Colgate - Diversidade
Depoimento de Djalma Scartezini da Cruz Gouveia
São Paulo, 14/08/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1030
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho e Grazielle Pellicel
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Bom dia, Djalma. Tudo bem?
R - Bom dia, tudo bom.
P/1 - Então, pra começar, eu vou pedir que você me informe seu nome completo, sua data de nascimento e o local de nascimento também.
R - Meu nome é Djalma Scartezini da Cruz Gouveia. Eu nasci em São Paulo, no dia cinco de março de 1983.
P/1 - Qual o nome de seus pais?
R - Meu pai se chama Djalma da Cruz Gouveia e minha mãe se chama Sueli Nazaré Scartezini.
P/1 - Você tem irmãos, Djalma?
R - Tenho, algumas irmãs e um irmão.
P/1 - São mais velhos ou mais jovens que você?
R - _______ mais velho, tem uma menina mais jovem e um irmão mais jovem, que já faleceu.
P/1 - E qual a ocupação dos seus pais, Djalma?
R - Meu pai é médico ginecologista. Minha mãe é psicóloga clínica e ceramista.
P/1 - Certo. Vamos, então, começar um pouco com a sua infância. Você se lembra da casa onde você passou a sua infância? Casa ou apartamento?
R - Eu morei em muitas casas, Genivaldo; essa minha casa atual é a minha trigésima casa, em 38 anos de vida. Então, a minha infância também foi marcada por casas. Quando a gente vai relembrar uma memória de infância, familiar, minha família tem o costume de falar: "Então, quando a gente morava na rua tal, ou na casa tal" e aí a gente começa lembrando essa memória. Minha infância passa por algumas casas, eu tenho memórias de algumas delas, sim.
P/1 - E os bairros eram distantes ou vocês mudavam sempre pra perto?
R - A gente, olha... Algumas vezes perto, algumas vezes longe, ou na mesma região, mas já mudei pra lugares distantes também. Por motivos diversos: porque a família cresceu, porque comprou outra casa, ou porque alguém faleceu e a gente saiu da casa. Minha família tem o costume de mudar de acordo com grandes eventos (risos) ou necessidade, na prática.
P/1 - E do que você gostava mais de brincar, quando você era criança, Djalma?
R - Nossa, acho que gostava muito... É que nessa dos anos oitenta tinha muito aqueles bonequinhos articulados, então eu gostava muito de brincar com os bonequinhos, seja dos bonequinhos de He-Man, dos Thundercats, ou carrinho. Eu tinha bastante coisa e comecei a gostar de jogos eletrônicos também. Tinha o ainda o _________ , o Atari; eu jogava bastante videogame também, gostava bastante.
P/1 - E a sua família é mesmo de São Paulo ou seu pai ou sua mãe vieram de algum outro estado, de alguma outra cidade, Djalma?
R - Meus pais nasceram em São Paulo. Tenho outros familiares que nasceram em outros estados, mas meus pais nasceram em São Paulo e eu também.
P/1 - E você tinha contato com outras pessoas da família, como avós, primos, tios? Vocês costumavam se reunir?
R - Sim, a gente costumava se reunir e ainda costuma. Eu tenho encontros, a família é muito próxima. A gente costuma se encontrar aos finais de semana e isso já era uma tradição da minha avó, mãe da minha mãe, por exemplo. Hoje, eu e minhas irmãs, a gente mantém. A gente vive se encontrando, a gente tem filhos da mesma idade, as filhas se encontram, a gente se relaciona e é muito próximo, uma família muito unida.
P/1 - Você gostava de ouvir histórias, quando você era criança? Alguém te contava histórias?
R - Gostava bastante, Genivaldo. Minha mãe não contava muitas histórias, mas tem uma passagem… Você fala nisso e me vem à memória agora: meu pai lia pra mim todas as noites. Quando eu tinha talvez uns seis, sete anos, ele leu toda a coleção das Mil e Uma Noites pra mim, que são muitos volumes. E eu sempre queria ouvir mais um pedaço da história da Sherazade, o que é que ela ia fazer, o que ia acontecer. Isso é uma coisa que eu tenho uma memória muito boa, de um vínculo com ele. Hoje, como pai - eu sou pai de uma menina que vai fazer cinco anos agora, em 23 de agosto - eu gosto muito de contar história pra ela. A gente conta história e conversa todas as noites.
P/1 - Você tinha algum sonho de infância, Djalma?
R - (risos) Eu tinha. Meus pais... Tem uma passagem, minha mãe ficava bastante curiosa, que é... Bom, como eu nasci com deficiência, Genivaldo, eu fui andar só com quatro anos e na visão deles, ela psicóloga e ele médico, eu desenvolvi outras habilidades mais rápido, então, dizia que eu falava muito bem, [era] muito bem articulado, com muito vocabulário, [ainda] muito pequeno. Eles falavam que eu parecia um etezinho, que eu saía falando tudo completo, (risos) muito pequeno.
Tinha umas - talvez você lembre isso, no passado - regras de atender telefone, então você tinha que responder: "Oi, alô, é a casa do Genivaldo. Pois não". E eu atendia o telefone: "Alô, residência do Doutor Djalma", que era meu pai. Eu queria atender todos os telefones da casa, só que eu comecei a falar que era presidência do Doutor Djalma e que eu queria ser presidente. [Isso foi] quando eu tinha, sei lá, uns cinco ou seis anos, então essa foi uma memória curiosa. (risos) Obrigado por me provocar, eu gostei de lembrar disso.
P/1 - Vamos passar um pouco para o seu período escolar, Djalma: qual a primeira lembrança que você tem de ir à escola?
R - Olha, o período escolar não é tão luminoso assim. Eu tenho uma memória muito positiva da primeira infância na escola. Como eu falei, por ter andado com quatro anos… No passado a gente entrava na escola mais tarde, então a gente entrava na escola com três, quatro anos - o antigo Jardim I e tudo o mais. Hoje em dia as crianças entram com um ano de idade e já tem estrutura para estar [lá], mudou a lógica.
Eu tenho uma memória muito boa dessa primeira escola, que foi a escola que me acolheu, porque eu entrei na escola sem andar. Tem uma pessoa que… Muitas, mas essa é uma delas, que é responsável por quem eu sou hoje, por eu estar aqui, que abriu a oportunidade escolar pra mim. Por ter uma deficiência, muitas escolas negavam, falavam: “Não, precisa ir para uma escola especial e não pode entrar aqui, porque ele não anda”. Essa diretora de uma escola, da Escola Vera Cruz, que faleceu no ano passado, a Elizabeth Scatolin, junto com o marido dela, o Heitor Fecarotta, compraram a ideia de o Djalma entrar sem andar na escola, aí eu aprendi a andar. Eu estava na escola, quando dei os meus primeiros passos.
Tem uma mensagem dela muito bonita, que hoje, como psicólogo, sei que isso é empatia, mas que fala muito sobre inclusão. Porque eu não andava, eu só engatinhava, as crianças da minha sala começaram a parar de andar e começaram a engatinhar junto comigo e muitos pais ligavam pra escola e diziam que, imagina, eu estava atrasando o desenvolvimento infantil dos filhos deles; falavam isso pra minha mãe, pro meu pai. A escola bancou isso: falava que não, que era uma ação de acolhimento e empatia. No momento seguinte, que eu andei na escola, todas as crianças se levantaram junto comigo, elas andaram de novo. Eu lembro na memória das pessoas comemorarem eu andando.
Eu tenho memórias de muito pequenininho - essa eu devia ter quatro anos. Tenho memória do meu irmão ainda vivo, ele faleceu com dois anos de idade. Tenho memórias muito vivas, de muito pequenininho, o que é raro; tem gente que tem memória só a partir de seis, sete anos de idade.
[Sobre] essa passagem, eu sou muito grato à Beth, à Elizabeth Scatolin, que fez… Abriu oportunidade pra que eu pudesse me tornar quem eu sou hoje. Acho que sem educação, sem oportunidade, a gente não chegaria até aqui, talvez. Teve outras pessoas que foram muito importantes nesse curso, mas ali foi um divisor de águas importante.
P/1 - E, seguindo em frente com a sua vida escolar, que lembranças você tem do seu ensino fundamental? Uma matéria, por exemplo, que você gostasse mais de estudar, ou um professor que tenha te marcado por algum motivo, até hoje.
R - Esse caso de amor com o [ensino] infantil foi um caso de muito respeito e carinho. A mudança pro fundamental, ainda na mesma escola, foi um caos. Vamos pensar aqui, há quase quarenta anos - eu tenho 38 anos - nem se discutia inclusão e tinha, de fato, essa segregação que a gente fala.
A gente tem quatro grandes eras da inclusão, como diz o professor Romeu Sassaki. Uma primeira, de extermínio; depois segregação e aí a gente tem hoje uma ida da segregação para uma inclusão; tem uma inserção apartada. O que eu acho curioso é que esse fundamental foi muito chocante; a escola dizia - já era outra direção, outra estrutura, outra unidade, prédio, um monte de escada: "Olha, a gente não consegue lidar com o seu filho" e me convidou pra me retirar, com dez anos de idade, como se eu fosse o problema, e não a escola. Hoje, inclusive, a própria ONU e a Lei Brasileira de Inclusão vão dizer que a deficiência do indivíduo é não só do indivíduo, mas coletiva, então a definição de pessoa com deficiência passa também pelas relações e pelo entorno.
Esse fundamental foi marcado por muita exclusão, muito embate, seja com a escola, ou as escolas, porque aí eu comecei a migrar de uma escola pra outra. Passo por várias escolas, por instituições que foram contra, não sabiam lidar e me colocavam pra fora e [que] também não sabiam lidar com a agressividade e violência dos alunos comigo, e aí também me punham pra fora. Eu comecei a ter uma... Foi uma fase muito dura, muito doída, Genivaldo, de dificuldade de passagem, de se sentir e de ser a única criança com algum tipo de deficiência num lugar específico e não ao meu entorno. E aí eu ouvia o tempo inteiro: “seu lugar não é aqui, você não pertence a esse ambiente, você não poderia estar aqui” - seja da instituição, porque é um problema meu, porque tem uma escada e eu que me vire; seja dos alunos que, na primeira idade, tinham uma agressividade grande com isso também. Tenho claro o nome dos luminosos.
Você falou de matérias. Acho que dentro desse caos que eu lembro, de uma memória muito ruim, quando você falou me deu até um aperto na memória. É uma memória muito ruim, de muita agressividade, mas tem momentos luminosos de me encontrar com alguma coisa, tipo: aula com um professor chamado Jorge, numa escola que depois que eu saí da escola Vera Cruz, eu fui pra escola Logos. Eu fiquei [por] um ano e também não me adaptei, fui pra escola Oswald de Andrade e aí tinha um professor de Português e Literatura que foi ensinar à gente Fernando Pessoa e o que são os sonetos.
Eu lembro de ter tido uma primeira paixão, jovenzinho. Eu [estava] fazendo soneto pra uma menina e aí tinha um concurso de poesia, um festival de poesia da escola e eu li esse poema, esse soneto, pra essa pessoa, de presente. É uma memória positiva, de me sentir potente, capaz, de ser reconhecido, porque o negócio estava bem escrito. Então, tinha algumas coisas que me davam uma sensação de estar tudo bem, apesar de eu me sentir muito ruim, num ambiente agressivo.
P/1 - E, passando essa fase do seu ensino fundamental, o que mudou pra você, no ensino médio?
R - Eu acho que no médio começou a ficar mais claro pra mim a minha identidade,
inclusive não só com a minha deficiência, mas também mais claras as minhas próprias potencialidades - o que eu tinha de habilidades, quais eram as minhas habilidades, além da deficiência. Eu tenho uma habilidade de relacionamento muito boa. Eu crio vínculo muito rapidamente, eu realmente me interesso e me importo com as pessoas e comecei a descobrir que, pra além da relação física, a gente tinha outras formas de se relacionar com as pessoas.
(PAUSA)
P/1 - Você estava comentando sobre essa autoafirmação que teve no período do ensino médio, das suas capacidades. Eu queria que você comentasse mais um pouco como foi esse processo.
R - Legal. Nesse ensino médio eu me dei conta que eu tinha outras habilidades, pra além das habilidades físicas, porque o menino, a criança quer jogar bola e as outras coisas e eu achava que o mundo era esse e aí eu descobri que não; [descobri] que, para além de jogar bola, tinha outras habilidades e competências, entre elas a habilidade de relacionamento muito grande, de conectar as pessoas, e descobri no ensino médio como fazer bons relacionamentos. Continuei tendo bastantes, muitos episódios também agressivos, desrespeitosos, de inclusive quererem tocar no meu corpo, mexer comigo e me tirar do sério, mas comecei a construir um círculo de amizades fortes, que começou responder coletivamente a isso também - deixou de ser um problema só meu e virou problema de um grupo.
Eu tive momentos bastante ricos também, de perceber o quanto consigo mobilizar as pessoas a partir de alguma coisa, de algum tema… Enfim, quem está à minha volta.
P/1 - Nesse período de ensino médio, você chegou... Você já pensava que faria Psicologia no ensino superior?
R - Não. (risos) Eu queria... Começou a ter uma coisa nessa escola. Eu acabei o ensino médio na Escola da Vila. Como te falei, eu passei por várias escolas: eu passei pela Escola Vera Cruz, depois a Escola Logos e aí eu fui pro... Acho que... Perdão, Oswald de Andrade; depois da Oswald de Andrade eu fui pra Escola Paulo Freire, que não existe mais, e acabei na escola da Vila, no médio.
Nesse meio do caminho começou a surgir alguns projetos interdisciplinares. Lembro bem de um de História junto com Geografia - que eu gostava muito, ainda gosto desses temas todos - que acabou trazendo outras discussões sociais no meio das disciplinas, como Antropologia, histórico cultural do nosso país, se de fato a nossa formação do país foi a partir da visão do colonizador. Comecei a ter outros estímulos de perceber o mundo, de outra forma.
O ano que eu me formei no colegial foi o ano em que foram atacadas as torres gêmeas, em 2001, lá nos Estados Unidos. O que aconteceu é que tinha uma disciplina que a gente podia escrever um artigo cross entre as disciplinas e eu fui fazer um... Gostei muito de fazer isso e escrevi um artigo que eu lembro do título. Eu poderia pesquisar e tentar achá-lo, mas eu lembro do título que era (risos): A Demagogia dos Engravatados sobre os Barbados. Era uma crítica, dizendo que é injusto e que os americanos criaram um inimigo pra poder destruir, mas os inimigos do lado de lá só tinham pau e pedra e do lado deles tinha tanques e bombas. Já, então, eu comecei a ter esse tipo de interesse pela discussão social e o impacto disso e eu achei que tinha escrito muito bem. Fui muito bem avaliado e naquele momento achava que eu queria fazer Jornalismo.
Eu cheguei a estudar, a prestar pra Jornalismo, não aconteceu. Prestei outros cursos também. Prestei Comunicação na PUC. Fiz um curso que era o mais
diferente na época, que era Comunicação e Multimeios; esse curso eu não acabei. Acho que não acabar algumas faculdades tem a ver com essa rejeição - na minha leitura aqui, hoje como psicólogo e também como quem fez bastante terapia já - de instituições. Eu também tinha raiva de instituições como um todo, acho que talvez por não me sentir parte.
Fiz Comunicação e Multimeios, gostei bastante do curso. Fiz um ou dois anos. Tinha coisas com jornalismo, com televisão, rádio e cinema, daí eu descobri que queria fazer cinema e fui fazer cinema na Faap. Consegui uma bolsa, porque eu não tinha como pagar isso; entrei lá em segundo lugar e fiz - me arrependo disso até hoje - quase os quatro anos, mas fui trabalhar em produtoras e achei que não precisava mais me formar.
Tive uma questão muscular no meio do caminho. Tive que parar um semestre e nessa parada resolvi deixar o curso de lado. Tive uma carreira de quase dez anos como produtor de TV e cinema e depois que eu fui fazer Psicologia. Fiz essa transição de carreira, de ser um produtor de TV e cinema; montei uma produtora própria de vídeo e essa produtora foi super bem, obrigada, até a gente levar um calotão dum cliente e eu resolvi dar um... Pivotar a minha carreira. A gente tinha funcionários, eu tinha um sócio-funcionário e a gente saiu com câmera, uma série de coisas e estava tudo certo. Isso com 23, 24 anos - talvez um pouco mais... 25, 26, eu posso checar isso melhor.
Resolvi, a partir desse calote, revisitar o que eu ia fazer. Tomei uma decisão. Hoje em dia as coisas são mais baratas, os equipamentos, uma série de coisas, mas não era, eram... Eu estava gravando um vídeo institucional de um rally de regularidade pra donos de uma marca específica de carros 4X4. Tinha várias edições pelo Brasil inteiro e aí tinha imagem aérea. Hoje eu alugaria um drone; não tinha drone, a gente alugava helicóptero. Era uma produção complexa de fazer. Aí [tinha] aquela coisa de receber após sessenta, noventa dias; num momento X, eles cortaram. A gente tinha etapas a receber e não recebemos.
Tomei a decisão de não contar isso pra ninguém da equipe. Tinha gente que era freela, tinha gente que era CLT contratado. Fui ao banco, pedi exatamente o dinheiro que eu precisava pagar todo mundo. Paguei as pessoas, depois eu falei: "Olha, a gente levou um calote" e fiquei com a dívida na minha pessoa física [por] alguns anos.
Fiquei com essa dívida, pagando [por] bastante tempo e [fui] buscar trabalho no mercado a contragosto, porque eu tinha um preconceito em relação ao mercado de trabalho formal, com aquela idade. Fui atrás das empresas. Antes de cair em Recursos Humanos, uma pessoa me abriu uma oportunidade numa indústria química, na Dow Química, e eu fui trabalhar num centro de serviços compartilhados, como um telemarketing que tirava dúvidas sobre soda cáustica (risos) em inglês e algumas línguas: inglês, francês e espanhol, que são as línguas que eu falo. O diferencial foram as línguas naquela ocasião, mas eu precisava de trabalho, aí eu falei: "Bom, ok, tenho trabalho. Abaixa a cabeça e vamos pagar essas contas aí".
Foi essa a passagem de carreira curiosa. A Psicologia veio nesse momento de cisão de um lado pra o outro. Eu já estudava algumas coisas de Psicologia porque eu gostava - eu tenho mãe e irmã psicóloga, por exemplo - e descobri que gostava de ouvir histórias. Estruturar um time pra gravar um filme, por exemplo, é contar uma história. Eu quis mudar pro lado contrário do balcão e ouvir histórias de outra forma, aí fui estudar Psicologia.
Tive consultório por uns cinco anos com essa irmã, dividindo, até que tive uma proposta do mercado de trabalho para voltar pra essa estrutura. Trabalhei um tempo na Dow Química, saí do mercado, fui clinicar com a psicologia e tive uma proposta pra voltar, a partir de uma palestra que eu dei no Walmart, naquela ocasião.
P/1 - Voltando um pouco nesse seu período da faculdade de Psicologia, me conte como foi essa experiência pra você. Como você acha que isso acabou abrindo a sua cabeça pra outras oportunidades, depois de uma carreira que você já estava seguindo em relação à produtora de cinema? Como foi essa transição pra você, durante os estudos?
R - Olha, foi um encontro incrível. Acho que foi um lugar também de cura porque tudo que eu tinha de resistências com as instituições… Eu descobri que amava aquele curso, profundamente. Entrei muito mais velho do que os outros alunos; posso até retomar aqui que em data que foi isso, mas eu devia já ter uns 27, 28 anos e os outros alunos [eram] mais jovens, [estavam no] primeiro curso.
Eu me encontrei muito nesse curso. Descobri que tinha uma paixão grande por estudar e que, na verdade, essa resistência não era exatamente minha. Eu já tinha ouvido de várias escolas que eu não era inteligente o suficiente, não era capaz, uma série de coisas e descobri que isso era tudo uma baboseira. Fiz cinco anos de curso, a nota menor que tirei foi nove. Amava, amava o curso, estudava todos os temas com muita profundidade e descobri também outras potencialidades. Quer dizer: descobri que tudo aquilo que eu tive, em relação às instituições escolares, a partir do fundamental, que tinha sido ruim, poderia ser maravilhoso.
A partir de uma relação coletiva no ambiente foi muito boa com todas as pessoas. Foi um momento também superluminoso, de me encontrar, de reforçar que eu era capaz, que eu tinha potências, técnicas comportamentais de relacionamentos, enfim… Um lugar muito, muito curativo mesmo, pra eu poder fazer esse curso com essa maturidade, com esse olhar. Fiz grandes amizades, acho que eu tenho um carinho muito grande por esse momento.
P/1 - Voltando então pra esse seu convite pra voltar a trabalhar no mundo corporativo, explique como isso aconteceu, qual foi essa sua volta.
R - Essa volta aconteceu porque um amigo da família, o Danilo Almacul, já trabalhava com inclusão numa grande empresa, como uma pessoa tanto de capacitação, quanto comercial. Ele é irmão gêmeo do meu cunhado e já tinha... Ele me conhecia desde pequeno. Eles dois me ajudaram, ele e o Rodrigo, irmão dele, quando eu fiz outra cirurgia aos quatorze anos, iam me ajudar inclusive a dar banho, porque eu tenho um monte de irmã, então como é que ia dar banho num marmanjo, né? Eles cuidavam de mim, eram pessoas muito próximas e ainda sou muito próximo deles. Esse Danilo, na ocasião, falou pra mim: "Poxa, eu vou dar uma palestra sobre inclusão e queria que você ouvisse a minha palestra. O que você acha? Afinal de contas, você vive isso." Só que nesse momento, Genivaldo, eu não tinha a segurança, a propriedade que eu tenho pra falar sobre isso, mesmo em estudo, e acho que a minha identidade ainda estava sendo construída em relação a deficiência. Hoje, falar que sou alguém com deficiência faz parte da minha história e eu não acho isso, de forma alguma, um demérito. Foi difícil, mas acho que isso também é se olhar da posição da deficiência que me formou o homem que eu sou hoje.
Eu costumo dizer que, talvez, com todos os privilégios que eu tive e a estrutura de onde eu vim, se eu não tivesse a minha deficiência eu poderia ter sido mais uma pessoa - por que não? - dessas que me agrediram, que fosse desrespeitosa, que não tivesse uma percepção dos seus privilégios, do ser agressivo e tudo o mais. Meus pais dizem que não quando eu falo isso, porque acham que [com] a educação que eu teria eles não iriam formar uma pessoa babaca, como eles dizem, mas eu digo que a deficiência me fez pensar na vida. Eu brinco que enquanto os meninos estavam jogando bola eu estava pensando na vida, estava aprendendo a me relacionar e pensar em outros caminhos também.
Então, essa - retomando a tua pergunta -
história toda tem uma série de facetas que vão se descortinando, sabe? Acho que não tem uma única saída, eu fui descobrindo que tinha várias saídas e que as coisas se interconectam depois, uma na frente da outra e que fazia sentido aquela vivência no momento; daqui pouco tem outra.
Fui fazer esse acompanhamento dele, assistir essa palestra, mesmo a contragosto, porque eu não queria falar sobre a minha deficiência, muito menos publicamente, não estava em paz com isso ainda. Ele foi dar a palestra e falou, num dado momento, o seguinte: "Olha, eu queria convidar uma pessoa pra poder falar da própria história, é um convidado muito especial” e eu achei… Eu estava na primeira fila e eu comecei a procurar a pessoa. Eu olhava pra trás: “Quem é essa pessoa que vai chegar?” e aí ele fala o meu nome: "Vai falar com vocês o Djalma Scartezini.”
Eu olhei pra ele com uma cara de constrangimento, raiva, tudo o que eu podia, dizendo: "Não, não vou, acho que você tá completamente maluco." E ele fazia pra mim: "Sim, você vai." Ele desceu do palco pra me buscar e lembro que entre esses três degrauzinhos da cadeira até onde... Até o palco, eu estava falando isso: "Você está maluco, véio" e ele falava: "Não, é importante. As pessoas precisam ouvir o que você tem pra dizer." Eu falei: "Imagina, não tem nada de importante na minha história." Aí ele fez um pedido: "Preciso que você confie em mim. Faz isso, por favor", e foi me conduzindo [com] uma pergunta.
Fui contando a minha história e sei lá quanto tempo durou isso - quinze minutos, meia hora. Essa fala, desestruturada… Não foi estruturada como é hoje; eu não tinha conhecimento nenhum sobre diversidade, inclusão, cultura, pra além do impacto que eu vivia como pessoa, numa sociedade que é capacitista, que tem um preconceito com uma pessoa com deficiência.
Quando acabei de falar, vi que estava todo mundo chorando e falei assim: "Gente, as pessoas estão loucas, né? Eles estão chorando pelo quê? Não acho que nem tão relevante assim.” Uma dessas pessoas era uma pessoa de recrutamento e seleção do Walmart. Eu já tinha relacionamento com ele; fiz uma entrevista no paralelo,
andando com o consultório e tentando construir uma clientela e com alguns pacientes, achando que eu ia fazer isso da minha vida. Descobri que tinha potencial nessas coisas das palestras; resolvi abrir outra empresa, que é a Respeito Potencial Humano, pra fazer as palestras.
Uma pessoa da Walmart pediu pra eu fazer uma palestra com eles. Fiz uma palestra e essa pessoa da seleção me conectou com a diretora, que é a Lorena Terreri, uma pessoa que fez muita diferença na vida. [Ela] estava grávida, saindo de licença e falou pra mim assim: "Eu vou sair de licença em duas semanas e quero que você venha trabalhar aqui com esse tema de inclusão, dentro da área de seleção." Eu falei: "Não, acho que você não entendeu. Eu tenho consultório, sou psicólogo. Tô construindo agora essa estrutura de palestrante. Entendi que isso é importante, mas é isso, uma participação pontual, vou fazer uma palestra." Ela falou: "Quanto você ganha? Eu quero que você venha trabalhar aqui" e eu falei: "Imagina, não faz nenhum sentido."
Ela insistiu algumas vezes, fez uma proposta e eu falei: "Tá bom. E o que é que eu faço com os meus pacientes?" (risos)
Eu já tinha o sonho, naquele momento, de casar, de ter a minha família. Falei "ok". Eu entendi que, pra abrir uma coisa nova, precisava abrir espaço pra uma coisa... Fui chamar uma amiga, até hoje psicóloga clínica, que é a Barbara Sanches, e falei pra ela: "Eu tenho uma proposta. Gostaria de tentar, mas quero te passar os meus pacientes todos. Eu acredito no seu trabalho, acho que vai ser bom pra eles, mas eu preciso abrir espaço."
Na hora que eu pulei do precipício - no modo de dizer, sem corda, porque falei: “Bom, abrir mão de um trabalho que eu tinha renda, pra ver se vai dar em outro...” Não tinha nada fechado ainda. Acreditei no potencial dessa oportunidade e agarrei, deu certo e fui. E aí, desse capítulo pra frente, vai [se] construindo a história do Djalma com diversidade, com inclusão, com os cases, foram outras etapas.
P/1 - E me conte então como foi essa sua chegada no Walmart, pra trabalhar com isso, como foi se desenvolvendo o seu trabalho.
R - Olha, foi incrível. como eu te falei, eu jovem tinha um certo preconceito aí quanto ao mundo corporativo. Lá na Dow Química, lá atrás, os sistemas nem eram falados... Já existia lei de cotas - este ano a lei de cotas faz trinta anos. Recentemente a gente até lançou um livro, chamado Trinta Vozes; eu sou uma das vozes que está no livro, falando sobre esse tema. A Dow Química já tinha um programa de inclusão, mas era... Hoje, olhando com clareza, ninguém sabia o que fazer direito, então tinha uma certa segregação e aí ficavam pessoas com deficiência juntas e sem deficiência em outras atividades, e isso não é inclusão. As pessoas têm que se relacionar entre elas. Hoje a Dow é o contrário, é exemplo no tema. Eu não estou aqui pra criticar, mas também não tinha organizado como se fazer. E na ocasião eu também nem quis assinar o termo de cessão, de inclusão no meu nome pela lei de cotas, porque eu me sentia: "Imagina, eu tô aqui por que eu sou competente ou por que eu tenho uma deficiência?" Essa crítica já existia. Por mais que não fosse uma área de Recursos Humanos, era uma área comercial técnica específica, eu achava, tinha uma sensação de que não era esse o caminho, que não tinha que ter uma área de pessoas com deficiência. Hoje em dia isso é uma coisa que eu repudio veementemente, não tem que ter. “Aqui está a área de pessoas com deficiência, aqui está a área de negros, aqui tá a área de LGBT". Isso é horrível e acho que ninguém faz, mas tem empresa que ainda hoje busca essa... O marcador identitário antes da competência. Acho que a competência tem que ser o principal.
Essa pessoa - voltando pra Walmart - falou pra mim: "Bom, aposto na sua competência, vamos embora". Fui trabalhar no programa de seleção, trazendo esse olhar já de quem tem a vivência: "Pessoal, vamos lá. A gente não vai contratar pessoas com deficiência; a gente vai contratar competências que tenham também pessoas com deficiência".
Tem uma frase do Barack Obama que eu gosto muito, que a gente pode transpor pros outros pilares de diversidade: "Eu quero ser lembrado como um excelente presidente negro e não como um excelente negro presidente". Essa mudança semântica pra mim faz sentido. Quero ser visto como um excelente profissional com deficiência e não um excelente deficiente com capacidades profissionais, né? E aí eu já trazia esse... Pra mim, era o grande balizador naquela época. Fui estudando os outros temas, buscando. Isso estava longe de ser um tema que estava na pauta, eu tinha quatro ou cinco pares no mercado e todo mundo tinha uma pressão muito grande, que ainda existe, mas o foco que estava na discussão era só a questão de legislação, multas e riscos legais; não existia de fato uma percepção, que ainda hoje eu vejo, Genivaldo, grandes oásis, num deserto infinito. A gente tem muitos bons exemplos de boas práticas, de coisas que avançaram, mas ainda tem muito deserto também, onde as pessoas acreditam que isso ainda é só uma questão de multa. Existe ainda um paralelismo nas pessoas, uma desumanização, de um _________
ideal de colaboradores de empresas de que uma pessoa com deficiência não pode ser competente, que dirá mostrar uma alta performance naquela atividade, porque o estigma da deficiência é tão grande, né?
Eu, por exemplo, tenho uma deficiência física; se a gente estivesse pessoalmente aqui, se conhecendo nessa entrevista, nessa chegada entre: "Oi, tudo bom? Você quer tomar uma água, um café?", eu certamente ia mostrar a minha forma de andar diferente e talvez - não estou dizendo que você faria isso, claro que não, mas a gente olha e fala: "Puxa, mas o que é que tem pra além da pessoa, além da deficiência?” Tem gente que generaliza e fala: "Bom, se ele tem uma deficiência física, certamente ele deve ter alguma coisa cognitiva, né?" Eu falo que as pessoas fazem uma inferência automática, que é uma metonímia do indivíduo, então eu pego uma parte pelo todo e falo: "Olha, se o físico não vai legal, ele também não deve ser uma pessoa tão inteligente assim, não deve trazer uma coisa pra agregar pra gente." E a grande chave que eu venho virando nesses anos todos na empresa, a partir da Walmart, é: vamos olhar pra pessoas pra além das suas características. Vamos estar aptos, abertos e abertas, pra poder se surpreender com o que vai vir daquelas pessoas, seja lá quem forem, seja qual for o marcador - a idade, estado… O nosso país é um país transcontinental e a gente tem preconceitos entre estados, entre culturas, entre sotaques; qualquer coisa que você venha trazer, que eu não julgue. Eu te conheci hoje e se você me falasse qualquer coisa sobre você, eu estou tentando, estou te conhecendo. Estou vendo atrás de você: tem livros, CDs, vamos supor que tenha alguma coisa ali que eu identificasse e falasse: "Poxa, tal coisa eu gosto" e se eu não gostasse de algum livro, eu falaria: “Então, ele é aquilo”?
O que a gente faz hoje em dia, cada vez mais, é superpolarizar e olhar pra atividade individual; o que eu tento fazer com inclusão e venho fazendo - é que isso é uma jornada coletiva - é pra além do meu desejo, do que eu gosto ou do que eu deixo de gostar; como posso contribuir e olhar pro coletivo e, de fato, me surpreender mesmo?
A gente está aqui fazendo uma entrevista e eu estou me surpreendendo com perguntas que eu nunca recebi, por exemplo. A profundidade de perguntas que você está fazendo pra mim são muito mais interessantes do que eu responder: "Ah, mas o que você faz pra incluir? Por que é que você é importante?" Talvez sejam perguntas que o mundo corporativo faça, mas que é muito mais raso, por exemplo.
(39:07) P/1 - E você encontrou alguma resistência em relação às ações que você estava propondo?
R - Ah, sempre. (risos) Sempre, mas eu ri, porque quando você fala mesmo… Porque eu sou uma pessoa em que pese… Eu gosto de comprar essas brigas impositivas. A primeira delas, na ocasião, e que eu ainda ouço de alguns clientes, é assim: "Puxa, mas a gente não é acessível, o prédio é antigo, o que eu vou fazer? Como é que a gente vai fazer? Eu não tenho vaga pra pessoa com deficiência, eu só tenho vaga pra outras pessoas. Essa vaga aqui é muito suada, pra conseguir ter aprovação desse orçamento e eu não vou contratar 'essas' pessoas." Ou já ouvi, por exemplo, pessoas que já tinham se surpreendido comigo falarem assim: "Ah, não, só vou contratar alguém se for parecido com você". (risos) Daí eu brincava: "Parecido comigo como? Por que eu sou bonito, por que eu sou pai, por que eu sou..." Eu fazia qualquer tipo de brincadeira, pra mostrar pra eles: "Vocês querem contratar o quê?" Aí vinha uma coisa: "Não, uma deficiência mais leve." Contratar uma deficiência mais leve, então eu vou excluir as outras pessoas, não posso contratar um cadeirante?
Isso foi sendo quebrado, tanto que virou um dos maiores cases do mundo. A OIT [Organização Internacional do Trabalho) me reconheceu em 2019 como o maior case que eles têm registro empresarial, de inclusão de pessoas com deficiência; foram 4000 pessoas em dois anos - já contando essa passagem da OIT, que foi maravilhoso ter ido pra lá, agora em 2019. Mas a resistência sempre existe, porque existe um medo da relação. Acho que as pessoas pensam que existe um viés inconsciente, mas acho que isso está também para além do viés; o viés é o que você demonstra, é o que é socialmente aceito. Tem uma desculpa específica: "Olha, porque não tem o inglês fluente, essa pessoa não pode entrar." "Não, mas nem usa inglês." "Ah, mas aqui ________ tem que ter o inglês." Então, criam desculpas ali, eufemismos, que eu posso falar que são socialmente aceitos, entre outros, que a gente sabe que existem no mercado.
Outro que eu também abomino é “faculdade de primeira linha”. O que significa isso? E é curioso porque eu dou aula nessas universidades, entre aspas, de “primeira linha”, mas o que eu digo pros alunos também e pros próprios gestores que eu trabalho, [com] que eu me relaciono no mercado, desde CEOs até analistas, é assim: "O teu lugar de nascimento numa estrutura social e onde você chegou não é fruto da meritocracia". Essa é uma ilusão de multinacionais, sejam elas europeias ou americanas, que tem meritocracia no nosso país. Não existe. A gente vive uma falácia da meritocracia e o local de nascimento na pirâmide social, então a gente vive uma... Muito mais uma sociocracia ou sócio-iconocracia do que uma meritocracia, porque o acesso à educação de qualidade passa pelo poder aquisitivo e oportunidades das famílias, não só pelo discurso individual. E aí a gente vê frequentemente executivos tentando reforçar esse lugar, que você tem que se superar e pega vários exemplos de quem veio da comunidade, da favela e fala: "Olha, mas ele foi pra Harvard." Vai falar com a pessoa, pra ver o esforço que a pessoa fez pra chegar até lá, pra poder ser ouvido, ouvida e isso é sobre-humano. Não é isso que a gente precisa replicar. A gente precisa replicar que existe o caminho pra todo mundo, as oportunidades pra todo mundo. Tem uma premissa no capitalismo de que não tem fatia de bolo pra todos e eu discordo. Acho que a gente pode multiplicar se a gente criar oportunidades, porque a oportunidade é pro indivíduo e pro coletivo. A gente esquece que quando eu dou uma oportunidade pra uma pessoa, seja ela quem for, que não teve oportunidades, num país de privilégios, essa pessoa vai se tornar produtiva e na hora que ela se tornar produtiva, ela vai produzir coisas pro coletivo, certamente.
(PAUSA)
P/1 - Djalma, retomando a sua entrevista, eu queria que você comentasse um pouco sobre a sua participação na Reis, Rede Empresarial de Inclusão Social, como isso aconteceu e qual é o trabalho que é feito nessa rede.
R - O meu primeiro contato com a Reis foi, na verdade, um contato com a Ivone Santana, que era secretária executiva da Reis, de inclusão empresarial, num evento. Olha só como a vida vai juntando as pontas! Da Dow Química, quando eu estava na Walmart e aí eu fui... Perdão, já estava na Sodexo. Fui contar um pouquinho do trabalho da Sodexo e tudo que eu tinha realizado, porque o case da Walmart já tinha virado público, já era muito estudado.
Fui fazer um painel com a Ivone, então sentei no painel com a Ivone, nesse evento da Dow Química, a gente se conheceu e até…
Como ela brinca - hoje ela é uma grande amiga - o meu case ser construído e eu aparecer, o case dela, de inclusão no Magazine Luiza, onde ela trabalhou ano passado, era um case referência e ainda é, mas era um dos vários cases. A gente se conheceu no palco, fazendo painel e foi se encantando um com a resposta do outro e com a maneira de pensar. Na sequência, ela me fez um convite pra entrar no grupo diretor da rede de inclusão, com uma cadeira da Sodexo e estou lá até hoje, mesmo tendo saído. O EY [Ernst Young] é membro fundador da rede, então retornei pra rede numa cadeira pela EY também.
E hoje, na Reis, eu lidero… A gente tem vários grupos de trabalho, de relacionamentos e parcerias, tanto com empresas, ONGs, terceiro setor e setor público também, com o governo. É um trabalho que eu acho que é muito bacana. A gente faz alguns eventos anuais, workshops - hoje em dia são todos virtuais - pra discutir as ferramentas de empregabilidade da pessoa com deficiência.
A Reis tem nove anos, feitos esse ano. Ela foi fundada dentro de uma reunião na Serasa. A Serasa já era referência de inclusão, há nove anos; o nosso João Ribas era o secretário executivo, hoje já falecido. Na ocasião - o João é uma pessoa que foi referência na inclusão no Brasil, também uma pessoa com deficiência - dessa reunião no Serasa, uma pessoa da OIT - mais uma chave pra gente conectar mais pra frente, algumas coisas vão encaixando - fez um desafio pras empresas que estavam presentes naquele evento de fundar um capítulo, o que eles chamam de chapter, um braço da rede global de inclusão nas empresas, que [se] chama Global Business Disability Network, fundar um braço dessa rede no Brasil. As empresas, durante o intervalo, fizeram uma carta-manifesto, assinaram o pacto com essa pessoa da OIT e assim foi fundada a Reis.
A Reis tem três grandes posicionamentos: o primeiro deles é a favor da lei de cotas, inclusão da pessoa com deficiência; o segundo deles é a favor da adequação inclusiva para todos no ensino regular, sem segregação; e o terceiro deles é o posicionamento global, da ONU inclusive, que é o ‘nada sobre nós, sem nós’, onde todos os setores, as empresas, as pessoas devem consultar as pessoas com deficiência pra criar produtos, serviços e projetos - o que quer que seja pra elas.
Até então não tinha… Como eu falei, esse ano faz trinta anos da lei de cotas e quarenta anos do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, na própria ONU. Até então, as pessoas não eram vistas, não eram consultadas. Teve momentos da história que não eram vistos como cidadãos, não eram vistos como aptos e aptas pra poder opinar sobre a própria vida, a própria carreira. Isso hoje já [se] transformou, mas esse lema permanece, o lema que tem quarenta anos: “Nada sobre nós, sem nós”. E aí eu brinco, Genivaldo, que a minha própria história de vida se entrelaça, se entrecruza com a história da inclusão no Brasil e no mundo.
P/1 - E essa sua atuação como professor universitário, se deu como, quando? E como você consegue dar conta dessas coisas todas, dessas atividades todas?
R - Nem sei como é que eu dou conta de tudo isso, Genivaldo. (risos) A minha relação com a Academia, como eu falei, foi sendo curada depois de ter um momento muito difícil com as instituições, então a gente tem… No outro pilar, quando a gente fala de inclusão, como falo do racismo… A gente tem até um livro sobre isso, do professor Silvio de Almeida, que é o Racismo Estrutural, mas a gente também tem o capacitismo estrutural, uma estrutura capacitista na sociedade, que diz o tempo inteiro que você não pertence a esse ambiente.
Eu fui me encantando pela Academia a partir da graduação em Psicologia e aí, na ocasião do Walmart, eu tive uma... E eu acho que a educação vai... É o que dá os grandes saltos na nossa vida; é o que dá oportunidade da gente crescer, se mostrar, enfim, mostrar a capacidade.
Eu queria fazer um MBA em Recursos Humanos; achava que isso era uma utilização importante, muitos amigos de outras empresas já faziam e as empresas até pagavam esses MBAs. O Walmart, na ocasião… Eu brinco que o varejo, seja ele alimentício ou têxtil, é o que move a economia. Se o varejo está contratando e está dando lucro, está tudo bem, é um sinal positivo. Você quer ver pra onde vai caminhar a economia, vamos olhar o varejo, porque aí tudo, a estrutura da pirâmide mexe a partir dessa base. Mas o varejo tem um histórico de lucro muito baixo, né? No varejo alimentício, a margem é 2% ou 3%, então uma série de benefícios, como ofertar um MBA prum colaborador, não é uma coisa comum no varejo, mas em indústria é assim, em tecnologia é assim e por aí vai. E eu tinha esse sonho de fazer isso e aí eu ganhei de presente essa formação do meu sogro, na época.
Fui fazer uma entrevista com a recrutadora do curso algumas vezes, pra pedir bolsa, pra pedir ajuda porque eu queria fazer, que era meu sonho. Ela falava: "Olha, não tem bolsa pra fazer esse curso. As empresas geralmente pagam. Gostei de você, mas não dá". E pra entrar no curso tinha que fazer essa entrevista pra ver se você era elegível, se você tinha a maturidade pra estar num curso desse. Esse curso tinha a ver com o teu momento de carreira e tudo o mais. Eu tinha uma aprovação sem dinheiro pra fazer e aí ganhei isso de presente, dessa pessoa, era meu sogro no passado e eu resolvi, fiz esse MBA o melhor que eu pude também, com muita vontade.
O próprio case do Walmart ajudou a alavancar [o curso]. Esse case do Walmart virou o meu projeto de pesquisa e toda a minha pesquisa acadêmica começa a partir daí, de provar que a diversidade, além de satisfazer e [ser] bom pra sociedade, com atos de reparação histórica, também é bom pros negócios. Comecei a provar, através de pesquisa que tem, [que] existe o retorno do investimento, o que as empresas chamam de ROI, direto segundo a diversidade.
Nesse MBA eu era superativo, [me] comunicava e me tornei representante de turma. Comecei a provocar os professores, então essa coordenadora do curso me fez um convite, ao final do curso, [para] eu me tornar professor do mesmo curso que eu estava dando aula, que eu estava assistindo aula. Ela queria que eu fizesse parte da disciplina de Cultura e, na ocasião, Comportamento Organizacional, porque ela ia colocar alguma pitada sobre inclusão e diversidade; ela via que isso estava crescendo no mercado. Foi a partir do meu destaque como aluno e de como me relacionei com os professores e a minha pesquisa superestruturada que eles identificaram esse potencial. Pra mim, isso é uma honra até hoje. E ela fala pros alunos, quando eu vou dar aula; sempre, quando ela vai abrir uma disciplina, seja presencial ou não, ela faz questão de entrar e falar quem eu sou, de onde eu vim,
como a minha carreira aconteceu e que ela recomendava que todo mundo levasse o MBA dessa forma. Então, tem um lugar de muito carinho também a partir desse lugar de aluno, dessa mudança.
O outro convite, na sequência, da Fundação Dom Cabral, veio a partir de um outro colega porque na ocasião do Walmart… Existem ainda eventos corporativos ou só de Recursos Humanos; um deles é muito grande, que é a HSM Expo, que é um evento muito grande, tem também a revista. Uma pessoa da HSM foi no Walmart tentar vender uma cota de patrocínio, pro Walmart comprar e falar de algum case e aí eu fui contar… A minha vice-presidente na ocasião falou pra mim: "Recebe essa pessoa pra mim e fala com ele, vê o que a gente pode fazer, enfim". Eu fui contar o que eu fazia, o que eu tinha acabado de fazer, acontecendo ali o case de quatro mil pessoas com deficiência - e eu contratei não só na base, a diretora é cadeirante, no CD, [em] vários níveis, o que era visto como praticamente impossível. Ele falou: "Esquece a cota de patrocínio. Eu quero que você seja palestrante do evento da HSM Expo", que é o maior evento de gestão da América Latina. Aí eu falei: "Não, você tá maluco."
Fui falar no painel, que foi incrível, assim é a minha memória disso. Sempre me lembro, quando vou contar essa história… Contando assim parece, às vezes, que é um filme, porque eu sempre lembro de que não podia estar nesses lugares, então eu falo: “Será que eu cheguei até aqui mesmo? Como é que foi isso, mesmo?” Isso me surpreende.
Eu lembro que tinha uma coisa de ter eventos simultâneos e no palco principal iam falar grandes nomes de Harvard, Yale e tudo o mais. Eu ia falar logo depois do Ricardo Amorim - imagina, o economista. Eu falei: "Bom, eu tenho que fazer aqui alguma coisa incrível, porque eu não sou nenhum desses caras." Tinha um palco que era como se fosse um grande quadrado e tinha quatro palestras simultâneas, uma em cada face do quadrado; você recebia um fone de ouvido, com uma estação pra você conectar e ouvir aquela palestra ou a do lado, a de trás. As pessoas que estavam nas outras faces desse quadrado, falando, eram pessoas que eu admirava e que eu falava: "Não é possível que eu estou disputando horário aqui, por exemplo, com a Sofia Esteves, a fundadora da Companhia de Talentos" - que hoje é uma amiga também - "Nossa, mas imagina!" Eu cheguei a ir falar com ela, falei:
"Olha, desculpa que eu vou competir com você, pelas pessoas aqui, pelo horário, porque eu queria estar te assistindo". Aí ela começou a rir, já segura do seu lugar e de quem era e falou: "Mas eu que quero te assistir." Eu falei: "Imagina, o que eu tenho pra dizer não é tão importante assim, né?"
Foi uma apresentação importante. Depois fui num outro, no ano seguinte, do mesmo evento. Essa pessoa que organizava os eventos da HSM se tornou o gerente de programação e conteúdo dos programas In Company, da Fundação Dom Cabral, e ele fez o convite pra eu virar parte desse grupo de professores convidados também, dos programas In Company, de diversidade. O resultado é a partir dessa história que eu te contei.
P/1 - E como você avalia a recepção dos alunos, em relação a esse assunto, nesses cursos?
R - Eu acho que o assunto tem cada vez mais ficado na pauta. Acho que tem um interesse muito grande de ouvir sobre isso, de como fazer e de como se posicionar,
mas eu ainda vejo também o lado mercadológico da coisa, que eu vejo também crescer numa proporção curiosa. Assim como eu tenho grandes pares hoje em dia no mercado e não são mais só quatro, são centenas - as empresas pequenas, médias e grandes tem as cadeiras de diversidade, tem seus líderes... A cadeira pode até ser pequena no início: um analista, um coordenador, um gerente, um diretor; os orçamentos vão crescendo também nas áreas, eu vejo isso acontecer, mas eu vejo também acontecer um interesse e uma apropriação das grandes empresas da agenda do ponto de vista de marketing, de fazer uma... Usar essa agenda, que é muito importante e é necessária pro futuro dos negócios, como um veículo de atração de talentos, apenas, de retenção de pessoas e de criar uma imagem positiva pra mercado, o que também é importante, mas a imagem não se sustenta sozinha.
Eu brinco que, antes de eu embrulhar o presente, eu preciso ter o que embrulhar. O pacote pode ser maravilhoso, mas o que é que eu vou dar pra você, mesmo? As empresas querem começar a escolher o papel do presente mais lindo possível de seda, mas esqueceram que elas têm que fazer o presente. Antes de eu pensar no futuro, eu preciso construir o presente, nos dois sentidos aí da palavra. (risos)
P/1 - Sim, com certeza. E então, como você chegou na posição atual, na Ernst & Young? Conte um pouco como isso aconteceu e qual o trabalho que você desenvolve atualmente.
R - Do Walmart, eu tive um convite para ir pra Sodexo. Foi uma passagem breve, nem um ano de casa, uma empresa que já era muito madura com o tema de diversidade e inclusão. Já tem inclusive, tinha e continua tendo, o C Level Global de diversidade. Isso está na agenda. Uma empresa que é naturalmente diversa, a base é composta por mulheres que chegam até o topo. Minha chefe, na ocasião, Andreia Dutra, era CEO da operação no Brasil e da região; hoje ela é a CEO de um dos negócios, ainda permanece na cadeira. É uma empresa que tem uma estrutura de crescimento de mulheres, de pessoas com deficiência e tudo o mais.
Comecei a descobrir que tinha um potencial enorme e o foco da Sodexo, pra além do cartão de benefícios, que é um outro braço - não é essa empresa que eu trabalhei. Eu trabalhei na Sodexo on-site, que é a empresa que faz a alimentação coletiva e serviços de manutenção e limpeza, de facilities. Eu descobri que os clientes queriam ouvir a nossa experiência e que a gente fosse contar sobre isso;
eu estava frequentemente indo a clientes contar essa experiência de diversidade que a gente fazia e, por causa desses contatos, as áreas começaram a fechar os negócios. Comecei a descobrir que diversidade é um diferencial competitivo, que na hora desse cliente tomar a decisão se ele ia contratar ou não a gente ou outro concorrente, ele queria contratar da Sodexo, porque ele iria ter uma consultoria comigo gratuita durante a vigência do contrato.
E aí eu tive uma proposta… A vice-presidente no Walmart, que promoveu meu trabalho e me promoveu lá, eu tive três promoções... Desculpa, duas promoções e três cargos. Uma pessoa, que é a Ana Paula Santos - uma pessoa que eu gosto muito também - nessa ocasião, ela saiu da Walmart e foi pra Telefônica Vivo. Na Vivo, ela me convidou pra trabalhar com ela novamente. Ela me fez uma proposta; num primeiro momento, eu acabei negando a proposta. Fez uma segunda proposta e também falei: "Olha, acho que não é por aí" e ela fez uma terceira proposta, matadora, aí eu falei: "Bom, vamos lá", porque eu achava que ia ser uma quebra importante de currículo eu ficar menos de um ano em um lugar. Apesar de achar a Sodexo fantástica, foi um salto importante pra minha carreira porque, diferente de eu trabalhar numa empresa que era madura no tema, eu ia começar essa discussão no setor de telecomunicações, que já é o mais chorado pra isso. Numa empresa, a Vivo, que é composta de uma série de estatais, mais algumas privadas compradas e que tinha uma questão de cultura e uma disseminação de cultura importante a ser feita, eu falei: "Bom, eu tenho uma oportunidade, um desafio maravilhoso aqui, de criar, abrir uma discussão no setor, de criar um programa muito relevante."
O programa Vivo Diversidade nasceu em 2017 e está de pé até hoje. Ele tem uma estrutura onde o programa atende não só o negócio, mas ouve as pessoas, através dos grupos de afinidade, é propositivo também em soluções e processos de projetos que impactam no próprio negócio e aí gera um senso de pertencimento e constrói uma cultura de fato inclusiva. Isso hoje permanece e a gente tem uma série de estrutura de governança de sponsoring por pilar, onde os presidentes representam os temas e um pouco o excedente da organização e pra mim isso, independente do case da Walmart, que é fantástico e fala muito sobre o meio entregável, esse case mostra também que é possível a gente mudar uma cultura e parar de pé; que não é só comunicação ou marketing, mas que é possível. Isso permanece, eu continuo correndo com isso até hoje, mesmo não estando lá, porque a Reis tem um conselho de CEOs, que quem propôs foi o nosso CEO da EY, Luiz Sérgio Vieira e onde eu tive o prazer, por exemplo, de mediar na semana passada um painel dos CEOs da Reis, onde estava também essa pessoa da Vivo, junto com a gente. Então, eu continuo colhendo frutos sobre as ações que eu construí, nos lugares que eu trabalhei.
Pra chegar até aqui, da Vivo eu tive um convite da Ernst & Young pra trabalhar com eles depois de eu ter assistido uma palestra. Na verdade, não foi bem um convite, foi curioso isso: eu fui assistir uma palestra de um trabalho de empoderamento feminino que eles fazem, uma palestra em degustação que eles fizeram e que hoje a gente faz - inclusive estou aqui me apropriando disso também, é um produto que chama Power Up, que é um acrônimo de ações e comportamentos que a gente pode fazer pra acelerar a carreira de mulheres. Fui convidado como homem, por ser gestor da área e tinha alguns homens de outras empresas assistindo isso.
Foi tão transformador ouvir essa palestra, essa pessoa falando, que é a Tatiana da Ponte, hoje a sócia-líder da prática diversidade e minha chefe na EY. Uma das coisas falava que a gente tinha que ir buscar, tomar as rédeas da própria carreira e buscar o que a gente desejava. Eu a vi falando e falei: "Gente, eu não sei se eu quero fazer isso de novo, a mesma cadeira três vezes. Eu quero fazer outras coisas.” Eu já tinha testado esse desafio de entrar nos clientes e de instrumentar essa realização de problemas e falei pra ela, assim que acabou: "Nossa, é fantástico, podemos almoçar?" Ela falou: “Podemos.” Ela conta isso hoje em palestras, que ela falava: "Bom, eu achei que eu ia vender pra ele, que ele ia pedir um ciclo de palestras” e eu falei pra ela: "Eu não quero comprar, mas eu quero trabalhar com você." Ela falou: "Como assim?" (risos) Eu falei: " Eu quero trabalhar com você, achei o seu trabalho incrível. Quero levar isso pras empresas, eu não quero mais fazer isso com uma empresa só e acho que a gente pode somar juntos." Começou uma saga de aprovação de tudo isso, porque a EY estava atendendo a Vivo, então não podia parecer que a EY estava me contratando e de fato não pareceu. Criou-se uma vaga, eu fui preencher a vaga, fiz um termo dizendo que eu escolhi ir pra lá e que eu abria mão da Vivo. De novo eu aqui, fazendo um pulo do precipício sem a corda do bungee jumping, acreditando que era possível virar o jogo e ficar do lado de lá do balcão.
Agora em julho eu fiz dois anos de casa. Fui pra Ernst & Young pra estruturar, junto com a Tatiana, o business de diversidade e inclusão pra mercado, essa consultoria em diversidade no mercado, que era a área que ela estava liderando na ocasião e puxando [para] criar essa oferta nova, pra além das ofertas que já existem conhecidas, de auditoria, de estratégia, enfim. Eu topei esse desafio de, junto com ela, construir isso pra América Latina.
Uma pausa aqui, uma água.
P/1 - E como você avalia, Djalma, a importância desse seu trabalho? O alcance que ele teve. Como você avalia essa sua carreira em prol da inclusão de PCDs, de pessoas com deficiência, no mercado de trabalho?
R - Eu acho que vai além das pessoas com deficiência; vai pra negros e negras, vai pra pessoas LGBT, pra refugiados. A Sodexo foi um dos primeiros executivos a trazer o termo de refugiados para as organizações, em parceria com a Agência da ONU pra refugiados, a Acnur - o Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados. Eu tenho, claro, muita visibilidade pro tema da pessoa com deficiência, mas, sabe, eu avalio isso de duas formas: primeiro que eu gostaria de ser conhecido pela minha competência e pelos meus entregados e acho que chegar até aqui, pra mim, é um divisor importante. Se eu falei lá atrás que eu acho que a deficiência, muitas vezes, quando a pessoa não é conhecida, chega primeiro, assim como a cor da pele no nosso país e a gente tem um preconceito superforte sobre o que o indivíduo vai trazer a partir dos seus marcadores, onde não se espera nada, ou se espera o pior, eu tive que conseguir superar - eu não gosto muito dessa palavra - os desafios que estiveram além dos comuns, pra poder ser ouvido. Então, eu acho que toda essa credencial de carreira, de currículo, de formação, de ser professor são
quase o pedágio que eu tive que pagar pra poder ser ouvido. Eu tenho que ser excelente pra poder ter um lugar na mesa, pra falar só o que eu penso, aí eu comecei a ter voz pra ser ouvido a partir desses lugares também.
Eu avalio isso de duas formas. Acho que tem uma coisa que é direta na inclusão de pessoas no mercado como um todo, mas a gente sabe, até existe uma conta que as empresas fazem, que a cada colaborador a gente conta vezes três, que é a média de pessoas que vão estar no plano de saúde da empresa, por exemplo, entre casal, filhos e tal; depende do setor, vai pra três ou quatro. Se eu pegar o número, que eu sei que já passou de quase sete mil pessoas e multiplicar isso por três, eu estou falando do impacto direto em 21 mil vidas, mas acho que isso vai além, porque na Vivo, por exemplo, que tem sessenta mil pessoas, eu fiz uma formação com todos os gestores, em todos os estados. O quanto também você… O quanto eu separo o indivíduo, a corporação, a pessoa jurídica da pessoa física, que é um representante, que é o gestor, que é um colaborador, que veste aquele crachá todos os dias. Então, quando a gente faz uma transformação cultural, eu acredito e é isso que me move, que a gente está botando um tema na pauta não só nos intramuros daquela empresa, mas na sociedade que a gente está inserido e rediscutindo isso dentro de casa também porque, a partir dessa visão, as pessoas vão levar isso pra ser discutido e eu acredito que estou contribuindo pra gente construir um país um pouco mais justo, com mais respeito e inclusão. É isso que me mobiliza, sabe, é isso que eu avalio como resultado, que é pra além do resultado real, dos entregados das empresas, mas que também é esse resultado que me colocou nesse lugar. Eu brinco que as pessoas podem até não gostar da pessoa com deficiência, mas ninguém pode julgar o resultado que as pessoas podem trazer. O resultado é a única coisa que é inteligível em todas as línguas, contra fatos não tem argumentos e eu vou dizer que entreguei. "Ah, mas foi aquela pessoa?" Eu já ouvi, eu tenho um nome mais antigo e já ouvi, quando eu comecei a dar aula, mais novo ainda do que eu sou hoje. Entrei na sala, chegando correndo do trabalho, sete e pouco da noite, fui plugar o computador; a sala lotada, uma pessoa entra e fala assim: "Mas cadê o professor Djalma?" e fazendo uma medida de cima embaixo [em mim]. Eu falei: "O professor Djalma sou eu. Não sei se você se incomoda de ter aula comigo, se não eu posso chamar, posso buscar outro Djalma, pra dar aula pra você." E eu já ouvi coisas [do] tipo: "Nossa, mas o que te habilita pra estar aqui?"
Quando eu vou falar de mim, muito raramente eu falo: "Prazer, eu sou o Djalma, bla, bla, bla, bla", o currículo todo. Se você perguntar pra mim "o que você faz?" eu te diria que o que eu faço é transformar culturas, não é o cargo. Tem gente que fala: "Eu sou tal coisa." “Não, você não é, você está.” Acho que isso eu vou levar pro caminho a vida toda que eu tiver, não importa o cargo que eu esteja ocupando. Por mais que eu esteja hoje dentro de uma empresa como a Ernst & Young, a minha carreira é pessoal, não é da Ernst & Young. Amanhã posso estar em outro lugar e levar a experiência do que eu aprendi lá dentro também. Essa separação do indivíduo, do que a gente pode fazer e impactar, está na mão de cada um e acho até que essa conversa, essas perguntas que você me faz, me trazem uma oportunidade de rever a minha própria história e de falar isso de uma outra forma pro mundo. Eu espero que o que eu esteja trazendo aqui pra vocês também seja útil pra vocês, de alguma forma.
P/1 - Sem dúvida. O que você acha - pra gente passar pra outro bloco, digamos assim, temático da entrevista - que falta ainda para que as empresas assumam esse papel mais inclusivo, em geral, para a diversidade?
R - Uau, essa pergunta é de um milhão de dólares, né? Porque acho que todo mundo pergunta, os CEOs das grandes empresas. Eu vou ser honesto com você: eu acho que não tem um ingrediente ou uma fórmula de bolo pronta, mas quando você fala "o que falta pra gente ser mais inclusivo?" eu quero tentar pensar junto aqui e desconstruir algo, do que que é ser inclusivo. Como é que eu meço uma inclusão? Ou o que eu... Quais atividades, ações que estão por trás de ser inclusivo? Acho que é isso, vou tentar aqui construir junto com você um raciocínio do macro pro micro.
Acho que a primeira coisa é a gente pensar em direitos humanos: o que a gente está fazendo está em ressonância com os direitos humanos? Está, ou espero que esteja. E aí, depois, a gente vai olhar qual a missão, a visão e os valores da sua empresa. Se isso está também em ressonância com direitos humanos, com a sociedade contemporânea - porque às vezes essa empresa pode ter cem, cento e vinte anos, cento e cinquenta anos. Será que quem estruturou aquilo pensava em direitos humanos? Às vezes é necessário a gente rever também a missão, valores e visão. "Ah, não, isso está em ressonância." Depois, de novo: existe um código de conduta ou um código de ética, de relacionamento? O que a gente espera das pessoas? Como é que eu espero que você, no dia que você entrou aqui e colocou seu crachá, que você se relacione com as pessoas? "Ah, eu espero que você se relacione de uma forma respeitosa, que você tenha uma escuta empática e que você esteja disposto, sei lá, a inovar todos os dias" e isso vai estar, deve estar numa avaliação que seja semestral, trimestral, anual, pra poder verificar se isso aconteceu. Isso é o que a gente chama de habilidades comportamentais, ou soft skills, como os americanos chamam. Eu acho que tenho que verificar o que é isso. Primeiro o que eu espero que você esteja contemplando o olhar inclusivo, uma atitude inclusiva, como você me trouxe, senão como a gente pode propor políticas e processos que sejam, que consigam depois até capturar esses valores, esses comportamentos pra frente pra poder usar numa avaliação, por exemplo?
Acho que isso é fundante, é estruturante de um projeto, a gente precisar pensar nessas políticas todas que a gente está tratando.
A gente sabe que tem empresas e setores que têm políticas que são questionáveis, muito antigas. Por exemplo, políticas quando você tem uma loja pública; depende do setor, muitas delas têm até hoje coisas antigas que são: políticas de abordagem, como abordar uma pessoa com comportamento suspeito. O que é uma pessoa com comportamento suspeito? O que é ser suspeito? E aí, você vai olhar no detalhe e tem uma série de vieses racistas ali, que vão olhar pra diferenças socioeconômicas, vão classificar as pessoas, então são questionáveis. Isso tem sido revisto por todo o mercado, eu vejo que tem um esforço grande de rever essas bases estruturantes e fundantes.
Pra voltar, pra tentar responder a sua pergunta, acho que eu olharia quais são os comportamentos que eu consigo, de fato, verificar se isso é inclusivo. Tem um ponto interessante, que a tua pergunta me faz refletir, que é o seguinte: "Tá bom, fiz aqui com você um acordo, vamos ser inclusivos. Eu vou contratar aqui pessoas com deficiência, negros e negras, mulheres em cargos de liderança, criar programa de mentoria pra pessoas pretas e acelerar as carreiras e o que quer que seja". Então, a gente fez isso e trouxe as pessoas pra dentro. A gente tá fazendo inclusão? Não, a gente está fazendo inserção. É só abrir a porta. Mas o que significa trazer as pessoas com marcadores identitários, diferentes do vigente, que está no poder, que geralmente são homens brancos, heteros, cisgênero, da geração X? Eu brinco que ser homem branco não está com nada, está fora da moda, inclusive, e eu represento, como homem branco, todo um histórico de exclusão, opressão e agressividade que os homens brancos fizeram na história. "Ah, mas eu não tenho nada a ver com isso e nem a minha história familiar perpassa por isso, porque não tem ninguém que era escravocrata e, por exemplo, são também imigrantes." Mas isso não deixa de ser o que eu represento também. Então, a gente tem que ter um lugar de _______ social.
Aí eu volto pra gente pensar que ser inclusivo vai passar pela forma que a gente se relaciona com as pessoas, acima de tudo, e que eu vou demonstrar essas habilidades comportamentais, mas o outro lugar, que é estar aberto ou aberta pra poder aprender a divergir. O que acontece quando eu trago uma pessoa diferente de quem está na mesa, acostumado? A pessoa diferente, com esse marcador identitário, seja ele qual for, o que a fez ser diferente são todas as vivências que ela ou ele tiveram, por todas as desigualdades sociais que as pessoas vivem. Na verdade, o que a gente está falando de diversidade, a gente está falando sobre diversidade cognitiva ou de perspectivas, porque por mais que a gente entenda e concorde, eu e você aqui, nós dois somos homens. Eu não sei, eu não posso dizer que eu sei o que é ser mulher no Brasil. Embora eu estude e você também, [embora] a gente possa saber que existe, que é um país machista, que é o quinto país do mundo que tem mais feminicídio, a gente não sente na pele o medo de ir pra casa quando tá indo embora de um lugar à noite, no escuro, por exemplo, o que as mulheres vivem. A gente tem que estar disposto a ter essa perspectiva diferente e quando essa mulher, ou essa pessoa com o marcador identitário estiver lá dentro, a gente tem que ter um espaço de segurança psicológica, onde a pessoa possa trazer o ponto de vista dela, que é diferente sim. E o lado de cá da empresa, dos privilegiados e de quem não teve nenhuma desses marcadores perpassando a própria vida, tem que estar disposto ou disposta a divergir, porque vai sair divergência numa conversa, vai trazer pontos de vista diferentes. É igual àquela anedota: eu estou vendo, eu pego o mesmo objeto, minha garrafinha aqui, você está vendo uma face e eu estou vendo a outra e eu tenho que estar disposto a ouvir a sua perspectiva.
Pra resumir: criar um ambiente inclusivo, aí eu volto a pergunta: “No nosso ambiente, a gente está disposto a ouvir uma perspectiva diferente da nossa? Que vai questionar essa nossa aqui, de quem está em poder, que vai questionar o grupo organizado, que vai questionar a forma como a gente faz as coisas por aqui? Porque quando eu penso em cultura, uma definição simples é: o jeito que a gente faz as coisas por aqui, ou a forma como a gente faz as coisas por aqui. E essa pessoa vai questionar, esse grupo vai questionar a nossa forma de realizar as coisas. Estamos dispostos a ser questionados e realmente considerar e refletir sobre a perspectiva do diferente?”
P/1 - Agora a gente vai mudar de assunto. Eu queria que você falasse... Você disse que tem uma filha de quatro anos, né?
R - Sim.
P/1 - Eu queria que você comentasse pra gente como foi essa experiência de ser pai pra você.
R - Ah, é a melhor coisa que eu já fiz na minha vida. É uma menina luminosa, maravilhosa. Acho que, pra mim, a experiência de ser pai significa você lembrar o tempo inteiro que não é sobre mim, é sobre o outro, que é coletivo e que a gente tem que tentar construir um ambiente pra todos. Porque quando eu cuido dela, eu quero que as coisas sejam boas pra ela e se eu pensar um pouquinho além da minha bolha, eu estou construindo um ambiente melhor pra todo mundo. Ela me desafia o tempo inteiro de ter outra - desse ponto que eu estava falando mesmo - perspectiva. Não existe uma perspectiva fixa.
Tem uma frase que meu pai de santo, que é o Carlos Buby, fala; uma frase curiosa, quando alguém pergunta pra ele: "Posso gravar?' numa entrevista, que nem a gente está gravando essa entrevista aqui. Ele responde o seguinte: "Então, pode, mas pode ser que eu discorde de mim mesmo daqui a pouco, (risos) daqui a alguns anos". E eu acho que é bem por aí. Se a gente pegar qualquer uma das linhas teóricas, inclusive, será que se estivesse vivo cada um dos... Vou pegar os teóricos aqui da Psicologia, que escreveram há dois séculos - não é nem no século passado, mil oitocentos e bolinha - as teorias, eles observariam a sociedade que a gente está vivendo hoje? Provavelmente não, as relações sociais mudaram, o advento da tecnologia e tudo o mais. Acho que ser pai tem a ver com isso.
Nos últimos cinco anos -
ela vai fazer cinco anos agora em agosto - é como se eu tivesse que reatualizar o tempo inteiro a minha percepção de mundo, só de relações, porque o que eu já pensava, quando ela estava na barriga era uma visão, quando ela nasceu era outra, que já era outra no ano seguinte do ano passado. Ela vai também me desafiando, à medida que ela cresce, e vai percebendo o mundo ao redor dela com mais detalhes e com mais profundidade e ela tem outras - as perguntas vão mudando, né? - perguntas com mais profundidade. Ela me faz questionar as minhas próprias… Os meus próprios valores, as formas que eu vejo as coisas.
Pra mim, ser pai é uma experiência maravilhosa, mas também desafiadora, de você estar disposto a construir junto com ela, porque a maneira que eu vejo… Ela está pronta ali; o ser humano, pra mim, está pronto ali. Ela hoje é uma criança, mas o que ela vai se tornar está tudo ali, todo o potencial já está ali. Eu não consigo acreditar que uma criança é uma tabula rasa e que eu vou, eu tenho que dar todo o conteúdo - é muita prepotência - que eu sei o que ela vai fazer, que eu não sei o que, eu vou direcionar. Tem uma potencialidade gigantesca ali dentro e o que eu tenho que fazer, se eu atrapalhar menos, já está ótimo; acho que ela vai chegar no potencial dela o maior possível. Ela vai crescendo e eu vou dando o suporte, ou os limites e o que estrutura, pra que ela consiga seguir o caminho dela. Pra mim, ser pai é isso e é uma experiência maravilhosa.
Eu penso nela o tempo inteiro. Hoje ela não está comigo e eu morro de saudade. Se isso aqui vai ficar gravado, eu até vou fazer uma coisa tietagem, então: “Filha, estou te mandando um beijo e que você veja isso no futuro e que você tenha orgulho do papai, te amo”.
P/1 - E qual o nome dela, Djalma?
R - É Aurora. Se quiser ver uma fotinha, eu posso mostrar uma fotinha dela aqui ou eu te mando uma foto depois e vocês colocam na edição, se você quiser.
P/1 - Sim, sim. Na verdade, a gente vai pedir fotos suas, né e, com certeza, a gente quer que tenha uma foto da Aurora com você, com certeza.
R - (risos) Eu sou aquele pai babão, chorão. Eu falo dela e choro. É um ser humaninho incrível.
Lembra que eu contei a... Que eu falo que as coisas na minha vida, na minha história, têm uma espiral? Eu acredito que o tempo não é linear, ele é uma espiral evolutiva, na minha visão, e que às vezes a gente está no mesmo ponto na espiral, mas numa oitava diferente e que às vezes a vida te dá o presente de conectar os mesmos assuntos. Eu falei que uma coisa me levou à outra e que aquele relacionamento no passado me levou a outra coisa. Eu vejo isso também nessa relação com o tempo do presente e o futuro muito forte na minha vida. Essa lógica dos tempos que eu te falei lá atrás, por exemplo, da empatia das crianças com quatro anos comigo, que pararam de andar enquanto eu não andei, eu acabei de vivenciar isso nas férias com ela, faz um mês atrás. A gente foi fazer uma viagem, num lugar muito grande, que eu não sabia que era tão grande assim e eu tinha que andar bastante durante o dia, o que pra mim é um desgaste muito grande. Num dado momento, eu acabei tropeçando e caí na frente dela. Eu fiquei, naquele momento, arrasado de ter caído na frente dela e visto a carinha dela. Falei: "Não, mas isso também é o pai que ela tem." A gente tem a vivência de falar tudo, explicar e conversar com ela sobre isso. Fui explicar pra ela e ela entendeu. Eu falei: "Olha, você sabe que o papai tem um problema na perna, uma dificuldade de caminhar. Está grande pra mim, está difícil de andar" e ela: "Pra mim, também está muito grande", porque tudo era quadra, do quarto pra almoçar era quadra. A gente fez uma conversa e passou. Ela tinha ficado assustada com a cena, porque caiu um adulto, todo mundo assusta porque parece que você está tendo uma síncope, você acha, e não, eu só tropecei, eu ando realmente diferente.
Ela viu o movimento de pessoas. Horas depois, eu estava andando com ela de mãos dadas, ela ajoelha no chão. Aí eu falei: "O que você está fazendo?" Ela falou: "Papai, eu caí que nem você." Pra mim, isso é um presente do tempo, me devolvendo uma memória que eu vivi há 34 anos, dizendo pra mim duas coisas: uma, que ela é empática e que ela está junto comigo e dois, que eu estou criando uma criança no caminho certo.
P/1 - A gente está se encaminhando pras últimas perguntas, Djalma. Primeiramente, tem alguma coisa, algum assunto que você queira comentar, que a gente não tenha abordado nesse bate papo, algo que você considera importante pra falar?
R - Eu queria contar um pedaço… Acho que eu falei muita coisa, mas uma coisa interessante: hoje eu também sou convidado a dar uma aula dentro de uma pós-graduação do Sírio Libanês, de cuidados paliativos. Tem uma delas que é em relação a adultos e outra a crianças. O que eu queria trazer é sobre esse ponto das crianças, que assim como eu falei que a minha história cruza com a história da inclusão no Brasil e no mundo, também as áreas como a medicina estão evoluindo os conceitos sobre inclusão, ao longo da história.
A gente tinha, quando eu nasci - e esses médicos estão vivos ainda hoje - uma leitura de que o médico tem que dar um diagnóstico fechado e pronto, acabou. Isso era o papel do médico: fechar o diagnóstico, dar um diagnóstico e prognóstico: “Você tem isso e aquilo e pode acontecer assado.” E, mesmo sendo filho de médico, um grande neurologista, quando eu nasci... Eu tive uma anoxia no parto, falta de oxigênio; nasci do descolamento de placenta da minha mãe, mulher de ginecologista, então, ‘casa de ferreiro, espeto de pau’. Ele que fez o meu parto e eu brinco que ele me deu a vida duas vezes, então também agradeço ao meu pai por ter lutado por mim, ali. E quando uma... Eu tive uma parada cardiorrespiratória, junto com a minha mãe e a recomendação médica, quando tem uma parada cardiorrespiratória, é o médico salvar a mãe quando ela tem outros filhos, porque ela precisa cuidar de outras crianças. E ele falou: "Não, eu quero os dois." Chamou outra equipe, pediu pra cuidar. Eu brinco, minha mãe brinca que a gente ficou alguns minutos desacordados e fez um combinado: "Vamos voltar?” “Vamos". E aí voltamos e esse médico falou pra ela o seguinte: "Olha" - esse grande neurologista, que hoje é um senhor, mas está vivo: "Ele jamais vai andar, nem vai falar e nem vai sentar." Eu queria dizer que eu ando, falo quatro línguas, ando aqui com meu certo charme, com meu rebolado, mas eu ando, tenho autonomia, sou independente e que se esses pais tivessem acreditado nesse prognóstico, nem estimulado eu teria sido. Mas também a história avança - tanto a minha, pessoal, como a mundial - e retrocede simultaneamente, em várias partes do mundo ou no mesmo assunto. Então, assim como tinha um médico da mesma geração que dizia que isso não era possível, tinha um pediatra, que hoje é o pediatra da minha filha - então aqui, um abraço pro Sérgio Aires, que é uma pessoa que acreditou em mim, um dos que me fizeram chegar até aqui - que falou: "Não, olha, eu estou vendo, estou vendo..." Em conversa com minha mãe, ela falava: "Eu olho pro olho dele e ele está aí, está presente, está preservado o cognitivo dele. Vamos pra cima, vamos lutar por isso." Alguém acreditou também que não ia ser um projeto que teria sido descartado, não preciso estimular, não preciso cuidar.
Acho que isso é uma parte importante, de referenciar mais algumas pessoas; acho que a gente é produto de todo mundo que se esforçou pra gente chegar até aqui. Tem uma grande corrida na nossa vida, digo várias passagens de bastão importantes e interessantes, de pessoas que se tornaram marcantes e que nos empurraram pra gente chegar até o estágio que a gente está e eu acho que ainda tem uns bastõezinhos pra pegar ainda, pra correr mais um pouco.
P/1 - E quais são os seus sonhos pro futuro, Djalma?
R - Sabe, essa é uma pergunta que eu fazia pras pessoas, quando eu queria conhecer as pessoas, qualquer pessoa que fosse, qualquer tipo de relacionamento, relacional ou amizade, amoroso; pra mim é a pergunta que vai dizer sobre quem é você de verdade, né?
O meu sonho, acho que ele está sendo reconstruído hoje, na minha vida. Acho que muitos deles eu já atingi. O principal sonho que eu queria atingir durante muito tempo era provar que eu sou capaz e que eu sou autônomo; isso já acontece há muitos anos. É um sonho que eu sinto muito orgulho de ter, de chegar numa coisa que parece simples pras outras pessoas. Outro sonho era ter um trabalho que eu sou reconhecido e acho que isso está em curso e contando e eu quero seguir fazendo e contornar os desafios, continuar podendo questionar o status quo da nossa sociedade no Brasil e no mundo; acho que é isso que eu gostaria de ser lembrado, pelo que eu deixei de legado pro coletivo. Mas eu tenho um sonho, acho que pessoal também, que aí passa pelo homem, que é como posso viver um relacionamento profissional, pessoal, novo. Eu conheci vocês hoje, mas eu tive que contar toda essa história e hoje eu me sinto íntimo e eu gostaria de poder encontrar vocês de novo, é como se eu tivesse contado a minha vida inteira pra vocês. Mas eu gostaria de encontrar o momento da minha vida ainda que começasse um relacionamento, seja ele qual for, sem ter que dar todas essas credenciais e mostrar que eu sou uma pessoa, que as pessoas possam se encantar comigo por quem eu sou, independente da deficiência. Eu sonho com um mundo em que a gente não precise de leis, de cultura, nem dos cargos, nem do meu próprio cargo… Eu falo que o meu cargo de liderar a diversidade, ter uma consultoria com esse tema, é uma clara evidência de que a gente tem um problema social, então eu sonho com o momento em que eu não tenha que... Que isso seja uma convivência normal, que todo mundo já faça isso naturalmente, assim como devemos escovar os dentes. Que a gente volte a aprender, porque sendo pai de uma criança, acho engraçado, né? Acho que as crianças nascem com toda a predisposição do mundo pra se relacionar e que a gente, ao longo do desenvolvimento infantil, que também é um pouco arrogante, que a gente desenvolve e ela não… Acho que a gente desconstrói, na verdade, um tanto de humanidade que vem com as crianças, tanto que elas se tornam preconceituosas pela cultura social do ambiente em que elas vivem. Tem ‘n’ estudos que falam sobre isso. Então, eu gostaria de... o meu sonho pra ela é que ela seja uma menina, uma mulher que promova inclusão no futuro, mas que a gente não tenha mais que ter a segregação e a cisão e que a gente possa, de verdade, se apaixonar, se encantar e dar oportunidade pras pessoas, em qualquer uma das esferas da vida, a partir de quem elas são e não com seus cartões de visitas e os marcadores, sejam eles quais forem. Um pouco grande o sonho, acho que é um pouco por aí.
P/1 - E quais são as coisas mais importantes pra você, hoje em dia, Djalma?
R - Mais importantes... (risos) Eu acho que tem uma coisa que, pra mim, está no topo: é pensar primeiro na minha filha, na qualidade de vida que ela tem. Como criança, me sinto responsável de ajudá-la a construir as relações dela e aprender a ler o mundo que está em volta dela. Isso é uma coisa que passa pela minha cabeça o tempo inteiro, de que ela ganhe a habilidade de leitura de cenário, que ela se sinta segura e capaz, pra ser quem ela quiser. O outro é uma coisa que passa pelo sonho do Djalma lá atrás, de querer ter autonomia, de como mantenho a autonomia sempre e continuo crescendo, pra poder me sentir seguro. A gente sabe que existe uma... Eu não sou dono do meio de produção, eu sou uma pessoa CLT, então, como continuo relevante, como continuo importante pra conseguir manter a minha carreira? Acho que, pra mim, a qualidade de vida minha e da minha filha e ter uma carreira que continua sendo relevante, pra conseguir continuar me sustentando e sustentando-a, por exemplo. Não sei, isso pra mim é a minha prioridade número um.
E aí teve um momento pandêmico, né? Depois é encontrar as pessoas. Eu gosto de estar perto de pessoas, isso pra mim é uma coisa muito importante. Isso vai ficar gravado, né? Eu fico pensando: fui reler a carta ontem que a Grazielle me mandou, a carta-convite; primeiro eu saí brincando com os meus familiares, eu falei: "Bom, eu estou ficando velho, eu sou tão antigo, que eu vou virar peça de museu". E a outra coisa (risos) que me passou pela cabeça é: o que vai acontecer, quando a gente rever esse vídeo, daqui a dez anos? É uma coisa que eu me pergunto um pouco em relação à minha própria filha e à gente mesmo: esse momento que a gente está vivendo uma questão pandêmica no Brasil vai passar e a gente vai esquecer? Ou ele vai ser um marcador que vai marcar profundamente as crianças que estão hoje se formando? Que estão tendo... Ficaram sem ausência de relacionamentos, qual vai ser o impacto disso também? Será que a gente vai ter um impacto emocional? Existem pesquisas falando sobre a terceira onda, que seria uma terceira onda, na verdade, psiquiátrica - os efeitos da reclusão das pessoas, porque o ser humano não é feito pra ficar recluso, é feito pra se relacionar, é a partir do outro que a gente conhece a si mesmo. Por isso eu fico pensando: esse depoimento vai ser relevante daqui a dez, vinte anos? A gente vai estar questionando o quê? O que a gente vai ter aprendido, a partir dessa relação que uma pandemia traz, a mudança traz?
Acho que tem uma... Pra mim, uma reflexão muito importante, que eu espero que a gente ganhe, como brasileiro e até como humanidade: a gente está tudo no mesmo barco e o problema é comum. Acho que é um alinhamento na história, onde o tema que a gente falar com qualquer pessoa, de qualquer país - eu tenho testado na multinacional, nessas conversas de aquecimento de uma reunião, como está sendo essa experiência, como as pessoas estão e é o tema comum pra todo mundo. A gente tem poucos momentos da história que o tema é o mesmo, em todos os quatro cantos do mundo, né? E aí, depois, que a gente aprenda, se a gente cuidar um pouquinho do outro, que a gente pode fazer melhor. Acho que isso fica pra mim uma memória de que a gente… Espero que a gente ganhe consciência, expanda consciência a partir desse momento de reclusão. Fecha de um lado e eu espero que a gente expanda do outro e que isso seja relevante, que a gente possa construir algo a partir daí e que a gente lembre que também não existe fora, não tem jogar fora, não tem fora da minha vida, fora do meu país, é tudo uma coisa só. Acho que isso é o que me coloca em xeque e fico pensando na relevância, então, desse depoimento, quando ele for visto numa cápsula do tempo, por exemplo, como é que isso vai se relacionar com o futuro. A gente vai ter aprendido novas competências? Vai ter adotado a máscara no dia a dia? Isso vai virar uma doença endêmica, que vai ter uma vacina anual? Como é que a gente vai aprender a chegar nos lugares, novos costumes e por aí vai. Isso passa pela minha cabeça também.
P/1 - E como foi a sua experiência da pandemia? Com todos os seus altos e baixos e mudanças, uma vez que a gente tem uma epidemia de longa duração, que ninguém imaginava que ia durar todo esse tempo.
R - Acho que teve alguns momentos. Pensar no momento individual, mas que eu tenho visto que é coletivo. Primeiro é assim, o momento número um é: "Puxa, mas quão grave é isso?" Isso é grave como uma doença altamente contagiosa e letal, né, como Ebola, por exemplo? "Ah, não sabemos". Isso trouxe pra mim, na minha vivência pessoal, muito medo, muito receio no primeiro momento. Depois, como eu, como a gente vai aprendendo o que é e quais são as concessões que eu vou fazer, os limites que eu estou disposto a transpor conscientemente pela minha saúde mental; vou transpor isso pra encontrar minhas irmãs, minha filha? Minha própria filha, no começo, eu não encontrava, porque eu estava com medo de... Achava-se e se sabe que as crianças podem ser transmissoras, mas não têm o sintoma. Eu falei: "Bom, se eu encontrar minha filha, pode ser que eu contamine meus pais", que são idosos e por aí vai. Então, tinha esse medo.
Depois [houve] o momento dessas concessões e pra mim eu estou caminhando num lugar de entender assim: isso vai fazer parte do nosso dia a dia, que pode ser essa, pode ser uma outra questão, mas faz parte de ter um mundo com sete bilhões de pessoas, encontrar de repente desafios como esse e que a gente pode ter outras pandemias, mas que a gente aprenda a trabalhar conjuntamente. Acho que a parte mais bonita, pra mim, de tudo isso, assim, pra além da parte assustadora e as mortes, que é uma coisa assustadora pra mim, de novo a gente tem aí grandes empresas e laboratórios trabalhando conjuntamente, como é que a gente sai desse lugar? Foram discutir quebra de patente.
Acho que a gente tem muito mais potencial como unidade pra resolver problemas sociais. Se a gente se juntasse - e eu espero que a gente aprenda… Agora vamos pegar junto aqui e resolver o problema - outro problema, que pode ser a fome no mundo, a falta de água, pode ser o feminicídio ou um outro tema específico, como a gente desestrutura o racismo. Acho que no meio da pandemia também surgiu o movimento Black Lives Matter, que acho que é importantíssimo da gente trazer a discussão pra pauta, mas não só de novo no mercado, na parte mercadológica e marqueteira da coisa. Acho que a gente está sendo levado a refletir questões macro como humanidade e eu passei por isso também, tive momento de reclusão, de mais medo, mais insegurança, mais medo de novo. Acho que porque aí você vai colocando em perspectiva e as coisas deixam de ser importantes. Quando você falou: "O que é mais importante?", fica mais importante nesse momento saúde, lembrei de falar outra coisa, então a minha saúde é prioritária. Sabe aquela coisa, igual no avião: antes de eu pôr a máscara no do lado, põe a máscara pra você primeiro. Então, como eu cuido de mim, permaneço vivo e apto e competente, depois o outro.
Eu fiquei... Ficou uma passagem que talvez não sei se a gente não falou, é que eu fiquei pensando de contar agora, que é a minha ida pra sede da ONU, na OIT, em 2019.
P/1 - Então, conta pra gente a respeito dessa experiência na OIT.
R - Legal. Eu tive em 2012 um convite de ir pra OIT pra participar de um painel ________ pra falar um pouco do desafio do Brasil. Isso começou através de um convite. Eu estava, por acaso, na Europa, de férias; conheci uma pessoa que é uma senhora, hoje já falecida, a Pauline. Ela trabalhou trinta anos na Unesco e me fez o convite: "Olha, vai ter um evento em Genebra, você precisa ir pra lá falar." Eu falei: "Mas eu não tenho nem roupa pra ir pra lá." E aí fui a esse evento junto com um amigo, com o Leonardo Barbosa e a Pauline Saba, que é essa senhora que trabalhou na Unesco trinta anos e falou: "Você tem que ir pra Genebra, vai. Pega um trem e vai". Fui falar lá nesse evento e conheci muitas pessoas.
Sete anos depois eu recebo, em 2019, uma carta da OIT, me convidando pra ir pra esse evento, “O Futuro do Trabalho, Inclusão da Pessoa com Deficiência”, que é uma conferência anual que eles fazem, da pessoa número um da OIT, do Stephen Cromwell, pra falar sobre inclusão no mercado do Brasil, sobre lei de cotas, sobre o Brasil, sobre o meu trabalho na Ernst & Young e sobre o case que eu construí. Eu fui com vários chapéus, a minha própria história. 2019 foi o ano que a OIT fez cem anos, ela é de 1909; a primeira agência da ONU a ser criada foi a OIT.
Eu tive dois dias de evento, Genivaldo, que eu acho que é curioso falar, por isso que eu queria contar, que foram sobre inclusão e ‘n’ cases do mundo inteiro e pessoas construindo um futuro do trabalho pras pessoas com deficiência. Essa era a pauta central, mas foi a primeira vez na vida que aconteceu uma parte desse sonho que eu falei pra você, que fui recebido por todas as pessoas, onde ninguém julgou a minha deficiência. Eu pensava comigo: "Puxa, mas será que eles estão vendo?" De repente parou, parei de perceber que eu tenho uma deficiência, eu parei de ser lembrado pelo ambiente e eu fui visto só pela competência, só pelo entregado. Então eu fui, foi uma experiência fantástica. Eu consegui viver esse oásis no deserto e perceber que é possível a gente ter um ambiente que as pessoas convivam com a deficiência de forma natural. Isso foi muito forte: eu ter que representar o nosso país, falar sobre legislação no país, falar do meu trabalho anterior e representar a minha própria empresa nessa rede global de inclusão e como isso começou; começou lá atrás e depois a rede de inclusão no Brasil conectou com a OIT, então, mais uma espiral do tempo. Isso começou numa conversa lá em 2012, dentro de um grupo de jovens que eu fazia parte, porque na discussão a gente fez um teatro de jovens e a primeira pergunta do teatro era: “Qual o seu sonho?” A partir de lá fui desafiado aonde a gente iria pra tomar, encontrar o espaço de chegar nesse ambiente e aí surgiu o convite pra falar na sede da OIT, a partir da visão dos jovens que eu representava. Mais uma oitava do tempo foi cumprida e trouxe um resultado, pra mim, importante. Então, acho que era isso.
P/1 - E a última pergunta, Djalma: como foi contar a sua história de vida pra gente, hoje?
R - Olha, eu vou dizer que eu fiquei surpreso com a metodologia, com o cuidado que você está fazendo as perguntas e muito... Eu me senti, apesar do vídeo, do Zoom, muito acolhido. Muito obrigado pelo acolhimento e pelo não julgamento. Acho que as expressões, como você reage, como você fala também pra mim, eu sou muito impactado por isso. Acho que eu me senti acolhido o tempo inteiro e seguro pra trazer isso aqui, mas confesso que eu estava com um certo receio, porque é diferente de eu responder… Eu entro em centenas de eventos e pra falar algo que eu faço e acabou. Saber que eu tenho um desafio de falar do Djalma, da minha história... Teve momentos que você fez perguntas do ensino médio, que é um momento muito doído, que me deu um pouco de angústia, mas eu falei: "Bom, vamos lá, estamos aqui fazendo uma coisa positiva, não é?” E como as memórias devolvem emoções na gente... Acho que foi um passeio pela minha história, junto com uma montanha russa de emoções. Eu me emocionei, fiquei angustiado, fiquei feliz; acho que eu passei por vários sentimentos, durante a nossa conversa.
P/1 - Então, Djalma, eu agradeço muito pelo seu depoimento. Seu depoimento foi incrível, com certeza, pra gente poder falar sobre diversidade. Em nome do Museu da Pessoa, agradeço muito o seu depoimento pra gente.