Projeto: Colgate - Diversidade
Depoimento de Malu Jimenez
Entrevistada por Grazielle Pellicel e Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo (SP)/Chapada dos Guimarães (MT), 6/09/2021
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1039
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellice...Continuar leitura
Projeto: Colgate - Diversidade
Depoimento de Malu Jimenez
Entrevistada por Grazielle Pellicel e Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo (SP)/Chapada dos Guimarães (MT), 6/09/2021
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1039
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
P/1 - Oi, Malu, tudo bem com você?
R - Tudo bem.
P/1 - Hum, que bom. Vamos começar pelo básico, primeiro: qual é o seu nome, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Maria Luisa Jimenez Jimenez. Nasci em São Paulo (SP), sou paulistana da Bela Vista, [no] dia 15 de novembro de 1971.
P/1 - Qual que é o nome dos seus pais?
R - Meu pai é Luiz Jimenez Lupiañez e minha mãe é Antônia Jimenez Bertério.
P/1 - E o que seus pais fazem?
R - Meus pais eram… São, né? Meu pai já faleceu, minha mãe está viva. Minha mãe tem 86 anos. Eles são imigrantes da Espanha. Eles vieram na década de sessenta, fugindo da fome da Espanha. São de Andaluzia, do sul da Espanha. A minha mãe era costureira, dona de casa e meu pai era funcionário da IBM, da antiga IBM. Nem sei se existe mais em São Paulo. Ele veio com um acordo que o governo do Brasil fez com a Espanha, de trazer imigrantes pra trabalhar em algumas empresas aqui. Meu pai veio pra Salvador (BA), depois ele foi pra São Paulo, trabalhar na IBM.
P/1 - E a sua família é espanhola, né? Você tinha algum costume diferente na sua família, na sua casa?
R - Totalmente. Eu fui alfabetizada praticamente na língua espanhola e fui começar a aprender a falar português na escola, quando me colocaram na escola. Antigamente, era jardim, acho. Pré, na verdade. E eu lembro que as musiquinhas que eles cantavam, todo mundo cantava, não eram as mesmas que eu cantava, nem as historinhas que eram contadas, era bem diferente. Teve alguns choques aí. Algumas palavras também eram diferentes. A gente falava já português, assim, um ‘portunhol’, digamos assim, né? Mas tinha algumas palavras que a gente repetia em espanhol e eu fui me dar conta disso dentro da escola, que aquilo não era aquilo, era outro nome que chamava.
P/1 - E seus pais te contavam muitas histórias?
R - Contavam muitas histórias. Contavam muitas histórias da família da Espanha. Eu fui pra Espanha só com 33 anos. Eu não conhecia a Espanha, a minha avó, meus primos, minhas tias, então, tudo o que eu conhecia eram as histórias que eles contavam, da pobreza da Espanha, do Franco, da ditadura, das doenças. Meu pai e minha mãe nasceram na guerra, eles praticamente foram criados na guerra. Depois da ditadura do Franco, né? Então, eles contavam essas histórias horrorosas da Espanha, de tudo o que eles sofreram lá e porque é que eles estavam no Brasil. E sempre meus pais colocavam o Brasil num lugar sempre melhor, num lugar de mais paz, de solidariedade. Pra gente, o Brasil sempre era melhor que a Espanha.
P/1 - Você tem irmãos?
R - Eu tenho irmãos, irmãs. Nós somos quatro irmãs. Eu sou a terceira irmã. A minha irmã mais velha já faleceu. Ela tinha epilepsia, alguns problemas que a gente não conseguiu descobrir o que era e faleceu já, há alguns anos. Depois, eu tenho uma outra irmã, Maria de la Encarnación, que mora em Ilhabela (SP). Depois de sete anos, veio eu, Maria Luisa e, depois de dois anos, a minha irmã mais nova, que é a Mari Carmen.
P/1 - E como que era sua infância: você, suas irmãs, a sua casa da infância?
R - Eu, quando nasci, na Bela Vista, num apartamento perto do Minhocão e meu pai construiu uma casa no Butantã, perto do Butantã, ali da USP (Universidade de São Paulo), um bairro que se chamava São Francisco. Demorou pra caramba pra ele construir essa casa. Aos poucos, ele foi construindo, tal. E a gente mudou pra lá, não sei exatamente [quando], mas eu devia ter uns cinco, seis anos, quando a gente foi pra essa casa, num bairro residencial. A rua era de pedra, a gente brincava pra caramba nessas ruas. Eu tive uma infância extremamente livre, de brincar em rua, né, de brigar na rua, de brincar na rua. Eu sempre, desde pequena, gostava de estar na rua, de andar de bicicleta, de estar com os meninos. As minhas brincadeiras prediletas eram com eles. Às vezes, dava umas brigas, eu chegava com murro na cara, essas coisas e tal. (risos) Mas foi uma infância legal. Era um bairro com muita gente de fora, com muitos estrangeiros. Não sei como está hoje lá, mas eu lembro que tinha uma portuguesa que também morava lá, com as filhas brasileiras, [também] tinha alemães [e] italianos nesse bairro.
P/1 - Ah, interessante! E a sua escola, era perto da sua casa?
R - A minha escola… Eu estudei em Osasco (SP), numa escola de freiras, que era horrível! (risos) Horrível mesmo. Eu lembro de algumas cenas de uma Madre que se chamava Raimunda. Nunca vou esquecer [o nome dela]. E as aulas… Minha mãe era católica apostólica romana e fazia questão. Meu pai era ateu, criticava, mas ela meio que venceu de colocar a gente lá. E a gente esteve nessa escola, acho que, até o ensino fundamental e depois a gente foi pro estado, pruma escola perto da onde eu morava, onde a gente ia a pé pra essa escola.
P/1 - E como você ia pra essa escola de Osasco?
R - A gente ia de ônibus, ou de van. Eu lembro que o cara que dirigia a van tinha problema com bebida, teve várias confusões por causa disso. Uma vez eu desci da van, fui de ônibus sozinha e cheguei em casa. Minha mãe ficou muito preocupada. Devia ter o quê? Nove anos, mais ou menos isso. Era uma escola de classe média, onde a gente… Eu, pelo menos, não me encaixava muito ali. A gente rezava muito, em vários momentos durante o dia. Até hoje eu não sei rezar, eu não queria aprender. Não foi… Não lembro de coisas muito legais nessa escola, não. Pelo contrário: me causa até um pouco de incômodo, quando eu falo dela. E a escola do estado, depois que eu fui pra escola do estado, a minha família estava passando por problemas muito sérios, dinheiro. A minha irmã que tinha epilepsia, apareceu a doença dela e meus pais ficaram muito desesperados em querer saber o que era e não conseguia saber. E chegaram a dizer que ela tinha anos de vida, que ela tinha tumores no cérebro. E aí, meu pai fez um acordo com a IBM, pra ele perder a aposentadoria. Era uns acordos que faziam com algumas empresas. Ele saiu dessa empresa, ganhou um dinheiro e tudo o que ele investiu, ele perdeu o dinheiro. Então, a gente estava passando por uma situação muito difícil de grana. Eu lembro que a gente perdeu muita coisa, eles tiveram que vender muita coisa e eu queria trabalhar. Devia estar na sexta série, mais ou menos, eu queria trabalhar pra ajudar minha família e me contrataram numa escolinha, tipo uma creche, que tinha lá perto de casa, na [Avenida] Corifeu Azevedo Marques e eu matava aula pra ir nessa escolinha. No final do ano, minha mãe descobriu, né, que eu não ia na escola. Então, eu repeti de ano, acho que era sexto ano. Então, não tenho, assim, lembranças muito boas da escola, não. Fora que eu era gorda, sempre fui gorda e existia todo um “bullying”, todas umas piadas, todo um incômodo com meu corpo ali, naquele espaço educacional.
P/1 - Você tinha algum sonho quando era criança, de “quero ser isso quando eu crescer”?
R - Eu gostava muito de teatro, sempre gostei. Meu pai conhecia um cara que era professor de teatro, não sei de onde que veio, era um amigo dele, sei lá. E ele o chamou pra dar aula pras crianças lá do bairro e ele ia acho que duas vezes por semana dar aula. Eu me dava muito bem no teatro, gostava muito. Pegava os personagens principais, eu amava aquilo. Eu lembro que a gente fez a Bruschetta, era boa. Lembro de momentos felizes ali. Depois ele teve que parar de dar as aulas e, mesmo assim, eu continuei fazendo os meus teatros lá, com o grupo, entre a gente mesmo, que era criança. E nas férias, eu lembro que eu fazia escolinha de férias e cobrava das mães um dinheiro pra levar as crianças lá na minha casa, que tinha um quadro verde e eu dava aula pras crianças, sabe? Minha mãe conta isso, eu morro de rir. E eu lembro sim disso, lembro que a gente fazia escolinhas, que as mães deixavam, imagina, férias, passar a tarde toda lá. E eu não sei o que eu ensinava pra elas, acho que era teatro, sei lá. E a gente trocava ali, brincava, fazia um monte de coisa. Então, acho que eu, na minha infância, pensava em trabalhar com teatro ou ser professora. Olha o destino, né?
P/1 - Durante a escola, você tinha alguma matéria favorita?
R - Eu gostava de arte e depois eu fiquei sem estudar. Quando eu repeti de ano, nessa sexta série aí, que eu estava trabalhando e tal, meus pais foram pruma seita, no Rio de Janeiro (RJ), que se chama “Universo em Desencanto”. Muita coisa que aconteceu na minha vida, sabe? Porque eles estavam procurando, através da espiritualidade, curar minha irmã. Como a medicina não tinha uma resposta, eles foram por esse lado. Então, eu lembro que eles iam em umbanda, candomblé, com a gente. E aí acharam essa seita, num vizinho que era um cientista, um vizinho lá, ‘seu’ Nelson Bacarla, lembro até hoje, que me dava aula de Matemática. Não devia ser boa, então, de Matemática. Ele me dava aula de reforço. E a gente começou a ir nesse lugar. Minha mãe, meu pai e minha mãe sem dinheiro, com vários problemas, decidiram morar lá. A minha irmã foi morar lá primeiro. Eu peguei uma hepatite super brava lá, dos vizinhos. Me mandaram também pra essa seita e aí a gente morou lá muitos anos. Eu morei lá dos meus nove aos dezessete anos, e fiquei sem estudar. Não tinha escola lá. Tinha a escola deles lá, das coisas deles, da seita deles. Eu, com treze anos, casei com um homem lá dentro. Pois é, eu tinha treze, doze anos. Na verdade, ia fazer treze e ele tinha 25, 26 anos. Hoje, eu entendo toda a violência que aconteceu comigo, mas na época eu não tinha noção. E eu casei com esse homem, tivemos uma casa, morávamos juntos, de doze, treze anos, aos dezessete. E depois eu decidi que ia embora, que eu não queria ficar lá, nem na seita, nem com ele. Não sabia explicar muito bem, mas eu queria ter a minha vida.
Eu não concordava com as coisas que aconteciam ali, tal. E aí eu volto pra São Paulo e começo a trabalhar - volto pra casa da minha irmã, da segunda irmã, que morava em São Paulo - numa sapataria, na Lins de Vasconcelos, na Vila Mariana. E aí eu comecei a perceber o seguinte, que se eu não estudasse, eu estava ferrada, porque os trabalhos que tinham pra mim eram: babá, limpadora, vendedora e olhe lá. Eu ainda tinha o privilégio de ser branca, então consegui alguns trabalhos, mas sempre muito mal remunerados, sem carteira assinada. Foi aí que eu peguei e falei: “Não, eu quero estudar, preciso estudar. Por que, como eu vou fazer? Vou ficar aqui nesses trabalhos aí, sendo explorada?”. Eu morava num pensionato na Vila Mariana, um pensionato horrível, de mulheres. E aí eu comecei a fazer supletivo. Fiz supletivo sexta, sétima, oitava e nono. Fiz o ensino fundamental, fiz supletivo ali e depois eu fui pro Ipiranga, uma escola técnica de secretariado, fazer o ensino médio profissional, porque aí você tinha emprego. Então, eu já fui pensando nisso, porque eu que me sustentava, né, e a minha irmã, depois veio também, lá da seita, a mais nova, morar comigo. A gente morou junta um tempo, ela também fez esse técnico em secretariado. E eu fui trabalhar na presidência da Sabesp, como auxiliar de secretariado, lá. Pagava mal, era tipo estágio, tal, mas já era melhor do que os outros empregos que eu conseguia, né, antes de estar estudando. Então, eu fiquei, fiz o técnico em secretariado. Aprendi muita coisa lá. Tinha uma professora de História muito boa e tinha uma professora de Língua Portuguesa, a Mônica, que me ensinou a escrever. Acho que foi a primeira professora que teve uma troca ali, na escrita. Hoje, a escrita, pra mim, é muito importante. Aí eu tive um professor de Filosofia, nesse curso técnico, incrível. Aí eu falei: “Quero fazer Filosofia”. Aí me deu um livro do Nietzsche, eu li o livro, não entendi quase nada, mas, mesmo assim, falei: “Nossa, que interessante isso aqui! Vou prestar Filosofia”. Eu saí da Sabesp e fui trabalhar num plano de saúde, medicina alternativa. Minha chefe era super legal e ela falou pra mim: “Olha, você pode sair um pouco antes do seu horário, pra você estudar”. E aí eu saía pra estudar: consegui passar na Unesp (Universidade Estadual Paulista). - Eu tô indo, tá, qualquer coisa você me corta, Grazi. - Aí eu fiz Unesp, em Marília (SP), e minha vida mudou completamente, porque eu comecei a estudar Filosofia. Minha visão de mundo ali, ela se transformou. Comecei a ter acesso a um conhecimento que eu não tinha antes, que nem imaginava que existia, que foi super importante pra o que eu sou hoje, pra forma de ver o mundo, pra minha formação enquanto pessoa, profissional, professora e tudo o mais. Então, eu fiz a Filosofia lá em Marília. Sempre precisei de bolsa, eu nunca tive grana, em momento nenhum. Até hoje. Terminei a Filosofia, fui estudar em Assis (SP), no mestrado de Literatura e Vida Social. Estudei lá e depois eu fui… Voltei pra São Paulo, pra trabalhar como professora, fiquei na baixada santista, ali, em Bertioga (SP), durante sete anos, dando aula no estado e numa faculdade particular que tinha lá. E eu tive um relacionamento lá, super abusivo e pensei… Eu não queria continuar a minha vida como ela estava ali. Tanto do relacionamento, quanto dentro da escola, as pessoas envelheciam doentes, assim, paravam de ler, de estudar, e eu não queria isso pra mim. E aí eu comecei… Eu fui pra Espanha com a minha mãe e eu vi lá que existiam algumas bolsas pra filhos de espanhóis estudarem. Aí eu concorri. Fiz o curso de espanhol, fiquei um ano em São Paulo fazendo um curso de espanhol no [Instituto] Cervantes, na Avenida Paulista, dando aula à noite, numa periferia do Ipiranga, braba. Foi no ano que colocaram fogo nos ônibus lá do… Como é que chama? Esqueci agora. Em São Paulo, teve, nesse ano que eu não vou lembrar qual (2006), um lance muito louco, que eu nunca tinha visto, que foi com o CPP. Não. Como que era o nome daquela galera?
P/1 - PCC.
R - É, PCC. A escola que eu dava aula estava numa favela onde era dominado pelo PCC. Eles entraram, nesse dia, na escola. Lembro, foi nesse ano, então eu estudei espanhol pra conseguir essa bolsa, fui pra Espanha. Fiquei morando na Espanha alguns anos. Homologuei meu título lá, de Filosofia. Conheci mais de perto a família da minha mãe, a família do meu pai, as minhas origens lá, os meus ancestrais, tal. Desmistifiquei muita coisa sobre a Europa e, dentro disso, eu prestei um edital pra fazer doutorado em Antropologia Cultural [e] passei na Universidade de Granada. E aí, lá, eu tive contato com a teoria da decolonialidade e comecei a ler só latino-americanos, que eu nunca tinha lido (risos) aqui. E aí, isso transformou minha vida de novo, meu olhar pra América Latina, meu olhar pra feminismo, meu olhar pro corpo, raça, gênero, toda essa construção colonial que existe sobre os sistemas. E eu consegui uma bolsa pra vir estudar a juventude indígena no Mato Grosso. Lá, eu conheci um cara que era basco, a gente foi morar junto, a gente está junto até hoje. Ele veio comigo pro Brasil, mora comigo até hoje. E aí eu vim pro Mato Grosso estudar a juventude indígena, em Rondonópolis, uma aldeia que tinha lá perto, com um professor da Ufmt, e lá eu conheci o feminismo indígena, que foi muito importante pra mim. E aí eu engravidei e minha gravidez foi de risco. Eu descobri que eu tinha um mioma e tive que trancar a matrícula, porque não tinha como ir pras aldeias, não tinha como… Eu tranquei a matrícula, tinha um prazo de seis meses pra eu voltar. Minha filha nasceu prematura de cinco meses, por causa do mioma, e depois de sete dias de vida, ela morreu. E aí eu pensei que eu ia morrer junto.Foi muito foda, muito! Eu no Mato Grosso, no fim do fim, a gente não tinha grana, não tinha carro, não tinha plano de saúde, não conhecia ninguém e tinha que encarar, porque era o que estava acontecendo e não tinha muito o que fazer, sabe? Até pela Saúde, né, instituição da saúde no Brasil, de não conversar comigo a possibilidade, por exemplo, de um aborto, pra eu não passar pelo que passei. Aqui não existe essa possibilidade. Se fosse na Espanha, por exemplo, talvez tivesse essa possibilidade, enfim. E aí, depois de tudo isso, eu meio que larguei tudo: perdi a bolsa, não tinha forças pra voltar, estava super abalada e tal. Meu companheiro abriu um restaurante pra gente sobreviver, porque ele é cozinheiro. Ele é de obras e é cozinheiro, ele trabalha com arte e tal. E aí a gente abriu um restaurante dentro da nossa casa, na sala da nossa casa, pra gente poder sobreviver. Foi bom, assim, era tipo um ateliê com arte, comida, tal. Depois de um ano, eu consegui meio que voltar e comecei a dar aula aqui, em algumas escolas do estado, e comecei a reconstruir a minha vida tudo de novo. Foi bem difícil. Depois de um ano e meio, eu consegui uma... Me chamaram pra dar uma aula numa cooperativa que tem aqui, de professores. Eu entrei nessa cooperativa, tô lá até hoje, dando aula. Eu queria muito voltar pra estudar, uma coisa que eu sempre gostei, e aí eu fui pra Ufmt, descobri que lá tinha um programa de estudos de cultura contemporânea, que tinha muito a ver com o que eu tinha visto lá na Espanha. Comecei a fazer algumas disciplinas, pra ver se eu gostava, se era o que eu queria. Prestei a prova pro mestrado, um projeto pra estudar as empregadas domésticas e as patroas, a relação das empregadas domésticas e as patroas, aqui na Chapada dos Guimarães, através da alimentação. Aí foi aprovado, consegui uma bolsa. E aí eu comecei a pesquisar isso, foi um trabalho incrível. Tem um livro, inclusive, que chama "Domésticas: comensalidade na qualidade"... "No cotidiano", aliás. ("Domésticas: cotidianos na comensalidade") E aí, nessa pesquisa, eu comecei a perceber que tinha alguma coisa muito errada com as mulheres, sobre os seus corpos e sobre a gordura. Mas muito errada mesmo, porque todas as mulheres que eu entrevistava, as magras, as gordas, as brancas, as negras, as que tinham mais grana, as que tinham menos grana, todas elas se organizavam a partir de uma coisa: que era não engordar ou emagrecer. Então, a lógica dessas mulheres era a forma como elas comiam, como elas se vestiam, tudo o que elas pensavam: o foco era estar magra. E comecei a perceber que eu também era assim. Apesar de eu ser uma mulher gorda, o meu objetivo sempre era emagrecer. Mesmo que eu engordasse de novo, voltava de novo nesse objetivo e esse objetivo era algo muito importante pra minha sobrevivência na sociedade. Quando eu comecei a sacar isso,
pensei: “Isso é um fenômeno muito profundo”, porque não era só as entrevistadas. Comecei a perceber, enquanto pesquisadora, que eu ia pro ponto de ônibus, as mulheres estavam falando de regime, ou da roupa, ou de alguma coisa que emagrecesse. Se eu ia pra faculdade, as pessoas estavam falando disso. Na sala dos professores, as professoras estavam falando sobre isso. Era como se fosse algo muito intenso na forma como a gente encara a vida. E aí eu fiquei encafifada com isso, falei: “Não, aí tem alguma coisa, não pode ser”. Eu comecei a pesquisar na gringa e descobri o termo “gordofobia”. E aí, quando eu descobri o termo gordofobia, o mundo abriu, porque eu falei: "Putz, é isso que eu sofri a vida inteira e que essas mulheres vivem”, né? As mulheres gordas, né? Além da pressão estética. E aí eu comecei a pesquisar isso, acho que o tema da minha vida tem sido. Isso foi em 2014, até hoje eu venho me debruçando nisso. Eu terminei o mestrado já pensando num projeto de doutorado. No mestrado, a minha escrita, houve um encontro com a minha escrita, porque eu não me reconhecia como uma escritora, não me reconhecia como uma pesquisadora. E eu comecei a escrever em primeira pessoa, comecei a me colocar dentro da pesquisa e tudo fez sentido pra mim. Então, eu comecei a me reconhecer como processo das descobertas, das análises, começou a fazer sentido pra mim. Isso tem muito do feminismo, né? De colocar as nossas histórias, os nossos pontos de vista, como válidos naquilo que a gente faz. E esse encontro, então, me levou a um doutorado. Eu pesquisava os depoimentos de mulheres gordas e escrever a tese a partir do meu corpo, das minhas dores, em cima desses depoimentos. Então, é uma tese autoetnográfica, que fala de mim, mas que também fala de outras mulheres que sofreram como eu, ou parecido, sabe? Como se fosse uma denúncia de como a gordofobia é cruel, nesses corpos gordos femininos, desde as suas infâncias até a sua morte. E como esse preconceito, esse estigma, essa violência, é disfarçada de amor, de cuidado, de saúde, de carinho. Então, eu fiquei estudando isso e comecei a perceber que não queria que tudo o que eu estava aprendendo e construindo, ficasse [só] dentro da universidade. Eu queria levar isso pra fora da universidade. E aí eu criei um projeto que se chama “Lute como uma gorda” e esse projeto, comecei a fazer roda de conversa, palestra, foto, a fazer tudo que vinha. Eu comecei a transformar numa máquina política de conscientização ou de provocação, acho que é muito mais conscientização a palavra, de provocação, pra que as pessoas parassem pra pensar como é que a sociedade vinha tratando ou vem tratando as pessoas gordas. Minha tese virou um livro com fotografias incríveis. Eu, no meio desse processo, conheci uma fotógrafa aqui da Chapada, chamada Ju Queiroz. A gente virou parceironas e fez vários ensaios dentro da Chapada dos Guimarães, dentro do cerrado, nua, como uma forma de resistência, né? Eu falo que meu corpo é uma máquina de guerra contra o patriarcado, contra a gordofobia, contra essa construção colonial, que só é possível impor, né? E o corpo branco, hetero e magro. E aí, nessa construção toda, esse projeto foi virando muitas coisas, que eu, inclusive, perdi o controle: acabei já indo pra Colômbia, acabei fazendo no México, acabei fazendo muitas outras coisas, que eu jamais imaginava que o meu corpo gordo me levaria a conhecer tanta gente especial, fazer tantos projetos incríveis. E hoje eu tô fazendo um pós-doutorado, em Psicossociologia, na Ufrj. Uma galera muito legal, da Medicina, da Psicologia, pensando nesse discurso da saúde sobre a gordofobia, né? Na verdade, não tem nada de saúde quando se justifica uma violência como a gordofobia. Então, minha pesquisa é um rompimento de paradigmas e não tem só coisas boas, né? Por ser um rompimento de paradigmas, eu estar criticando a medicina, esse poder soberano desse discurso de poder que a medicina tem, eu sou mega atacada nas redes sociais. A semana passada mesmo, eu tive até que falar com um advogado. Então, eles entram, me xingam, falam que vão me matar. Coisas horríveis. Ainda bem que eu moro na Chapada, às vezes, eu penso, sabe? E chega no dia de hoje, né, eu continuo estudando sobre o corpo gordo, continuo propondo uma revisão epistemológica sobre esses corpos, sobre a violência que significa dizer que os corpos gordos são doentes. As consequências disto são muito violentas pra essas pessoas, né? Existem… A maioria das pessoas gordas não saem de casa, elas não vão numa praia, elas não têm atendimento digno em lugar nenhum porque, como é um corpo considerado inferior e doente, é como se fosse um aval pra que as pessoas pudessem humilhar, como se as pessoas gordas fossem culpadas de serem gordas, porque elas escolheram estarem gordas, então elas merecem qualquer tipo de violência. Isto é mega cruel. Então, quando eu me vi dentro desses estudos, eu tinha uma responsabilidade política tão forte aí, que eu tive que tomar alguma atitude, sabe? Era um momento que ninguém falava sobre isso, que ninguém queria dar a cara, também, pra falar, né? Por causa das consequências e tal. E eu acabei assumindo esse lugar, esse papel, da pesquisadora-ativista, que dá a cara pra bater, sabe?
P/1 - Como foi formado o grupo de estudos transdisciplinares do corpo gordo?
R - Então, a Malu se libertou. Ela se libertou de uma culpa que ela carregava, em achar que tinha alguma coisa errada com ela. Porque o estigma da gordofobia culpabiliza a vítima, mas mais que isso, a vítima se acha culpada. Então, eu me senti, muitas vezes, na minha vida, culpada, de não conseguir emagrecer. Não é que eu não consegui emagrecer, eu emagrecia fazendo coisas horríveis comigo mesma. Eu consegui emagrecer, mas não conseguia manter esse corpo que as pessoas diziam que eu devia ter. Então, quando eu começo a ter contato com esses estudos, começo a perceber que existe uma engrenagem muito mais profunda do que culpa. E de como existe uma construção colonial sobre um tipo de corpo, um tipo de sexualidade, um tipo de raça e o resto, que não se encaixa nessa construção, né, deve ser perseguido, deve ser anulado, é considerado anormal, que é o caso do corpo gordo. Então, a Malu se libertou. Existe uma transformação dentro de mim, muito forte mesmo, de vida, de forma de ver o mundo, de se posicionar, de escolhas. Em 2018, por exemplo, eu escolho que vou trabalhar com isso, que esse vai ser o meu trabalho, que vou dedicar minha vida nesses estudos, nessa pesquisa. Eu não separo muito a pesquisadora, da Malu, da mulher, da esposa… Claro, tem os seus lugares, né, mas está tudo junto também, porque a minha pesquisa só tem esse poder, porque eu consegui me libertar e trazer essa liberdade pra dentro do texto, né? As pessoas falam pra mim: “Nossa, quando você fala disso, você tem um brilho no olho, você…”, porque o que eu tô falando é aquilo que eu me identifico, entende? Eu não tô mais repetindo o que a Academia disse pra mim, tô construindo o meu discurso a partir de uma violência muito profunda, que eu senti a vida inteira, [que] eu me culpei por isso e não sabia porquê. As pessoas me odiavam, odiavam meu corpo e odiavam outras mulheres gordas. E veja: eu sou uma pessoa branca, de classe média. Eu consegui fazer uma faculdade, mesmo com todos os perrengues. Agora, imagina as mulheres gordas pretas, as mulheres gordas periféricas, né? Eu tinha que falar alguma coisa ali, eu tinha que ter aquele contato, precisava levar isso pra outros lugares. Hoje, eu vejo já um monte de gente fazendo isso, falando sobre isso e acho super legal, acho que tem que falar mesmo. E quanto mais gente falar, melhor. E, como eu tô falando de saberes, né, que violentam esse corpo, eu também preciso estar dentro da Academia, pra questionar isso. Porque a nossa formação é gordofóbica, seja ela em qual curso for, na Medicina, na Educação, na Arquitetura, na Comunicação, onde for, a nossa formação é uma formação gordofóbica, que precisa ser revista, porque existem pessoas sofrendo como consequência dessa formação gordofóbica, sabe?
P/1 - Você comentou, no início, que, desde criança, sempre foi gorda e isso até te trouxe traumas na infância, porque as pessoas comentavam, né, maldosas. Quando você começou, de fato, a amar seu corpo? Foi depois da pesquisa?
R - Olha, quando eu comecei a estudar o corpo gordo, comecei a olhar o meu corpo de uma outra maneira. Eu comecei a perceber que o meu corpo tem história: ele é uma história, ele conta histórias, ele traz marcas. E essas histórias, essas marcas e esse tamanho, é um corpo com muita potência e político. Numa sociedade onde o meu corpo é negado, odiado, humilhado, eu assumir esse corpo é um ato político. E isto é o que me faz mostrar, isso é amor pra mim. É colocar o meu corpo de uma outra forma, valorizando aquilo que ele é. E perceber, por exemplo, a capa do meu livro, né? Eu penso assim: eu, com vinte anos, se entrasse numa biblioteca e visse aquele livro, talvez minha vida teria mudado completamente. E quando a gente está falando de estudos do corpo gordo, a gente está falando de muita coisa. A gente está falando de uma construção de conhecimento que oprime as mulheres, que as mulheres cada vez têm que ser menores. Elas têm que sumir, inclusive, se possível. Elas têm que obedecer um padrão de sensualidade pra satisfazer os homens, né? Então, assim, estudar o corpo gordo é perceber muitas outras coisas. Não tem como você voltar pro mundo, depois desses estudos, da mesma maneira, da mesma forma, se colocar da mesma maneira, pensar da mesma maneira. E eu acho que o mais importante é eu ter entendido que tudo o que passei na minha vida, todos os meus perrengues, todas as minhas dores, todas as minhas humilhações, são marcas que estão no meu corpo e que eu posso transformar tudo isso em potência, eu posso transformar isso em histórias potentes. Eu tenho o direito de contar uma história. Algo que, nessa lógica colonial, quem conta a história é sempre o hetero branco, macho, normativo. E, dessa vez, não. Quem vai contar a história é a gorda, que não é hetero e que está rompendo com toda essa ideia de corpo dentro da nossa sociedade, sabe?
P/2 - Eu queria que você falasse um pouquinho sobre as suas outras atividades, que são o coletivo feminista Gordas Xômanas, YouTube, "podcasts", né? Outros meios onde você atua também, [em que] você faz comentários sobre a sua pesquisa, sobre o seu ativismo.
R - Bom, eu faço parte do coletivo Gordas Xômanas, que é resultado do meu projeto “Lute como uma gorda”. São mulheres periféricas de Cuiabá, do Mato Grosso, que se reúnem - agora, com a pandemia, a gente tem se reunido menos - pra discutir sobre gordofobia, sobre suas dores. A gente já fez alguns ensaios fotográficos juntas também. Um lugar de apoio, pra gente falar sobre o que significa ser uma mulher gorda, periférica, na sociedade contemporânea. Além disso, eu sou fundadora do primeiro grupo de pesquisa sobre corpos gordos no Brasil, que hoje se chama “Pesquisa Gorda” - que está no Instagram - e a gente se reúne também pra estudar, ler, debater, fazer aulas ao vivo, mandar dossiês pras universidades, escrever textos. Enfim, um grupo de pesquisa sobre as corporalidades gordas. Além disso, eu trabalho também, dou um curso que se chama “Introdução aos Estudos do Corpo Gordo”, onde eu trago todo esse conhecimento pra vários profissionais de saúde, de educação. [É] um curso "on-line", com muito material, onde rola uns bate-papos, videoaulas. Trabalho também com escritas afetivas, um método que eu criei, pra trazer a minha experiência, o meu encontro com a minha pesquisa, com a minha escrita, pra outras mulheres, gordas ou não, que não conseguem se relacionar muito bem com a escrita. A escrita, o lugar da escrita sempre foi masculino, branco, hetero, né? Propor que outros corpos ocupem este lugar é um dos objetivos dessa oficina onde eu dou. Outra coisa também que eu trabalho é com fotografia, junto com a Ju Queiroz, né, que eu falei. Mas eu também dou oficinas sobre corpos políticos e resistências fotográficas, né? Eu falo um pouco sobre transformar esse corpo dissidente num corpo onde ele aparece, um corpo político. Eu denomino de máquina de guerra, né, onde ele também traz representatividade e questiona por que esse corpo não pode estar em evidência, ou visualizado num lugar onde a gente nunca está, que é um lugar de poder, que é a fotografia. Eu acho que são, nesse momento, essas coisas que eu tô realizando aí.
P/2 - E me conta um pouco sobre sua atuação atual como professora, né? Você comentou que é professora de ensino médio e, também, universitária. Eu queria que você comentasse um pouco sobre atuação, os conteúdos, né, sobre os quais você dá aula, mas também eu queria que você comentasse um pouco como você lida com a gordofobia, dentro desses ambientes, né? Como você propaga sua mensagem ou os problemas que você enxerga no ambiente escolar, a respeito da gordofobia.
R - Então, eu tive… Passei muitos anos, não sei se está totalmente resolvido ainda, um questionamento do que é ser professora, na nossa sociedade. Quando eu comecei a estudar o corpo gordo e perceber que eu era continuação, por mais que eu fosse uma professora de Filosofia, que questionasse, trouxesse literatura e tal, de alguma maneira, contribuía com o disciplinamento desses corpos, né? A forma de um controle desses corpos dentro da escola. E muitas vezes eu ainda me sinto assim. Então, eu tô num processo de ressignificação, de não participar mais desses locais, que é a escola e a universidade, que repetem uma produção de controle sobre os corpos, sem questionar. Só que eu comecei a perceber, com as minhas oficinas, com meus cursos, que ser professora não precisa estar dentro de uma instituição. Uma instituição do Estado que, por mais que você seja desconstruída, por mais que você proponha reflexões, você continua dentro de uma lógica de controle ali, de... Digamos assim, de controle, de dominação daqueles corpos e daqueles pensamentos. Então, comecei a perceber que eu poderia ser uma professora fora desses lugares, com uma outra proposta de ensino, uma outra proposta de construção de conhecimento. Então, cada vez mais eu tenho me dedicado aos meus cursos, às minhas oficinas, às minhas monitorias, onde eu tento romper com isso, com essa construção que você não consegue romper de tudo, que o Estado te traz. A instituição, mesmo, do que é ensinar hoje, no Brasil. A gordofobia, dentro desse lugar. A gordofobia está em todos os lugares, então ela está também no lugar do ensino. Eu, como professora, muitas vezes sou invisibilizada por ser gorda. Tenho que lidar com alguns preconceitos, algumas brincadeiras, principalmente turma que chega, nova, eu preciso propor uma conversa sobre isso. Então, a gordofobia, não é porque eu estudo a gordofobia, milito a gordofobia, que ela não acontece comigo. Muito pelo contrário: às vezes, ela vem até com mais força, por eu me posicionar, né? Quando você é um corpo que não se posiciona, você é submisso àquela violência, está tudo certo. Mas quando você rompe com essa submissão, você se coloca como você não vai mais aguentar aquele tipo de violência, parece que fica mais forte ainda a violência contra você. Então, eu sofro sim, muitas vezes tenho que me posicionar e questionar. E a instituição Educação é extremamente gordofóbica, desde as suas cadeiras, seus uniformes, seus banheiros, seus corpos docentes, até a disciplina mesmo, a forma como a gente trata e trabalha os corpos dentro de sala de aula.
P/2 - E quanto aos alunos, você já teve algum caso de gordofobia em relação a algum aluno, que você teve que intervir, ou que teve que conversar a respeito com alguma turma?
R - Tive. Alguns casos que eu tive que chamar e perguntar o que estava acontecendo, o que estava incomodando, que aquilo que ele estava falando pra mim era preconceito, tinha um nome. Geralmente são meninos e está disfarçado por uma macheza, né? Principalmente no ensino médio, na adolescência, onde eles estão aprendendo ainda a disfarçar todo esse ódio e eles não têm um certo domínio. O adulto consegue, né? Ele disfarça pra você, você vira e aí ele fala. O adolescente, às vezes, ele escorrega nisso e não consegue. Acho que, pior do que o aluno, são os pais desse aluno, né, o meio desse aluno, de onde esse aluno vem, que ele está repetindo aquilo que ele está aprendendo na casa dele. Então, o aluno repete aquilo que os pais dele mostram pra ele que é errado, mesmo quando ele está naquela idade de romper com isso, ele continua ainda repetindo. Na verdade, eu sempre converso quando percebo, mas quando você vai conhecer os pais, percebe que vem muito mais da família, na construção daquele indivíduo, do que das minhas aulas sobre gordofobia, por exemplo. Então, eu tô tendo que lidar com uma formação desde a infância familiar sobre o que significa ser gordo, numa aula de duas horas, sabe? É injusto, até. Mas, claro, a gente tenta colocar… Eu acho que muito mais que isso, é a forma como eu me posiciono, né? Sou um corpo que não sou um corpo gordo comum, que eles estão acostumados. Esse corpo gordo, aliás, grande, nem aparece, ele nem vai nos lugares. Então, quando eu vou, apareço, tenho doutorado, me coloco como uma pesquisadora e a gente debate temas, eu já tô, ali, falando sobre gordofobia, já tô, ali, mostrando pra eles: “Olha, esse corpo também é capaz, esse corpo também produz conhecimento, esse corpo aqui também constrói conhecimento”, né?
P/2 - E você acredita - que, mesmo nesse período limitado, né, como você disse, duas horas, é difícil desconstruir essas ideias com todo o ambiente em volta estimulando que o preconceito continue - que existe alguma influência do seu discurso nos seus alunos, que são gordos?
R - Existe, sempre existe. Nem que seja em um, nem que seja em meio, né? (risos). Nem que seja, assim, que num dia lá na… Porque, assim, o que eu dou… Eu leciono Sociologia, Filosofia, Literatura, atualidades. Então, o meu ensino não bate na hora. Eu já percebi isso, assim, eu tenho 22 anos de experiência em sala de aula. Ele não bate, ali, na hora que eu tô falando, ele vai bater [depois], sabe? E isso eu venho percebendo e ouvindo dos meus alunos, depois que eles estão lá na faculdade, saindo, às vezes, da 'facu': “Professora, aquele dia que a senhora falou sobre a pobreza, eu tive uma aula [e] me liguei”. Então, eles vão ali… Aquilo fica ali e eles precisam de um tempo, porque construção crítica depende também de um amadurecimento. Geralmente meus alunos chegam na minha aula sem amadurecimento nenhum. Aliás, eles não sabem nem o que eles pensam sobre as coisas. A nossa educação não constrói pensamentos críticos, ela é uma questão de repetição. Isso é isso, repete aí, não é o que você pensa sobre isso. Vamos ler, pra você ter a sua opinião sobre isso; vamos debater, pra você ter a sua opinião sobre isso. Não existe isso. Geralmente é: isso é isso, escreve aí. Então, ele não tem mesmo um amadurecimento pra ele ter um pensamento crítico sobre as coisas que a gente está conversando. Aí ele vai depender de um tempo pra amadurecer isso e, se ele continuar tendo contato com este tipo de debate, porque muitos não continuam a estudar ou vão fazer uma faculdade, sei lá, que não fala sobre isso, né? Outros também enfrentam, assim, porque é um movimento muito forte. Me odeiam, depois passa um tempo: “Professora, eu te odiava, mas hoje vejo que o que você falava, você estava certa, é verdade. É isso, é aquilo, é o outro”. Então, também cada um vai bater de uma forma diferente, né? Eu sou um corpo que incomoda. Eu sei disso. Sou um corpo que incomoda, porque nas minhas aulas eu vou romper com tudo aquilo que eles acham que está certo e que é a verdade. Aí eu vou chegar lá e vou falar: “Não é assim, por causa disso e disso”. Então, de alguma maneira, ali, a reação às vezes é não ligar, outras vezes é odiar, outras vezes é criticar, outras vezes é enfrentar. Mas vai bater mesmo mais pra frente, se ele continuar vendo falar sobre isso, ou se acontecer alguma coisa na vida dele, que ele volte àquela aula e fale: “Nossa, a professora, aquele dia, falou um negócio”. Pelo menos é o que tem acontecido comigo, é a minha experiência, não é um saber que é na hora, que a pessoa já ouve… Por isso que é tão complicado, né? Esses ensinos de Filosofia, de Sociologia, deveriam existir desde pequititico, né? Pra ele vir crescendo nessa construção de autonomia do saber. Acho que é isso que mais me atrapalha na instituição de ensino: não existe uma autonomia do saber, na construção do saber da pessoa. Ela não constrói o saber com uma certa autonomia, onde ela vai conhecer as coisas. Não, ela vai repetindo coisas que ela nem sabe o que está falando. Eu dou alguns cursos sobre… Pratico essa autonomia e muita gente se perde: “Mas você não vai falar o que é?”. Falo: “Não, vou te dar várias opções aí pra você descobrir qual é a sua opinião sobre isso, porque isso que é importante: o seu saber sobre isso, não o que a Malu falou que...”, né? E o mundo está tudo pronto Você entra na internet: o que é isso? Tá lá! Você entra, né? E não é assim, é uma construção que você deve fazer, com as coisas que você tem contato, né? Com as suas leituras de mundo, com as suas vivências. É assim que se constrói o conhecimento, não que alguém chegue pra você e fale: “Isso é isso!”. Não é… Pra mim, esse conhecimento aí não é válido. Não é um conhecimento crítico, né?
P/2 - Em relação ao seu mestrado, o seu doutorado, você acredita que você teve, que a sua ideia, os conceitos que você quis trabalhar, foram bem recebidos na Academia? Ou também houve uma certa resistência, por ser algo inovador?
R - Olha, quando eu prestei o doutorado, achei que não ia passar, porque a gente nem falava... Eu falava pras pessoas, as pessoas riam: “Como assim, corpo gordo? 'kkkkkk'”. E passou em segundo lugar o meu projeto, sabe? Me surpreendi muito, porque na mesa da entrevista tinha uma mulher que tinha acabado… Estava pensando em fazer a bariátrica, uma das avaliadoras, uma das professoras. E a gente trocou uma ideia ali, pegou, sabe? Acho que teve uma influência aí. Mas eu fui invalidada e ainda sou invalidada muitas vezes. Como se fosse um tema menor, um tema inferior. E acho que não é só pela Academia. A esquerda, por exemplo. Os movimentos sociais. Eles não entendem ainda a gordofobia como uma pauta séria de discussão de minorias, sabe? Eles não entendem ainda. Em espaços que você acha, por exemplo, o feminismo, né? O feminismo é um espaço que deveria ter essa pauta central. Inclusive, o corpo da mulher é uma pauta central no feminismo, seja ele qual for. Quando você vai falar de gordofobia, fora a construção epistemológica decolonial, do feminismo decolonial, você não vê esse debate. E, mesmo dentro da pauta decolonial, que eles… As gordas estão ali, né, porque são... Digamos assim: rompem o padrão desse corpo decolonial. Mesmo assim, são poucas as mulheres que estão ali escrevendo sobre isso, estão debatendo sobre esse corpo gordo. Então, é uma pauta nova em todos os espaços e a Academia ainda tem que se abrir muito, a muitas discussões.
P/2 - Bom, então a gente vai indo pra parte final da entrevista, Malu, e eu gostaria primeiramente de perguntar sobre seus projetos, sobre seus sonhos pro futuro.
R - Bom, meu sonho é eu conseguir, com outras mulheres, abrir uma Universidade Livre Gorda, onde a gente possa construir conhecimento livre, autônomo, sobre as nossas formas. Onde a gente possa, além de construir, denunciar todos esses saberes, toda essa epistemologia que machuca e mata as pessoas gordas. Então, um dos sonhos que eu tenho, é isso. É um projeto meu, que venho aí, pensando. Quem sabe uma hora rola. Eu tô agora começando um pós-doutorado na Ufrj (Universidade Federal do Rio de Janeiro), na área de Medicina. É um grupo que se chama “Psicossociologia”. Tô gostando muito, uma galera bem aberta, com temas bem abertos, onde se estuda teoria queer, decolonialidade, Deleuze, Guattari, anarquismo, tal. E eu agora quero me aprofundar nesse debate sobre a construção do discurso de saúde por trás do preconceito da gordofobia. As pessoas não entenderam que a saúde é um conceito questionável, né? O que é saúde? Não é algo tão simples de responder. E a nossa sociedade tem associado saúde à beleza, à branquitude, à magreza, a um corpo estético, construído como algo positivo. Então, se vende saúde, hoje, como algo estético, que foi construído socialmente, por empresas que têm interesses aí e pela elite, sempre. Então, eu quero meio que desconstruir isso, questionar isso na área da epistemologia, da filosofia e da ciência. É um projeto meu já há algum tempo. Eu sei que não tem bolsa, a gente está num momento, vivendo um momento triste pra caramba no Brasil, onde as bolsas estão cada vez mais extintas. A pesquisa, né? Mas eu vou encarar mesmo sem bolsa, dando aula, porque senão, não sei se eu vou conseguir fazer isso um dia. Eu quero fazer isso. Quero escrever um livro, um segundo livro sobre isso também. Então, meus projetos, nesse momento, são esses.
P/2 - E quais as coisas mais importantes pra você, hoje em dia, Malu?
R - As coisas mais importantes pra mim hoje é: eu olhar pra mim e me sentir satisfeita com o que eu tenho me tornado, com o que tenho feito e com o que tenho construído, tanto quanto pessoa, quanto minha vida mesmo: as minhas relações, os meus projetos, os meus relacionamentos. Acho que isso é uma coisa muito importante pra mim: me olhar e estar satisfeita com aquilo que eu tô fazendo, estar feliz com aquilo que eu estou fazendo. Acho que outra coisa muito importante, pra mim, é que meu corpo seja político, quantas mais vezes eu conseguir. Ou num ensaio fotográfico, ou num artigo científico, ou numa carta ‘pruma’ amiga, ou numa “live”, ou dentro da sala de aula, sabe? Eu colocar o meu corpo como político, de incomodar e também propor uma nova maneira de estar no mundo. Isso também é muito importante pra mim e o meu corpo me dá essas possibilidades, eu preciso estar atenta pra colocar. E eu acho que, outra coisa também importante, que tem a ver com estas duas coisas que eu falei, é eu estar muito atenta ao que penso das coisas, essa construção autônoma do conhecimento, sobre as coisas dentro de mim. Porque tudo na sociedade é pra você olhar pra fora. A internet, a TV, tudo é pra fora, né? Você segue só, não pensa, nem volta pra você aquilo, você segue. Uma coisa muito importante, pra mim, é que eu não só siga nada, mas que sempre isso parta de dentro de mim: “Como é que eu vejo isso? Como é que eu sinto isso” e como eu quero que seja isso, sabe? Então, estar em contato comigo mesma, ter essa pausa, acho que a Chapada, morar na Chapada dos Guimarães tem a ver com isso também. É sair desse ritmo de só “siga, siga, corra, faça, compre”, né? O tempo todo você ali, sendo levado às coisas, sem conseguir entrar em contato com você mesmo, com os seus desejos, com aquilo que você pensa, com aquilo que quer, né? Que você consiga se ouvir. E isso não é (risos) fácil na nossa sociedade, mas é possível, se eu tô atenta a isso. Se eu consigo ter os meus momentos pra olhar pra mim, né, no meu silêncio e me conectar comigo mesma.
P/2 - E, Malu, tem algum assunto, algum episódio, algo que a gente, na nossa conversa aqui, eu e a Grazi com você, não apareceu, mas que você gostaria de comentar?
R - Agora, falando… Acho que seria legal contar que eu sou alcoólatra. Eu tive vários problemas com alcoolismo, na época que eu fui pra Espanha, morar lá. E eu já não bebo, nem uso drogas já faz um tempo. Isso aconteceu com a morte da minha filha, também. Eu meio que repensei o que queria fazer da minha vida aqui, sabe? O que estava fazendo da minha vida e o que eu queria fazer. Eu me perdi, em algum momento, nas drogas e na bebida e não conseguia mais voltar. É isso que eu tô te falando, a gente tem… A sociedade é feita pra você se perder mesmo, pra você se perder de si. E, quando a minha filha morreu, comecei a perceber o quanto eu estava distante de mim mesma. A bebida e as drogas que, pra mim, era uma coisa que me libertava, eu comecei a perceber que elas não me libertavam tanto. Muito pelo contrário: elas estavam me prendendo a sair de mim mesma. Não sei se vocês estão entendendo isso, (risos) porque é muito interior, né? E aí eu frequentei o Alcoólicos Anônimos, uns anos, principalmente no começo, que eu precisava de uma ajuda pra largar. E agora eu venho, não uso mais nada e venho… Foi muito importante isso pra mim, porque eu comecei a reconstruir a minha vida de uma outra maneira, comecei a ver as coisas também de uma outra maneira, que eu não via quando usava e quando bebia, sabe? Então, acho que é uma coisa importante isso, porque quase ninguém fala sobre alcoolismo feminino, sobre a drogadição feminina. É sempre os homens, porque as mulheres escondem muito porque, como sempre, existe todo um julgamento de associar as pessoas, as mulheres que bebem, que usam, à prostituição e tal. Pode ser e pode não ser também, né? Então, acho que é importante falar sobre isso, porque outras mulheres podem escutar, podem estar vivenciando o que eu vivenciei e isso é uma força, sei lá, pra pessoa pensar sobre isso, talvez.
P/1 – Então, vamos pra última pergunta, Malu: como você se sentiu, o que você achou de contar a sua história pra gente hoje?
R - É muito louco isso, né? Contar minha história. Eu vivenciei isso na minha tese, porque conto ali a minha história, coisas muito íntimas, sabe? E eu venho trabalhando a minha história como potência, né? Então, hoje foi mais um exercício, que eu gostei muito de olhar pra minha história e poder contar pra quem estiver escutando, que estiver vendo, pra vocês, quem é a Malu Jimenez, tudo o que ela passou, tudo o que ela conseguiu ressignificar, né? E onde que eu vim parar e o que eu fiz com todas as minhas dores. Eu tinha dois caminhos a seguir ali, quando descobri os distúrbios do corpo gordo. Um era transformar tudo que eu tinha sofrido em potência, em tese, em discurso, em militância, em força, em política. Ou eu poderia virar e falar: “Olha, vou fazer uma bariátrica e continuar sendo magra”. Pensar, né, em ser magra, porque é isso o que a sociedade quer e eu vou seguir o que a sociedade quer. Eu tinha esses dois caminhos pra escolher e eu escolhi transformar meu corpo num corpo político, em potência. E toda vez que eu me olho contando a minha história, tenho muito orgulho da minha história, de tudo que aconteceu e das escolhas que eu fiz, pra chegar a ser a Malu que eu sou hoje, com 49 anos. Eu vou fazer cinquenta anos, agora, esse ano. Olha que ano lindo, que ano importante, né, pra minha vida! Cinquenta anos é muita coisa! Muitas vezes, eu achei (risos) que eu não ia chegar a trinta, né? Imagina, eu tô chegando aos cinquenta e tô chegando aos cinquenta feliz com o que eu sou, sabe? Então, toda vez que eu conto minha história, é muita potência, é muita alegria, é muita força. E agradecer, né, a possibilidade de eu poder contar a minha história aqui, pra vocês. Muito obrigada pelo convite!
P/2 - Bom, a gente que agradece, Malu.Recolher