P1 - Boa tarde, Lucinéia, tudo bem?
R - Boa tarde, Genivaldo, tudo bem e você?
P1 - Eu tô ótimo. A gente vai começar, então, com a pergunta mais básica: eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo, sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R - Meu nome completo [é] Luci...Continuar leitura
P1 - Boa tarde, Lucinéia, tudo bem?
R - Boa tarde, Genivaldo, tudo bem e você?
P1 - Eu tô ótimo. A gente vai começar, então, com a pergunta mais básica: eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo, sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R - Meu nome completo [é] Lucinéia Alves, eu nasci em 26 de abril de 1971, na cidade de Itaguaí, no Rio de Janeiro.
P1 - Qual o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chamava, né, porque ele já é falecido, Francisco Alves e minha mãe, também já é falecida, Dolores Maria Joaquina Alves.
P1 - Você tem irmãos, Lucinéia?
R - Eu tenho cinco irmãos e três irmãs. Infelizmente, três irmãos já falecidos, e tenho, então, em vida, duas irmãs e dois irmãos.
P1 - E onde você fica, nessa escadinha? Você está no meio, mais velha, mais nova?
R - Como dizem, eu sou a 'rapinha do tacho', a mais nova, a caçula.
P1 - E, Lucinéia, os seus pais são do Rio mesmo ou eles vieram de alguma outra região do país?
R - Minha mãe é do Rio de Janeiro, mas meu pai é natural de Minas Gerais.
P1 - E você sabe por que ele veio pro Rio?
R - Meu pai veio pro Rio de Janeiro a trabalho e aí, depois, constituiu família aqui. Acabou até perdendo um pouco do contato, né, com os parentes de lá. Tanto que nós, da família, não conhecemos nossos tios, né, nossos primos que são de Minas Gerais. Isso foi há um tempo, né, que a gente não tinha internet, não tinha redes sociais e aí realmente não tem esse contato com a família paterna.
P1 - Certo. Então, vamos começar um pouquinho falando da sua infância: você se lembra da casa onde você passou a sua infância?
R - Olha, a casa onde eu passei a minha infância me traz grandes recordações; me lembro, com certeza. Muitos dos momentos felizes da minha vida, de ótimas recordações [que] aconteceram lá e jamais poderia esquecer essa casinha.
P1 - E conta pra gente um pouquinho como era essa casa. Como era o dia a dia da sua família na sua infância.
R - A casa onde eu nasci e onde fui criada até em torno dos dez, onze anos, era uma casa rural. Então, nós tínhamos [uma] família grande, né, vários cômodos na casa; era sempre muita alegria, muita festa na hora do almoço, do jantar. Nós tínhamos muitos animais, né? Eu lembro que meu pai e meus irmãos faziam criações de animais, de plantações também. Então, era um ambiente, assim, muito alegre. Lembro que eu tinha acho que sete ou oito anos, era um ambiente muito acolhedor, de muita alegria, muita gritaria em alguns momentos, muita fala alta e depois que a gente cresce e cada um vai pras suas casas, esse é um momento que de vez em quando a gente relembra e, nossa, que saudade, né? Eu tenho ótimas lembranças da minha infância, embora uma infância bastante difícil, né, mas ótimas lembranças.
P1 - Do que você gostava mais de brincar quando era criança, Lucinéia?
R - Ah, eu tive uma infância que a gente não tinha uso de tecnologia, né, nós não tínhamos muitos aparelhos e brinquedos que as crianças e os adolescentes hoje em dia têm. Então, nós inventávamos a maioria dos nossos brinquedos. Por exemplo: andar de bicicleta, a gente não tinha possibilidade de ganhar bicicleta nova, então a gente pegava peças de bicicletas dos nossos irmãos mais velhos, reunia lá os colegas e vizinhos e a gente montava uma bicicleta, que às vezes não tinha aro direito, não tinha um cilindro direito, mas tudo isso era muito divertido, muito bacana. Nós brincávamos muito de pique, né, aquele pique lateiro, pique-pega, pique-esconde. Nas noites de lua cheia, principalmente, né? A gente aproveitava muito, brincava muito de roda também, na infância. O pique era mais pra o finalzinho da infância e início da adolescência. E aí, hoje, às vezes até penso com os meus alunos: a gente tem brinquedos altamente tecnológicos, né, e joguinhos no celular e no computador e que eu gosto de tudo isso, mas eu lembro também da minha infância, que a gente não tinha nada disso, até porque a internet ainda nem existia naquela época, sou velhinha mesmo, (risos) mas a gente tinha, sim, brincadeiras muito gostosas, brincadeiras de muita interação mesmo com os vizinhos e era muito bacana.
P1 - E você gostava de ouvir histórias quando você era criança? Alguém da sua família te contava histórias?
R - Infelizmente, as histórias que nós ouvíamos eram muito mais histórias relatadas, né, relatos de vida ou de experiência, do que o contato com os livros. Os meus pais, a minha mãe morreu muito cedo, né, eu tinha oito anos e um pouquinho quando ela faleceu e o meu pai. Eles tinham um nível de escolaridade muito baixo e aí ele não tinha o hábito, ele lia muito mal, assinava os documentos, lia muito mal, então ele não tinha o hábito da leitura conosco. Mas eu lembro dele sentar e a gente sentar em volta e ele contava, a gente chamava de 'causos', né, como o pessoal bem do interior, e ele contava várias histórias. Algumas histórias a gente lembra até hoje, que são muito bacanas. Então, embora eu acho que a gente tem essa falta da leitura, em si, né, que é importantíssima, principalmente na fase infantil, porque isso estimula muito a criança a ler, mas nós tínhamos, assim, um incentivo à imaginação muito grande, pelos contos de vida, de experiência que ele passava pra gente.
P1 - E você tem algum desses 'causos' que você se lembra e queira contar pra gente?
R - Ah, são vários, mas os que mais, assim, mexia com a gente, eram os 'causos' de assombração. Como nós morávamos numa área rural, então, aquela questão do sobrenatural, às vezes, mexia muito com o nosso imaginário, porque, às vezes, pra gente ir da casa do vizinho pra uma outra casa ou pra nossa casa, a gente andava num pedaço totalmente escuro, né, sem energia elétrica. Então, às vezes, a gente ouvia alguns 'causos' de que a pessoa morreu, deixou alguma coisa enterrada e o espírito voltava, porque queria alertar, de alguma forma, que tinha um tesouro escondido e isso, pra criança e adolescente, mexia muito com a nossa imaginação. Eu sei que até há pouco tempo, né, eu não tenho filhos, mas tenho os meus sobrinhos, de vez em quando, a gente senta e comenta esses casos que a gente ouvia dos mais velhos - não só do meu pai, mas dos mais velhos - e isso tudo pra gente ainda é uma coisa de muita alegria. Eu confesso que, naquela época, a gente ouvia e ficava com um pouquinho de medo também, mas era interessante, era bacana.
P1 - Nessa época, você tinha algum sonho de infância, do tipo: “Olha, eu quero ser tal coisa quando eu crescer”?
R - É, na infância, eu não lembro exatamente, mas no finalzinho da infância e início da adolescência, eu já lembro que eu queria ser um monte de coisas, né, e eu acho que eu era muito, me impressionava muito o que estava na moda. Eu lembro de uma série que tinha, um seriado, que eram caminhoneiros, né? Então teve uma época da minha adolescência, início da adolescência, que eu dizia assim: "Eu vou ser uma mulher que dirige caminhões". Depois eu me interessei um pouco pela psicologia, eu falei assim: "Ah, eu vou ser psicóloga" e aí, depois, já do meio da adolescência pro final, eu comecei a querer ser bióloga, mas na área da biologia marinha. E aí, quando eu realmente entrei pra fazer biologia, acabei indo pra uma outra área, não a marinha, mas foi o que acabou me definindo. Mas eu quis ser várias coisas: médica, advogada. Eu acho que eu me impressionava com alguns momentos, algumas situações e aí depois eu fui realmente amadurecendo a ideia, no finalzinho da adolescência, início da vida adulta, eu consegui resolver o que eu realmente gostaria de ser, da minha atuação profissional e sou muito feliz nela, hoje em dia.
P1 - Bom, então, já que você falou sobre isso, vamos começar a falar um pouquinho sobre a sua vida escolar: o que você se lembra dos primeiros anos da escola?
R - Olha, eu tenho ótimas recordações, né? Eu lembro que eu fui… Devido a doença da minha mãe, eu tive que morar com a minha tia e com a minha irmã mais velha, porque eu ainda era criança, né, tinha sete, oito anos, [e] eu entrei na escola um pouquinho tarde. Então, na verdade, eu entrei e os alunos tinham, eles eram um pouquinho mais novos que eu. E na minha época ainda tinha a história de primeira série A, primeira série B, mas como eu tinha um grande interesse pelo estudo, eu fui meio que queimando algumas etapas, né, não só pela idade, mas pelo interesse em si. E aí eu lembro que de vez em quando, também, tinha a questão de mudar de escola, né, porque se eu tava com a minha tia e ela morava num local, então eu tinha que estudar próximo; se eu ia pra casa da minha irmã, no ano seguinte já mudava de escola. Mas eu tenho, assim, ótimas recordações, principalmente da terceira série, que acho que foi o ano que eu comecei realmente a gostar de ciências e, por incrível que pareça, já faz décadas isso, mas eu tenho hoje, no meu Facebook, a minha professora da terceira série. Na época, né, ainda era terceira série, não é terceiro ano, não, pra quem de repente está vendo a entrevista: “Não é ano?”. Não, é bem antigo, eu sou da época ainda que era primeiro grau e segundo grau. E aí eu lembro que nós morávamos muito longe da escola, então a gente levava uma hora andando a pé pra chegar na escola, uma hora e pouquinho, e, invariavelmente, nós chegávamos atrasados, porque íamos eu, a minha irmã, mais uns vizinhos de uma casa que eram umas cinco crianças, adolescente, [e] mais de uma outra casa que eram mais duas ou três. Enfim, nós íamos num grupo pra escola. Então, imagina um grupo só de crianças e adolescentes! A gente brincava de pique na ida, a gente brincava de esconde-esconde no meio do caminho. Então, invariavelmente, nós chegávamos atrasados na escola. Eu lembro de um caderno que tinha na escola, dos alunos que chegavam atrasados. Se folheasse o caderno, a gente ia ver a nossa assinatura lá, por várias e várias vezes. E aí, na terceira série, eu lembro da professora Celia, que é uma professora muito querida, do coração mesmo e, assim, é uma pessoa que eu tenho um contato, embora seja pequeno, né, que é através das redes sociais, porque a gente mora em cidades, agora, diferentes. Ainda no mesmo estado, mas cidades diferentes. Mas eu lembro do capricho, do carinho que ela tinha conosco e eu lembro de um trabalho em específico, que na escola tinha feira de ciências e ela preparou um grupinho pra falar sobre a permeabilidade dos solos e ela chamou esse grupinho pra apresentar o trabalho pra turma. Ela fez um desafio, depois que o grupo apresentou: "Olha, esse é o grupo que vai participar da feira de ciência, representando a turma, e eu gostaria de desafiar mais um aluno pra compor o grupo". Aí eu sempre brinco até com os meus alunos atuais. De vez em quando, eu lembro dessa história e conto pra eles, embora tenha sido há décadas e eu falo que eu não sei porquê, quando eu olhei a minha mão já estava levantada, eu ainda falo assim: "Gente, eu que levantei a minha mão? Ai, meu Deus!". A professora me chamou lá na frente e aí a vergonha, né, enfim, mas cheguei lá, expliquei e ela falou assim: "Muito bem, Lucinéia, agora você faz parte da equipe". Eu ainda não tinha me dado conta do que exatamente eu tinha me proposto a fazer, porque a minha mão simplesmente levantou sozinha. E aquela experiência foi, assim, marcante, tanto que eu estava na terceira série. Depois, claro, né, ainda não tinha definido que eu seria uma bióloga anos à frente, mas eu comecei a gostar muito de ciências, na terceira série, em função desse desafio que a professora acabou fazendo. E eu tenho, assim, várias outras histórias, né, várias outras recordações maravilhosas, tanto do meu ensino fundamental, como de ensino médio. Tem algumas professoras, ainda do ensino fundamental que, através das redes sociais, eu tenho contato hoje em dia e sinto um carinho muito grande por essas professoras, porque elas que realmente fizeram com que eu abrisse os meus horizontes, né? Muito do que eu sou hoje, enquanto professora, eu ainda busco inspiração nessas professoras: professora Célia, professora Madalena também, que é uma que eu tenho contato direto pelas redes sociais, e tantas outras que, com certeza, se eu fosse enumerar aqui, a gente ia passar alguns minutos falando somente nomes.
P1 - E, além de ciências, no atual ensino fundamental, no primeiro grau de antigamente, tinha alguma outra matéria que você gostasse de fazer?
R - Sim, eu gostava muito de matemática. Tanto que, mais à frente, quando eu tive a oportunidade de pensar numa carreira mesmo, numa graduação, até ciências biológicas realmente dominava meus pensamentos, mas eu cogitei fazer matemática.
P1 - E passando, né, você disse que você teve um período que você morou com a sua tia, outro com a sua irmã e você teve que ir mudando de escola. Quando chegou no ensino médio, você mudou de escola de novo? Isso já era no Rio ou ainda continuava na cidade onde você nasceu?
R - Eu estudei, desde o ensino fundamental atual até a pós-graduação, todos foram feitos aqui no Rio, embora eu tenha passado um período, porque a minha monografia, a parte prática, eu fiz na federal do Espírito Santo (UFES). Mas, em relação ao ensino fundamental, os primeiros anos que eu tive essas mudanças de escola, em função da doença da minha mãe. E aí depois eu continuei, da quarta série em diante, eu fui numa escola só, uma escola que fica em Seropédica (RJ). E aí, terminando o ensino fundamental, que era o último ano dessa escola, o antigo primeiro grau, eu tinha uma tia que trabalhava numa escola técnica, o colégio técnico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E, durante as férias, quando eu estava morando com ela, ela ia trabalhar e eu ia junto. Eu adorava entrar nas salas de aula, que ela era servente da escola e eu adorava entrar nas salas de aula enquanto ela estava fazendo o trabalho dela. Então eu via os cartazes dos alunos, os materiais que eles usavam. E, como era uma escola técnica, eu via as salas de aulas deles e aquilo era um mundo maravilhoso pra mim. Então, quando eu estava terminando o ensino fundamental, atual ensino fundamental, que, na época, era primeiro grau, eu falei assim: "Ah, eu quero estudar no Ctur", que a gente chama o Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E aí era um colégio que tinha que fazer uma seleçãozinha, né? Ele, na época, tinha dois cursos, quando eu entrei, que era economia doméstica, técnico em economia doméstica e técnico em agropecuária. Eu optei por fazer técnico em economia doméstica, que é um curso que não é muito conhecido. Hoje em dia, ele já mudou de nome, mas é um curso maravilhoso e eu me identifiquei mesmo com o curso. Aí eu fiz o ensino médio todo nessa escola, o antigo segundo grau, e foi um colégio que também me preparou bastante pra fazer o vestibular - na época, o vestibular - e depois consegui entrar na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
P1 - E conta um pouquinho pra gente como foi essa experiência nesse curso técnico? O que significava, na época, economia domiciliar? Conta um pouco das experiências que você teve nesse curso.
R - Conto, sim. Economia doméstica era um curso polivalente, embora sofrêssemos um pouquinho de preconceito, quem fazia aquele curso, e era um pouco, não muito divulgado, não muito conhecido, mas era um curso, assim, polivalente. Pra você ter ideia, nós tínhamos disciplinas de todo o núcleo comum: matemática, física, química, língua portuguesa, literatura e, na parte técnica, nós tínhamos enfermagem, têxteis, nós tínhamos nutrição, puericultura, enfim, várias disciplinas voltadas pra área social. Então, eu lembro muito bem de que eu adorava a parte de nutrição, adorava a parte de enfermagem e uma das coisas que me deixou, assim, muito animada com o curso foi a parte do estágio, porque eu morava em Seropédica nessa época e resolvi fazer um estágio de desenvolvimento social em Araras, que fica em Petrópolis. Então, eu levava, de Seropédica até Araras, em torno de umas quatro horas, mais ou menos, de viagem, porque eu tinha que vir pro Centro do Rio e do Rio pegar um ônibus pra Petrópolis, que era mais ou menos uns cinquenta minutos, uma hora e, de Petrópolis, pegar um ônibus pra Araras. E aí eu passei um ano e meio, mais ou menos, fazendo estágio pela ACM, Associação Cristã de Moços, a gente ia no sábado de manhã e voltava no domingo à tarde. Hoje, eu paro e penso assim: "Gente, era uma loucura”, né? Eu estudava no horário integral durante a semana, no sábado, acordava de madrugada, viajava pra Petrópolis, né, Araras e depois voltava no domingo. Na segunda-feira, começava a rotina toda novamente. Mas foram períodos da minha vida maravilhosos, em que amadureci muito enquanto pessoa e contribui um pouquinho, também, na área social, me fez uma pessoa... Hoje não trabalho mais na área social diretamente, mas desenvolvo sempre na minha escola atividades na área social e eu acho que ter feito esse trabalho, era um estágio bastante interessante. A Associação Cristã de Moços tinha dois polos: um era em Araras e outro em uma comunidade, Poço dos Peixes, se não me falha a memória, as duas em Petrópolis, e aí eles tinham, dentro da Associação de Moradores dessas comunidades, nós íamos pra lá e fazíamos cursos, dávamos cursos pras pessoas da comunidade. Então, a gente falava sobre saúde, nós falávamos sobre alimentação, eu dava alguns cursos na área de artesanato também. Então, eram coisas, assim, maravilhosas. Eu acho que eu ganhava muito mais do que as pessoas da comunidade que participavam do curso. Muito bom mesmo.
P1 - Então, nessa época, você disse que já tinha uma definição melhor, que você realmente queria fazer biologia e me conta: você fez logo em seguida? Terminando o técnico, você já prestou vestibular e já entrou, ou você aguardou um pouco? Me conta como foi essa transição.
R - Então, eu decidi mesmo fazer biologia já no finalzinho do ensino fundamental, porque embora eu tivesse ainda algumas dúvidas, matemática às vezes ainda voltava a questão e "Por que não psicologia?", mas eu tinha algumas dúvidas, no final do ensino fundamental, que jogava pra minha irmã, acima de mim, né, que nós temos seis anos de diferença e ela, eu acho que era uma irmã que falava assim: "Gente, a minha irmã caçula, de vez em quando eu vou pegar essa menina, porque ela me faz perguntas que eu não sei responder". Tipo: "Se nós somos filhos dos mesmos pais, por que nós não temos a mesma cara, só que uma um pouquinho mais nova ou um pouquinho mais velha?". E ela dava algumas explicações, assim, mas ela não sabia e eu queria saber o fundamento, né? Então, ela sempre jogava, né, até pra me dar uma informação concreta e também escapar da pergunta: "Pergunta ao seu professor de ciências, pergunta à sua professora de ciências". Então, no finalzinho do ensino fundamental, eu tive uma proximidade muito grande com os meus professores de ciências, né? E, nessa época, o meu colégio ficava em frente a universidade e eu sempre brinco, hoje em dia, eu não sabia, mas eu era cobaia dos alunos da universidade. Por quê? Porque os alunos da universidade precisavam fazer estágio de docência e aí eles pediam pro colégio público, que ficava em frente mesmo a essa universidade, pra mandar alguns alunos pra lá e, como colégio público - hoje em dia, nem todos, mas a maioria - não tem grandes recursos, então, ir pra essa universidade, pra participar das aulas desses alunos, era um diferencial enorme pra gente: primeiro porque só ia quem tinha boas notas, bom comportamento. Então, só o fato de a gente ter sido selecionado, já era uma coisa muito bacana; sair do colégio pra ir pra outro lugar também era outra novidade pra gente. E aí, quando a gente chegava lá na universidade, que a gente via microscópios, que a gente via aparelhos, equipamentos, isso daí pra gente, um aluno de escola pública, que, na maioria das vezes era aula bem teórica, isso realmente fascinava muito. Então, eu já ficava assim: "Ai, eu quero fazer biologia algum dia". O ensino médio, na verdade, acabou me dando base pra enfrentar o vestibular e, quando eu terminei o ensino médio, eu fiz logo o vestibular pra ciências biológicas e acabei não passando. Eu fiquei muito triste, porque eu esperava realmente que fosse aprovada e acabei não passando. E aí, dentro dessa minha tristeza, eu falei assim: "Não, mas eu vou continuar estudando e vou tentar uma outra vez". E eu lembro de uma coisa interessante: teve uma vez que eu estava saindo da minha casa e encontrei com um professor desse colégio técnico que eu havia estudado - ele não foi nem meu professor, porque ele era professor da área de agropecuária - e ele falou assim: "E aí, como é que foi, passou no vestibular?". E eu: "Não, não passei", com aquela cara triste, meio 'chororô'. E aí ele falou o seguinte: "Olha, mas continua, não desiste, não. Você nasceu pra ser grande e vai chegar lá com muito estilo". Vou ser sincera com você: eu nem peguei nessa questão, né, não me apeguei na parte do vai ser grande, do vai chegar lá com muito estilo, mas [o] "não desista, não, continue tentando", foi nisso aí que eu foquei. E esse professor se chama Josué Castro, né? Eu lembro que, quando escrevi a minha tese de doutorado, eu o coloquei na dedicatória da tese, porque foi uma palavrazinha que ele me disse, né, num momento que eu estava, assim, totalmente desanimada, triste, porque não tinha passado no vestibular e foi o combustível, assim, pra não só eu entrar, fazer novamente o vestibular, fazer a universidade e depois ainda seguir além, né? Então, às vezes, eu tenho isso pros meus alunos: que um incentivo, às vezes, faz uma diferença enorme, não somente naquele momento, mas, às vezes, a longo prazo na vida de uma pessoa. E aí, fiz o vestibular novamente. Na primeira vez, saiu a classificação e meu nome não entrou na classificação, né, na primeira chamada, e eu, mais uma vez, [fiquei] desanimada: "Poxa vida, acho que não é o meu caso fazer universidade". E aí a minha tia, que trabalhava nesse colégio técnico que eu tinha cursado, me mandou uma mensagem. - Nessa época, eu estava morando com o meu pai, tinha voltado a morar com o meu pai. - E ela falou o seguinte: "Olha, eu soube que saiu uma reclassificação, dá uma olhadinha, vê se seu nome não está lá nessa nova listagem". E aí, então, a minha tia me mandou a mensagem, eu fui ver e como eu não morava tão longe assim da universidade, resolvi pegar minha bicicleta e ir até a universidade, pra ver a nova listagem. E eu tinha gravado o número de inscrição do vestibular, só que quando eu cheguei lá a emoção era tão grande que eu vi o meu número, só que aí não sabia se realmente era o número ou se eu estava enganada e eu falei assim: "Eu preciso voltar em casa e pegar o comprovante, o papel". Só que eu voltei andando de bicicleta tão rapidamente, numa velocidade tão grande que, quando eu cheguei em casa, eu estava sem ar, eu tive que deitar um pouco, beber um pouco de água, descansar um pouquinho, pra pegar o documentozinho com o número, pra voltar à universidade. Nesse momento, é claro, eu já tinha aberto, novamente, tinha conferido e tinha certeza que era o número que estava na listagem, mas a emoção era tão grande, que eu precisava voltar à universidade com o papel e olhar pra listagem e olhar pro número. E aí foi uma alegria enorme, né? Eu realmente fui classificada e comecei a cursar a graduação de Ciências Biológicas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Foi um período de vida maravilhoso, de grande crescimento, não só em conhecimento, mas também como pessoa. A minha turma, até hoje, a gente tem um grupo na rede social, no WhatsApp, e a gente tem uma colaboração, né? Hoje, a gente já publica capítulos de livros, né, a gente troca figurinhas, participa de palestras, já num outro nível, né, mais como profissional, mas ainda existe uma amizade muito grande. Então, foi um período muito bacana da minha vida, a universidade.
P1 - Conta um pouquinho pra gente como foi esse início. Você, no primeiro dia de aula, chegou lá dentro e falou: "Pronto, é isso, eu tô aqui e vou começar a fazer finalmente a faculdade". Conta um pouco como foi isso, as amizades que você teve? Conta um pouco pra gente.
R - Então, fazer universidade, deixa eu só contar um pouquinho o contexto: o município de Seropédica é, em parte, ele existe e roda, gira em torno da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, né, e eu morava num bairro que ficava muito próximo ao bairro da universidade, em si, mas nós tínhamos uma divisão social muito grande entre as pessoas que moravam no bairro da universidade, que eram, normalmente, funcionários, professores da universidade, ou algumas pessoas que vinham de longe e estudavam na universidade em si. E esses bairros que ficavam em torno da universidade, eram bairros mais periféricos, mais rurais e que nós tínhamos, nesses bairros, poucas pessoas que conseguiam, que tinham acesso à universidade. Então, eu lembro que desde o meu finalzinho do ensino fundamental e início do ensino médio, eu me sentia, assim, no dever de fazer parte daquela universidade, porque eu entendia que ela fazia parte do nosso município, né, mas que poucas pessoas do município faziam, cursavam a graduação nela, porque a maioria realmente não fazia uma graduação ou porque não tinham condições mesmo, né, de entrar na universidade. E aí, grande parte dos alunos da Rural, na época - eu acredito que de uns anos pra cá mudou bastante -, eram alunos que realmente vinham até de outros estados. Hoje em dia, ainda tem muitos alunos que vêm de outros estados, mas acredito que seja um pouco menor. Mas a maioria das pessoas que moravam ali não eram de Seropédica. E eu lembro que eu fui uma das primeiras pessoas do bairro onde eu morava… Não era uma comunidade, como a gente tem hoje no Rio de Janeiro, mas eram municípios, assim, bem rurais, né? E aí eu lembro de ter sido uma das primeiras da localidade a entrar na universidade. Aí eu tinha, além da torcida familiar, né, a torcida de vários amigos, de várias pessoas, até não tão próximas assim, porque "Poxa, que bacana, né, alguém da nossa região estudando na Rural". E aí, quando a gente consegue chegar na universidade, rompendo as barreiras sociais e aí não somente sociais, mas econômicas também, a gente tem aquela questão: "Realmente cheguei aqui e agora, qual é o meu papel? O que eu faço? Como eu interajo com as pessoas?". E aí eu tive um grande acolhimento de alguns colegas, de alguns professores. Tanto que, no início, no segundo semestre da faculdade, eu já estava fazendo estágio. No terceiro semestre, eu já era monitora de Introdução à Biologia. E aí eu lembro que a bolsa de monitoria, na época, era em torno de acho que um salário-mínimo, mais ou menos, bem diferente de hoje em dia, mas aquela bolsa, além de me ajudar financeiramente, a custear, comprar os livros da universidade, tirar as xerox que nós precisávamos tirar, era uma bolsa também que me ajudava na minha vida particular, passear um pouquinho, comprar uma roupinha nova. E aí eu lembro que, quando eu, acho que no terceiro ou quarto semestre, que eu já tinha feito a monitoria, já tinha repetido mais uma vez, porque no primeiro semestre de monitoria, que a gente se torna um monitor, a gente ainda está aprendendo bastante, porque a gente já passou como aluno naquela disciplina, mas a gente começa a aprender um pouquinho o lado da docência, que é ensinar os alunos novos. Mas depois que a gente já está há um ano, um ano e meio, já não acrescenta muito e aí eu fazia monitoria na área de biologia animal e pedia a uma das professoras se eu não poderia fazer algum trabalho de iniciação científica e se ela poderia pedir uma bolsa de iniciação científica pra mim. E aí eu comecei a fazer pesquisa na área de helmintologia, né? Pra quem não lembra, helmintos são vermes. Eu trabalhava com helmintos de aves e foi um período também de grandes aprendizagens. Depois, eu terminei de fazer esse estágio, a ideia era fazer até a monografia em cima da helmintologia, mas eu fui participar de um congresso na Federal do Espírito Santo e acabei descobrindo uma área lá que eu adorava, que é trabalhar com a área de infectologia, mas voltado para o ser humano. E como eu fazia um curso que não tinha o bacharel voltado para a área humana, eu arrumei um jeitinho de olhar tanto a área humana, como a área animal. Eu fui depois trabalhar com tuberculose bovina lá na Federal do Espírito Santo e aí... Em outro momento, eu conto essa história pra vocês.
P1 - Bom, então, retornando, Lucinéia, pra segunda e última parte da entrevista, eu queria perguntar pra você uma coisa: em relação a questão da faculdade ou mesmo nos seus estudos posteriores, você via muitas mulheres estudando biologia ou, inclusive, também, mulheres negras estudando biologia, na sua graduação?
R - Nós tínhamos, sim, muitas mulheres na minha turma e nas turmas próximas, mas mulheres negras, nem tanto. Hoje em dia, a gente sabe que, na ciência, atualmente, a gente tem até uma certa igualdade de gênero, na questão da graduação e até no início da pós-graduação, mas, na minha época, nós ainda não tínhamos tantas mulheres assim e principalmente mulheres negras.
P1 - Entendi. Então, passando pra essa questão que você resolveu fazer a sua pós-graduação no Espírito Santo, conta pra gente como foi essa experiência pra você.
R - A experiência, como eu falei: eu participei de um simpósio lá no Espírito Santo; a universidade arrumou um ônibus e enviou alguns alunos pra apresentar trabalhos e aí, nesse simpósio... Minto, era um congresso. Nesse congresso, Sbpc (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), eu tive a oportunidade de fazer um curso dentro do Núcleo de Doenças Infecciosas da Universidade Federal do Espírito Santo e era um laboratório extremamente novo, recentemente montado, com o patrocínio de uma universidade americana, a Universidade de Duke. Então, pra gente, uma aluna de graduação, que foi prum congresso, foi uma das primeiras viagens interestaduais que eu havia feito na vida. Foi muita novidade e eu aprendi muito nesse curso. E, no finalzinho do curso, eu pedi a um dos professores que ministrou o curso, se eu poderia voltar nas minhas férias, pra fazer um estágio nesse centro de doenças infecciosas. E aí, ele falou assim: "Olha, você precisa me mandar documentos da universidade, mandar uma carta do porquê que você quer fazer esse estágio" e aí eu voltei super animada para o Rio de Janeiro, não somente com a experiência de ter participado do congresso, do curso, ter apresentado o trabalho, mas também com a possibilidade de voltar e fazer um estágio de uma semana nesse laboratório. E aí, depois, reuni todos os documentos que ele solicitou e o estágio foi aprovado e, quando chegou nas férias, eu fui e fiz o estágio. Embora tenha sido um estágio muito curto, quando chegou no finalzinho da semana, eu já tinha decidido que eu iria fazer a minha monografia naquele local. E eu tinha problemas técnicos: quem iria me bancar lá no Espírito Santo, durante seis meses, pra fazer a monografia? A universidade iria me deixar ir? Eu já tinha um projeto em curso pra minha monografia, na minha própria universidade. E aí, enfim, o entusiasmo era tão grande que eu consegui, a minha orientadora na época não gostou muito da ideia, eu entendo perfeitamente, porque eu já estava com um projeto em curso pra ser monografia e, por mais que eu tenha tentado passar pra ela o meu entusiasmo todo, na verdade, acabei deixando um projeto de lado e aí ela falou assim: "Olha, você pode ir, mas eu vou ter que cortar a sua bolsa de iniciação científica, porque você não tem como levar a sua bolsa pra lá". E eu falei: "E agora, como eu vou conseguir fazer esse estágio?", mas aí, com a cara e a coragem, eu fui à decana de pesquisa ou de graduação, não lembro exatamente, e falei com ela que eu tinha possibilidade de fazer esse estágio, desenvolver a minha monografia na Federal do Espírito Santo, que o meu orientador seria um professor americano da Universidade de Duke e aí a universidade achou isso bacana, né, de uma aluna da própria universidade, que iria ter um orientador estrangeiro, enfim, fazer o intercâmbio com uma outra universidade brasileira. E aí ela me deu, a universidade, uma bolsa de iniciação científica, pra que eu pudesse passar seis meses no Espírito Santo, fazendo a minha monografia. E foi mais um período, assim, que eu cresci muito enquanto pessoa, os laços que eu formei lá, alguns ainda persistem até hoje e voltei de lá com uma monografia pronta, que foi muito bacana e que me abriu grandes portas, né? Eu acabei trabalhando com tuberculose bovina, porque na Rural eu fazia bacharel em biologia animal, então eu não poderia trabalhar lá com a tuberculose humana. Mas quando eu saí de lá, já tinha decidido que eu ia trabalhar com microbactérias, que é o gênero da bactéria que causa tuberculose, e aí eu voltei pro Rio de Janeiro, terminei a minha graduação, comecei a fazer um trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ufrj), até porque era a área que eu queria realmente iniciar a pós-graduação, mas foi uma porta aberta por um professor da própria Universidade Rural, que soube que eu havia ido pro Espírito Santo, que eu tinha feito essa pesquisa lá, e me convidou pra ser aluna de iniciação científica dele, mas dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro, já [em] outra universidade. E aí, de lá, eu comecei a pensar no que eu faria de mestrado e decidi trabalhar com microbactérias, só que demorei um pouquinho pra definir quem seria o orientador, qual seria o mestrado em si, que eu iria entrar pra seleção e fiz a seleção pelo mestrado da Fiocruz, né? Nesse período, eu já não estava trabalhando mais com microbactérias em tuberculose, mas sim com a “Mycobacterium leprae”, que é a bactéria que causa hanseníase. Foi com essa bactéria que eu fiz o meu mestrado e o meu doutorado. Depois, eu acabei saindo da Fiocruz, quando terminei o doutorado, e voltei pra Federal do Rio de Janeiro. Eu, de vez em quando, ainda confundo, porque a universidade de graduação foi a Federal Rural do Rio de Janeiro e a universidade que eu fiz iniciação científica e que fiz o pós-doutorado é a Federal do Rio de Janeiro. Então, de vez em quando, eu dou umas trocadas, mas, enfim. Aí, depois, tive a experiência ainda de passar um mês em treinamento na Universidade de Miami, lá nos Estados Unidos, e daí voltei pra fazer, trabalhar com neurociência, especificamente, não mais com a bactéria, mas o nervo em si, nervo periférico.
P1 - E me conta quando começou a sua carreira como professora.
R - A minha carreira como professora começou ainda durante a pós-graduação: eu havia terminado o mestrado e aí eu fiz o concurso pra Prefeitura do Rio de Janeiro, pro cargo de professor de ciências, e aí eu fui aprovada. Na época, eu morava em Copacabana e dava aula em Campo Grande (ambos são bairros do Rio de Janeiro - RJ). Então, era umas duas horas de ida e umas três horas de viagem de volta, né? E aí eu fazia, finalizando o mestrado, já no início do doutorado, dava aula durante o dia. Eu tinha uma carga horária reduzida, né, que era de dezesseis horas e ainda fazia um projeto do governo federal, [que] eu dava aula à noite. Então, foi um período, assim, bastante exaustivo na minha vida profissional [e] pessoal, e foi o momento também que eu me descobri enquanto pesquisadora e enquanto professora de ciências, né? Porque, hoje em dia, eu digo que os dois lados me complementam e me fazem a profissional que eu sou. Infelizmente, a gente não consegue, a todo tempo, conciliar os dois lados, né, mas eu acho que um professor de ciências que gosta um pouquinho da pesquisa, leva um pouquinho desse gosto pro seu aluno. E o pesquisador que tem contato com a escola, seja através de uma palestra, seja através de algum intercambiozinho que se faça, com uma escola pública, principalmente, ele começa a dar determinados valores à pesquisa dele, né, que muitas das vezes a gente pensa em fazer pesquisa, em publicar numa revista, em ter uma patente, mas, às vezes, a gente esquece do lado que é motivar, incentivar as pessoas no campo da ciência. E hoje em dia eu tenho duas linhas básicas, que é a parte do magistério e a parte do incentivo, tanto às mulheres, quanto às meninas na área da ciência e, profissionalmente, isso pra mim é muito bacana, porque eu tô com um braço no magistério e na pesquisa. E eu encontro pessoas, me relaciono com pessoas dos dois lados e eu acabo ganhando sempre muito, né, a minha bagagem só vai aumentando.
P1 - E me conta um pouco essa experiência, porque você teve uma formação bastante voltada pra pesquisa, né, o mestrado, enfim, você passou por vários lugares [e] de repente, você entrou na sala de aula e falou: "Bom, agora eu tenho que tentar traduzir isso, né, pra alunos, pra adolescentes". Enfim, me conta como foi essa experiência, no início, como você foi se adaptando, se você achou difícil. Como foi a reação das pessoas, dos alunos?
R - Eu comecei, então, a lecionar quando eu estava no início do doutorado, finalzinho do mestrado. Eu fiz o concurso e até ser efetivada, início do doutorado. E eu lembro que a primeira vez que eu cheguei na sala de aula,
minha primeira turma, meu primeiro tempo de aula, eu fui toda animada, né, tinha preparado materialzinho e eu vou mostrar esse material pro meu aluno, vou perguntar o que ele acha, né, vou querer pegar a participação dele, perguntar pro outro e, quando eu cheguei lá, eu lembro que eu peguei uma turma de alunos que já tinham algum grau de repetição, né? Eu lembro como se fosse hoje: era a turma 1806. Normalmente, as turmas I e II são os alunos menores e as turmas maiores, V, VI, VII, são os alunos que já repetiram algum ano, são alguns alunos que têm defasagem de idade pra série ou pro ano. E aí eu lembro que eu: "O que vocês acham disso? O que vocês poderiam me dizer? O que vocês pensam sobre?". Nenhuma dessas respostas vieram, né, e eu falei assim... Nos dez primeiros minutos, eu tentei ser aquela professora com aquela toda formação acadêmica, com aquele entusiasmo que eu acho que vai ser assim, assado e no décimo primeiro minuto de aula, eu falei assim: "Opa, eu preciso rever a minha prática, não vai ser dessa forma que eu vou conseguir chegar aos meus alunos". Então, abri o espaço na sala e comecei a ir um pouquinho mais baixo, um pouquinho naquela ação de agregar o aluno, de trazer o aluno e de estar no nível dele e começar a subir junto com ele. Então, foi um momento de decepção, mas um momento também de descoberta incrível. Por quê? Às vezes, quando a gente sai da faculdade, a gente sai cheio de teorias e achando que na prática vai ser assim. A gente precisa remodelar, precisa repensar o nosso dia a dia, até porque a sala de aula é particular, é muito própria, é muito peculiar, cada turma é uma turma, mesmo dentro de uma escola. E aí eu lembro que eu comecei a repensar: "Não, eu tenho que fazer a minha aula dessa forma, dessa" e eu comecei a perceber que desenvolver atividades práticas no ensino de ciências era algo super positivo. Comecei a perceber que os alunos tinham aquela ideia de que o cientista ainda é o estereótipo que a gente tem do cientista hoje: que ele é um homem, que ele é de pele branca e que, na maioria das vezes, não é um brasileiro, é um americano, é um europeu. E eu comecei a pensar: "Eu preciso desconstruir na cabeça do meu aluno, essa ideia, essa imagem de cientista que ele tem" e principalmente, como a minha vida hoje, eu tenho dezessete anos de magistério, mas a minha vida inteira foi em escola pública e, na maioria delas, eram escolas que tinham poucos recursos. E aí a gente tinha muitas meninas, meninas negras que, com certeza, ou provavelmente, no imaginário delas, ciência não era uma coisa que seria acessível. Então, ao longo desses anos, eu comecei a perceber que eu precisava, sim, claro, levar ciências de um modo geral pros meus alunos, fazer um ensino público de qualidade, mas também ter um olhar específico para as meninas e principalmente as meninas negras, né? Porque se a gente olha hoje pros dados estatísticos, como eu já falei, em termos de graduação e pós-graduação, no Brasil, a gente está até uma situação relativamente cômoda, porque a gente tem uma certa igualdade de gênero na ciência. Mas se a gente vai olhar pras instituições na área científica e pros altos escalões da ciência brasileira, majoritariamente, a gente vai encontrar homens. Então, no Cnpq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que é um dos principais órgãos de pesquisa do Brasil, a cúpula do Cnpq é majoritariamente masculina. A Academia Brasileira de Ciências [também] é majoritariamente masculina. Se a gente pegar alguns outros órgãos que mexem com ciência no Brasil, a gente vai ter ainda uma grande porcentagem de homens em relação a mulheres e isso não é algo que a gente vá conseguir mudar em cinco, ou talvez oito ou dez anos, isso aí é uma mudança pra médio prazo. Então, eu preciso, enquanto professora de ciências, pensar em incentivar e estimular as meninas na ciência, pra que mais à frente a gente tenha aí um grande número de mulheres, não somente na área acadêmica, na área de formação, na graduação, na pós-graduação, mas também nas grandes instituições científicas do país. E em relação à mulher negra: se a gente olhar no panorama geral, nos altos escalões da ciência brasileira; se a gente não tem muita mulher, se a gente olhar então pra mulher negra, aí que essa percentagem é muito, mas muito menor. E aí, como é que a gente consegue desconstruir isso a longo prazo? A curto prazo não tem como, seria a médio e longo prazo: é a gente começar a olhar as meninas que estão no banco do ensino fundamental, hoje em dia, nas aulas de ciências, porque, se a gente consegue estimular essas meninas, principalmente as meninas negras, nós vamos ter daqui a cinco, dez, quinze anos essas meninas, muitas delas, voltadas pra ciência. E aí, quem sabe, daqui a uns 25 anos, mais ou menos, a gente tem aí já uma igualdade de gênero dentro dos altos escalões da ciência brasileira. É um sonho ainda, mas quem sabe?
P1 - Certo. E me conta um pouco como surgiu essa ideia desse material didático "Meninas na Escola, Mulheres na Ciência". Como surgiu esse projeto?
R - Ah, esse é um trabalho muito prazeroso, que sempre eu abro um sorriso enorme quando falo desse trabalho: eu estava desenvolvendo algumas atividades na escola da prefeitura, onde eu estava trabalhando, naquele momento - hoje, já estou em uma outra escola, tive uma mudança -, e eu estava fazendo, aproveitando as datas relativas à mulher: Dia Internacional da Mulher, Dia da Consciência Negra também, Dia da Menina e da Mulher na Ciência, não lembro se é exatamente dessa forma, mas é que acontece no dia 11 de fevereiro, é uma data nova, que foi estipulada em 2015, se não me falha a memória. E aí, eu, aproveitando essas datas pra introduzir um pouco mais as mulheres dentro da sala de aula, as mulheres da ciência nas minhas salas de aula, fui convidada - montei uma eletiva também chamada [de] "Meninas na Ciência", nessa escola
- pelo Museu do Amanhã, pra participar de uma "live" falando sobre, se não me falha a memória, meninas na ciência. Não lembro exatamente mais qual era o título da "live". E aí… O British Council tem uma interação muito grande e muito bacana com o Museu do Amanhã, aqui no Rio de Janeiro, tanto que eu fiz um curso pelo Museu do Amanhã, também patrocinado pelo British Council. Aí, depois, eu não sei se foi alguém do Museu do Amanhã que indicou esse trabalho que eu fazia, ou eles viram essa "live", mas, enfim, o convite surgiu e eu senti, assim, me senti muito honrada em ter sido convidada pelo British Council pra fazer parte desse livro, parte desse material, que é um material pra todos os professores da educação básica, é um material que está acessível aí na internet. E é um material que ficou, assim, muito bacana. Eu sou suspeita pra falar, né, porque eu faço parte dele, mas sou só uma mínima parte. O material, na íntegra, é muito bacana e tem várias personagens, várias pessoas participando ali, muita informação e, com certeza, é um material que todo o professor da educação básica deve dar uma olhada ou deve dar uma consultada ou deve ter como o material de consulta, assim, meio que permanente, porque ele realmente traz muitas informações, dá muitas ideias, muito bacanas, para os professores da educação básica. E aí eles entraram em contato comigo. Eu consegui reunir de uma forma assim, mais sistemática, o material que eu já tinha trabalhado com os meus alunos e acabou virando um capítulo, uma partezinha dentro desse material maravilhoso.
P1 - Então, a gente vai para as últimas perguntas, Lucinéia, que são perguntas um pouquinho mais pessoais: atualmente, quais são as coisas mais importantes pra você?
R - Olha, já começamos com uma pergunta que não é nada fácil. Hoje em dia, a gente vive num cenário, assim, tão complicado em função da pandemia, que se eu fosse falar que minha carreira é bastante importante e se eu fosse falar que as minhas produções são bastante importantes, eu estaria, assim, ‘pecando’ entre aspas, né, porque ao longo desse um ano e meio, mais ou menos, que a gente está vivendo, de pandemia, foram momentos, assim, tão impactantes, eu tenho a sorte e a alegria de não ter perdido nenhuma pessoa da família, graças a Deus, mas a gente tem relatos de amigos, de pessoas queridas próximas que partiram ou que perderam pessoas muito queridas. Então, assim, a gente tem empatia. Não é porque não aconteceu comigo que a gente não sinta isso. Então, hoje em dia, eu posso dizer com toda certeza que a coisa mais importante, pra mim, é a vida, é poder estar aqui viva. Eu sei que a gente ainda tem um período, a pandemia ainda não acabou, a situação ainda é bastante complicada, mas só o fato de estar viva hoje, já é motivo de muita alegria. E também é importante essa questão de, embora a gente tenha passado um período bastante distanciado mesmo, por exemplo: eu moro no Centro do Rio, minha família mora em Seropédica ainda, então o contato é basicamente via rede social, via aparelho telefônico. Então, a questão da pandemia, eu amo viajar e, infelizmente, nesse período, eu não pude fazer isso, ou pelo menos não pude sair do Brasil, até porque alguns países nem aceitavam brasileiro, infelizmente, porque o grau de intensidade de pandemia no nosso país foi tão grande que, infelizmente, algumas portas foram fechadas pra gente. Então, hoje, com certeza, quando você me pergunta: “Me diga uma das coisas mais importantes pra você”, com certeza é a preservação da vida e, claro, aí depois, vem outras coisas.
P1 - E quais são seus sonhos pro futuro, Lucinéia?
R - Bem, (risos) também outra pergunta bastante difícil. Eu ainda espero poder contribuir um pouco mais na área de educação. Eu tenho alguns projetos aí em termos de livros [e] tenho alguns livros organizados. Inclusive, sábado, agora, a gente tem um lançamento de um outro livro, "Teoria e Prática da Educação", volume II. Estou organizando um livro chamado "Professores Inovadores", já é o quarto volume: essa interação com os outros professores, não só do Rio de Janeiro, mas de outros estados e até em outros países. Esse ano eu tive a grata satisfação de organizar um livro… Na verdade, a organização do livro começou no ano passado e ele foi publicado esse ano, chamado "Mulheres na Ciência" e esse livro é um livro belíssimo - não só porque fui eu que organizei, porque fica assim, né, meio até estranho -, constituído de 27 professoras de ciências, professoras de biologia e pesquisadoras, nós temos nesse livro a rede municipal do Rio de Janeiro, a rede estadual de educação do Rio de Janeiro, a rede estadual de São Paulo, nós temos professoras da universidade… Aí não lembro, mas é uma universidade federal de São Paulo. Nós temos professoras pesquisadora da Fiocruz, professoras da Uerj, da Ufrj, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nós tivemos uma pesquisadora de Harvard, uma brasileira que está em Harvard no momento. Então, esse livro, a gente passa por várias áreas da ciência, passa pela história da mulher na ciência, então é realmente um livro belíssimo, é um dos trabalhos que eu tenho uma paixão, assim, enorme. Então, eu tenho planos de, futuramente, quem sabe, fazer o "Mulheres na Ciência II", a organização de alguns livros, continuar contribuindo com os meus alunos, porque eu acredito que toda a vez que a gente tem a oportunidade de ter uma sala de aula, de estar numa sala de aula, o nosso papel é muito mais de ensinar o conteúdo básico da ciência, a gente tem também oportunidade de levar um pouquinho de experiência de vida, de tentar ser um exemplo pra aqueles alunos, não somente em termos de conhecimento, mas também de experiência de vida. E eu vejo, como eu falei alguns minutos atrás, na entrevista, meus professores do ensino fundamental, do ensino médio, causaram grande impacto na minha vida. Então, se eu tenho um projeto na área do magistério, é que eu possa continuar, de alguma forma, impactando também a vida, o pensamento dos meus alunos e, pessoalmente, eu ainda tenho vontade de sair, muita vontade de fazer um curso em Londres (Inglaterra), passar um ano mais ou menos em Londres, pra dar uma melhorada no inglês, aprender um pouquinho mais. A Inglaterra é um país que eu gosto muito, já passei algumas vezes por lá, mas tenho vontade de passar lá por um bom tempo mesmo, passar um ano, um ano e meio, mais ou menos.
P1 - Nós vamos agora para a última pergunta, Lucinéia: o que você achou de contar a história da sua vida pra gente hoje?
R - Olha, Genivaldo, é uma experiência, assim, incrível. Enquanto eu estava falando, relatando aqui pra vocês, vieram outras histórias, outras memórias, que, infelizmente, o tempo, pra mim, não permite, que eu acho que, se eu fosse contar tudo, a gente ia passar um dia inteiro gravando, mas é uma experiência, assim, incrível. E é o que eu penso: eu jamais imaginaria fazer parte de um acervo e eu acho que esse museu, é um museu que talvez daqui... Eu acredito já na importância dele atualmente, mas eu acredito que daqui uns dez, quinze anos, vocês vão ter tantos materiais, assim, que vão ser relíquias, que vão ser obras-primas, que vão ser preciosidades. Provavelmente a professora Lucinéia não vai estar aí nesse grupo, mas vai ser, sim, uma fonte, não somente de pesquisa, mas também uma fonte de inspiração, não somente para algumas pessoas, mas pro povo brasileiro como um todo. Então, a importância desse trabalho é grandiosa, talvez nem vocês consigam ter a dimensão desse trabalho, mas eu acredito que, daqui alguns anos principalmente. Repito: já acredito na importância desse trabalho hoje, mas daqui há cinco, dez, quinze anos, então, esse trabalho de vocês vai ser, assim, precioso e uma fonte inesgotável de informações. Então, eu realmente não me sinto merecedora de estar fazendo essa entrevista, de estar participando, mas eu me sinto muito honrada de ter sido convidada e estou, assim, extremamente feliz de ter compartilhado algumas memórias, algumas histórias da minha vida e eu espero que seja útil, de alguma forma, que seja bacana, que vocês gostem de alguma parte desse tempo que a gente conversou. Muitíssimo obrigada mesmo, de coração.
P1 - Bom, então, pessoalmente e em nome do Museu da Pessoa, também agradeço demais a sua participação. Seu trabalho é incrível, sua história de vida também é super inspiradora.
R - Ah, obrigada, obrigada mesmo. (risos) E eu ainda resumi bastante, né, porque tinha muitas outras coisas pra contar e eu sei que vocês também têm um tempo, né?Recolher