bom dia!
00:44
P/1 - Eu gostaria que a senhora começasse dizendo o seu nome comp...Continuar leitura
Entrevista de Maria Holanda Lopes Carvalho
Entrevistada por Luiz Egypto
11/03/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número SINPRO_HV003
Transcrito por Aponte
Revisado por Luiz Egypto
00:30
P/1 - Bom dia!
R - Bom dia!
00:44
P/1 - Eu gostaria que a senhora começasse dizendo o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento?
R - Maria Holanda Lopes Carvalho, eu nasci no dia 9 de fevereiro de 1939, Porteiras – Ceara, no Cariri.
2:00
P/1 – O nome dos seus pais professora?
R - Meu pai era José Lopes de Holanda, é falecido e minha mãe também falecida é Mitéria Lacerda Holanda.
2:18
P/1 – Qual era a atividade do seu pai?
R - Meu pai era comerciante.
2:30 – Lá na sua cidade?
R - Meu pai era um pouco nômade, ele viajava muito, mudava muito e em cada lugar que ele chegava ele montava o seu comércio.
2:48
R - E a atividade da sua mãe, qual era?
R – A minha mãe também era comerciante e dona de casa.
3:08
P/1 – A senhora tem irmãos?
R - Nós éramos seis, depois fomos perdendo e hoje eu só tenho uma irmã, mora aqui em Brasília também.
3:33
P/1 – Qual a posição da senhora na escadinha dos irmãos?
R - Eu sou a penúltima, teve um irmão depois de mim, mas faleceu também.
3:46 – A senhora conheceu os seus avós?
R - Eu conheci, mas assim era muito criança, não lembro. Só uma avó, Maria, a quem nós chamávamos Mainha, é que viveu mais tempo, eu já era até casada quando ela faleceu.
4:15 – Professora, a senhora se lembra do nome dos seus avós, tanto maternos como paternos?
R - Meus avós paternos eram José Lopes de Barros e Luzia Gomes de Sá, meus avós maternos José Thomaz de Lacerda e Maria Santana de Souza.
6:24
P/1 – Os seus pais falavam dos seus avos, de onde eles vieram, se eles eram da região, a senhora tem histórias dos seus avós?
R - Os meus avós paternos saíram do Pernambuco no tempo de uma revolução que houve lá com os Pereiras. Então eles faziam parte dessa família e saíram de lá para o Ceará. E minha avó materna. Meu avô nem minha mãe conheceu. Mas minha avó materna, saiu depois de que minha mãe casou que ela foi morar com a minha mãe.
7:13
P/1 - Professora como é que era Porteiras, como é que era sua cidade? Fala um pouco de como é que era a cidade da sua infância.
R – Porteiras é uma cidade pequena do Ceará, no Cariri, o lugar onde eu nasci era um sítio, a gente chama lá sítio, o nome é Caracuí. Então a gente ri com a história do Cariri, porque a sala e o quarto ficavam no Ceará, atrás ficava Pernambuco, do lado direito ficava Rio Grande do Norte e do lado esquerdo a Paraíba. Então eu nasci nessa trempe, como se diz. Quer dizer que eu abro a boca e já identificam que eu sou nordestina.
8:35
P/1 – Professora, como é que era sua casa, como era essa casa que a senhora morava? Descreve ela, por favor!
R - Quando eu nasci e quando eu era jovem, é isso?
8:46
P/1 – A casa em que a senhora morava lá em Porteiras.
R – Lá em Porteiras no sítio era uma casa de taipa, que lá chama de taipa, que é de barro, não sei se você conhece? Mas na cidade era uma casa de tijolos, uma casa que ficava numa esquina. A frente era virada para igreja, a única igreja de lá, e o lado da casa é onde todas as pessoas que iam para o cemitério, todos os falecidos, passavam lá. E quando nós ouvíamos o sino, todos os falecidos quando morriam tinham que passar na igreja, porque não tinha capela em cemitério. Então o sino batia: quando era anjo, que era criança, era um tipo de toque do sino, alegre; quando era um adulto, chamávamos sinal dobrado. Era um sinal muito triste: a gente já sabia se morreu um adulto, se morreu uma criança. E passava todos subindo a ladeira para o cemitério.
10:09
P/1 – Como é que eram as brincadeiras da criançada nessa sua época? De que a senhora brincava?
R – Brincadeira de roda, fazer guisado. Fazer guisado era fazer comidinha: juntava as crianças da vizinhança, levava as coisas de sua casa, nós fazendo a comida que era mais carne assada, feijão e arroz. Nós lá não tínhamos verduras. Tinha verdura quem era rico, que podia mandar comprar fora, mas nós não tínhamos. Então era feijão, arroz, carne e farofa a comida. E era isso que nós fazíamos nos nossos guisados.
11:01
P/1 – A criançada tinha obrigações na casa, sua mãe passava tarefas para vocês dos serviços de casa?
R – A minha família teve vários altos e baixos, um tempo nós vivemos muito bem, outro tempo nós ficamos bem piores, mais pobres. Sempre que nós estávamos bem, minha mãe colocava uma pessoa em casa para ajudar, porque minha mãe vendia no comércio. então a minha mãe, Ela tinha uma sabedoria intuitiva muito grande, ela punha cada um dos filhos para ter um dia para ajudar a secretária, ela dizia que era para nós aprendermos para se um dia nós tivéssemos necessidade nós saberíamos fazer as tarefas de casa.
12:04
P/1 - Sabia decisão! Me diga uma coisa, quais eram os produtos que os seus pais vendiam mais amiúde? O comércio deles era dedicado basicamente a que?
R – Olha, meu pai tinha um armazém. Armazém na época era vender em atacado, muita coisa, por saco, e minha mãe trabalhava na mercearia que nós chamávamos de bodega. Na bodega vendia por quilo, por meio quilo, então era isso, a carne por peso. Então nós tínhamos essa tarefa de trazer do armazém, tanto vendia no armazém como vendia na bodega, e na bodega era por quilo, meio quilo, gramas.
13:05
P/1 - A senhora chegou a trabalhar no armazém ou na bodega com seu pai e com a sua mãe?
R - Eu fiquei com eles, mas trabalhar eu não trabalhava, mas eu vigiava! Porque tinha a frente que era a bodega, e tinha atrás o lugar onde tinha mesa e as pessoas bebiam, e eu ficava sempre lá olhando, primeiro porque minha mãe entrava para lá e sempre era homem que estava lá, ela tinha, nesse tempo, era um escrúpulo muito grande, a gente ficava lá! O meu pai não morava com a minha mãe, e a gente ficava com a minha mãe. E lá fora a gente ficava vigiando também quem saia sem pagar. Mas vender mesmo pesando essas coisas, não vendia não.
14:05
P/1 – Professora, e a escola, qual foi a sua primeira escola?
R – Minha primeira escola foi em Porteiras, no Ceará. A minha mãe, apesar de ser semianalfabeta, dava muito valor à educação. Então nós estudávamos numa escola pública, mas quando nós tínhamos condições ela nos colocava numa escola particular, para que nós nos preparássemos para ir para escola, nós já íamos mais ou menos prontas para escola. É como se hoje a pessoa bota uma pessoa na sua casa para preparar o dever do seu filho, lá nós tínhamos a escola pública e tinha uma pessoa da escola particular que a gente ia e se preparava. Era muito fraco o ensino, você sabe que além de o Brasil já ter um ensino muito aquém, imagina no Nordeste, no sertão do Cariri. Então minha mãe tinha esse cuidado de pagar uma pessoa para dar aula particular para nós.
15:23
P/1 – Sua mãe é uma pessoa muito atilada, muito visionaria.
R - Muito sábia, eu acho!
15:32
P/1 – Neste primeiro período escolar teve alguma professora que tivesse marcado a sua lembrança da qual a senhora se lembra até hoje?
R – A primeira professora que eu tive lá em Porteiras era chamada do Carmo, deve ser Maria do Carmo, mas nós chamávamos do Carmo. Dava aula na casa dela, e depois nós fomos para o, chamava grupo escolar, nós fomos para o grupo escolar, e ela também era professora lá, então eu me lembro dessa professora. Já em Mauriti, onde nós fomos morar depois – que eu te falei, meu pai era nômade – lá em Mauriti nós tínhamos a escola pública, que era o Grupo Escolar José Leite, avô de Wilson Braga, um deputado muito conhecido aqui em Brasília. Tudo que teve lá, todas as escolas, escola normal, faculdade, tudo foi o Wilson que fundou. Então ele colocava o nome de pai, de avô dele. O grupo escolar José Leite era um colégio público, grande, na rua principal, e eu lembro que os professores todos tinham que ter pelo menos o curso normal, chamava pedagógico. Então as aulas eram boas, eram professores simples, eram como nós, se identificavam com os alunos, porque eram todos de lá. Eu tinha uma professora em Porteiras que me marcou muito, chamada Auristela, e lá em Mauriti eu tive uma professora chamada Zozema. E os professores de Conceição, na Paraíba, onde eu morava do ginásio em diante, eram muitos, eram 4, 5, 6 dependendo da matéria. As aulas nessa época tinham palmatória, tinha sabatina. A professora fazia aquela fila horizontal de alunos para as aulas de matemática, se ela perguntasse dois mais dois, respondia, se ela perguntasse três mais quatro e o aluno não sabia, ela perguntava ao da frente; não sabia, perguntava ao outro; e aquele que respondesse [certo] saía dando bolo – chamava bolo –de palmatória do primeiro até o último antes dele. E quando não sabia, quando batia aquele bolo delicado, ela pegava a palmatoria e ensinava aquele que bateu como era que batia. Era duro. Quem não aguentava saia da escola, mas quem ficava aprendia.
19:54
P/1 – Aprendia na dor professora?
R – Aprendia na dor!
20:00
P/1 – A senhora chegou a levar algum bolo, ou não?
R – A sim, porque eu sempre fui muito ruim em matemática, matemática era o bicho papão, né! Sempre fui muito ruim, assim até multiplicar eu ia bem, mas foi para dividir era um terror.
20:20
P/1 - Então chegou em casa várias vezes com a mão inchada.
R - E os pais achavam bom, achavam muito bom! Lá em Conceição tinha uma escola fundada pelo padre, o pároco da paróquia, era uma escola paroquial. Então, se a pessoa não soubesse responder, o próprio padre era quem batia na mão da gente com a palmatoria. Aprendi muito com ele, nós aprendemos muito com ele, eu falo o seguinte, sem medo de errar: o que eu aprendi, o que eu trouxe, o que eu levei para umas cidades, o que eu trouxe para Brasília eu aprendi com esse padre. Era padre José de Souza Neto, aprendi com ele. Lá no interior do Ceará, da Paraíba, o padre era o doutor, era o juiz, era o delegado, era o advogado, era a autoridade máxima, era o padre, e esse era um educador também. Então nós aprendemos com ele!
21:40
P/1 – Professora como é que ser tratava, como é que cuidava de uma mão depois de levar um bolo com a mão inchada, como é que fazia para curar essa dor?
R - A gente só fazia massagem, botava na água fria, os pais da gente achava que estava certo! Hoje se um professor olhar feio para um aluno, eu digo isso porque eu fui professora, aqui mesmo no setor Norte onde eu moro, o Centro Educacional Sete, eu trabalhei 20 anos antes de aposentar, então aqui se olhar feio para um aluno o professor está ferrado. Mas lá não, lá o professor tinha toda autoridade para bater na mão do aluno se ele não soubesse.
22:35
P/1 – Professora o que essa menininha Maria de Holanda queria ser quando crescesse?
R – Olha, eu queria ser cantora, aliás eu canto né, mas não é aquela cantora, eu sou cantora de banheiro. Eu queria ser cantora e queria, parece que eu nasci para ser advogada, porque tudo no mundo eu arranjo uma defesa. Eu me defendo, defendo as pessoas. E eu comecei estudando Sociologia. Quando eu vim da Paraíba para Brasília eu fui estudar na UnB, então lá na UnB eu fui jubilada, porque eu fazia greve, as greves eram longas, era suspensa, no fim fui jubilada, fiquei sem estudar, porque eu não tinha condições de pagar. Fiquei sem estudar até vir a Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, que não tinha fins lucrativos. Eu fui estudar lá, fazer Artes Cênicas.
23:53
P/1 - Antes de chegar em Brasília professora, me diga lá atrás ainda no nordeste, qual foi o primeiro trabalho que a senhora fez, que a senhora teve que assim pagasse um ordenado, um salário para a senhora?
R – Olha, já foi em Conceição na Paraíba, nós passávamos seis meses sem receber o salário, então a gente ficava comprando, não sei se fala aqui, comprando fiado na bodega como a gente falava. Quando vinha o pagamento para coletoria, chamava coletoria, quando vem o pagamento, nós íamos para a porta, mas lá na porta já estava aquela pessoa da bodega onde nós comprávamos com o caderninho, entendeu? Então quando nós recebíamos, ela já descontava ali, às vezes nós não ficávamos com nada. Porque a gente comprava a comida para sobrevivência, então a gente não ficava com nada, ela já ficava ali. Era desagradável, era! Mas era um direito dela. Então é difícil, nosso salário era pouquíssimo, nessa época para ter um emprego público precisava que alguém arranjasse, não tinha concurso público. Então tinha que cair nas graças de alguém, e era sempre político. Eu tive dificuldade porque eu sempre fui de esquerda, eu não sabia nem o que era esquerda, mas eu era contra o governo. Mas mesmo assim eu trabalhava, dava conta do meu recado, era muito estimada pelos pais dos meus alunos, por meus alunos, e eu sempre me identifiquei com eles.
Eu achava o seguinte, eu dizia para eles: eu sou igual a vocês, porque eu moro aqui onde vocês moram, eu vivo aqui onde vocês vivem, na minha mesa tem o que tem na mesa de vocês, então nós somos iguais, apenas eu tenho mais idade, mais experiência que passo para vocês. Então eu sempre me identifiquei com os meus alunos e com os pais dos meus alunos.
26:28
P/1 – Então o primeiro trabalho remunerado da senhora foi já de professora?
R – Foi! Só que eu não era formada ainda. Aí eu fiz o curso normal, pedagógico que chamava e fiquei trabalhando lá podia. Aí quando eu vim para Brasília foi que tinha que ter curso superior e eu fui fazer.
26:52
P/1 - O que motivou a senhora vir para Brasília, qual foi o motivo de ter mudado de cidade?
R – Olha, nós éramos bastante pobres, apesar da minha família, da minha mãe. Minha mãe sempre falava assim, tem que estudar e tem que viver em local legal, que é para ser legal, tem que viver no meio de pessoas de respeito para ser respeitado e ter respeito. A minha irmã veio para Brasília na época acho que do Tancredo Neves, minha irmã veio para Brasília, então minha irmã vindo para Brasília, ela passou muita necessidade aqui em Brasília, ela ficou até em casa de família, mas ela não saiu. Ela falou: eu não mando nunca falar para minha família como é que eu vivo aqui. Então ela começou a trabalhar, e ia para feira do Guará, ajudava nas bancas de feira, até ela conseguir comprar uma banca, isso era na ditadura, pós-ditadura. Eu cheguei na pós-ditadura, mas ela foi na ditadura mesmo. Então até ela conseguir comprar uma banca, ela trabalhava em banca dos outros. E eu vim porque lá a gente não tinha como sobreviver e ela chamou para vir para cá. Porque a nossa família é assim: se não tiver nada, se um tiver tem que dividir com todos os outros; se um perder, todos os outros perdem. É uma coisa muito bonita, pode ser até ruim, mas é bonita. Então a minha irmã estava aqui, já estava melhor, já tinha comprado a banca e nós viemos para cá. Então meu marido tinha trabalhado muito tempo em São Paulo, ele aqui conseguiu pela graça de Deus que eu acho que nós não temos competência para isso, ele conseguiu trabalhar no IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]. E eu cheguei aqui fui trabalhar numa creche, a creche era conveniada com as igrejas, e quando acabou o convênio todo mundo foi demitido, e eu fiquei. Não entendi porque, mas eu fiquei, fui chamada, era conveniada com Serviço Social, então eu fui convidada para ficar trabalhando pelo Serviço Social. Daí eu fui trabalhar, que era em Ceilândia, até eu passar no concurso da Fundação [Educacional do Distrito Federal]. Quando eu trabalhava numa escola, eu sempre carreguei a bagagem do Nordeste, e eu, modéstia à parte, sou muito criativa, e eu sempre fazia as coisas, criava, fazia pastoril, não sei se você sabe o que é pastoril? Sabe o que é né! Eu fazia pastoril, fazia dança com os alunos, fazia brincadeira de roda e eu terminei sendo professora de Artes sem ser formada. Aí depois que eu pude estudar eu fiz justamente o curso, que eu só tinha dois cursos que eu tinha vontade de fazer, Sociologia e Artes Cênicas. Aí eu fiz Artes Cênicas.
31:47
P/1 – Professora a senhora quando veio para Brasília já veio casada, é isso que eu entendi?
R - Eu já vim casada, com os meus filhos. Eu tive gêmeos, os gêmeos tinham morrido, eu vim com os que estão aqui comigo. Aqui em Brasília eu perdi uma filha, no dia que nasceu o primeiro filho dela: nasceu pela manhã e ela morreu à noite. Eu crio esse meu neto, está hoje com 15 anos. Os outros, um mora vizinho a mim, a outra mora aqui comigo. Lá no Nordeste a gente costuma dizer que é feito uma galinha: coloca os filhos tudo embaixo da asa, fica tudo embaixo da asa.
32:39
P/1 – Como é que foi sair de uma cidadezinha pequena no interior do Nordeste, no Vale do Cariri e chegar numa capital como Brasília? Com todos os seus problemas, a sua imensidão, seu cerrado, como é que foi esse choque da chegada?
R – Olha, eu tinha muito medo, eu tinha muito medo, ainda hoje eu tenho medo de carro, medo de acidente de carro. Eu tinha muito medo de ser atropelada, eu não tinha noção dos sinais de trânsito, que tinha sinal de trânsito. Eu tinha muito medo porque eu sabia que em cidade grande tinha mais carro na rua do que gente, então eu tinha muito medo. Aí depois que eu cheguei, que eu vi como é que era, ainda hoje eu tenho muito cuidado, mas eu perdi assim o medo, porque eu aprendi, eu renasci, porque eu não sabia e fui aprendendo. Mas aí tudo era distante, como tudo é distante, para você ter ideia, eu moro onde eu posso morar, que é no setor M Norte. Por quê? Porque a minha casa é própria, a escola que a minha filha é proprietária é própria, então eu prefiro do que morar, vamos supor, no Plano Piloto, onde for para ficar numa coisa que não é minha, que eu tenha que pagar aluguel, que quando estou bem pedirem o imóvel, para ter que sair. Então eu moro onde eu posso morar. Nesta casa eu moro uns trinta e poucos anos, e eu sou muito apegada. Então sair de lá [do Nordeste] para cá [DF], eu tinha muito medo. Como a minha irmã morava aqui e me assegurava, me transmitiu confiança, eu vim. E foi graças a Deus. Agradeço muito ter vindo, amo muito o Nordeste, ouço muita música nordestina. A Elba Ramalho é da minha cidade, ela era a borboleta do meu pastoril. Eu fazia o pastoril, que são o Partido Encarnado e o Partido Azul, o Partido Encarnado de Jesus, o Partido Azul de Nossa Senhora. E tinha os duelos. Eu fazia o pastoril e ela [Elba] era a Borboleta, por dois motivos: porque ela era boa e porque ela tinha dinheiro para se arrumar, para comprar aquela roupa; o pai dela era o dono do único cinema que tinha lá, ele emprestava de segunda a quinta para nós, para a gente fazer as apresentações que a gente chamava drama. João Nunes, o pai dela. Até agora, quando ela vem aqui, eu me comunico com ela. Eu tinha muito medo, mas quando eu cheguei aqui, também eu vim morar numa cidade pequena. Taguatinga é uma cidade grande, mas eu moro num bairro, chamado Setor M Norte, e Taguatinga eu domino, para andar em qualquer lugar de Taguatinga. Então eu estudei na faculdade Dulcina de Moraes, mas era muito perto da Rodoviária, aprendi aquele caminho para ir para lá e voltar da Rodoviária, e dou graças a Deus de ter vindo.
36:33
Professora quais foram os primeiros movimentos sociais com os quais a senhora teve contato?
R – Na Paraíba eu já participava de movimentos políticos, porque o que tinha lá era o igreja ou política. E lá nós tínhamos o Wilson Braga, que era um deputado federal e a família dele, o irmão era perfeito. Então, eu sempre participei. E aqui eu participei da primeira greve. Quando eu fui contratada para a Fundação, uns seis meses [depois] houve a maior greve do Distrito Federal que ainda hoje é lembrada, que é a greve de 1979, eu já participei dessa greve. Fui processada, fui demitida, fui presa. E depois eu não tinha nada que abonasse a minha conduta, era só lutando pelos meus direitos, então eu fui liberada. Quem ajudou na minha liberação foi o saudoso Maurício Corrêa, lembra do Maurício Corrêa? Foi ele quem nos tirou da cadeia, a mim, Olímpio, essas pessoas assim.
38:06
P/1 - Essa greve de 79 foi no mesmo ano que se formou o SINPRO, né! A senhora participou da criação do SINPRO?
R – Participei! Eu participei desde a Associação, era Associação dos Professores, aí depois foi transformada em sindicato, já foi o Olímpio que fez esse trabalho, e depois o Libério.
38:35
P/1 – E como é que foi esse processo, a senhora era uma militante ativa, como é que a senhora se enquadrava nesse processo?
R - Sempre fui militante, sempre fiz discurso lá na rampa, sempre fiz caminhada, sempre invadi o Congresso com os outros, passava dia, passava noite. E era ditadura. Eu me lembro que uma época tinha uma princesa aqui em Brasília e nós estávamos acampados no Congresso, e nós não saímos de lá: ela tinha que passar entre os militantes. Essa questão da militância é difícil, porque a um certo tempo, quando a greve é decretada ilegal, a maioria foge. Então teve essa greve de 1979, quando terminou, nós éramos seis lá na rampa, os outros todos tinham saído. Eu me lembro, que eu ficava em cima do caminhão, e teve uma greve que não tinha quase ninguém, e eu me lembro que eu fazia paródia – sou boa em paródia, modéstia à parte. Então eu fiz a paródia assim: “Vinde pai, vinde mãe/ vinde todas as nações/ o ensino público morreu, o estudo escafedeu/ e foi subsidiar/ a escola particular”. E aí eu fazia toda a história, era uma sátira a nossa situação, e o que era feito conosco, os professores.
40:30
P/1 – Professora eu queria que a senhora falasse um pouco de uma pessoa que não está mais conosco, que é o Olímpio Mendes, como é que ele era? Como é que a senhora pode descrever essa pessoa, quem era Olímpio Mendes?
R – Olímpio foi uma pessoa excepcional, ele trabalhava na Fundação, trabalhou na Fundação e ele fundou a Associação, depois de fundado a Associação, ele transformou a Associação em Sindicato. E ele era casado, ele foi preso, durante a prisão dele a esposa dele morreu, morreu de sei lá [o quê], era muita pressão, passou muita fome, muita necessidade. Porque ele não tinha mais salário, e ela faleceu, e ele ficou com os filhos sozinho para criar. Então era uma pessoa muito importante e participava de todos os movimentos, em todas as cidades satélite. E eu ia junto. A gente um dia fazia uma regional em Brasilândia, outro dia em Ceilândia, a gente fazia as regionais para preparar para as assembleias, e nós conseguíamos lotar as assembleias. E nossas assembleias ficaram, e até hoje, em frente ao [Palácio do] Buriti. Em frente ao Buriti eu sou conhecida de cantar minhas paródias. E uma vez nós invadimos o Buriti, oito horas da manhã. Então nós ficamos lá. Enquanto tinha lanche, nós lanchamos; secretaria fechada, tudo fechado. E a gente lá nos corredores: ia embora um, ia embora outro, ia dando fome em um, ia embora outro. Porque nós invadimos assim: ia de um a um, como se fosse resolver um negócio, e ficava lá dentro; ia outro como ia resolver um negócio e ficava lá dentro; daqui a pouco estava cheio. Daí já eram seis horas da tarde, eu sou diabética, uma fome que estava! Aí a minha filha Jaqueline, a que estava aqui, ela levou uma marmita para mim, porque lá não subia comida. Aí eu fiquei na janela no oitavo andar para receber essas marmitas, era pelo cordão, puxava, puxava, quando chegou pertinho de mim, que eu peguei assim, aí, na outra janela, cortaram o cordão e ela espatifou lá embaixo com a comida todinha e eu fiquei com fome. Porque não era para comer, não era para beber remédio, tinha os meus remédios que eu sou diabética também, vinha tudo, mas eu falei: “Nós não vamos sair!” A gente dormiu lá. Eu fiz parte, graças a Deus eu não me arrependo, e eu falo para meus filhos, eu falo para eles terem cuidado porque eu sempre tive muita consciência política. Eu falo para eles terem cuidado, mas nunca deixar de reivindicar seus direitos. Agora ser como eu fui, nunca, eu vou falar a palavra que nós falamos no Nordeste: nunca esculachei com as autoridades, nunca falei palavrão. Eu defendia a categoria, mas com maior respeito a quem estava lá. E tanto que em toda comissão de negociação eu participava. Depois de aposentada até agora, que tem a pandemia que ninguém vai mais, eu faço parte. E quando é nas assembleias regionais que tiram delegado, eu sou candidata, eu venço. Aí eu vou com delegada para Assembleia Geral, aí eu fico como delegada, e fico participando, graças a Deus.
44:58
P/1 - A senhora chegou até algum cargo formal na diretoria do Sindicato?
R – Eu era diretora do sindicato. Eu nunca quis ser direção de nada, nem de escola. Eu acho que direção fica assim muito preso ao sistema, e mesmo de Sindicato tem aquela hora da reunião que decide se para, e eu nunca quis ficar, eu sempre quis ser uma militante, mesmo na diretoria eu era uma militante. Eu dizia sim ou não nas assembleias de acordo com a minha vontade. Eu não me lembro de ter votado uma vez pelo final da greve. Na reunião diretoria eu não votava pelo final da greve; quando todo mundo do meu grupo votava, eu às vezes fazia abstenção do meu voto, e na assembleia eu nunca votei para parar uma greve. Conheço as escolas todas, por que visitava todas elas na greve, e os professores vêm da sala de aula para ouvir a equipe que está visitando. Tem professor que não levantava nem os olhos para nós, ficava vendo o celular. Mas eu ficava. É tanto que Gama, Brasilândia, essas cidades todas, Sobradinho, Planaltina, eu conheço todas de ir junto na greve, de participar na greve e nas assembleias que tinha lá.
46:45
P/1 – A fora essa mobilização de 79 que a senhora se referiu, a senhora se lembra de alguma outra que tenha marcado a lembrança da senhora, alguma mobilização que tenha sido importante na sua vida de ativista?
R – Todas mobilizações nossas foram importantes, foram grandiosas. É evidente que na época da ditadura era mais difícil, mas eu não sou boa para datas, não. Mas teve uma greve que eu trabalhava e nós invadimos, eu já era aposentada, que nós não pudemos invadir o Buriti, então nós invadimos ali embaixo, embaixo daquela entrada. A polícia ficou lá, para a gente não entrar, e eu fiquei lá o tempo todo. E tem uma coisa que não precisa você publicar, mas teve uma hora que nós não entrávamos. Então eu rodeei e fui lá para trás do Buriti, lá também não entrava, aí eu pedi ao rapaz para ir no banheiro, ele disse que não podia: “Não pode ir”. “Mas eu preciso ir ao banheiro, cheguei aqui de manhã.” “Não pode ir.” Eu disse: “Tá bom!” Aí eu fiz de conta que estava falando ao vivo, e falei assim: “Eu quero que a diretoria que está aí em frente vendo o sindicato de plantão, convide a imprensa para vir aqui, porque eu vou fazer xixi aqui na porta do Buriti, porque o guarda não deixa eu entrar e eu não vou embora, se não, não fico mais aqui, e eu vou fazer aqui!” Aí o rapaz: “Não, não, pode entrar, pode entrar”. Eu entrei e não saí mais. Precisa ter astúcia para isso.
48:57
P/1 – Claro, não é para qualquer um não, muito bem sacado! Como é que a senhora avalia esse momento atual da atuação do SINPRO, o que significa para senhora o sindicato hoje?
R – Eu acho que é a pior época para o SINPRO, porque o SINPRO ele usa as ruas para fazer movimento, mobiliza os professores; agora o professor não pode sair de casa por causa da pandemia, o professor não pode se aglomerar numa assembleia, não pode ir para uma reunião fechada, então é uma das piores épocas. E é porque o nosso sindicato, segundo a minha avaliação, é o melhor sindicato do Brasil, porque ele consegue reunir os professores, consegue mobilizar, consegue vitórias para nós, mesmo nós em casa. Liga, faz videoconferência, põe a gente direto para falar com os governantes, quando tem um [telejornal] “DF-TV”, uma coisa assim que tem um governador, nós somos avisados. Tem pessoas que militam muito, mas não gosta de falar em público. Eu gosto. Eu eu uso o microfone, o telefone, eu falo daqui de casa. Eu acho assim: esse momento é o pior momento do sindicato, mesmo assim ele sobrevive, e ele sobrevive com muita honra. Eu sou apaixonada. Tem três coisas que eu respeito muito: a minha família, a igreja e o sindicato. Eu sou católica praticante, então a minha família, a igreja e o sindicato. Só que eu não sou aquela pessoa alienada: eu sou da igreja, praticante, mas eu nunca faltei a uma assembleia. E um dia que eu fui à igreja, é claro que eu não entrava com botton, mas na secretaria, eu fui pagar o dízimo, e aqui [no peito], “Estamos em greve”, o padre falou assim: “Holanda você não pode fazer greve, não”. Eu disse: “Eu posso, padre, porque eu não vivo do dízimo”. Ele também não falou mais nada. Teve um dia que lá na missa ele falou que isso e aquilo, não sei o quê, e eu calada estava, calada fiquei. Porque eu respeito muito o padre lá no altar. Eu não ia falar nada, mas eles sabiam. E me respeitavam. Tinha aquele padre meio de direita, que você sabe que tem muito, mas eu respeitava. Mas nunca deixei de fazer meu movimento, não.
52:16
P/1 - A senhora se aposentou quando professora?
R – Em julho de 1995.
52:27
P/1 - Depois de aposentada continuou vinculada ao Sindicato?
R – É! Continuei na militância, eu sou sindicalista, sou associada e continuei na militância, mas nunca entrei para contrato temporário. Nunca entrei na Fundação como contrato temporário. Eu fui professora concursada, eu entro na militância como aposentada, trabalhei até o último dia, mas nunca trabalhei com contrato temporário. Primeiro porque eu acho que tem que fazer concurso; segundo, porque eu acho que o professor de contrato temporário é muito submisso, porque ele está ali, mas ele não pode fazer um movimento. Eu tinha uma filha, essa que já faleceu, que ela foi contrato temporário, mas na época da greve eu tirei ela da escola, porque eu falei: “Você não vai ficar na escola, pode pedir demissão”. Ela pediu. Porque eu sabia que a realidade era essa, ela tinha que pedir, ela pediu, não é porque a gente não tinha dinheiro não, mas é uma questão de entendimento, de caráter. Deus me livre de eu saber que todos os meus colegas estão numa luta, e eu vou usufruir daquela luta, e eu estou na escola. Deus me livre!
54:07
P/1 - Isso e chamada à ética da militância, né professora?!
R – Sim, ética, graças a Deus! Eu te falei, minha mãe tem uma psicologia intuitiva, mas ela ensinou muito para mim, muito para nós, aprendi muito com ela.
54:27
P/1 – Eu já gostei da sua mãe! Quais a senhora considera serem os maiores desafios do SINPRO hoje?
R – Bom, na minha avaliação o SINPRO teve dois desafios: um, quando nós elegemos Cristovam Buarque. Por quê? Porque era nosso, fazia greve conosco, sentava no chão conosco, então para a gente não deixar Cristovam desonerar foi difícil. Porque ele era um secretário, ele não podia mais estar sentado no chão conosco, mas nunca deixou de nos receber, e não demitia professor. Não demitia por causa da greve. Esse foi um desafio. E hoje, porque, desculpa a expressão que eu não sei da sua posição, e hoje nós temos um presidente que só se fizer análise para gente entender, fizer análise. Então são dois desafios, esse que nós vivemos, que uma hora diz uma coisa outra hora diz outra, e no tempo do Cristovam. Porque hoje a gente tem medo, o professor tem medo, o professor que é contratado agora não tem mais estabilidade. Os professores que tinham estabilidade, a maioria já aposentou, e o professor que entrou hoje não tem mais estabilidade. Então para ele é difícil, um pai de família, uma mãe de família, tem casa que é o marido e a mulher. Nós tivemos professor que foi tão coagido, ele e a mulher, na greve, que um faleceu: deu um problema de coração na hora da assembleia e faleceu. Precisa ser muito forte para essas coisas.
56:55
P/1 - Professora o que a senhora pensa do futuro da educação no Brasil? Como é que a senhora enxerga depois de tanto tempo trabalhando e militando nessa área, como é que a senhora ver o futuro da educação no Brasil?
R – Eu acho que a educação tem tudo para ser melhor hoje, que tem os meios de comunicação, os professores estudam, são todos formados. Por exemplo, no Distrito Federal não tem um professor que não tenha o curso superior, a primeira coisa é fazer o curso superior. Então hoje nós temos condições de ter muito mais, um ensino muito melhor. Só que a primeira coisa, o professor, é desmotivado. Nós temos dez anos sem um centavo de aumento. Ex aluno meu, eu chego nas repartições públicas, às vezes eu estou em uma fila, eu entro, me atende logo, estão muito melhor do que eu financeiramente, um cargo melhor do que o meu. Só que eu sou idealista. Eu acredito na educação, eu não queria fazer outra coisa. Se eu começasse hoje, eu faria o concurso para professor novamente. Porque o professor ele molda, ele prepara a sociedade, ele tem aqueles alunos todo dia em sala que ele pode conversar com eles. Eu me lembro quando eu trabalhava aqui no Centro Educacional Sete, tinha professora que nunca fez greve. Eu já tinha entrado em greve, então eu ia de sala em sala para ver se convencia os meus alunos a não virem à aula. Aí você imagina, meu colega ali, furando a greve. Aí eu entrava, pedia licença, nunca discuti com meus colegas, eles é que sabiam por que estavam fazendo aquilo. Uns tinham razão, outros não tinham, mas era uma questão deles, eu não tinha que me meter nisso, eu tinha que convidar. Então, quando eu entrava na sala tinha professor que eu fazia o convite, e dizia: “A minha colega está aqui, ela está dando aula para vocês, mas eu quero falar uma coisa para vocês: ela sabe que eu estou falando a verdade. Quando voltarem as aulas, acabar a greve, nós vamos vir dar aula. Vocês virão porque vocês não tiveram as nossas aulas, dos professores grevistas. Ele
vai ficar em casa, ele já recebeu, ele pode viajar, ele vai ficar em casa, vocês virão novamente Você, colega, tinha que se preocupar com o seu aluno, que ele está aqui agora e ele vem depois. Porque você, na hora em que sair qualquer merrequinha, que eu falava, porque é merrequinha mesmo, sair qualquer merrequinha, você é o primeiro que chega para mim e fala: ‘Holanda, saiu alguma coisa?’ Estou mentindo colega? E o seu aluno vem porque você vem. Se você não viesse, ele tinha férias agora; e ele não vai ter nem agora, porque você está aqui, nem mais tarde, porque eu vou estar aqui e os colegas que fizeram greve”. Ficava lá, com a cara de tacho. Não falava nada. Foi isso que você perguntou? Perdi!
1:01:20
P/1 – Foi, foi sim! Professora o que a senhora diria para uma moça ou para um rapaz que resolvesse ser professor hoje? O que a senhora diria para ele ou para ela?
R – Primeiro, eu daria os parabéns! Porque ela está contribuindo com o país, dando instrução – eu digo instrução porque educação é em casa –, dando instrução para os professores e educando também. Porque como eu sempre falei para os meus alunos, eu estou fazendo greve, e você tem que fazer mais tarde, para você não ser como seu pai, que não tem um centavo de aumento e ele está lá:
ele não pode fazer uma greve, não pode fazer um movimento. Então você tem que aprender conosco, que se você fizer, você está lutando pelos seus direitos, você vai conseguir alguma coisa. E que seu pai, ele dá uma vida digna a vocês? Não dá. Mas não é porque ele não quer, é porque ele ganha pouco e ele não faz greve. Tem gente que trabalha numa repartição que não pode fazer, e eu tenho o privilégio de trabalhar numa categoria que sabe que precisa lutar. Então estou aqui ensinando vocês a lutar. E tinha aluno que não ia não, tinha aluno que não ia para escola, então quando voltava as aulas era aquela divisão de quem já foi, e que não foi. E os alunos assim eles respeitavam muito, você pensa que os alunos não respeitam o professor grevista? Respeita, tem aquele que algum próprio professor da cabeça pequena, fala mal da gente, mas tem uns que não falam bem, mas também não fala mal. Tem uns que fala que tá ali porque precisa, imagina eu? Eu tinha minha mãe com câncer. Sempre quando eu ia fazer um piquete, que a professora [fura-greve] falava que estava ali porque isso, porque aquilo, porque ela precisava, quando eu me inscrevia para falar, eu falava: “Professora eu respeito muito a senhora, mas a minha mãe tem câncer, está em estado terminal, a minha avó – [minha avó morreu com 101 anos e 22 dias] – a minha avó tem mais de 90 anos, vive há 10 anos numa cadeira de rodas, eu tenho quatro filhos, eu crio quatro sobrinhos da minha irmã que morreu e eu não furo greve. E eu explico a meu filho: ‘Sabe por que eu estou fazendo essa greve? Porque se eu não fizer, talvez mais tarde eu não tenha o que pôr na mesa para vocês comerem’. Então é por isso que eu estou aqui faltando a vocês”. Chegava meia-noite, três horas da manhã de reunião do sindicato, fazia alguma coisa ali para deixar feito, e ia! E falava isso para eles, e eles sabiam disso. E hoje eu crio neto e eu falo a mesma coisa. E eu só falo para eles respeitarem: fazer parte de movimento, mas sempre respeitando as autoridades. Você entende né, porque tem professor que fala lá, chama de vagabundo, disso, daquilo. Imagina se eu chamo um secretário de vagabundo, eu não vou! Ele foi eleito, às vezes até por mim, eu não vou fazer isso.
1:05:38
P/1 – Professora voltando um pouco para o lado pessoal, a senhora falou do seu marido, mas não disse o nome dele, nem com a senhora o conheceu. Como é que foi isso?
R – O meu marido é José Liberato Carvalho, meu marido é lá de Conceição na Paraíba, eu conheci ele lá, casei lá. Ele passou muito tempo em São Paulo, já era uma pessoa mais sociável, porque nós morávamos em uma cidade muito pequena, e ele já tinha morado em São Paulo. Mas meu marido é muito conservador, ele nunca me apoiou no movimento. Só que eu nunca deixei de ir. Para você ter ideia, fugir um pouco da história: quando eu prestei vestibular, ele sabia que eu ia prestar vestibular, e ele não queria que eu estudasse, sabe paraibano machão? Ele não queria que eu estudasse. Então nós não tínhamos carro nessa época, era uma casinha da SHIS (Sociedade de Habitação de Interesse Social). Então eu saí para ir para a greve, não para fazer faculdade, prestar o vestibular. Quando eu cheguei na parada ele estava, na parada não, quando eu cheguei na porta da faculdade, ele estava lá. Aí, eu voltei. Eu não sei se eu tive medo de escândalo, eu não sei se eu tive medo dele, que ele nunca bateu em mim, mas era uma coisa inédita ele estar lá na porta para eu não entrar. Quando foi com seis meses teve outro vestibular, eu chamei ele ali e falei: “Eu vou te dizer uma coisa: se você quiser ir para a porta da faculdade, você vá, mas vai sair em todos os jornais: ‘Marido e mulher se atracam na porta da faculdade porque ele não quer que ela preste vestibular’. Estou saindo!” Ele foi? Foi não! Que ele sempre assim, é muito importante é o que o povo pensa, eu acho importante o que a pessoa pensa de mim, mas que pense como eu. Não ser oportunista, viver do que o outro preparou para mim, por exemplo, meu marido um homem adúltero, eu vou querer ser adúltera porque ele praticou, eu não quero! Eu quero aquilo que dá certo para mim, eu apoio, então ele também nunca mais falou, só foi o que ele fez. Deus é tão bom para mim! Ele comprou uma chácara, aposentou e foi morar na chácara em Brasilândia. E eu fiquei nos movimentos. Aí depois eu tinha muita preocupação, porque a gente tem medo da pessoa ter uma coisa e morrer lá sozinho, né! Porque ele gosta muito de viver só, ele é muito sozinho, ele mora aqui em Brasília, mas ele mora sozinho, não somos intrigados nem nada, mas ele mora sozinho na casa dele na Vicente Pires. Eu tenho um filho que morou lá mais ele, até o filho sair. Tem uma casa no fundo, mas ele não é dessa, sozinho, é uma pessoa muito sozinha, dá dó, dá dó pessoa que é muito sozinha. Então aí Ele saiu, eu continuei minhas greves, e ele hoje não fala mais, ele falava muito quando eu ia para igreja, que eu queria ser mais que o padre, se eu comungasse na frente era para o povo ver, se eu comungasse atrás era para o povo ver, nunca dei valor essas coisas. Você vai para agradar a quem? Eu dizia: a mim! Estando satisfeita comigo estou com o mundo, e saia! Sempre respeitei, nunca esculhambei, nunca falei palavrão, primeiro que lá na minha casa não se falava, né, mas sempre fui! Então eu acho assim que eu sou nordestina porreta, entendeu?
1:10:00
P/1 – Sem dúvida que a senhora é uma nordestina porreta! Eu estou satisfeito, primeira coisa, qual é a profissão do seu marido mesmo? Que a senhora não disse a profissão dele.
R – Funcionário público, ele era artífice, funcionário público, lá ele era comerciante, aqui funcionário público, ele trabalhou aqui em coisa particular,
aí ele foi trabalhar no IPEA e ficou até aposentar.
1:10:34
P/1 – Muito bem professora! Eu estou satisfeito! Eu queria saber da senhora se tem alguma coisa que a senhora gostaria de ter dito e eu não estimulei à senhora a dizer, alguma coisa que a senhora queria ter dito e não disse?
R – Eu não sei aonde é que você vai colocar isso ai, mas eu digo assim, Eu não me arrependo do que eu fiz, eu me arrependo talvez pelo o que eu deixei de fazer, porque sem dúvida nenhuma eu poderia ter feito mais. Mas a questão de ser mulher, a questão de ser dura, a questão de ter uma família que dependia de mim. A minha irmã quando faleceu, eu fiquei com os quatro filhos dela para criar; o meu cunhado teve um trauma tão grande que ele passou seis meses sem falar, quando ela morreu. Ele era poliglota, ele trabalhou aqui no hotel das Nações, Hotel Nacional e ele saiu porque disse que aqui bastava falar inglês e lá tem muita firma em São Paulo tudo, e ele voltou para lá. Se eu tiver deixado fazer, Evidente que eu deixei de fazer muita coisa. , né! E eu me arrependo, e eu olho muito que as pessoas precisam de mim, Se eu deixei de ajudar alguém, eu me arrependo, mas também não me lembro. Às vezes as ajudas são outras, mas ajuda com a orientação, quantas colegas eu liguei meu telefone aqui, sem me preocupar com a conta, e fazendo piquete pelo telefone, que a colega não ia para escola, mas também não ia para a greve. E outras enchiam as escolas e quando a gente ia para negociação o secretario dizia assim: mas tá havendo greve? As escola estão cheias de professores. Entendeu? Então é uma questão difícil. Então eu ensino aos meus filhos a respeitar, mas não fugir do seu dever, seu dever de luta, saber discernir quando precisa, quando não precisa é muito importante a gente saber discernir as coisas. E sempre contar comigo para orientar.
1:13:25
P/1 – Professora como é que a senhora se sentiu dando essa entrevista para nós?
R - Eu acho que é uma honra, vocês me convidaram eu nem sei por que, né! Porque tem tanto professor aí, inclusive mais importante, que tem mais do que eu. Não importante no que ele faz, porque eu também me formei em tudo, né! Mas ainda hoje, por exemplo, o Ano passado [2020], no final do ano, houve uma reunião no SINPRO e eu fiquei tão sensibilizada: quando eu cheguei lá, a reunião era para me homenagear. Para mostrar a minha luta. E depois teve um jantar. Então fiquei muito feliz, muito encabulada e muito feliz, assim, de servir de exemplo para alguém. É muito bom a gente servir de exemplo. Aqui mesmo na minha parede tem uma foto de quando eu fui homenageada, e todo professor que estava lá escreveu, só não pegou meu rosto, mas todos escrevendo, eu pus mesmo na frente da minha porta, na sala. E tem professor que quando tem a greve liga para mim. Holanda o que você acha da greve? Eu não entrei ainda, porque não sei o que. O que você acha? Você está em casa? Não estou não, eu não deixei de ser professora, eu não estou na sala de aula, sou aposentada, mas o aumento que vocês recebem é passado para mim, foi a luta sindical isso. Quando professor recebe, porque você sabe que de primeiro não era assim. Mas hoje quando o professor recebe um aumento o aposentado recebe, isso foi uma greve de 100 dias para a gente conseguir, 100 dias. Então eu falo: olha acho que você ligou para a pessoa errada, porque eu nunca vou te dizer fica em casa, não vou. Porque eu não acredito, Eu acredito no coletivo, eu acredito que todo mundo junto tem mais força. Uma vez quando eu cheguei lá na comissão negociação, era Cristovam, e Cristovam sabia que eu era militante. Porque ele também é de esquerda, aí ele falou: “Nossa mãe do céu!” Falou para o outro: “Olha quem está aí: aquela que faz paródia para nós lá embaixo”. Que eu fazia as paródias, só que eu satirizava a nossa situação, mas mexia com eles também, o que eles estavam fazendo com a gente, e tudo. “Olha quem tá aqui!” Aí eu disse: “Eu estou aqui de boa, estou aqui para negociar, vamos negociar numa boa”. E aí fomos, até hoje, Agora não estou indo, mas quando tem eu vou para as assembleias regionais, eu vou para as assembleias gerais, eu me inscrevo para falar, e graças a Deus eu percebo que os professores gostam que eu fale. Procuro não falar asneira. Eu sei que o governo está fazendo o papel dele, embora o papel dele era atender nossas reivindicações, porque mais do que ninguém eles sabem que nós precisamos, como é que nós vivemos. Tem professor que mora lá no Setor P, no Setor O, será que é por que ele quer? Não! Ele gostaria de morar melhor, porque você sabe que lá até a segurança é mais difícil, mas é onde ele pode morar. É igual eu: eu moro onde eu posso, eu moro aqui no setor M Norte, graças a Deus a SHIS (Sociedade de Habitação de Interesse Social) me vendeu essa casa, depois eu quitei, depois eu aumentei, tomou conta do lote todinho, fiz uma sala muito grande lá atrás, um salão grande onde eu reúno as pessoas para conversar, reúno o meu grupo da igreja para ensaiar, onde eu posso eu encho a minha casa.
1:18:07
P/1 – Professora a senhora tem muita história para contar por isso que a senhora foi escolhida para dar esse depoimento para nós. Eu queria para encerrar que a senhora dissesse quais são os seus sonhos?
R - A gente sempre tem sonho. Eu jamais vou dizer que já tenho tudo o que eu quero. Graças a Deus eu tive a profissão que eu quis, tenho meus filhos vivos aqui, tenho os meus netos, mas eu tenho um sonho de todas as pessoas serem iguais um dia: toda pessoa ter o que comer. Eu tenho um sonho de ninguém viver, é triste, talvez você não veja isso, mas eu vejo todo dia Bom dia Brasil, eu vejo as pessoas penduradas no ônibus para ir trabalhar, pendurada em tempo de cair, de morrer, Deus não criou o ser humano para isso não, Deus criou o ser humano para ser feliz, para ter dignidade. Eu sonho com que todas as pessoas entendam que elas precisam mudar para mudar o mundo, porque se nós não mudarmos também não adianta, não é? Eu sonho com a paz, eu sonho com o amor entre as pessoas, eu sonho com a educação para todos, eu sonho com um mundo melhor. Nunca vou deixar de sonhar.
1:19:41
P/1 - Muito bom professora, muito bom! Muito obrigado pelo seu tempo, foi um grande prazer, uma lição ouvir a senhora, muito obrigado, viu!
R – Eu que agradeço muito a você por isso, agradeço muito, porque essas coisas também são muito boas para a gente não esquecer a trajetória. A
gente vai falando, vai lembrando, tem até alguma coisa que eu esqueci, eu sei, mas a gente vai falando, vai lembrando. E sempre o sindicato, o ano passado também vieram aqui em casa. uns vem, outros é por telefone, para entrevista, e eu agradeço muito a Deus que certamente eu tenho alguma coisa para falar né, e A gente fala da vida, e o que é mais importante que o depoimento da vida, que o depoimento da vida é aquilo que a gente viveu, aquilo que a gente vive, às vezes não precisa falar, mas a gente, às vezes chega gente aqui em casa de madrugada, bate na porta, eu abro a janela porque a gente tem medo também. Professora eu vim aqui porque eu queria falar com a senhora, mas eu não sabia onde era, me disseram onde é que era. As vezes e gente séria, e às vezes e gente que, um veio uma vez pedir o dinheiro para enterrar mãe. Então já sabia que aquela hora não era, mas eu falei, eu não vou te emprestar não vou te dar, entreguei por lá. Porque eu sabia que eu não ia receber, sabia que não era, ou era muita necessitado ou não era a pessoa séria para vir aquela hora. Mas as pessoas aqui eu acredito que quem eu não conheço me conhece, aqui no setor M Norte, cheguei aqui em 75, uma vida!
1:21:54
P/1 - Muito obrigado viu, a gente vai encerrar, quero agradecer muito outra vez a senhora pela disponibilidade, pelas lindas histórias que a senhora contou para nós, muito obrigada.
R -
Se você quiser tomar um cafezinho, um suquinho a casa é simples igual eu.
1:22:15
P/1 – Quando eu for para Brasília eu vou ai.Recolher