P/1- Franciele, queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R- Meu nome é Franciele Purcina do Nascimento, eu tenho 22 anos e eu nasci na cidade de Ubaíra, em Salvador, Bahia.
P/1- E qual foi o dia que você nasceu?
R- Vinte sete de janei...Continuar leitura
P/1- Franciele, queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R- Meu nome é Franciele Purcina do Nascimento, eu tenho 22 anos e eu nasci na cidade de Ubaíra, em Salvador, Bahia.
P/1- E qual foi o dia que você nasceu?
R- Vinte sete de janeiro de 98.
P/1- E quais são os nomes dos seus pais?
R - O nome da minha mãe é Elisângela e o nome do meu pai é Antônio.
P/1-
E onde eles nasceram?
R- Minha mãe nasceu em Itagi, na Bahia, e meu pai provavelmente nasceu em Salvador, não tive muito contato com ele, mas sei que ele é de lá, dessa cidade de Ubaíra onde eu nasci.
P/1- E você sabe como eles se conheceram?
R- Eu não sei muito bem como eles se conheceram, não. (risos)
P/1- E o que eles faziam ou ainda fazem de atividade profissional?
R- O meu pai é autônomo, eu não sei muito bem qual profissão ele exerce, mas eu sei que ele sempre trabalhou como autônomo, e a minha mãe é diarista.
P/1- E eles se separaram?
R-
Quando eu tinha em torno de dois anos (pausa).
P/1 - Franciele, você estava me contando que não sabe como seus pais se conheceram, certo?
R- Sim.
P/1- E aí seu pai se separou de sua mãe quando você era novinha. Eu não ouvi quantos anos você tinha.
R- Aproximadamente dois anos.
P/1- E você tem irmãos?
R- Tenho três irmãos.
P/1- E em que escala você está?
R- Eu sou a irmã mais velha.
P/1- E qual é a sua relação com eles?
R- São boas. A gente mora, todos, próximos, convive diretamente e moramos todos com a minha mãe. Exceto eu e minha outra irmã, que nós já temos a nossa residência.
P/1- E você lembra da sua casa de infância?
R- Lembro.
P/1- Como ela é? Conta um pouquinho.
R- A minha mãe foi morar em uma cidade vizinha, na verdade eu fui criada na cidade de Itajuru, também na Bahia, e também fui criada pela minha avó, pela minha bisa, até aproximadamente os dez anos. E a minha casa de infância é uma casa bem grande de roça, a gente morou na roça. Tinham duas salas, duas cozinhas, fogão a lenha, quintal, rio também próximo… foi bem cheio de natureza, correria, balanço, rede, andando de cavalo… essas coisas maravilhosas (risos).
P/1- E a sua avó... É a sua avó materna?
R- É, a minha avó materna e a minha bisa materna também.
P/1- E como é a sua relação com elas?
R- Boa. A minha bisa materna também foi uma relação maravilhosa, muito acolhedora, e a minha avó materna também. Ela criou eu e a minha irmã. Essa a minha irmã também é filha do meu pai. Teve um momento que a minha mãe reencontrou ele e tal… minha mãe acabou engravidando do meu pai novamente, que é minha segunda irmã, também do meu pai. Então a minha avó criou nós duas, enquanto minha mãe trabalhava em uma cidade vizinha a nossa e a minha relação com a minha avó era maravilhosa, sempre lembro dela com muito carinho. Um momento marcante foi quando a gente foi visitar a minha mãe na cidade ao lado e a gente ia de mototáxi, e ela falava: “Solta os braços, vai sem medo”. E infelizmente ela faleceu devido a um câncer de mama, quando minha mãe foi nos buscar para virmos morar em São Paulo, quando eu tinha dez anos.
P/1- E como foi esse momento para você?
R- A minha mãe... ela já estava aqui em São Paulo a cerca de dois anos. Ela veio trabalhar aqui para levar a mãe dela para fazer tratamento, trazer para cá, para essa cidade. Então ela chegou, em uma semana minha avó acabou sendo internada... então ela estava programando a viagem, tudo, para trazer tanto ela quanto os filhos dela, que já eram quatro até então. Tinha dois irmãos caçulas já. E aí, uns dois dias antes da viagem a minha avó acabou falecendo. Então vieram só a minha mãe e os meus irmãos para São Paulo.
P/1- Você veio junto ou não?
R- Vim sim. Vim eu, minha mãe, meus irmãos e um tio.
P/1- E me conta mais um pouquinho desse bairro da região em que você morava com sua avó?
R- Sim. Lá era assim, é bem escondidinho, bem interior mesmo. Eu lembro até da fase em que todo mundo… tipo assim, como tinha energia e tal, a gente ia dormir a luz de candeeira, essas coisas. Então seis horas estava todo mundo dormindo, então lembro quando o primeiro vizinho teve geladeira, que aí tinha que gelar água para todo mundo, porque era uma super novidade, mas era uma família bem simples mesmo. E aí quatro da manhã a gente já estava acordado, ia pra roça, ia pescar… rio, ponte… as coisas mais legais lá do bairro, da rua, eram as festas juninas, que a gente fazia com a rua inteira, todo mundo reciclava sacolinha… aí todo mundo fazia as bandeirolas, recicláveis… era bem bacana. Muito.
P/1- E aí na Bahia… você começou a estudar na Bahia ou começou a estudar em São Paulo?
R- Não, eu comecei a estudar na Bahia mesmo. Eu não fiz Jardim de Infância, nem prézinho, o meu tio já ensinava em casa algumas coisas antes de eu entrar na escola, então quando entrei eu já sabia um pouco de alfabeto; já entrei meio que lendo na escola… ai pulei também algumas séries, porque falava: “Ah você é muito avançada para salinha”. Aí já fui para outras e… É muito bacana, tenho até uma foto com a minha professora, que eu nunca esqueço, que nossa, foi a melhor fase, a da escola. Era muito divertido. E aí tinha a idade direitinho e minha irmã acabava me acompanhando, porque ela era muito apegada comigo e aí ela queria estudar e onde eu fosse, ela queria estar. Então a minha avó teve que ir à escola conversar com a diretora: “Tem como a irmãzinha dela vir com ela? Porque ela quer tanto a irmã.” Aí a escola teve que acolher as duas: uma pequena e a minha irmã, aí ela participava de tudo junto comigo.
R- E como vocês iam à escola?
R- Normalmente a gente ia a pé mesmo, ou de carroça, essas coisas.
P/1- E qual é a sua primeira lembrança da escola?
R- Da escola era o hino nacional, que a gente fazia sempre de segunda-feira.
P/1- E essa professora, que até você trouxe foto, o que ela significou para você? Como ela te marcou?
R- Além do contato escolar a gente tinha contato na casa dela também, então era próxima. Eu tenho muitas memórias na casa dela, festinha… e ela era uma professora muito acolhedora, com a minha irmã, comigo… muito conselheira também.
P/1- E como foram esses dois anos que você morou sem a sua mãe por perto?
R- Sem a minha mãe por perto foi cerca de uns sete anos. Ela ia visitar a gente, porque ela ficava na cidade vizinha, então ela ia nos visitar. Era próximo e ela ia visitar a gente no final de semana, ia cuidar da gente um dia, mas ela voltava novamente para a cidade dela, porque já estava casada novamente também e tinha mais dois irmãos meus. Então ela fazia essa visita e levava algumas coisas que estávamos precisando, passava o domingo com a gente, final de semana, e voltava para cidade vizinha. E quando dava, a gente também ia ver ela.
P/1- Porque ela resolveu vir para São Paulo?
R- Porque, na época, lá o salário era muito baixo, 150, duzentos reais, então ela veio para São Paulo. A gente tem familiares aqui a mais vinte, 25 anos. Na rua mesmo onde moro todo mundo mora super próximo. Metade da família está aqui, a outra lá e aí os familiares acolheram ela. Ela veio mais por conta da minha avó, quando a minha avó descobriu o câncer de mama, então ela veio tentar a vida em São Paulo para trazer a gente e conseguir levar a minha avó para fazer o tratamento aqui.
P/1 - Como foi sua vinda para cá?
R- Um pouco engraçada (risos). Mas foi tudo muito rápido, porque a viagem já estava marcada para gente vir, então a gente fez o sepultamento da minha avó em um dia e
no outro, pela manhã mesmo, já estava todo mundo, nós viemos de ônibus todo mundo e aí foi super rápido, veio eu, meus irmãos, meu tio, tal… e aí eu ficava preocupada com a escola, porque eu a muito apegada: “Ai meu Deus, eu não vou estudar”... E aí vim para cá, e lá é uma cidade muito tranquila, interior e tal, tinha televisão e quando a gente podia ver as novelas, a gente via cenas de comunidade, não sei o que, era só em novela. Aí quando eu cheguei eu lembro que a gente veio no ônibus e minha avó tinha feito uma super farofa lá (risos), farofa de sertão (risos) e aí no ônibus todo mundo com uns potes enormes, comendo as farofas; eu lembro disso muito. E quando chegou no bairro, cheguei em São Paulo, estava tranquila, ai passou pela Avenida, estava tranquila, aí tive que entrar no beco (risos), que era a casa onde minha mãe morava, tinha que entrar em um bairro de periferia; aí eu: “Não, meu Deus, eu não vou entrar…”
R- Então quando chegamos a São Paulo, nós… minha mãe passou pelas avenidas, tal e a gente tinha que entrar no bequinho, aí ela: “Não, aqui é onde a gente vai morar, nessa rua”, eu falei: “Ai meu Deus!”, porque até casa, assim, sobrado, não era muito comum na minha cidade, que tudo é telha, bonitinho, suas casinhas individuais, então já era assustador para mim. Eu falei: “Ai meu Deus, eu não vou morar aqui. Aqui está parecendo os bairros das novelas” Eu lembro que fiquei presa um tempo em casa, porque eu não queria sair, tinha muito medo, mas todo mundo brincava na rua e eu
ficava na laje olhando assustada. Mas super acolhedor também, a rua tinha meus tios, minhas tias, a minha família. E aí minha mãe trabalhava em casa de família como doméstica e dormia no trabalho. Então esse tio que veio com a gente ficou cuidando da gente, veio uma cunhada dela também com ela, ai eles cuidavam da gente em casa e minha mãe só ia em casa nos finais de semana, porque ela dormia nesse trabalho de doméstica. Aí ela ficou mais uns meses nesse trabalho, depois ela saiu para ter mais tempo para ficar com a gente, poder voltar para casa.
P/1- E que bairro é esse?
R- É o bairro que moro atualmente, na Vila Nova Galvão, nunca saí de lá, mudei de rua até (risos). Umas ruas a frente… já vou voltar essa semana para a mesma rua de novo (risos). Todo mundo ali, grudadinho.
P/1- E qual foi sua primeira impressão de São Paulo?
R- Bom, a primeira impressão foi de medo mesmo pela rua que ia morar (risos), porque não estava acostumada, aquele ambiente de fazenda, de roça… aí é tudo muito em cima do outro, tudo muito junto, aí fiquei um pouco assustada. Mas depois foi tranquilo, minha tia foi conversar com a gente, como morava do lado, cuidava da gente para brincarmos na rua, jogava vôlei. Tinha primos meus na rua que eu morava, então eu fui me socializando mais e ai o que fica até hoje: São Paulo é uma cidade agitada mesmo, um formigueiro enorme e depois também que você chega, você não quer ir mais embora (risos).
P/1- Você comentou de algumas brincadeiras, mas quais eram as suas brincadeiras favoritas aqui em São Paulo?
R- As favoritas mesmo era brincar de vôlei, pular corda, porque a gente acabou trazendo a nossa rotina do interior para a rua lá. Então nós, em quatro... aí começava a mudar as brincadeiras que tinha aqui e aí mudava, trazia elástico, aí pulava corda, aí jogava vôlei, aí fazia queimada… queimada era o favorito (risos), jogar bola…
P/1- Tudo na rua?
R -Tudo na rua mesmo. A rua que a minha mãe mora até hoje, essa rua de onde a gente veio, ela não tem saída, então é super legal para as crianças brincarem, porque não tem muito movimento de carro, veículo, então a gente ficava brincando a tarde inteira.
P/1- E como é essa casa?
R- Olha, a gente mudou de casa. A primeira casa que a gente morou era de aluguel, até hoje minha mãe mora de aluguel também. Então essa primeira casa onde moramos era de dois cômodos grandes, um banheiro e um sobrado de três andares. Então a gente morava no segundo andar desse sobrado e aí era eu, meus irmãos, minha mãe, esse tio dela e mais a cunhada que ela trouxe também, todo mundo nesse aperto. Aí depois os donos da casa acabaram pedindo a casa para minha mãe: “Porque muita gente, muita criança..." E aí minha mãe teve que mudar às pressas, ai nem tinha para onde mudar, só guardamos as coisas em uma vizinha que tinha laje e minha mãe ficou na casa dos tios dela por um tempo até conseguir um local. E nessa fase acabou que ela… minha tia tinha um… meu tio morava em um barranco lá no bairro e aí eles fizeram um barraco e a gente passou a morar nesse barraco com a minha mãe, que era o barraco da minha tia. Aí ela acabou indo embora para essa cidade de onde viemos, para ficar com a mãe dela, que no caso é minha bisa, já estava bem velhinha, e ela foi morar lá, cuidar da mãe dela e a gente foi morar nesse barraco da minha tia. A gente ficou lá cerca de um ano, dois… que foi quando a prefeitura veio, aí teve que derrubar, essa questão.
P/1- E como foi esse momento para vocês?
R- Foi desesperador, porque não foi só o barraco da minha mãe, foram outras casas também no fundo da rua que tiveram que ser derrubadas, porque atrás passava um córrego e tal, tinha toda aquela questão de deslizamento de terra, aí eles vieram, derrubaram várias casas também e aí minha mãe alugou outra casa na mesma rua, tudo na mesma rua, e aí passamos a morar lá e já ficamos mais uns dois, três anos.
P/1- E o que você queria ser quando crescesse? Você pensava sobre isso?
R- Sim, acho que até hoje ainda penso. Mesmo que não vá atuar nessas áreas, mas sempre quis cursar Fotografia e Psicologia.
P/1- E porque essas duas áreas?
R- Fotografia é uma lembrança de infância que eu tenho, porque como era cidade pequena não tinha tanta tecnologia, então na cidade tinha um estúdio de fotografia e aí os familiares contrataram esse fotógrafo para montar o cenário, ou ia até lá… então assim, era o único lugar que tinha, então todo mundo fazia as fotos com esse fotógrafo. Eu lembro que minha mãe trabalha de cozinheira em um presídio lá na cidade em que ela morava, Jequié, e aí ela fez uma rifa, ganhou uma rifa de uns ursos enormes, bem grandões, que aí era um cavalo rosa e um marrom. Ai minha vó chamou esse fotógrafo e fez essas fotos nesse cavalo, nesse cachorro, com esse fotógrafo lá na rua, montou o cenário... Então ficou muito marcado, ai me apaixonei por fotografia por causa dessa lembrança, até hoje.
P/1- E porque Psicologia?
R- Ai meu Deus, é um caso amor, porque… já acho que é de alma, sabe? De alma mesmo. Psicologia sempre pensei, até hoje eu penso, muito porque tenho muita facilidade de comunicar com as pessoas, eu acho que empatia é uma coisa muito de mim também, de se colocar no lugar do outro, já é da minha natureza ouvir, acolher… São coisas que pratico no dia-a-dia mesmo, já é minha rotina, já é parte de mim… Então até hoje, eu falo: “Mesmo que eu não vá cursar Psicologia, eu pretendo estudar, fazer, concluir, porque é um sonho, uma profissão que admiro muito”.
P/1- E sua mãe chegou a comentar alguma história de como era trabalhar como cozinheira dentro de um presídio?
R- Ela fala de boas histórias (risos). Ela fala assim: “Era muito difícil, porque o meu tempero era muito bom… (risos) e tinha que deixar um pouco sem sal, aquele clima mais de presídio. Eu não conseguia”. Eu lembro que eu cheguei a ir também nesse trabalho dela... era enorme, era outra qualidade. O que a gente está acostumado a ver por aqui, não sei se é por causa de ser regional, menorzinho, mas era bem grande, então eu cheguei a ir um dia com ela para o trabalho, ela me levou. Eu acho que temos até uma foto dela grávida do meu irmão, trabalhando nesse prédio, no banheiro, só o barrigão e ela no vestuário. E aí nós fomos lá para o pessoal conhecer a filha dela… aí era bem imenso, super grande a cozinha e aí eles: “Vamos, vem! Venham comer carne de carneiro.” e ai eu: “Ai meu Deus, que nojo. Não quero comer isso não” (risos). Ai minha mãe: “É muito bom, muito macio”, e eu já danada na pimenta, ai eu provei, ai eu fico sempre nessa lembrança, de que eu conheci a cozinha do presídio, mas nossa, nenhum trauma, era linda (risos).
P/1- E como foi para você começar a estudar aqui em São Paulo?
R- Nossa, sofri demais. Porque acho que demorou uns seis meses para conseguir vaga. A escola é perto da minha casa, tipo subindo a rampa da rua já é a escola. Até hoje funciona lá, terminei, conclui tudo lá, conclui o Fundamental e o Médio na escola. Gostava muito de estudar, muito, então eu ficava chorando, aí eu pegava livro… eu ficava muito brava com a minha mãe, não queria conversar com ela porque eu não tava na escola e como eu vim da minha cidade já avançada, porque aqui que eu descobri que tinha idade para cada série, lá não… eu já comecei, aí pulei já para outra terceira. Então foram duas séries avançadas. Aí cheguei aqui, fiquei um tempo sem estudar, aí eu acabei repetindo um ano, minha mãe me buscou lá, acabei repetindo a série aqui, tive que fazer novamente. Aí eu fiquei muito brava que tive de perder duas séries que já tinha avançado, fiquei muito nervosa; mas depois vivemos estudar e era muito engraçado, porque como a gente falava lá: as coisas mudam totalmente aqui. Um exemplo: blusa de frio lá no interior chama capote, aí eu lembro brincando na rua de vôlei com a minha prima, todo mundo, e aí meu irmão: ”Pera aí, pera aí, que eu vou pegar meu capote!” e todo mundo: “O que é isso?” (risos). Era blusa de frio. Já me liguei, eu falei: “Olha, meu Deus, vai começar a escola, tem coisa que não é igual aqui”. Por exemplo, lá é grafite e aqui acho que é lapiseira e o grafite era o grafite mesmo na lapiseira e a ponta, a ponta. Eu ficava pedindo: "Alguém tem um grafite pra me emprestar?" e aí todo mundo vinha com as pontas. Eu falei: “Não, mas eu quero um grafite”, era muito difícil a comunicação. “Ah, eu quero lapiseira”, lapiseira aqui é a canetinha do grafite, lá era apontador, aí as pessoas vinham com a canetinha, aí eu: “Não, mas é de apontar”, aí era muito difícil a comunicação no primeiro ano de aula, mas foi muito bacana. Lembro muito disso, ficou bem marcado e até hoje tenho uma amizade com a minha amiga dessa turma, da sexta série eu acho e a gente é amiga até hoje, a gente se vê. E aí fica muito marcado, todo mundo falava assim: “Aqui é outro ritmo escolar”. Aí eu fiquei muito brava, falava: “Ai não, aqui a escola é muito ruim, ninguém sabe nada. Todo mundo burro.” Porque a professora passava atividade na lousa e o meu hábito era escrever a atividade e responder a atividade, escrever a atividade e responder a atividade; então quando ela terminava de passar eu já tinha respondido também, aí todo mundo falava: “Nossa, uau!” e eu não esqueço, porque o nerd da sala era o Cleverson, aí: “Orra, Cleverson, roubou o seu lugar, a menina é mais inteligente que você. Perdeu ó,
já terminou…” Aí foi aquela confusão na sala, mas porque aqui tem bem mais distração e na... de onde eu vim, interior, a escola era mais a sério. Eu ainda fazia… chama banca lá, que é quando você tem depois da aula um reforço escolar, então ia para escola fazer reforço escolar, que era pago na época, com uma dona de casa que ensinava, tinha tempo de ensinar, que sabia ler. Então por isso também que era um pouco mais avançada e aqui era mais tudo despojado, largadinho... aí eu me irritava um pouco.
P/1-
Teve algum professor ou professora que tenha te marcado?
R- Nossa, tem sim, um monte. Tenho um contato com eles até hoje, eu estou no Facebook, nas minhas redes sociais... tem a minha professora Tati, ela já é do Ensino Médio mesmo, ela é professora de Leitura - porque eu amo leitura - aí ela é professora de Leitura, de Português, e a gente é muito amiga, muito amiga, a gente se fala direto. Tem o professor Cláudio também, que é de História, porque eu amo História e aí também tá lá no Facebook que a gente sempre se fala; e a professora favorita era de Matemática, a Jussara, também está sempre no Facebook, e a gente sempre fala de marcar um café, mas nunca sai (risos).
P/1-
E os seus amigos da escola? Você fez bastante amizade? Como era essa relação?
R-
Eu tinha as minhas amizades de escola, mas era muito tranquila, até porque a minha casa também era aperto da escola, então era isso, da casa para escola, da escola para casa… e durante a eternidade, que ai eu recuperei a minha amiga do sexto ano escolar, que é a Vitória, e aí agora a gente se fala, se vê, conversa, nossos filhos brincam juntos, mas é a amizade que consegui recuperar e que ficou, foi a dela. A gente recuperou quatro, cinco anos depois, por outra experiência.
P/1- E quando está um pouquinho mais velha, está no colegial, como você se diverte?
R- Era muito legal a aula de Educação Física, eu gostava mais porque tem uma queda enorme lá na escola, funciona até hoje e aí atividades, as físicas, eu super ia. Tinha campeonato contra as outras escolas da região, então era o dia do campeonato, era muito legal, porque era nossa escola contra as outras, eram essas disputas bem legais. E também o pátio escolar, e aí podia jogar um boliche... alguma coisa do tipo, sabe? Tinha essas atividades na hora do recreio.
P/1- Fora da escola vocês saiam, iam para parque, ou ficavam mais em casa?
R- Acho que já fizemos uma atividade sim, com a escola, e em família a gente ia em
parque também. Eu lembro muito do Parque da Água Branca, acho que foi o primeiro que a gente conheceu aqui com a minha mãe, porque na Bahia é o forrozinho, as músicas, tal… e a minha mãe levou a gente para esse Parque da Água Branca, lotado, calorzão, São Paulo, e aí tocava [Banda] Calypso. Aí pronto! Chegou lá meu irmão gordinho, minha irmã também e todo mundo sabia dançar. Aí a gente tinha a caixa de som lá no pavilhão desse parque, parada lá e a gente foi para lá dançar, todo mundo: minha mãe, eu, os meus irmãos... aí todo o parque começou a gravar a gente, porque o meu irmão era muito gordinho, engraçado e ele dançava muito bem, aí roubou a cena; e acabou que a gente ficou lá, distração do parque. Então, nossa, foi a única vez que a gente foi nesse parque e já foi causado, porque todo mundo desconstruído, sem timidez, sem vergonha, começou a dançar e parecia que estava em casa. Então esse parque ficou na memória. Toda vez a gente fala do Parque da Água Branca por causa disso.
P/1- E você sentia falta de algum habito, de alguma comida, alguma cultura que vocês tivessem na Bahia?
R- De pescar, de fogueira a lenha, de fogão a lenha também, de fogueira de São João, essas coisas, porque aqui todo mundo é um pouco mais contido na sua residência, lá não é mais família. Lembro muito que meu tio educava assim: o sobrinho dele e a rua inteira. Se a gente aprontasse, ficavam eu e minha amigas de castigo, porque os pais já davam essa legalidade. Então castigava um, eram todas no castigo e ninguém podia sair, ninguém podia falar… e aqui é todo mundo mais na sua casinha e tal… então esse afeto da infância eu sinto bastante falta. A comida da Bahia não tem jeito, tem uma coisa que acho que ninguém sabe, que sinto muita saudade, que chama banana real: é um pastel doce que você joga açúcar, canela, só que dentro é banana, é banana com açúcar e canela. Ai eu falo, nunca tem, nunca achei banana real em São Paulo. Nunca achei (risos).
P/1- E você sabe cozinhar?
R- Sei, então, trabalhei restaurante
Antes de ser autônoma, de trabalhar com sex shop, eu comecei a trabalhar em restaurante, acho que eu tinha catorze anos, quinze… a amiga da minha igreja, da minha mãe, trabalhava em restaurante, nesse buffet, e eu queria muito trabalhar, falei: “Ah não, tenho que ajudar a minha mãe”. Catorze, quinze anos. E ela: “Consigo para você uns freelance”. Aí então eu ia de sábado e domingo, quando me chamavam para o restaurante, na época era italiano-espanhola a culinária, e aí eu fiquei lá fazendo esse freela e depois falaram que por conta da idade não poderia mais, por causa de fiscalização. Então ele falou assim: “Quando você tirar sua carteira de trabalho, acho que com dezesseis anos você vai poder, aí você volta”. Mas eu nem coloquei fé. Aí quando fiz eles me ligaram: “Não vai voltar? Você já fez sua carteira? Já tem dezesseis anos?”, ai eu: “Não, já fiz”. Aí fiz, eles me contrataram, eu fiquei trabalhando uns seis meses lá. Daí até que o restaurante acabou falindo, mas aí eu fiquei com esse dono e acabou falindo, por seis meses. Aí chegou um novo dono, eu continuei com o novo dono também, o dono antigo passou para o amigo dele. Então eles tinham um pouco de sociedade, então ele fazia parte, e eu trabalhei nesse restaurante por mais um ano e seis meses, um ano e quatro meses, aí eu comecei no buffet, repondo as comidas, depois acabei cobrindo alguém na sobremesa, aprendendo a salada. Aí nas últimas funções eu estava no… tinha uma ilha de massas, feita na hora, você… cozinhava massa, mas o cliente escolhe os ingredientes e ai você vai colocando, fazendo na hora para o cliente, vê o molho dele. Aí eu fiquei nesse setor até sair, por mais um ano e quatro meses, seis meses.
P/1- E como era a sua rotina de estudo e trabalho?
R- Eu acabei mudando meu horário para noite e aí comecei a trabalhar, que eu acho que era das oito às quatro. E aí chegava em casa, descansava um pouco e ia para escola, graças a Deus era pertinho, na esquina de casa. Então chegava do trabalho, descansava, tomava banho e ia para escola à noite. Aí voltava, no outro dia tinha restaurante de novo; e aí era domingo a domingo, era uma folga na semana, um domingo no mês, mas deu para conciliar até terminar a escola.
P/1- E você lembra o que você fez com seu primeiro salário?
R- Eu lembro que dei um dinheiro para minha mãe, que ajudava em casa. E aí comecei a comprar roupas também para mim, porque minha mãe trabalhava de diarista, ela largou o emprego dela e começou a trabalhar como diarista, então a gente ganhava sempre muita roupa das pessoas: “tem muita roupa para doar”, então minha mãe sempre trazia umas roupas super de qualidade ainda, aí era sempre de outras pessoas. A gente não tinha hábito de comprar roupas e aí toda vez que a minha mãe falava: “Vai vamos, é Natal, vamos comprar roupa”, eu falava: “Não mãe, pode comprar para os meus irmãos, para mim não precisa”, nunca aceitava. “Não precisa trazer nada”, “Vamos juntos”, “Não precisa trazer nada”. Então quando eu comecei a trabalhar eu dava dinheiro em casa, ajudava minha mãe, com valor de trezentos, quatrocentos reais e o outro eu gastava comigo e comprava livro também, porque amava comprar livro, amava. Passava do trabalho para a loja e passava lá para comprar meus livros; era meu mundo encantado.
P/1- E como foi sair do colégio e se formar nesse período?
R-
Foi difícil. Eu estava bem cansada, eu estava quase na base do cochilo, a escola quase na base do cochilo: “Ai meu Deus, vou dormir” (risos). Mas eu consegui, daí deu tudo certo, graças a Deus consegui concluir. Estava no restaurante ainda, permaneci lá. Depois que terminei a escola por mais seis, oito meses, até que quis sair também, para viver a maternidade. Acho que eu tinha, quando saí do restaurante, dezessete anos, dezoito anos, por aí. E ai que eu já… sempre me interessei por assuntos específicos, sempre tive o meu time: feminismo, empoderamento negro, essas coisas. Então no restaurante é muito homem, por incrível que pareça, mulher é muito pouca, muito pouca mulher.
E o restaurante era super grande, então tinha muito, tinha muito essas divergências de respeito, de assédio, então eu sempre tinha que estar apertando essa tecla. E aí um dia eu estava na minha folga, cansei, estava de folga e quando cheguei os colegas falaram: “Nossa, o colega falou tal coisa para Lili…” que era uma colega de trabalho, “E desrespeitou e tal…”, eu falei: “Ninguém fez nada?”, “Não, mas quem vai falar alguma coisa?”. Eu falei: “Não, eu exijo que o João tenha uma reunião com todas nós, as mulheres, para conversarmos, porque não foi só com ela, é todo dia com todo mundo…”. “Nossa, mas você vai fazer…”, eu falei: ''Não, hoje não vou embora se ele não chegar”. E a minha folga era na quinta. Aí ele fez uma reunião e aí entrou esse debate de: "Não, porquê da liberdade, porque fica sem engraçando…” tudo bem, se fosse só uma, a gente estava de acordo, mas estamos em seis reclamando, então todas nós estamos erradas. Aí ele falou: “Não é isso o que estou querendo dizer”. Aí eu peguei e falei para ele… Ele falou: “Você tem que se submeter ao chefe da cozinha”, até então era o chefe da cozinha. Falei assim: “Mas meu trabalho não depende dele, porque não preciso dele para cortar nada, para cozinhar nada, então me recuso”. Aí ele falou: “ Porque não dá”. Eu falei: "Então faça assim: amanhã quando eu voltar, você pede para o RH vir aqui e me dispensar, porque não aceito mais ficar, porque já aguentei muito, todo mundo já reclamou muito e nunca muda, então não quero mais fazer parte da equipe”. Ai sai mesmo. Aí também já estava namorando com o atual pai do meu filho e aí falei… a gente queria muito morar junto, a gente namorava a cerca de uma ano, queria muito ter o nosso cantinho, e aí falei: “Ah não, ter meu cantinho, parcelando tudo com medo de ser mandado embora, não dá também, eu quero que me mande embora e que eu compre tudo (risos)”. E assim a gente fez, consegui que me dispensasse, e a gente foi. A gente estava no nosso cantinho. Aí também sai desse emprego, tal… fomos morar na nossa casa, alugamos uma casa e começamos a vida a dois.
P/1- Antes da gente começar essa parte, eu queria que você me contasse, você sempre se posicionou em relação a esses tópicos feministas e ao movimento negro... De onde surgiu isso? Você consegue identificar?
R- Eu… por isso que no momento de responder sobre religião eu fico um pouco travada, porque eu lembro que eu era muito religiosa, muito certinha, muito quadrada, e aí teve um momento que eu não quis mais, eu lembro assim... eu lembro muito desse dia, ficou muito marcado, eu indo no culto e eu sempre tive corpão, sempre corpuda, ai acho que tinha catorze, quinze anos, e eu estava com um vestido longo branco e tinha colocado shorts embaixo, corpo todo, a religião pede. Ai estava no culto, a irmã me chamou fora e falou assim: “Você tem que colocar um shorts, porque o seu vestido marca muito, fica muito vulgar e chama a atenção dos irmãos" e eu com catorze, quinze anos, eu não entendo nada do que ela estava falando. Ai eu me ofendi, eu me levantei na porta da igreja e falei: “Serve esse shorts aqui?”, aí ela: “Nossa, você está de shorts? Não deu para perceber”.
Eu sempre fui assim, de responder na lata. Aí acabou que gerou esse conflito, em meio desse conflito. Tenho uma foto desse vestido até hoje, desse dia, tenho. Aí acabou que eu não quis mais fazer parte, ai eu já era líder de grupo de louvor, eu fiz programação na rádio, tinha rádio da igreja… e ai já fazia programa na rádio, horário de louvor, de oração… e era líder do grupo de jovens também da igreja. Aí falei: "Não quero mais”, “Mas nossa, você é líder”, "Não quero mais, porque olha para roupa, estava com vestido no pé, não tem como”. Ai eu quis sair também, mas foi saindo que eu fui ler mais, no omento do trabalho, no almoço, também gostava de ler, sempre estava com algum livro no ônibus, no trabalho, no almoço, tinha um livro me acompanhando. E aí comecei a desconstruir, porque fui criada em religião e fui desconstruindo esses assuntos, esses debates e aí me tornei mais essa pessoa do debate, e ai não tinha mais como, não tinha mais jeito, porque... E por isso não consigo muito, não consigo responder: “Qual religião que você é?”, porque não concordo com tudo, então acho que sou sempre cancelada (risos). A palavra de 2020, eu sou sempre cancelada quando eu vou… por algum motivo, por alguma questão. Aí quando me colocaram no grupo da igreja, quando resolvi voltar, aí tinha uns debates de casamento… aí eu falei num grupo assim - eu nunca esqueço - eu falei: “Se o cara agrediu a esposa e o pastor pediu para orar, ele também agrediu”. Aí foi aquela confusão, porque eu falei: “Os dois agrediram, porque não chamou a polícia e mandou a irmã orar, que agora ela ta louca”. Então eram sempre esses debates, então não consigo, não consigo. Ai por isso fui lendo muito, me inteirando muito, participando de grupos feministas. Essa professora Tati, de Português, é super feminista, então ela me chamava para debate, debate em escola, não conseguia ir por causa do trabalho. A gente sempre estudava muito, mandava grupo, mandava texto, a gente estudava juntos, mesmo depois da escola. Então a gente tem isso em comum, a gente compartilha esses conhecimentos, opiniões políticas também, juntas. Aí a gente está sempre no Facebook, debatendo juntas, então no debate eu falo: “Tati, vem aqui que já cansei de debater”. Era assim.
P/1- Você consegue lembrar de alguma história, de alguma conversa que você ficou conversando, debatendo?
R- Eu consigo, porque foram muitas. Facebook então eram muitas, até que eu: "Meu Deus, preciso parar”, porque eu ficava realmente brava, ficava brava de verdade. E no relacionamento também, mas no relacionamento perdoava (risos). Debatia também: “Não, tá errado e acabou, não tem como… você quer dizer o quê? Então tá bom, você fica com sua opinião e eu vou embora”. Porque tinha que entender que eu estava certa, tinha que olhar o ponto de vista também e tinha que ter argumento e as pessoas nunca têm, eu falei: "Não, tem que ter argumento”. Eu lembro que debati muito: “Porque você vem de legging para igreja, depois os irmãos ficam olhando, porque...”, agora é culpa da legging então. ”Então se a criança vem de legging e alguém abusa da criança, a culpa agora é da legging, da criança?” Aí era uma briga, porque eu sempre falava com pessoas que eram pastores, ou os missionários, e aí eu nunca perdoava, principalmente se tinha esse cargo, eu exigi muito, sempre batia nessa tecla. Mas a última mesmo foi quando resolvi voltar, recente, acho que 2018, e aí comecei a empreender com o sex shop e eu tinha me inscrito em um curso de maturidade da igreja e era para formar o seu carácter religioso, aí eu fui na aula e estava falando sobre homossexuais, lésbicas e ai aquilo lá me subiu nos nervos. E eu não pude falar nada. Eu falei: "Não vou falar nada, que estou trabalhando isso em mim. Então vou ficar calma”. Ai no dia seguinte me chamaram porque eu tinha começado a vender sex shop, “Porque você sabe o que a bíblia fala a respeito dessas coisas…” Ai eu já não consegui segurar mais, ai eu já falei: “é então, paguei um curso aqui na sua igreja, que eu ia aprender nele, então não pedi sua opinião. Se paguei um curso eu estava interessada em aprender, então agora também não quero mais pagar, porque vou pagar com dinheiro do meu sex shop, e é um dinheiro sujo na sua visão, então não vai abençoar a sua igreja”. Então pedi para cancelar, sair do curso. E ele: “Deus tem coisas grandiosas…”, e eu falei assim: “Então, você trabalha fora, né?”. E ele falou: “Trabalho fora, trabalho em construção”, alguma coisa assim. Falei: “Então, como você vive da obra, acho que você não poderia, porque você deveria ser assalariado só pela sua igreja. Você não poderia trabalhar fora, você não poderia terceirizar nenhum serviço.” Aí ficou esse debate, acabou que eu falei: "Não venho mais também. Você fica com seus dois empregados dando certo que eu não posso ter o meu sustento que está errado”. Então tudo… não deixo passar nada, nada assim, se eu estiver na razão eu sempre debato, sempre quero saber a opinião da pessoa também. Dou a vez dela falar, mas assim, tenho uma frase comigo que nunca esqueço: “Uma vez que você atingir o nível de conhecimento, ninguém consegue fazer você voltar atrás”. Então é por isso que eu não consigo voltar para esse quadrado, andando em círculos sem evoluir, aquela opinião só. Eu acho que as verdades mudam todo dia. A minha verdade hoje é uma, mas em uma situação amanhã pode mudar. Então eu acho que essas verdades que todo mundo leva para si tem um prazo de validade, porque até você estar na situação do outro, você vai decidir diferente. Não é sempre do seu jeito, do seu cronograma, do jeito que você aprendeu, então sempre me permito isso, a sempre me virar nos trinta, pensar rápido, é o que eu levo sempre comigo.
P/1- E quando você decidiu se afastar da igreja, como foi para sua família?
R- A minha mãe já havia se afastado também, já não fazia parte também. Eu saí, em poucos meses ela também saiu. Então assim, a gente tem a nossa comunhão com Deus, nossa fé em casa e tal, mas ela... por um tempo ela insistiu, mas depois ela respeitou e aí todo mundo vê que eu acho que não me enquadro muito. Eu vou… hoje em dia eu vou segunda e quarta, só para agradecer. Eu falo: “Vim só para agradecer, não quero nada”, aí comecei a fazer esse exercício há um mês, dois… está funcionando, estou conseguindo ter essa mansidão (risos). Mas acho que todo mundo já entende, todo mundo já fala: “A Franciele é assim”. Então consegue definir já. “Se a Franciele estiver assim, a conversa seria outra”. Porque todo mundo já conhece, é uma coisa que já deixo assim, escancarado, minha opinião, cheguei, não disfarço, não minto, não escondo, pode custar o emprego, como já custou, mas eu defendo com tudo; se eu acreditar, eu defendo. E isso é tudo, é com feminismo, é em questão do empoderamento negro, é em questão da maternidade também, tudo. Tudo mesmo. Dou assim, a alma, coração, tudo.
P/1- E como você começou a namorar? Onde você o conheceu?
R- Nossa, nos conhecemos quando eu tinha, acho, catorze anos e foi em uma segunda-feira, nunca esqueço. Uma segunda-feira de oração. E esse rapaz era de outra igreja, de outro bairro e aí ele foi nesse dia de oração lá, nos conhecemos na igreja e tinham os meus amigos… então eu gostava muito de cozinhar e aí falei: “Vou fazer uma macarronada lá em casa e todo mundo vai…” e esse rapaz foi também, nesse dia e lembro que na hora que ele estava indo embora eu peguei e beijei ele (risos). Aí começamos a namorar, aí foram uns três meses só, porque acabei… ele era muito carinhoso, meu Deus, tadinho. E eu era muito fria. Eu falei "Não quero, não quero mais”, queria terminar todos os dias. Aí foi assim por uns três meses, aí terminamos, ele morava em outro bairro, na Vila Dionisia, perto do Cachoeirinha. Ficamos um ano e meio sem nenhum contato, nenhuma comunicação, sem se ver, nada. Na rede social, nada. Aí quando comecei a trabalhar… - lá vai uma questão mais madura, sobre a relação com a minha mãe - eu e minha mãe temos uma relação super aberta, a gente fala de tudo. Eu acho que essa desconstrução veio daí, a gente fala de tudo mesmo, não tem nada a esconder. Então quando a gente ficava na religiosidade e tal, eu não estava aberta a nada, era tudo aquela coisa certa. E ai quando saí, comecei a trabalhar,
fui crescendo, acho que estava com dezessete anos, lembro que comecei a ler a trilogia dos Cinquenta Tons, (risos) eu li os três livros do meu pai... eu li os três livros (risos), e aí foi causando muita curiosidade, ai falei com minha mãe:
"Mãe, sabe o que eu acho que eu quero? Acho que quero ter minha primeira relação” (risos). Aí fui conversar com minha
mãe e ela disse: “Não pode ser com qualquer pessoa.” Bem pensado né. Eu falei: “Tem que ser com alguém que já gostou de mim. Que já… que já teve algum sentimento”. E a minha mãe amava ele, ela falou: “Você não vai fazer o menino sofrer. Nem procura o menino”. Não teve jeito, aí falei: “Ah, não”. Ai minha mãe tinha ele no Facebook, aí conversava com ele como se fosse ela. Ai falava assim: “Você sabia, fulana está trabalhando. Porque você não a chama? Vocês já estão mais adultos, mais maduros. Chama ela para conversar”. Passei meu número (risos). Aí falei assim: “Passa o seu número também. Quem sabe ela não chama você”. Eu fiz tudo armado, casadinho, de caso pensado. Aí chamei para conversar e como estava nessa transição de dono do restaurante, estava em reforma, então a gente ficou quatro meses só conversando e ele trabalhava em buffet de restaurante infantil também, ficavam os dois só trabalhando de final de semana, nunca tinha tempo de se ver de verdade. Até que a gente se viu, aí começamos a namorar, aí também já consegui realizar os meus projetos (risos). Minha mãe fala: “Você é muito doidinha”, porque todo mundo fala: "Ninguém planeja as coisas assim como você planeja, porque tudo você planeja: primeira relação, filho, tudo”. E eu falei: “Gente, não tem coisa melhor”. Então sempre assim, me abri a isso de compartilhar com minha mãe. A gente compartilha tudo. As pessoas veem a gente conversando, fala: “Meu Deus, são amigas, não são mãe e filha”, porque é uma zoeira, é uma gritaria. Minha mãe, nossa, é uma pessoa com energia super iluminada. Aí o pessoal da rua aqui onde a gente mora chama ela de… ai, um passarinho, que fica cantando, porque todo mundo sabe que ela tá em casa, porque ela fica na lavanderia, lavando a louça e cantando, de manhã cedo já se ouve a voz da minha mãe. A minha tia chega lá: “A passarinho não está hoje, não ouvi ninguém cantar, hoje ela não ta”. Porque a gente tem essa energia, super jovem. A minha mãe era muito jovem, ele fez 42 anos e eu tenho 22. Então é essa juventude compartilhada das duas, essa energia, essa loucura… eu acho que é tudo para mim, o maior símbolo de mulher para mim, negra, batalhadora, que enfrenta tudo, é a minha mãe. Criou eu, meus irmãos, foram quatro filhos sozinha, mudou de uma cidade para outra, quebrou todas as barreiras ... até a questão mesmo de ser mulher, a criação era diferente, não tinha que estudar, tanto que veio terminar a escola dela aqui em São Paulo, porque tinha parado na quarta série. Ai eu estudando, comecei a trabalhar, eu falei: "Não mãe, tem que estudar .Tem que saber ler, tem que saber falar sem gaguejar”, aí incentivei ela e ela se formou, acabou se formando, acabou tudo e ia trabalhar de diarista e a noite ia para escola. Aí terminou de concluir, acho que 2016, 2017, ela concluiu o colegial também.
P/1- E com quantos anos você começou a namorar?
R- Dezessete.
P/1- E aí logo engravidou?
R- Não, aí a gente namorou cerca de um ano, um ano e seis meses, que aí foi quando chegou nessa fase de que eu queria sair do emprego, porque a gente queria morar juntos, porque… a gente começou a namorar era assim: eu ficava uma semana na minha casa, uma semana na casa dele, tanto que quando a gente voltou pra rua, foi morar lá, os vizinhos: “Você voltou a morar aqui?”, aí falei: “Não, mas eu nunca deixei de morar aqui". Todo mundo pensou que a gente tinha saindo há um ano, mais uma semana dormia na casa do meu namorado e uma semana na minha. Só que a gente quis morar junto, aí falei: “Prefiro que me dispensem do trabalho, para a gente conseguir uma estabilidade e conseguir as coisas”. E até então eles me mandaram embora e meu marido continuava trabalhando. E nesse período de seguro desemprego, recebendo as coisas, eu lembro que tive uma transvaginal, papanicolau, algo do tipo, e aí deu que eu tinha ovários micropolicísticos. Aí a gente vai no famoso Dr. Google ver o que é, ai fui dar uma olhadinha: "As chance de engravidar são poucas, são difíceis." Ai subiu a cabeça. E eu nunca quis ter filhos, nunca, porque tinha muito medo… lá no bairro onde a gente foi criado era muito comum as crianças terem deficiência, cadeira de rodas..
Eu lembro que eu tinha um amiguinho de cadeira de rodas, então tinha muito medo de doenças, deficiência, dessas coisas. Então tinha medo de criança. Eu lembro de quando era da igreja, falei: “Pastor, você pode orar sobre isso? Porque tenho medo de criança”. Aí ele orou e para mim passou aquele medo. Aí quando li isso falei: "Não, porque vou ficar velha, já vou ter filho. Não dá porque preciso ter um filho” Aí a gente começou a começar isso no relacionamento. Fomos trabalhar juntos no meio de agosto... aí foi conversando e ele falou assim: “Enquanto durar seu seguro, a gente tenta a gravidez. Ai se acabar o seguro e você não tiver engravidado, aí vamos arrumar emprego, tocar a vida para frente…”. Aí acabou a parcela do seguro e eu fiz os testes igual minha cara, afobada mesmo, muito xixi (risos). Nunca dava positivo, nunca. Ai minha amiga falou: “Então amiga, mas já acabou. Hoje é o último dia que você vai sacar seu seguro, então vai arrumar um trabalho”. Eu falei: "Não, eu sinto que estou grávida. Tenho certeza”. Aí ela falou: “Faz assim, não vai em CCAs mais, vai na OBS”. Aí fui de manhã cedinho, eu falei: “Amiga, não estou nem com vontade de fazer xixi” (risos), mas aí eu fui. Uma gotinha. O moço virou o copinho e le falou: “Daqui a pouco você passa com a enfermeira”. Aí o coração já ficou a mil e eu estava sozinha, porque ninguém pensou que era mesmo. Aí quando vi, tinha dado positivo, a nossa vontade era ficar gritando: “Tô grávida!" (risos) para todo mundo. Isso quando tinha dezoito anos. Então foi uma decisão bem cedo. Falei: “Ah não,
não quero ser mãe velha. Quero ser mãe agora, igual a minha mãe foi, que esta nova aí, fica se divertindo com a gente”. Então acabou que rolou esse positivo, aí fiquei em casa… então foi concordado. Fiquei em casa, participei da primeira infância. Então a gente priorizou os dois primeiros anos para o neném, planejou a gestação. Aí fui estudar a gestação, fui ler parto humanizado, fui ler parto natural, fui participar de grupo de gestante, visitar maternidade também, visitar os ambientes de parto humanizado, tudo. Foi assim, entreguei, foi uma gestação de estudos, super planejado, tudo planejado. Aí foi muito bacana, porque aí foi em outro encontro de mulheres, eu conheci uma amiga na visita a esse hospital, maternidade, que a gente se fala até hoje, nosso neném já se viu também. A gente se reencontrou de novo esse ano, que foi assim, a gente foi lá… tínhamos o mesmo objetivo de parto humanizado, natural, aqueles estudos… e aí os dois são amiguinhos. Ela mora bem distante do meu bairro, mas a gente sempre que pode, marca de se encontrar. Então foi muito bacana, me senti muito realizada, nós queríamos tanto que descobri com três semanas (risos), as duas estavam tentando errado, fica chorando: "Não consegui de novo”. Aí na terceira que foi na OBS, estava de três semanas. Então consegui acompanhar bem de parto a gestação, tudo, o desenvolvimento, tal… foi muito transformador para mim.
P/1- Voltando só um pouquinho, como foi morar fora da sua casa? Bancar uma casa sozinha com seu namorado, como foi essa transformação?
R- Então, não foi tão radical, porque como disse, a gente sempre morou na mesma rua, então morei a umas casas da minha mãe. Não foi tão radical por isso. A gente morou umas quatro, cinco casas dela mesmo e aí ela falou: "Porque você não constrói aqui no fundo? Para quê?”, eu falei: "Não, eu quero um lugar nosso. Nosso canto”. Aí aluguei lá na rua mesmo da minha mãe e a gente morou por lá por dois anos, então era só nós dois e tinha esse equilíbrio, pagava aluguel, ele trabalhava, e aí tava em casa. E aí também que começou essa questão de empreender, que estava em casa, cuidando de casa, gestando. Aí falei: “Minha mãe sempre vendeu gelinho, bolo na porta, sempre”. Aí estava em casa, minha mãe trabalhando e aí falei: “No restaurante… a receita de pudim, os segredos do pudim”, aí eu aprendi e falei: “Vou vender pudim”. (risos) Aí comecei a fazer uns pudins de marmitinha, marmitinha de alumínio mesmo. Aqueles pudins no forno, porque falava: “Mas eu não quero pudim de geladeira que vai gelatina incolor. Eu quero pudim assado”. Aí fui para internet e achei um blog de uma moça falando que fez uns pudins de marmitex para umas amigas do prédio. Ai falei: “Boa”, e aí comecei a vender esse pudim na rua a cinco reais, fazia umas marmitinhas de pudim de forno e eram muito práticas as marmitinhas, porque em trinta minutos estava assado, rapidinho e aí vendia esses pudins na porta mesmo de casa. Coloquei a placa lá do pudim e todo mundo comprava os pudins. Aí fazia pudim de coco, milho, pudim de chocolate, pudim de leite condensado… e só pudim.
P/1- E também, antes um pouquinho, como foi para você, o que significou para você estar grávida?
R- Eu me senti muito realizada e minhas amigas sempre falam assim: "Nunca imaginei que ia ser você que ia ter família hoje, casada ainda, filho, uma super mãe, porque você não queria nem namorar”, então elas ficaram assim, chocadas, e aí sempre recebo das meninas falando: “Você me lembra muito aquelas mães de filme americano, aquelas negras de filme americano, que é super família, colocando a estrelinha na árvore de Natal”. Eu sempre ouço muito isso. Eu falo: “Gente, são pessoas diferentes que falam a mesma coisa, então eu acho que surpreendeu mesmo”.
P/1- E como foi essa situação, que você falou que estudou muito, você conseguiu fazer o cargo dos sonhos, ou não?
R- É, daí que eu falo que as nossas verdades mudam constantemente. Foi muito estudo e mesmo assim, nada sai como a gente planeja, porque acho que a parte mais emocionante da minha vida que começa daí. Durante a gestação eu não ganhava muito peso, acho que eu comecei a gestar estava com 83 quilos, acho que no máximo que cheguei na gestação foi 86, 87… ai tinha essa preocupação por causa do meu peso. Então fiz dois pré-natal, um na OBS, e um na maternidade, onde meu filho nasceu, que acabei sendo hipertensa na gestação e tinha que fazer esse acompanhamento duplo. O Luís também acarretou ansiedade, porque eu ficava muito ansiosa para consulta e ele falou: “Acho que seu bebe não cresce”, porque ele ficava mais alocado aqui… então não fazia aquela barriga enorme, era sonho ter barrigão. Então fiquei muito frustrada e essa amiga minha do sexto ano, que voltamos a se falar na maternidade, foi isso, que ela tinha o maior barrigão do mundo. Ai falava pra ela: “Ai que inveja”, no Facebook da barriga dela (risos). “Ai que inveja”, e ela fala: “Por isso minha barriga tem estria, foi o seu olho” (risos). Eu queria aquele barrigão e não tinha, mas ele estava desenvolvendo legal e fizemos ultra sons, vários acompanhamentos, toda semana tinha alguma coisa para fazer, para ver se estava tudo ok e acabou que ele nasceu de oito em meses, no dia em que a gente fez 35 semanas ele nasceu, de parto normal. E cinco semanas antes eu tinha ido para ultra som, não lembro o nome, porque a gente tinha feito morfológica, mas era outro ultra som mais específico que via tudo, veias, artérias do neném, para ver se estava tudo bem, no ultrassom deu tudo bem. Ele nasceu e foi um parto natural, foi rápido. Eu tinha doula também dos grupos de gestantes. Comecei a falar com doula, então tinha uma doula no WhatsApp. A gente ficava conversando e eu lembro que foi do domingo para segunda-feira, porque estava com os pés muito inchados no domingo, doendo muito, por causa da pressão alta, deu aquele inchaço e eu falei: “Esse menino vai nascer amanhã", minha mãe falou: “Calma mulher, ainda são oito meses, não vai nascer não", eu falei: “Vai nascer amanhã". E nasceu mesmo no dia que eu falei (risos). Lembro que cheguei na OBS, tinha uma consulta, aí falei com minha amiga: “pode amarrar meu sapato?”, que nem consegui eu estava, não tinha barrigão, mas estava tudo inchado. Cheguei a noite em casa e tinha dado um cochilo com meu esposo umas dez horas e acordei meia-noite e quarenta com uma dor. Fui ao banheiro e tal, aí voltei para deitar e não parava. Aquela inquietude, não conseguia deitar porque estava com umas dores, umas pontas, ai mandei mensagem para a doula, Débora. Falei: "Débora, está dando umas pontadas, não estou conseguindo deitar”, ela falou: "Mas quanto tempo você está?", “Oito meses”. Aí a gente baixou um aplicativo para ver o tempo e ela falou: “Está muito ritmada, capaz de nascer mesmo, mas acho que não é porque fez oito meses hoje”. E falou: “Vai ao chuveiro e fica dez minutos com a parte das costas para aliviar. Se aliviar é porque era sessão de treinamento, se não aliviar é que vai nascer”. Não consegui ficar nem cinco minutos. Aí fui, voltei para lá e não consegui ficar nem cinco minutos. E meu marido dormindo, porque não queria acordar. Ai deu meia-noite e meia com essa agacha, sobe, chuveiro, banho e sozinha, falando com ela. Aí estava ritmado demais, aí falou: “Acorda seu marido que está muito ritmado”. Acordei e fui chamar minha mãe e a bolsa estava pronta, porque… incrível. Nesta segunda-feira eu tinha feito um faxinão. Minha mãe falou assim: “Toda grávida, quando o babe vai nascer, faz faxina” (risos). E tinha feito faxina na casa e tava tudo arrumado, quarto do neném, roupas já, estava tudo preparado, estava super adiantada. Ficamos até acho que duas e meia da manhã, nesse sobe e desce, acordei ele, aí chamamos o vizinho porque não estava mais aguentando. Tinha feito visita na maternidade longe da minha casa que tinha parte humanizado e tal. Lembro que tem um farol perto da maternidade... perto da minha casa, tem a maternidade próxima que foi onde meu filho nasceu. E nem tinha ido lá fazer visita. Lá tinha até doulas, eu não sabia, porque eu sempre passei num pronto-socorro e falei: "O atendimento é péssimo, tenho medo da maternidade”. Mas no final acabei indo lá porque ele falou assim no farol: “Agora é com você, se formos pra direita vai demorar e para esquerda é dez minutos”. Falei: “Vou lá”, que foi onde fui, na hora que chegou eu falei: “Vira, vira, não vou aguentar”. Fui para a maternidade, estava vazia, não tinha ninguém. Abri minha ficha, comecei a sentir os sintomas, eram vômito, enjoo, pontada, contração. Lembro que abriu minha ficha, mas entrou uma gestante quase parindo na maca e passou na minha frente também, e então ela foi primeiro. Então fiquei lá da… abrir a ficha, me colocaram no quarto das contrações para ficar sentada. Estava sozinha até esse momento e falaram: "Não pode ir ao banheiro”, mas não aguentava, porque não tinha ninguém me olhando e ia ao banheiro toda hora (risos). Ia ao banheiro toda hora, fazia força e falava: “Você vai ter que nascer hoje, porque sentir isso de novo...”. Ficava deitada na cama, batia barriga de um lado, do outro, jogava o corpo todo. Eu lembro que na última vez ia levantar e a enfermeira disse: “Onde você vai?”. Eu: “A gente não pode tomar um banho, a gente não pode levantar…” Ela falou: “Calma, deixa a gente fazer um toque para ver se tá tudo bem”. “Mas não pode ser depois que eu for ao banheiro?". Ela falou: “Deixa eu perguntar para médica". Eles vieram e ela só encostou e falou: “A Cabeça do neném está aqui (risos). Deita, deita, deita”. Fomos para a sala de parto do lado de onde eu estava. Ela falou: “Vou chamar o seu marido” e eu falei: “Ele é lento, vai querer tirar o cinto, carteira, celular, não vai dar tempo”. Ela foi correndo e voltou: "Mãezinha, ele ia fazer isso mesmo. Ele ia tirar a carteira, celular…”. Ele só veio se vestindo rápido. E enquanto ela estava lá, uma das enfermeiras estava: “Faz força!” e eu já estava muito informada e fiz uma. “Faz força’!” e fiz duas. “Não é assim”, e eu falei: “Então tá, vamos todas esperar, porque as contrações passaram e não estou sentindo mais nada e tem que esperar a força do neném”. Eu falei: “Meu plano de parto está aqui, que eu fiz”, já assustando todo mundo. “Fica em paz, no seu tempo…”. Eu sei que você podia escolher posição, mas eu não quis porque a que eu estava confortável era a padrão mesmo. E ela estava falando de ocitocina… e eu falei: "Não quero nada de ocitocina, não quero soro, não quero que toque nada em mim” (risos). Já bem surtada, ai meu marido gritou: “Meu Deus, até na hora de parir ela quer militar” (risos). Eu lembro que ele entrou e eu senti duas vontade de fazer força, foi só isso e ele nasceu, super rápido. E daí começa o maior drama sobre o nascimento dele, porque nasceu e ficou dois dias na amamentação, nasceu de oito meses, tinha toda uma atenção, mas estava tudo bem. E aí no segundo dia ele não tinha feito coco e estava começando a ficar amarelinho e falaram: “ele precisa de um banho de luz, mais uma sessão de alta”, pensei: “Vai eu e o nenê”. Entendi que era um banho de luz, mas fui só eu, aí começou esse drama. Ele tinha que tomar banho de luz, porque estava amarelinho, ninguém sabia o que era, a maternidade era próxima de casa e eu podia ficar com ele. Mas eu ficava com ele e ficava chorando, mas em casa chorava mais, porque o quarto estava todo pronto, pintei com todo carinho, amor, e ele não podia vir. E aí quando retornei desse vai e vem da casa, recebi uma ligação: "Mãezinha, você está próxima, precisamos falar com você. Ele foi no raio-X e colhemos alguns exames. Fui correndo e a ambulância veio me pegar e falei: “Pronto! Meu pai, ambulância”, já sai correndo, aquele nervoso e eles falaram assim… aí cheguei lá e ele não estava mais, era só um berçário de luz. Eu fui, já estava com uns aparelhinhos na boca, já estava saindo um líquido verde da boca dele e aí estava sondando. Não era muita coisa, mas eu não sabia o que era esse aparelho e fiquei assustada, porque estava em um lugar e agora estava em outro e falei: “Ai meu Deus”, foi aquele sobe e desce de perna. Eles falaram que ele teve uma atresia de cólon, os dois intestinos se formaram, mas não se ligaram. Ficaram assim. Então fomos para um exame na Santa Casa, então essa parte é muito marcada para mim porque nunca saí da maternidade, então toda vez que vou nesse hospital, a maternidade é bem na entrada, então sempre toca muito, porque nunca saí da maternidade como eu queria. Porque tive que sair de ambulância para Santa Casa de São Paulo, na Santa Cecília, com ele, correndo, para fazer um raio-X de contraste, que aí é injetado um líquido pelo anus, para desenhar até onde estava indo o intestino da criança.
Ele com oito meses. Daí lembro que tive que deixar o bercinho da ambulância, porque eles tinham que levar no colo novamente e ficar com o da Santa Casa mesmo, que foi fornecido por eles; e não estava funcionando muito bem, não estava aquecendo, não tinha nada para acompanhar o paciente, batimentos, essas coisas, mas ela falou assim… Mas eu falei: “Não está funcionando, não esta aquecendo, ele tem oito meses
não segura a temperatura”, e ai ela falou assim: “É que o procedimento é rápido, é só um raio-X”, e durou uns quarenta minutos injetando líquido e eu tinha que segurar e ele nenezinho e contorcia, doía também. Ela terminou esse raio-X, durou uns quarenta minutos, coloquei ele em um bercinho e equipe da cirurgia veio conversar comigo. E eu um pouco distante dele, ele ficou sozinho lá. Ela veio falar comigo como seria o procedimento, a cirurgia. Eu falei: “Você pode falar depois? Em um momento mais adequado, porque ele está sozinho, está pelado, não está aquecendo, eu quero ver ele”. Quando fui vê-lo, um olhinho estava parado, estava só um aberto e o outro parado, fechado. E estava mudando a cor. E eu falei assim: “Vicente… - porque o nome dele é
- Vicente, fala com a mamãe, se mexe”, aí toquei o olho dele e fechei os dois, não abriu mais. Ele estava tendo uma apneia. Até então a gente não sabia o que era, ele não estava conseguindo respirar, por ser prematuro ele estava aprendendo isso também e sem temperatura… ele estava sem respirar.
Aí começamos… Pediatra não estava no local e era bem no túnel, era na última casa no térreo; chão íngreme… e a UTI era o segundo andar ainda. Fui chamar e falei: “Ele não está respirando”. Ele estava já mudando de cor, estava sem cor e aí começamos a reanimar ele e falei: "Cadê ela?” Ele falou: "Não podemos sair sem o pediatra". Aí falei: “Acha essa mulher, pelo amor de Deus, ele não está respirando”. E a mulher foi reanimando ele, ele acordava, mas não sustentava a respiração. Ai a pediatra chegou e a gente foi correndo. Era muito íngreme o chão e eu com ponto, mala, tudo ainda do parto e ela falou assim: "Mãezinha, você quer que anime ou que a gente corra? Porque os dois não estão funcionando”. E eu falei: “Corre”. E era no segundo andar, então eu fui ficando pra trás, correndo mais devagar, e eles na frente. Aí chegou o segundo andar, ainda tinha perna, tinha esperança e eles falaram: "Não tem leito aqui. Está sem leito nenhum” e aí olhei para eles e já estava verde, sabe? Ai falei: “Meu Deus, o que vai ser?”, aí quase desmaiei, mas voltei em mim. Aí saímos andando, porque a Santa Casa de Misericórdia de Santa Cecília é enorme, então saímos da pediatria, de qual área não lembro, para onde é a cirurgia, bem distante. Fomos passando no meio das pessoas, correndo com ele mesmo pelos corredores, porque a gente ainda ia para o quarto andar desse outro prédio e todo mundo vendo e ele já ficando roxo, preto… Aí chegamos nesse prédio da cirurgia, que tinha UTI também, em que estava disponível leito e ele estava já preto. E tínhamos que pegar o elevador porque não tinha muita alternativa para subir, e ele muito ruim. Então estávamos lá no elevador eu, duas médicas e uma criança preta, gritando desesperada: “Meu filho vai morrer! Eu quero meu filho”, "mãezinha calma, você está assustando a gente”. E eles estavam desesperados porque foi uma negligência, porque não estavam acompanhando o batimento do bebe, a saturação, nada. E eu sempre fui bem informada, sempre procurei me informar bastante. Então elas ficaram nesse desespero, porque até então não sabíamos que tinha sido só uma apneia, podia ter sido uma parada cardíaca, tudo, mas não sabíamos do que se tratava. Aí chegamos lá, entraram com ele para UTI, tiraram todas as mães do quarto: “Sai todo mundo”, e colocaram ele lá… Tinha só um vidrinho dessa porta, onde eu estava, do lado de fora esperando, e eu via muita enfermeira em cima, muito médico em cima, porque eles estavam aspirando o neném, acho que por causa do líquido que foi injetado; estavam aspirando para ele voltar. Aí ela falou: “Ele já voltou, foi uma apneia, não foi parada. Fica calma, ele já está bem. Em dez minutos você já pode ver o bebe”. Eu ficava contando, aí dava dez minutos e eu não podia ainda, eu começava a bater na porta: “Quero ver meu filho, porque tá todo mundo vendo. Porque eu não posso ver?” e aquele desespero… E eles colocaram uma maca na porta: “A senhora não pode entrar, você precisa se acalmar. Dá um tempo para gente. Calma, vai ficar tudo bem.” E eu falei: “Porque se ele está bem, porque não posso ver? Está todo mundo em cima, eu não consigo olhar ele”. E eles colocaram essa marca lá na porta, para eu não passar, ficar lá segurando. Depois de uma hora, uma hora e meia consegui ver ele; já estava respirando, estava bem, já tinha voltado a saturação, tudo normal. Aí ela falou… até então, quando vinha falar comigo tinha que esperar, surgiu uma vaga para cirurgia… no caso tinha que fazer uma colostomia. Ai não tinha essa vaga, aí depois que aconteceu tudo isso eu falei: “Vocês querem matar meu filho! Você é louca.” Aí começou aquele debate, e ela: "Já conseguimos a cirurgia para ele daqui a pouco. Ele vai para já fazermos, abrir o intestino para fora”. Eu falei: “De jeito nenhum, meu filho quase acabou de morrer, vocês não vão levar ele para cirurgia agora. Não vou deixar”. Aí aconteceu um acidente com alguém, um adulto, e precisou da sala dele, então conseguimos adiar, que seria três da tarde, ele acabou indo para cirurgia às onze da noite; e isso ele tinha quatro dias de vida só, nascido de oito meses. Então ele foi para cirurgia ainda esse dia, à noite. Era uma cirurgia de umas quatro horas e eu fiquei aguardando quatro horas próximo do centro cirúrgico para ele sair e ir para UTI; então foi tudo um sufoco, tudo alarmante, foi aquele “Bem-vindo” da maternidade, para deixar você alerta. Eu falei: “Meu Deus, que boas-vindas”. Ele fez a cirurgia, aí ficamos lá na UTI mais uns dois, três dias. Muita medicação. Aí colocaram o intestino para fora, que ele fazia o cocô pela barriguinha e eu ficava lá com ele e reparava como elas faziam o curativo, direitinho, porque eu sei que tinha que usar a bolsinha, mas eu não gosto da bolsinha. Então depois acabamos tendo alta para pediatria, que era uma UTI também, mas era mais leve; não precisava tanto de… porque ficava no tubo, então já tinha tirado tudo, já tinha entubado ele. E então fomos para pediatria, mais calminho o clima. E aí também já foi outra luta de Franciele, porque o cuidado do pós-cirúrgico das enfermeiras é um, da pediatria é outro. Elas não sabiam bem lidar com a questão do curativo, não sabia como tinha que fazer o banho, nada. Então como tinha observado tudo lá, não deixava ninguém dar banho, ninguém fazer curativo. Eu fazia tudo e aí era uma briga (risos), porque nosso quarto era de frente para chefe da enfermagem e lá também funciona a faculdade dos universitários; e ele bebezinho, tinha que pegar a temperatura e aí vinham o professor e os alunos para olhar. Ai queria ver o curativo; uma vez eu cedi, duas também… Aí na terceira vez eu falei: “Olha aqui, meu filho não é nenhuma cobaia não. Não quero ninguém aqui quando eu não estiver, não quero professor, não quero aluno, não quero o dono do hospital. Não está vendo que ele é um neném, que precisa se recuperar? O menino está dormindo, e tem que abrir fralda para mostrar curativo, mostrar ponto… Não quero que faça isso. Eu quero que ele se recupere e não quero ninguém aqui no quarto”.
"Não senhora, está tudo bem, não vamos mais incomodar”. “Porque quando eu não estiver aqui, eu não quero ninguém e tem só os horários da medicação, eu só autorizo a enfermeira a chegar no leito dele na hora da medicação. Não quero ninguém me incomodando”. Aquela briga lá e tudo bem, consegui que ninguém fosse mais importunar a gente e também era esse debate, por conta do curativo. Porque eu vi que elas não sabiam cuidar e nem dar banho, porque não era tão comum a situação de colostomia por lá. Eu falava: "Não pode ficar malhando, ficar aberto”. Então eu montei um método de curativo, de troca e eu lembro que tínhamos ganhado as fraldas do chá de bebe e tivemos que trocar tudo. Eu fui para grupos de mães no Facebook, falando a situação, para gente trocar as fraldas por fraldas maiores, porque ficava em cima do umbigo e precisávamos de uma fralda que cobrisse e que ficasse bem presinha para não dar atrito na colostomia, porque era muito sensível. Não doía, mas sangrava. Aí no hospital eu fui criando esse método de curativo, vaselina, cotonete, tudo eu. Aí elas falavam: “A gente vai conversar com a cirurgiã, porque não deixa as enfermeiras cuidarem do seu neném”. E eu falei: “Pode conversar com a cirurgiã. Eu quero que chame, agora eu faço questão”. Chamou lá e ele: “O que aconteceu?” e eu falei: "Não sabem cuidar do neném. Não sabem cuidar, não sabem limpar o curativo, não sabem fazer a troca, não sabem dar o banho, não querem que faça. Eu quero que preparem o banho, e eu dou, fiquem só para segurar a cabeça, porque estão fazendo tudo errado”. Aí eles: “Mas se infeccionar…”. E eu: “Se infeccionar onde que eu assino? Porque vai infeccionar do jeito que elas estão cuidando, do meu jeito não”. Era aquela briga e ficou assim: “Então está bom. A mãe cuida e vocês auxiliam ela, vê como ela montou o banho dele”. Aí montei o banho dele, fiz um cronograma; tenho esse vídeo fazendo os curativos, como montava, o passo-a-passo que eu elaborei ali, para cuidar dele. A chefe da enfermagem falava: “Porque é uma enfermeira para cinco, seis pacientes”, aí eu falava: "Não sei quantas enfermeiras são, eu só sei que só tenho um filho. O problema com sua equipe é seu, meu filho eu quero bem cuidado”. Então a gente ficou nessa rixa lá. Ela não me suportava, mas deu tudo certo. Consegue cuidar dele no hospital, montar um curativo, um cronograma de cuidados com eles. Não quis usar a bolsinha de colostomia, nada do tipo, porque a higiene era a cada dois dias, então achava muito anti-higiênico. Então toda troca era soro, cotonete, gaze, vaselina para limpar. Se ele fizesse cocô agora, dez minutos depois era todo esse processo de novo. Acho que só fechou onze meses depois. Então foi essa rotina de troca, cuidado, ambiente para ir, porque era uma incisão aberta, cirúrgica, então contaminação, todo esse cuidado de higiene. Eu lembro que eu fui para casa bem surtada; porque ficou um trauma, da respiração ficou um trauma. A noite ficava segurando inalado para estimular a respiração. Foram uns dois meses assim nesse negócio. Uma amiga minha até falava: “Amiga você é louca”. Porque caia a fralda no chão, eu falava: "Está infectada, não pode, tem que lavar”. Só porque caiu a fralda, ela podia estar limpa. Então tinha que lavar a fralda toda de novo, pegar outra fralda limpa… Ficou esse clima de hospital dois meses em casa, esse surto, não dormia, olhava se o neném estava respirando… e ficamos com essa rotina de curativo também, por uns onze meses.
P/1- Ele saiu do hospital logo após essa cirurgia, ou ____________ foram para casa?
R- Não, acho que fomos para casa cerca de uns doze dias depois que ele nasceu. Além dos quatro dias de vida da maternidade, desse exame que ele passou mal, acho que já foram mais uns dez, doze dias lá internado, porque teve questão de ver como ele ia se alimentar, o leite, se o intestino ia aceitar muito bem. Então fica em jejum alguns dias, uns três, quatro dias a criança e aí também tem que militar, que tem que ser mulher também nisso, porque também planejei para amamentação e aí quando ele começou, tinham umas bombinhas de dar alimento por sonda e ele precisava muito de glicose, para se manter acordado, e elas queriam colocar no leite de fórmula; chegou a colocar uma vez, duas, ai falei: “O que vai nesse leite de fórmula, que não pode no meu leite?” Porque até então eu descia o banco de leite e estava tirando o leite todos os dias para ele, caso fosse precisar, se não pudesse mamar o peito, tinha leite reservado lá e se não fosse usar, iremos doar para outras crianças do berçário. Então eu ia e ela: “Não, porque você não sabe, porque é prescrição médica". Eu falei: "Prescrição médica? Você acha que eu não sei desligar isso aqui? Eu já estou aqui há vários dias, eu sei desligar isso”. Aí ela ligava e eu falava: “Eu vou desligar, ele não vai tomar. Eu quero que ele tome o meu leite”. Ela: “Mas senhora…”, e eu falei: “Então vamos ver quem está certo: quem manda aqui é a chefe de enfermagem ou a mãe do paciente”. Ai eu desci no banco de leite materno, cheguei lá desesperada: “Eles querem matar meu filho! Porque estou falando que não pode dar e estão dando”. Já tinha dado diarreia, já tinha dado até diarreia nessa primeira ingestão dele. Daí fui à equipe do banco de leite e então: "Não, vocês estão loucos? Se a mãe está tirando leite, se é só glicose, vocês podem colocar no leite materno dela sem problema nenhum. É o que a mãe autorizar”. E aí conseguimos e ele começou a tomar a glicose no meu leite, passou bem e aí ficou esse clima. Aí falei: “Agora vamos ver quem estava com a razão, se não era eu, a mãe. Porque me fala onde assino que ele vai morrer se tomar o meu leite, ao invés desse que você está dando”. E as enfermeiras falavam: "Quantos anos você tem?”. Eu falei para ela: “Tenho dezoito”. Ela: “Meu Deus”. Acho que tinha dezoito, dezenove anos. Aí ela: “Meu Deus, você dá de dez nas mães daqui, porque ninguém fala nada, é tudo do jeito que eles querem”. Prescrição também de remédio, eu falava: "Não, porque eu não quero assim, está errado, quero saber como funciona”, era essa insistência. Então tem muito vínculo com a maternidade, me acolheu mesmo com os traumas, me acolheu muito. A questão do banco de leite materno ficou muito marcada, eu continuei doando. Toda vez que ia para consulta, passava ali no banco de leite, colhia exame, continuei doando por mais de uma ano; e meu filho agora está com três anos e ainda mama. Ainda mama até hoje.
P/1- E como foi para você lidar com essa expectativa de um parto e ter que lidar com a realidade? Se tornar mãe e a real maternidade?
R- Foi um susto, porque eu me senti muito vulnerável. Não tenho controle de nada, de tempo… Fiquei também depressiva, por acho que uns dois anos, e é muito mal mesmo. Também tivemos alguns problemas no relacionamento, logo em seguida do nascimento, acho que na mesma semana, que me machucou muito também, então foi muito trauma junto, veio tudo ao mesmo tempo, e aí ficou isso, eu ficava nesse desespero, porque por mais que, para medicina já sabem como lidar o passo-a-passo, mas você, mãe, está sabendo tudo novo, é tudo uma novidade. Então essa angústia de quando seria a cirurgia, de quando que fecharia, se ia dar certo na primeira… porque tem várias tentativas; se eles fechassem e ele não fizesse coco, não aceitasse, teria que abrir novamente e poderia se prolongar por um, dois, três anos, mais idade. Então essa angústia me derrubou muito mesmo. Eu lembro que tive um dia com a depressão assim, mal. Eu levantava só para cuidar dele, era assim: a troca dele, banho dele, comida dele… Me larguei muito, eu ficava muito mal deitada na cama, sem energia para nada, muito derrubada… foi muito tempo assim. Então me esforcei muito para sair desse quadro depressivo em que eu entrei. Eu lembro muito do dia que minha mãe foi a noite, porque minha mãe acabou de arrumar a casa, porque até aquele cuidado todo foi acabando de… eu fiquei tão assim, sem energia, sem força, que eu não queria fazer nada. Então só levantava para ir no banho, para dar de mamar, para comer, porque eu tinha que amamentar e eu lembro que um dia eu estava muito mal, porque teve também do relacionamento, que eu tinha tido uns conflitos que foram um baque também para mim. A minha mãe foi lá em casa, limpou, fez comida para mim e no dia seguinte ela chegou do trabalho e falou: “Você comeu o bife que eu deixei na geladeira?”. Ai que me dei conta que eu não tinha saído do quarto e eu não tinha comido. Não tinha comido, não tinha bebido, não tinha feito nada, porque estava lá, do jeito que ela deixou. Então vi que estava muito mal, estava muito profundo mesmo e virava muito em torno disso: de como seria a cirurgia, eram as questões dos relacionamentos também, que tinha tido uma crise bem nesses dois meses, ai ficou muito mal minha cabeça e demorou muito para me recuperar. Foi depois que ele fez a cirurgia de fechar, que eu pude focar um pouco nesse problema e procurar alternativas para mim. Lembro que cheguei a pedir encaminhamento para o psicólogo, mas marcaram a reunião em grupo primeiro; então eu não gostei, porque eu chorava muito, aí tem as outras histórias das pessoas do grupo e você fica sentindo “Meu Deus, como sou dramática. A pessoa está sofrendo tanto mais que eu”. Aí foi muito horrível em grupo e aí não fui mais e recorri a um só para mim. Aí fui tentando, me arrastando sozinha a lidar, porque teve também alteração de questão de auto-estima, como passei a me ver… foi um baque enorme, mas essa questão do psicológico nem foi tanto pela maternidade, foi por questões do relacionamento mesmo que me feriu, me machucou, então fiquei nessa casinha por uns dois anos, me reconstruindo como mulher, voltando a me enxergar, saindo na rua… Porque até então era assim: para consulta que eu ia. Quando fui à igreja, ou então na casa da minha mãe, eu levava o neném para tomar sol, porque não me sentia bem com a minha imagem. Não me sentia bonita, não queria ir à rua, não queria ver ninguém. Foi muito tenso, muito mesmo, de pensar em suicídio, muitas coisas. Então me apegava muito ao neném, a amamentação. Então acho que ele foi a minha fonte de energia, de vida, para sair dessa situação em que me coloquei ali. Fiquei muito tempo mal mesmo.
P/1- Pelo que você estava me contando, parece que foi um período de muita doação, de muita batalha interna para tentar sair. Como que foi esse click, que você falou: “Agora preciso cuidar de mim, mas também do meu filho que depende de mim. Mas agora estou conseguindo me olhar”. Quando que deu esse click?
R- Quando eu comecei com as vendas, porque daí ele fez a cirurgia e eu falei: “Meu Deus, agora vou conseguir sair, não só para ele”. Porque eu não queria também sair, porque não podia tanto, porque tinha medo do curativo, do ambiente, de infecção. Então era muito um quadrado nosso, meu e dele. Não podia trabalhar nem se quisesse, porque mesmo eu tinha planejado dois anos para cuidar dele... se eu quisesse mudar de ideia, também não podia. Aí eu fiquei nesse ciclo até ele fazer a cirurgia, fechar e dar certo, que foram onze meses depois. Aí comecei a falar: “Tenho que fazer alguma coisa”, e aí comecei a vender o sex shop, aí tinha que sair, mesmo não querendo, nos dias horríveis, se tinha cliente… porque tenho na comunidade, vendo por WhatsApp… então se tinha cliente na rua do mercado, tinha que ir, né? Então eu ia indo; às vezes eu estava horrível, não queria ir de jeito nenhum, mas eu ia, porque falava: "tenho que trabalhar, tenho que ver, tenho que existir”. Era de mim a força. E ele não ficava com ninguém, por conta dos cuidados, nem banho, nem nada, era tudo eu quem dava. Então não deixava com ninguém, eram os carinhos compartilhados da família mesmo… Então esse click acho que foi no primeiro dia que eu saí sem o neném, e em foi o dia inteiro, foi uma tarde. Eu acho que ele estava com um ano e quatro meses, eu ia na igreja e coloquei ele em uma cuidadora; ela cuidava de outras crianças, a formação dela era de cuidadora; e ele queria muito brincar, porque eu queria ficar com ele exclusivo para mim dois anos, mas ele já estava evoluindo, queria brincar, criança. E aí a gente dormia até tarde, eu e ele, então meio do dia a gente acordava, fazia aquela rotina de introdução alimentar, até meio-dia, uma hora ele queria. Passou daí eu tinha que ir pra casa da minha mãe e ficar com ele e com as crianças na rua, brincando, até a hora dele dormir. Então falei: "Ele quer criança, ele quer brincar e não vai dar para trabalhar, porque tenho que ficar o dia inteiro com ele fora”. Então fiquei uma ou duas semanas nessa rotina: dava meio-dia, ia pra rua, não tinha hora para voltar, porque ele queria muito brincar, descarregar a energia dele; então acabei colocando ele nessa cuidadora, que era na rua acima de casa. Aí eu fui, deixei ele o primeiro dia, então foi aí porque falei: “Nossa amiga, é muito estranho andar sem criança no colo”. Estava andando toda desconsertava, não sabia nem como andava. E foram só quatro, cinco horas que eu pagava para ele ficar lá todo dia. Eu falava: “Eu fico com ele e tal”, porque não queria largar de vez e a tarde o trabalho, e procurava o que fazer. Deixava ele e ia limpar a casa, postava as coisas nos status, os produtos, ia atender cliente e fui saindo… fui aos poucos caminhando assim. Muito problema de auto-estima, muito mesmo, estava muito carregada, mas aí fui tratando. Disse que não queria, que era um ódio, era um choro, aquela tristeza profunda que você não sabia de onde vinha e dai do nada, estava na casa da cliente. Nem sabia que estava em uma crise de choro, ansiedade, mas estava lá. Sempre fui muito simpática, alegrinha para falar, então nunca deixei de transbordar, transmitir, transpassar isso. Então foi uma luta constante e acho que esse ano, principalmente, que eu me sinto bem comigo, com a minha vida, com minha aparência, cuidei de mim, comecei a fazer caminhada, agora toda noite vou caminhar… E me permito mais sair, não ficar mais na jaulinha. Ainda falei com minha amiga: “Você está fazendo terapia? Me passa o contato da moça, porque agora me sinto pronta para compartilhar”. Porque eu tinha muito um bloqueio de procurar ajuda, porque falava assim: "Não quero me sentir influenciada”, ou alguém falando assim: “Tapa é tal”, para me recuperar; porque isso - pensava eu - que se eu fosse em um psicólogo e ele me ajudasse, quando eu não tivesse ele, eu não ia saber andar sozinha, eu ia voltar de novo, ia cair em depressão de novo, então eu não quis. Depois da reunião em grupo, eu também não quis mais individual, porque eu coloquei isso: “A minha meta sou eu me ajudar, eu ficar bem. Eu preciso sair desse poço sozinha
o máximo que eu conseguir, até onde eu conseguir”. Aí esse mês eu falei para ela isso: “Me passa o contato”. E até essa questão de como eu me vejo… identidade com quem você vai compartilhar também é muito importante. Aí ela passou o contato, estava sem foto, porque tem que adicionar a pessoa. Eu falei assim: “Me manda a foto e o nome, porque tenho que me identificar com o nome e a pessoa antes de chamar”. Aí ela mandou; o nome dela é Vera (risos). “E eu vou te mandar a foto dela” e ela mandou e eu: “Uau, meu Deus do céu, um dos meus maiores sonhos”, porque era uma mulher negra. E eu: “Uma psicóloga negra, meu Deus”. Fiquei super nostálgica. E esse mês quero marcar minha primeira consulta, para colocar, compartilhar as dores ainda, que podem ter ficado, porque sempre vem e a gente não espera. Mas me sinto outra pessoa hoje e acabou que essa dor foi compartilhada com meus amigos, clientes, porque nunca quis guardar para mim. Falei: "Não vou guardar para mim, porque isso vai me corroer inteira”. Então colocava para fora, dividia… Tanto que meus clientes todos acabam sendo um pouco amigos, porque aí o WhatsApp era pessoal, postava as coisas lá, então ficava aquela coisa vida pessoal e um pouco compartilhada; tanto que hoje nem consigo comprar; porque todo mundo quer saber da gente, do filho, compartilha… Ai compartilho maternidade, compartilho amamentação. Aí tem a semaninha assim: “Essa semana não estou no pique de divulgação profissional, então vamos compartilhar maternidade". Então fica esse vínculo com a cliente: "Você me ajudou muito com meu filho”. “Nossa, nem sabia (risos)”. Então muito bacana esse… elas sentem esse cuidado, essa coisa com elas, me tem muito como referência e isso é muito importante, isso me ajudou muito, porque eu tenho uma sensibilidade com mulheres; olhar a outra mulher, quebrar aquele pré-julgamento, aquele preconceito que a gente já tem, tudo pronto. Até mesmo no atendimento, na conversa com o cliente, profissional, eu sempre tento olhar o que a pessoa é por dentro; o que ela está precisando dentro dela; olhar além do que ele está mostrando, além de um atendimento simples… Ai gera muita amizade. Meu marido estava falando bem assim: “Quando ela estiver pronta, você tem que marcar uma festa no buffet, porque você fez o aniversário do nosso filho, mas acho que todas as suas clientes queriam participar'' (risos). Porque se sentem parte já, e é muito bacana. Então acho que isso, essa questão de sair, a primeira vez que larguei ele por umas horinhas e saí sem criança, andei muito desconsertada. Nunca me esqueço. Estava me sentindo quadrada na rua. Porque você passa e você vê: “Olha, você ainda é notável”. E as pessoas buzinando. “Olha meu Deus, ainda chama atenção”. Então foi bem marcante, então comecei a trabalhar isso.: auto-estima, aparência, desenvoltura… Então acho que esse momento, o click que eu tive foi aí.
P/1- Volta só um pouquinho, só para eu ouvir, porque não ouvi nada dessa última parte.
R-
Então, esse click veio nesse momento que larguei ele por algumas horas com a cuidadora e foi procurar o que fazer, eu nem tinha; fui procurar o que fazer, fui divulgar algum trabalho, ia na casa da minha amiga, ia com a cliente conversando, andando na rua, e eu falei: “Nossa, ainda sou notável. As pessoas ainda buzinam, ainda piscam… Ainda existe uma mulher além da mãe”, porque até então ficou só ali, uma Franciele mãe, sabe? Então tive que desconstruir também tudo isso, voltar. Além de ser mãe, além de cuidar dele, preciso cuidar de mim também.
P/1- E você comentou que começou a empreender ainda na gestação, você vendia doces, não é?
R- É, comecei a vender uns pudins na marmitinha.
P/1- E como foi esse momento? Porque você pensou em começar a vender e revender?
R- Estava em casa, falava: “Estou sem fazer nada e também preciso ajudar em casa”.Queria ajudar em casa o marido, então falei: “Vou fazer alguma coisa”. Aí fiz os pudins e falei: "Quero fazer algo que ninguém fez, que ninguém faz”, porque todo mundo estava vendendo bolo de pote, geladinho, eu falei: “Quero uma coisa que ninguém faz”. Só a minha família mesmo, que era todo mundo lá perto, já comprava todos os pudins.
Eu falei: “Gente, nem consigo novos clientes (risos) porque vocês compram os pudins todos, não dá nem para vender”. Todo mundo já passou por lá depois do trabalho para comer pudim. Todo mundo ia comer o pudim em casa mesmo.
P/1- E aí você teve essa pausa de mulher empreendedora para ser mãe, e quando você começou a se resgatar e perceber que existia uma mulher além de mãe, você voltou a empreender. Como foi esse momento e porque você foi entrando nesse ramo?
R- Então, a gente acabou mudando da casa em que morávamos. Na rua da minha mãe morávamos em uma casa de rua mesmo, de casa de chão, direto para o portão, direto para as pessoas. Ai eu falei: “Vou morar em um sobrado”, e era ali no terceiro andar, que é onde eu moro hoje, ainda. Quero me mudar para rua da minha mãe de novo e aí eu falei: "Não vai dar para vender pudim lá em cima, porque vai ter que tocar a campainha e o Vicente vai ter que dormir e vai acordar… Então o pudim está eliminado
dessa transição de casa, tanto que não lembro se foi na gestação mesmo, se foi bem nessa fase em que ele estava em casa com os curativos, em uma dessas duas fases era a fase do pudim. Eu falei: “Agora não vou mais poder vender pudim, porque não vou poder ficar lá tocando a campainha…" Não podia deixar de ir sozinha, porque então se fosse atender o portão lá embaixo, eu ia deixá-lo sozinho lá em cima. Ai fiquei sem fazer nada e daí eu estava vendo sobre sex shop; vi vídeos no Youtube, procurei no Brás: “O que você pode achar no Brás para vender” e ai vi uns vídeos de sex shop, as mulheres mostrando as lojas, o preço das coisas, e eu falei: “Caramba! Eu acho que dá para fazer isso”. E a minha amiga, a madrinha do meu filho, super apoiou. Ela falou: “É super a sua cara, porque você não tem vergonha de falar, você sabe falar com as pessoas, ninguém fica com vergonha perto de você”. E eu falei: “Amiga, será?” e aí fui viajar para conhecer a família do meu esposo, que são todos do Espirito Santo, capixaba; só moram ele e a mãe dele aqui em São Paulo. E aí fomos viajar em setembro, no final do ano, para conhecer o avô do meu filho, a avó… Eu falei: “Quando voltar de viagem, em janeiro já começo”. Já tinha feito meu pedido no fornecedor. Ai chegou e transformei 190 reais em seiscentos. Foi um primeiro investimento, de 190 reais.
P/1- E porque esses produtos? Foi por acaso ou você viu um significado para você, ainda mais retratando esse seu lado além de mãe?
R- Sim, eu acho que tem sim um significado. Porque eu lembro que dos problemas que tínhamos no relacionamento, logo depois dele nascer, acarretou muito isso, porque até na questão… no modo de se relacionar, eu não conseguia, eu travava porque a auto-estima trava você. Eu não conseguia me relacionar, ficaram uns dois meses assim, travada, a auto-estima abalada, não conseguia compartilhar, me abrir para o relacionamento. A gente foi trabalhando isso aos poucos; foi muito importante. Então falei: “É estranho que ninguém faz, ninguém dá muita atenção”. Aí eu via que ninguém tinha a mesma liberdade que eu tinha para conversar com a minha mãe; com minha mãe conversamos de tudo mesmo, assim, zerado, então falei: “Eu posso levar isso para alguém”; alguém poderia compartilhar comigo, no caso. Aí falei: “Vai ser o sex shop”. Ai comprei, fiz o primeiro pedido, deu retorno, invisto novamente e quando vi já estava funcionando, tinha os clientes no bairro. A amiga indica para outra amiga e foi indo, foi fluindo, mesmo quando ficava muito mal, falava assim: "Não quero mais, vou abandonar, é estressante”, aí falava: "Não posso, com quem eles vão compartilhar agora?” Então fica isso em mim: se você largar, não vai ter mais esse apoio; esse cliente não vai ter mais ninguém para conversar, para dividir, porque é mais que vender um produto, você acaba recebendo a história de casamento, é uma deficiência do casal, da pessoa, um trauma de infância, alguma coisa que está ali com ela por anos e ela tem que dividir com você, para você ajudá-la com produto, com… Algumas coisas são só psicológicas; já lidei muito com isso de: “O que você acha?”, eu falei: “Eu acho que é só seu psicológico", e era. Então você conversar, desconstruir alguma coisa que a pessoa nunca contou para ninguém. Então é muito mais do que a questão do dinheiro, do produto, de ter uma renda; eu acabei abraçando as histórias, ainda mais que é pelo bairro mesmo; eu vou até a casa da cliente, eu vou até o mercadinho onde a cliente trabalha… (risos). É esse contato direto, e eu falei para elas: “Eu vou para um espaço da minha amiga, ela tem um estúdio de beleza, estética, de procedimentos, sobrancelhas, essas coisas, eu vou vender lá e acho que vou ter um motoboy”. “Eu não quero, eu quero que você venha entregar minhas coisas aqui. Eu não vou lá porque você vem e a gente conversa e não vai ter isso. Não quero isso rápido, não vai ser legal”. Eu falei: "Não vale, tem que deixar eu crescer um pouquinho” (risos).
P/1- E quais foram seus maiores desafios como empreendedora?
R- Acho que é a questão do financeiro mesmo, porque não tinha tanto. Meu marido trabalhava mesmo para bancar as nossas dívidas, contas fixas e tal, então ele sempre me ajudava. Quando foram os 190 reais de investimento ele que deu também, falou assim: “Vai lá, investe”. Aí o dinheiro vinha e tinha que pagar alguma coisa, não dava para ficar reinvestindo sempre, mesmo que rendesse. Então era o maior desafio, ainda é, de falar: “Vou olhar para o negócio para ele crescer”, porque sempre tinha que vencer as contas do mês, as surpresas, tudo. Então todo mundo falava: “Você tem um potencial enorme, era para estar em outra largada”, eu falo: “Não, é tudo no tempo que tem que ser, um passo de cada vez”. Eu tento não trazer essa ansiedade para dentro e estou sempre estudando, faço os cursos de empreendedorismo, vou atrás de conhecimento. Gosto muito de marketing, as vizinhas falam: “Você devia fazer marketing, não sex shop. Você arrasa no marketing, nos produtos, você faz umas legendas que só você faz”. Elas falavam isso para mim e até para minha amiga que chegou a fazer legenda. Pagava para eu fazer as legendas para o Instagram dela. E aí eu falei: “É aqui que me identifico” e me fez muito bem e ficou assim. O desafio é esse: é ter o dinheiro para investir mesmo, meter as caras e fazer tudo… Mas eu falo para ela: ‘Calma, o momento atual não é o destino final, mesmo vivendo isso hoje, os projetos para amanhã são outros, são grandes. Não quer dizer que está estacionado, porque não está andando agora”. Então é um passinho de cada vez mesmo e o recurso vem. Estou aprendendo a administrar o que entra, o que sai, o dinheiro… Então na pandemia vi que dava para sustentar, porque o buffet em que meu marido trabalha teve que fechar, no começo do ano, por questões de falir mesmo. Ele fechava ou vendia, então ele vendeu para outro dono e meu marido acertou tudo bonitinho, questão de seguro e tal, e ficou recebendo até certo período; aí não pode pegar auxílio emergencial, porque tinha seguro também. Aí acabou o seguro dele e aí ficaram só eu, o auxílio e as vendas. Porque eu falava: "mesmo com o Auxílio Emergencial, ainda não supre tudo”. Então vendi sem parar. Acho que durante a pandemia foi quando eu mais vendi, mesmo sem querer vender. Eu lembro que na semana dos namorados, estava fazendo um curso com o Sebrae - que sempre fico fazendo os cursos dele -estava fazendo um curso de vídeo chamada, os horários marcadinhos de uma semana, não tinha planejado nada para o dia dos namorados, ai falei: “Estou no maior tédio, não planejei nada, não vai dar tempo”. Aí terminou o curso acho que na quinta-feira e falei: “Vou postar algumas coisas”, e assim, eu trabalhei em estoque, eu simplesmente… eu tenho um, quatro, cinco fornecedores próximos, que sei que posso ir rapidinho; e aí olho o que tem disponível neles e público, coloco a legenda, função do produto, público lá e se a cliente quiser eu vou e faço o pedido. Então nessa quinta-feira eu fui postando bastante coisa para o Dia dos Namorados, essa vibe que os clientes iam gostar mais e foi todo mundo pedindo. Tenho duas clientes, uma trabalha na emergência da polícia, no telefonema, e a outra em uma fábrica de brindes e elas só mandaram mensagem: “As meninas aqui do trabalho querem”. Ai mandou o pedido lá de quatrocentos reais, a outra também, aí o pessoal começou a responder nos status que também queria e aí, sem querer vender, em uma sexta para o sábado - o Dia dos Namorados era no domingo - aí vendeu acho que 1500 reais, dois mil reais e falei: “Meu Deus, não esperava. Gente vocês me surpreenderam". Porque nem conhecia as pessoas para quem estava vendendo; quando vi estava fazendo entrega acho que na Zona Leste, por causa das clientes do trabalho das meninas. Eu falei: “Esse negócio dá”. Aí fui nessa correria do Dia dos Namorados para entregar tudo até às oito horas do dia eu estava fazendo entrega. Fui na entrega, meu marido foi comigo também e a gente fez as entregas bonitinho, e aí veio isso, ele falou: “Você precisa focar no seu negócio, porque funciona, porque não é possível que as pessoas só precisem no Dia dos Namorados. Então você precisa insistir, focar mesmo”. Então trabalhei isso durante a pandemia, fui mais presente, mais ativa nos status e isso no WhatsApp, porque não vi ainda para o Instagram, porque lá eu quero estar com um espaço ok, e mostrar o produto e ter o produto. Tem a pagina lá, mas não movimento muito e acabou que todo mundo que conheço veio do WhatsApp. As visualizações lá a gente trabalha, ai duzentas, trezentas pessoas como clientes que veem, querem… Se dez não quiserem esse mês, tem mais dez que querem essa semana e ai faço minha renda na demanda. Semanalmente as vendas… Tem semana que nem trabalho e falo: "Tô cansada, preciso dessa semana pra mim”. Não posto nada e elas vem: “Mandei o seu número para minha amiga que vai querer tal coisa”. Aí falou: "Está bom, a agenda de pedidos está aberta” (risos). O fornecedor tem um catálogo, PDF, e eu gerei um link no Google Fotos deste catálogo e consigo compartilhar ele nos status. Aí compartilho, a pessoa consegue clicar no link, ver e pede por lá. Aí foi assim que eu falei: “Agora é hora de dar o gás e formalizar também”, porque até então não tinha formalizado, tinha muito medo. Esse mês entrei em contato com o contador para formalizar essa semana, na outra e para os pais da minha amiga também, que tem uma sala lá e ela falou: “Eu não aceito outras pessoas nessa sala a não ser você”. Aí falei: “Mas não tenho nenhum recurso”... E ela falou: “Pegue cem reais e faça cem virar duzentos. Só vou alugar pra você essa sala”. Aí ontem falei: Meu Deus, que ansiedade”, estava lá fazendo meus pedidos, encomendando canaletado e ai falei: “Nem acredito que está acontecendo. Finalmente”.
P/1- E você tem uma marca, você criou uma marca?
R- Agora, quando formos formalizar, quero ver se o nome está disponível. O meu Instagram chama Você.ID porque é a identidade de que estou atendendo, então coloquei Você.ID, porque é mais que o produto ou ramo específico, é sobre a identidade quem está adquirindo. Eu gosto de um atendimento personalizado, entender o que você precisa, indicar o melhor produto, às vezes você pensava que era vermelho e era azul. O nome é Você.ID, eu quero ver se consigo manter esse nome, comparar domínio. Vou fazer logo essa semana também, tudo bonitinho, porque acho que logo… a ansiedade, aquela borboleta no estômago, sabe?
P/1- E como é ser empreendedora na Zona Norte de São Paulo?
R- Eu me surpreendi bastante porque a gente tem um grupo que acaba se formando, por causa dos cursos com outras mulheres, e tem nosso grupo de bate-papo de várias revendedoras do ramo. Ai falo por elas… Me surpreendi muito e vi que era bacana, porque tem pessoas de várias realidades, diferentes no grupo, que trabalham com clientes de um padrão maior, melhor financeiramente, ou que trabalha de casa, ou que já tem um espaço… e eu falo: “Nossa, é que eu estou indo bem, porque eu atendo na periferia…". Então eu falei assim: “Eu estou indo bem, porque atendo na periferia e vi que estou indo tão bem quanto vocês”. E falaram assim: “Acho que na periferia, na comunidade ainda é melhor, porque as pessoas valorizam a experiência”. Porque nos custa até mesmo com os fornecedores, já fui conhecer fábrica, passar um dia com eles e eles falam muito isso: “vocês não vendem produto, vocês vendem experiência". Então as pessoas que tem uma vida limitada financeiramente, que não podem fazer grandes coisas, grandes projetos de viagem, elas valorizam pequenas realizações e aí que eles falam: “Vocês têm um contato direto com essas pessoas, com uma casa, com um ambiente, um casamento… E vocês vendem experiência. Por isso que funciona”. Eu falei: “Na comunidade funciona muito mais, porque as pessoas valorizam isso. Não tem todo dia, não é todo dia que pode, então no dia que pode ela vai e valorizar”. Então acho que funciona bem, mesmo que a pessoa tenha o perfil dela, a personalidade dela, eu acho que trabalhar bem isso de lidar com cliente. Quando trabalhava no restaurante, eu atendia cada um por vez, tinha contato direto: “Quero que coloque pimenta calabresa...”; então daí acho que já foi moldando. Sempre falei bastante, sempre fiz amizade muito fácil. Lembro que no restaurante fiz amizade com a senhorinha, ela tinha acho que 86 anos, ele ensinava piano e eu era louca para aprender piano. E acabei indo pra casa dessa cliente aprender piano algumas vezes com ela e aí descobri que ela tinha acho que alzheimer, então eu ia mais para ela, porque toda vez que íamos, era aquela mesma aula, eu falava assim: "Aprendi a tocar uma musica”. Eu ia por ela, toda quarta-feira ia para casa dela e aprendia o piano e ela contava a história do bairro, que nem conhecia, de onde a gente mora ali, do Tucuruvi… Ela ficava contando como que era, que ainda era época do mato… Foi uma experiência que agregou, então todo mundo fala: “Você tem uma facilidade para conversar, para se comunicar com as pessoas. Pode ser a mais vergonhosa, com você perde a timidez”. Então um elogio aqui, uma característica que alguém identifica lá, eu já estava falando: “Verdade, nem eu tinha percebido”. Aí agrega bastante.
P/1- E para você, qual que é o momento mais marcante nessa trajetória de mulher empreendedora?
R- Nossa (risos), eu acho que no dia que eu fui conhecer uma das fábricas de sex shop e nós passamos o dia inteiro lá com eles. Uma reunião com o dono, todo mundo que era revendedora, você comprava o seu ingresso e ia. E vi que o cuidado… porque tem muito preconceito: “Produto químico, que faz mal... “ e tá, a gente sempre ouve isso, ninguém leva informação de verdade sobre o produto, sobre composição, então lá, nesse dia, foi bem transformador porque você pode ver que não é uma coisa só que você vai vender e pronto; que você pode sim se sustentar, ter o seu negócio e que você pode confiar nas pessoas que fazem. Na visita ele até falava assim: “Aqui nada é terceirizado, nem a embalagem. Aqui é muito grande, a gente faz a embalagem aqui. O folder aqui, o panfleto, tudo é aqui”. Eles voam na Amazônia, em uns locais, em que o dono também é bioquímico, aí trazem, plantá lá, faz lá, então passa tudo lá dentro e me deu uma segurança maior na hora de falar sobre a composição, na hora de pesquisar sobre os componentes dos produtos. Então falei assim: “Então eu vi que virá, que tem chance de ser mais do que simplesmente um trabalho para pagar as contas, manter… que pode crescer”.
P/1- E como é o seu dia-a-dia hoje com a pandemia?
R- Eu já comecei a ir ao estúdio da minha amiga mesmo sem ter tudo lá. Então meu marido estava desempregado também, essa semana ele voltou, voltou no sábado a trabalhar; e aí eles ficaram com meu filho e eu vou para o estúdio às nove até às seis, com as minhas amigas, porque estamos entre amigas lá. Fico lá recepcionando as clientes dela, e quando uma está aguardando para fazer a sobrancelha, o lábio, os cílios, vou apresentar meu produto, vou conversando com ela e já faço minha venda mesmo sem ter tudo lá; o que tenho na minha sacolinha. Fico com a minha bolsinha, para cima e para baixo, e o que eu tenho ali no momento eu apresento, explico, troco contato e falo: "Te mando o catálogo para você ver outras coisas. Você pode encomendar e trazer o produto em um dia, dois”. E funciona, então já estou me programando para essa rotina de horário.
P/1- E o que você gosta de fazer nas suas horas de lazer?
R- Agora eu estou gostando de fazer as caminhadas. Nossa, está me fazendo muito bem porque nessa questão do psicológico, estava muito mal, ficava muito em casa, muito abalada. Assim, mal. Agora que consegui administrar um pouquinho o tempo, agora eu vou. Eu sofria muito de insônia, de passar a noite acordada; não consegui dormir nessa fase com meu filho, depois desse momento depressivo, muito para baixo. Não conseguia dormir, agora que tenho um tempo, eu… Fui na quarentena, comecei a caminhar e a gente tem aquele grupo “Quarentreino”, no Whatsapp, porque consegui levar mais pessoas para caminhada: cunhado, tio, tia, minha mãe, irmã, prima, todo mundo. Até minha irmã gestante está nas caminhadas, que ela está grávida. As clientes também começaram a postar que estão fazendo caminhada: “Você é demais, você inspira e já motivou todo mundo na quarentena a fazer caminhada. Não acredito”. Eu falei: “Nem tinha percebido”, porque todo mundo começou a postar mesmo que estava fazendo caminhada no mesmo local que estava indo, na rua deles, ou mesmo em casa fazendo exercício. E falei: "Que legal”, aí todos os dias, quando chego, vou fazer um pouco de caminhada. Ai eu levo o neném em um carrinho também para um lugar de brincar, para ele passear, enquanto o pessoal está caminhando, é muito bacanas. E agora eu gosto de fazer isso sempre que possível, estou em um curso online (risos)...
P/1- E sua relação com seu filho agora, está um pouco mais tranquila e ele está melhor? Como que está?
R- Sim, ele está melhor. Nós passamos para o acompanhamento com o cirurgião uma vez ao ano para acompanhar, ver como está direitinho. E nossa relação, minha e dele, todo mundo fala: “Vocês têm uma energia só de vocês”. Todo mundo olha e fala: “É um encanto”.
E ele é uma criança bem tranquila, porque muito colo, ele está no leite materno, livre demanda, foi até hoje, ainda é.
Ele está quase para deixar também. Me dei um presente também esse ano, que foi um kit para fazer um pingente de leite materno eu mesma. Eu achei e queria desde a gestação isso. Eu falava: "Não tenho dinheiro para comprar”. Eu falei: “Vou acabar esse, pode ser aquele lá e vou querer registrar esse momento e fazer esse pingente”. E comprei o kit e está ainda para fazer, e as clientes: "Está todo mundo esperando você fazer o seu pingente você mesma”, que é para registrar o aleitamento materno. E é muito vínculo, é uma conexão desde… porque assim, o sofrimento, ele me via, ele me olhava, parava de chorar. Então nós dois somos assim, não tem como descrever mesmo a amizade, o amor, um colo, ele compreende, sabe? Muito doce e é muito amado também, por todo mundo. Todo mundo ama, todo mundo é tio, tia. Foi arrumando parente aí, por causa da história dele e quem não sabia, no aniversário dele, foi 29 de agosto desse mês agora que passou, eu compartilhei lá também no meu status com as mães; porque tem muita mulher, muita mãe, e elas ficaram impressionadas: "Não acredito que já passaram por tudo isso”. Então a gente fez essa linha do tempo até o aniversário dele, que foi marcante também e eu fiquei muito feliz que entra o empreendedorismo, porque eu falei: “Não, esse ano eu quero fazer uma festa eu mesma, com meu dinheiro, para o meu filho, de aniversário”. Eu corri atrás, eu fiz o dinheiro acontecer e vou conseguir fazer a festa. Então estava lá, só entre família, e por conta do Coronavírus mesmo, e os vizinhos da minha mãe, e consegui fazer bonito… A vizinha até falou: “Mas cadê o pessoal?” Eu falei: "Não pode chamar, mas a festa está linda. Está todo mundo aqui (risos). Aqui da rua mesmo, nós mesmo aqui dessas casinhas”. Aí falei: “Era minha meta principal. Eu quero realizar isso, eu quero ver se consigo sustentar isso”. E aí consegui. Aí falei: “É onde eu tenho que estar, e onde tenho que regar, onde está a plantação já e é só buscar os frutos”.
P/1- E quais foram os maiores aprendizados que você tira dessa trajetória como mulher empreendedora?
R- É uma coisa que primeiro é você e você mesmo, porque eu estou lá no estúdio da minha amiga já e estava ouvindo áudio da minha prima e ela: “Tem uma vaga de emprego no celular tal e você pode mandar seu currículo", então as pessoas não enxergam você como empreendedor, que você já faz a sua renda, é invisível para os outros, mas é real para você; então a dificuldade maior é você enxergar a sua realidade; é não comparar sua realidade com a dos outros, porque como a gente está em empreendedorismo, você tem que seguir pessoas que seguem a mesma trajetória que você, que acreditam no empreendedorismo, mesmo que não seja o mesmo setor. Então tem muito isso no Instagram: você olhe e fale: “Fulano já avançou tanto e eu ainda estou aqui”. Então tem que controlar essa ansiedade, até nos veículos virtuais, para você não surtar, não pirar e falar: “Fulano já conseguiu, eu não”. Tem que saber administrar, digerir tudo, acreditar, tipo assim,“vou sempre" porque se você não acreditar em você, ninguém vai acreditar; ninguém vai vender por você, ninguém vai fazer por você e o ditado que sempre falo: a vergonha não enche barriga, não paga boleto; então tem que ser sem-vergonha mesmo, desconstruída mesmo, sem timidez, de braço aberto para viver tudo, pra estar nas experiências; um atendimento nunca é igual ao outro, cada pessoa é individual, singular. Então você tem que aprender a ouvir; eu aprendi a ouvir antes de falar; ouvir as pessoas, o que ela vai dizer. Porque você sabe de um produto, você sabe tudo daquele produto, então não adianta você falar: “Esse produto faz isso, age assim...”, você primeiro precisa ouvir qual a necessidade da pessoa, do que ela precisa, porque se for para vender um produto, você fala: “Esse é bom para isso, você leva…”. Então você aprende a ouvir, ter mais empatia, aprende a resolver também situações rapidamente, porque acontece ali e não estava programado, então você tem que se virar nos trinta. Na semana passada, eu lembro que fiz um pedido inteirinho e não consegui, porque era sexta-feira, pegar no fornecedor e todo mundo precisava no sábado. Então falei: “Meu deus, o que vou fazer?” e fiquei na rua indo em vários fornecedores, até conseguir recuperar todos os pedidos. Falei: “Gente, não vou conseguir pegar, mas precisava para amanhã”. Eu falei: “Me dá até o final da tarde”. Fiquei o dia inteiro e consegui pegar acho que de todo mundo e entregar. Falei: “É se vira nos trinta mesmo, vida real”. É ônibus, metrô e ainda falo: “O que seria de mim sem Google Maps?” (risos), porque não tem um lugar, vou no outro, nem conheço; vou, meto as caras, mas para conseguir cumprir o antedimento que eu falei que eu fazia, da forma que fazia, entregar realmente o que eu gosto, com a qualidade, com o atendimento bonitinho, do jeito que me traz alegria também.
P/1- E para você, o que é ser uma mulher empreendedora, negra, mãe…?
R- Principalmente a parte de mulher negra, eu digo assim, que me sinto muito realizada. A gente estava conversando no estúdio essa semana, com as meninas, sobre quando a gente vai… tem eu e Carol, nós somos negras também, mais retintas, e estávamos conversando exatamente isso: como é quando vamos entregar um currículo em um lugar e já sabemos que a pessoa já olhou para você e já falou: “Aqui não tem vez para você. Você já entregou e não é o seu local, não é o seu quadrado e não vamos te querer aqui”. Ela falou: "Também vivo isso”. Então isso encoraja mais ainda a ser uma mulher negra empreendedora para você olhar para as pessoas da mesma categoria que você, da mesma raça que você, da mesma cor, com sua mesma história, com a mesma falta de oportunidade que você tem e pensar assim: "Não quero mais procurar emprego. Eu quero dar emprego”. Porque uma coisa a escola não ensina a gente a empreender, ensina que a gente tem que se formar, cursar e procurar emprego em uma multinacional e ganhar super bem. Não ensina você a fazer seu dinheiro, então esse é um foco que tenho: atingir pessoas que estão no mesmo modo que eu. Porque como um grupo de mãe que atendo, as mulheres que atendo são sempre mães que não estão trabalhando, que não conseguiram mais voltar para o mercado de trabalho e até penso: “Quando tiver a loja, quero montar um esquema de sacoleira, para elas irem, venderem para a loja, para mim, e ganhar as porcentagens em cima”. Porque gerar emprego, oportunidade, porque é real essa questão de você não conseguir o emprego por causa a sua cor, do seu cabelo, ter que tirar a trança ou ter que largar um acessório, é muito real, e isso empodera mais ainda para você meter as caras e falar: “Eu consegui meu espaço, do meu jeito também, com a minha identidade e isso vai abranger outras pessoas que estão sendo descartadas, mesmo sem nem terem sido avaliadas”.
P/1- E quais valores pessoais definem sua trajetória como mulher empreendedora?
R- Das minhas características pessoais, eu acho que tem a questão de como já disse, da minha mãe que… ela faz a renda dela, ela faz do dia dela um momento dela, é uma mulher que passa o que passar, ela está fiel no objetivo dela. Tem a independência dela financeira; não se acomoda, não ficar esperando de ninguém, então ela ensinou isso para a gente, independente do que aconteça. Onde moramos tem muita questão de drogas, álcool, essas coisas, então minha mãe sempre conversou muito com a gente sobre isso, hoje mesmo, não temos esse problema na nossa casa, independente da conversa, de quanto você aconselha, de quanto você fala… Então esses valores que ela me passou, eu falou que eu sempre guardei: de você ter seu pé no chão, ter sua opinião formada sobre as coisas, se permitir se desconstruir para seu crescimento e nunca deixar que te induzam, que façam sua cabeça, ou que deixarem a verdade da pessoas ser maior que a sua. Então se você acredita em algo, você tem que ir atrás, com medo ou sem medo e não se permitir parar, porque não vai vir ninguém te ajudar; é você por você. E ela é assim, mesmo que eu morasse perto, ela nunca ficou: “A vou esperar que alguém me dê algo, que faça alguma coisa por mim”. Foi sempre ela e ela é assim, minha característica de mulher que tenho, negra, mãe, acolhedora, batalhadora, que não abaixa a cabeça, independente do problema, da situação. No outro dia ela está de pé e é uma mulher super carismática, pode sofrer do que for hoje, você não sabe o que ela passou, porque está sempre assim: acolhendo todo mundo, recepcionando. Minha mãe é muito receptiva, eu sou muito receptiva. Ela é muito simpática também, então muitas características minhas de fala, de comunicação, ser comunicativa, vem da minha mãe também. Essas bases vêm da minha mãe.
P/1- E o que a Zona Norte representa na sua vida?
R- Sempre foi o meu quadradinho, desde que eu cheguei aqui em São Paulo por ali. Tanto que eu falei ontem com as meninas, depois que eu comecei a trabalhar que eu conheci São Paulo, porque você tem que ir em um lugar tal, um fornecedor tal, resolver uma questão que apareceu, eu não sabia onde era; porque era só ali, Zona Norte, aquele quadradinho. E é bom, porque você começa a trabalhar, você começa a ver que na sua região também precisa, porque tudo que a gente precisa tem que ir na região do Centro, procurar outros locais. Não tem banco perto da sua casa, não tem serviços que prestem para você, decentes; sempre tem que ir muito longe. Pegar um ônibus para sacar um dinheiro, ou depositar alguma coisa. Então você começa a ver assim; “Porque não trazer pro meu bairro? Incentivar o meu amigo a empreender também. Abre um comércio, onde carrega um bilhete, onde faz algo, para ter também no seu bairro, parar só de olhar para os horizontes que já existem e fazer acontecer no seu também; a existir, a nascer, regar ali naquela região para plantar. Tem muitos projetos de dança no bairro, de rap, cursos de costureira, artesã… Então sempre vou, fui para o de auto-maquiagem também. “Quer alguma coisa?”, "Não quero fazer nada de maquiagem”, mas para estimular, apoiar, para divulgar. As minhas amigas falam: “Você devia fazer serviço de divulgação”, porque não posso ver alguém que eu já vou lá e divulgo. Elas mandam: “Você cobra para divulgar”, e eu: "Não, eu incentivo para a pessoa continuar também, para termos entre nós, entra Zona Norte um amigo empreendedor, alguém que está precisando também de… talvez esteja passando coisas piores pelo que passei e precisa dessa força”. Então carrego isso comigo, um crescimento não só meu, mas do bairro, regional; de trazer qualidade para periferia, onde a gente mora, para comunidade e isso é importante.
P/1- E quais são seus sonhos?
R- Ai meu Deus! (risos) Eu acho que o sonho, principalmente para quem veio da roça; a nossa casa na roça era própria, da família, e assim, antigamente as pessoas mais velhas, todo mundo já cresce com seu pedacinho de chão, de terra, todo mundo já tem sua casa; é muito mais fácil. Então meu sonho é esse: ter uma casa minha e dar uma casa para minha mãe. Uma meta inicial. E depois a empresa expandir, crescer; os objetivos profissionais também, que gira em torno. Uma coisa liga a outra e depende da outra.
P/1- E Franciele, você gostaria de falar alguma coisa que não tenha te instigado, ou contar alguma história? Falar alguma coisa?
R- Acho que não, acho que a única coisa a dizer é isso: se você acredita e sabe do seu potencial, vai atrás, aprimore, não estabilize com o que você sabe hoje; não fique estacionado no conhecimento que você teve hoje. Acho que sempre dá para conseguir mais. Quando você estiver no seu limite, quando estiver esgotado suas forças, sempre vem uma luz, sempre vem um momento que vai te motivar a mostrar: “Viu que valeu a pena, que você sofreu, que você passou”. Eu acho que vi semana passada, porque a minha amiga deu espaço, e eu fale: “Eu não acho essa canaletada, eu só acho no Centro, não consigo achar aqui perto, vai ser muito caro o frete”. E aí eu tinha feito isso, esse propósito, eu falei: “Eu vou à igreja todas as quartas, para agradecer”, aí a moça falou assim: “Você está esperando uma resposta há muito tempo. Deus tem para você hoje”. Ai sai desse culto, nesta quarta, e falei: "Não quero fazer janta, já está tarde. Vou pedir uma pizza”. Aí pedi a pizza e falei: "Tô aqui endividada e vou pedir pizza, só porque não quero cozinhar”. Aí pedi a pizza e tinha passado na rua dessa pizzaria umas semanas antes e uma moça estava montando a lojinha na garagem dela, também de lingerie, aí vi que ela tinha um canaletada e eu falei: “Onde você conseguiu? Eu estou procurando tanto”. Aí ela: “Era da loja do meu amigo, não sei onde vende”, mas o rapaz que entrega pizza estava por ali e ouviu eu perguntar, de algum lugar. Aí no dia que foi entregar a pizza, a primeira coisa que ele falou: “Foi você que perguntou do canaletado?”, aí eu: “Fui eu sim”. Aí ele falou: “Na Benjamin, perto de onde você vai ao salão tem. É novidade lá”. E eu falei: “Cara, vem do céu mesmo”, porque já estava desistindo. Eu falei: "Já cansei de procurar, não vou achar. Não acho quem faz, vou ter que mudar tudo que queria fazer”. E aí veio assim, pedi uma pizza e veio. Então quando você se cansar, esgotar, respire fundo, conte até dez, que vem o próximo gás que te falta. Faz o que você consegue com suas forças e o que você não conseguir, você vai conseguir depois. Conta hoje, faz hoje porque o maior desafio é a ansiedade, é comparar também o crescimento do outro com o seu. Então eu me dediquei muito nisso, não a comparei. “Ai meu deus, porque fulano tem três prateleiras e eu não coloquei nem os preguinhos”. Você sair dessa visão de se comparar, isso é uma pena enorme e que impede o crescimento, de você focar nas suas metas, objetivos, planos que você mesmo tem; então se você olha para sua horta, rega ali, é ali que vai crescer. Não é só na do outro apenas, você vai ver que no seu também cresce; se você não comparar, não deixar a ansiedade tomar conta, você pode cuidar da sua história ali; você mesmo do seu caderninho e descrever, seja de lápis, de canta, sua história sem medo, com confiança, com certeza, com pés no chão e a firmeza que está fazendo a coisa certa.
P/1- E o que significa para você, o que representa para você ter clientes mulheres que se conhecem, que sentem prazer, que começam a se sentir bonitas e que você acaba levando essas questões, essas descobertas para as mulheres. O que isso representa para você?
R- Representa muito, porque… você tinha questionado sobre aquele click que eu tive, que também existia, e foi bem aí com essa amiga do estúdio e uma outra amiga em comum, as três mães jovens. Eu tinha dezenove, vinte… acho que conheci elas com 21 anos e aí resgatei essa amizade da sexta série, também minha amiga que tem 21 anos e a dona do estúdio que eu vou também com 21 anos. As três mães, casadas, todas desanimadas. A do estúdio tinha começado a empreender na casa dela, começou eu como sex shop e motivei a minha amiga também a fazer a unha; comecei a fazer unha,
fibra de vidro. E aí foi um trabalho entre nós, uma aprovava a roupa da outra, aprovaram minhas lingeries para vender,uma fala: “Não tenho autoestima”. Eu falava: “Põe esse baby doll, está linda”. Aí falou assim: “Se você se sentir com autoestima baixa, faço sua sobrancelha”. A outra: “Vou fazer sua unha”. Então nós três começamos uma a cuidar da outra. Eu falo para elas: “Quando eu não venho para o estúdio, eu não me sinto ninguém, porque nossa, a energia de cuidado, de zelar uma para outra é essencial e aí que foi: “Eu tenho vergonha de colocar uma camisola, eu tenho vergonha de me arrumar”. E você fala: “tem que trabalhar isso”. Então foi uma trabalhando na outra. São empreendedoras de ramos diferentes, funções diferentes; uma de beleza, a outra cuidando de unha, a outra de vestido, sexo… e casou ali. Foi uma cuidando da outra que acabou se alastrando mesmo. Hoje as três têm uma autoestima boa; tem o ânimo de se arrumar, de se vestir e de compartilhar. E daí foi essa raiz, foi um click também, que dá para ajudar cada pontinho, cada categoria de um serviço, ajuda em alguma coisa. Não é só o seu que vai ajudar, não é o singular, é uma coisinha, um monte de coisinhas juntas que podem fazer bem para uma pessoa, em várias coisas que ela precisa; não só de uma unha, de uma sobrancelha, de uma camisola nova, de uma lingerie nova, mas tudo. Então dá para agrupar isso, então é isso que estamos levando para o estúdio; que vai ter sobrancelhas lá, vai ter unha, tem um closet vendendo roupa; e vai ter o sex shop.
Então acabamos unindo as coisas todas em um lugar só. As clientes ficam super animadas: “A gente vai sair daqui falida, que já vai ter tudo. Já vai ter a sobrancelha, a unha, a roupa de sair, e ainda o produtinho que é surpresa no final”. Eu falei: “Arrasou”. Porque é assim mesmo. Então casou, vamos todas para um espaço só e prestar vários serviços que cuidam exatamente disso, da
beleza, da autoestima, de estar bem com você mesma; e vai desconstruindo um pouco. Enquanto uma está esperando atendimento, você vai conversando com ela, esperando alguma coisa que a pessoa sai dali mais aliviada, sem aquele peso. Então significa muito ajudar outra mulher a se reconectar com ela. Por isso Você.ID, porque eu quero trazer a ideia de identidade de uma mulher empoderada, de uma mulher que se sente bonita, de uma mulher que não precisa de uma aprovação de um parceiro, ou da mãe, ou de alguém falar que ela está linda hoje, porque ela vai acordar, vai se olhar e vai ver que é linda para ela, por ela; e se conhecer também, que acho que é uma tabu enorme da pessoa se conhecer; o prazer com ela mesma, que não precisa mendigar de relacionamentos fracassados, abusivos, que isso também tratamos muito: de relacionamentos abusivos, destrutivos, situações que já estão em um nível muito arriscado, perigoso. Isso também é compartilhado no atendimento, a pessoa se sente à vontade para dividir para receber o conselho. Então envolve tudo mesmo. Isso que me faz bem: ver que minha amiga, com quem eu falava um ano atrás, estava em um relacionamento abusivo e hoje está em um relacionamento saudável e do jeito dela, feliz. Eu falo para ela: "Você não ia conseguir outro louco que nem você não. Porque são vocês dois mesmo” E a pessoa está feliz com aquilo, independente do que o que alguém vai dizer. Eu ensino pra ela que a verdade maior está dentro delas, então se precisar sair, sai; se precisar pedir socorro, pede; se precisar gritar por ajuda… seja para situações de relacionamento abusivo, seja para situações que estejam acontecendo dentro de você, independente do que for, você tem que procurar sua identidade. Acho que minha maior dificuldade foi ter que enxergar a minha identidade pessoal. Porque todo mundo falava assim: “Você é uma pessoa fantástica, fala muito bem, você podia fazer isso, tem uma qualidade que se encaixa aqui” e eu falava: “Por que só eu não vejo essas qualidades em mim?”. “Você é linda”, porque só eu não me acho linda? Porque não me acho bonita? Porque eu acho que não levo jeito para as coisas? Então cada passinho foi solucionando essas coisas, por isso esse nome do Você.ID é tudo, justifica tudo, porque falo assim: começou de sacoleira, sem estoque, sem nada; primeiro investimento foram 190 reais, mas eu falo assim: "Não tenho pressa também de estar com a loja grande", porque o que você aprende na rua, esse contato, é muito mais do que um balcão de caixa, são experiências extraordinárias. É outra intimidade, é outra visão de empreender, é uma realidade que você vai viver e vai sentir um pouco o que a pessoa vive; os medos também ela te passa; você consegue apaziguar uma situação. Porque atendo diversas idades, seja dos dezoito até mulheres de 59 anos, que precisavam às vezes assim: “Porque eu acho que tenho um problema, porque sinto dor na relação”. E eu: “É só seu psicológico. Vou te dar um suplemento, vou te indicar, mas você vai ver que é o seu psicológico”. E a pessoa vai voltar: “realmente, não vai precisar do suplemento, porque era meu psicológico mesmo”. Então atender, seja homem, mulher, independente da idade, você saber posicionar, direcionar as suas palavras, o modo com que você fala com cada pessoa já é visível no olhar; você vê e já sabe. É um diagnóstico que só a rua, só ser sacoleira, só fazer entrega no metrô, proporciona para você. Já aconteceu de arrumar clientes pelo Marketplace do Facebook, chegar lá e o cliente só falar libras. Ela é de muito longe; eu estou na Zona Norte, ela é de Mauá e ela fala libras e falo: “Preciso aprender libras, porque tenho que olhar para esse público de clientes. Eles também existem, eles também se relacionam, também namoram”. Então foi transformador. Falei: “Preciso ser diferenciado do que apenas um balcão que vai cobrar uma conta. Tem muita categoria para brilhar”. Então essa cliente de libras me motiva muito; é minha cliente até hoje. Eu lembro que fiz um sorteio e falei: “Meu deus, tanta gente perto e caiu bem longe”, ela que ganhou. E eu falei: “Eu sabia que ia ganhar. Quando você assinou, eu falei: ‘Ela que vai ganhar’”. Aí nós fomos, entreguei para ela no metrô e é assim, compra uma lingerie, vou no metrô, ela prova o conjunto, a parte de cima, a gente se entende no banheiro, se encontra na estação. E falo: “É isso que me motiva. Essas pessoas que não me conhecem, são de outro distrito, de outra cidade e acreditam em mim de fazer envios”. Até no atacado mesmo já fiz um envio para outros estados em que as pessoas acreditam. Eu falo: “Gente que não me conhece acredita, confia, então tenho que insistir”. Mas essa cliente de libras é um marco para mim e nos falamos até hoje. Ela se comunica e quando estou com ela não consigo exatamente falar em libras, então vamos no celular, eu escrevo, ela responde, a gente se comunica, dá tchau; mas ela é muito especial para mim. Muito mesmo.
P/1- Franciele, a gente já está encaminhando para o fim, mas antes eu queria saber o que você acha da proposta de mulheres empreendedoras serem convidadas a contarem suas histórias de vida através de um projeto de memória?
R- Eu acho muito importante, não só pela questão de ser uma mulher, não apenas negra, mas uma mulher que... nós mesmas estamos sendo abandonadas pelo mercado de trabalho, têm menos oportunidade, cada vez menos você consegue emprego, a mulher. Você tem a questão de um salário menor, dessa desigualdade salarial, de oportunidades também; de crescimento no cargo. Então você vir ver a história de outra pessoa que pareça com você, na aparência física ou que ela leve os mesmos princípios que você internamente, você ouvir a história dessa pessoa, e de falar: “Se ela conseguiu, se ela também veio do mesmo degrau que eu, ou que valorize as mesmas coisas que eu consegui; eu também consigo”. Porque eu assisto muito as entrevistas de outras mulheres; eu escuto, acompanho Instagrams também, e falo: “Não, essa pessoa não começou desse patamar, ela começou de baixo também. Ela não tinha dinheiro também, não tinha condição e nem conhecimento”. Ninguém nasce sabendo empreender. É uma conquista de área, é uma disposição que você tem que ter, porque a gente se formou anos e anos em uma salinha, para trabalhar para outras pessoas e a gente não tira duas horinhas para investir na gente, em conhecimento. Então ouvir histórias de pessoas que se formam mesmo sem condições, que estudaram um curso gratuito, que buscaram uma bolsa sobre empreendedorismo, sobre marketing, sobre finanças, que foram construindo, aprendem a calcular sozinhas, quebrando a cara, errando troco. É muito importante, é muito motivador. Eu tenho clientes que se inspiram muito em mim; minha história eu enviei por e-mail, através dessa cliente que também começou agora a vender bolo de pote na casa dela. Ela fala agora: “Você me inspira muito”, e ela tem duas crianças e ela fala: “Eu também quero fazer agora alguma coisa em casa mesmo”. E ela viu e falou: "Você fez o curso. Porque não manda sua historia?”. Eu falei: "Não estava sabendo”. Me enviou o formulário e eu preenchi, então eu fiquei muito feliz esse dia porque falei: “Mesmo eu aqui, a pessoa sabe que sou eu, minha característica que envolve”. Então além do produto, as pessoas sabem de mim; da minha personalidade, o que eu defendo, das causas; porque sabem: “Vi que era uma causa tal, debate sobre tal, porque você não vai? Você pode?” Então eu falei assim: “As pessoas lembram de mim”. Então eu passei mais do que um produto, porque não conhecia antes; não era amiga, não era nada, foi em um relacionamento de clientes. Então é importante. E eu no meu WhatsApp eu vendo sex shop, a outra vende bolo, a outra vende roupa, uma calça. Eu falo: “Agora todo mundo vende para todo mundo”. Porque vai um motivando o outro, compartilho minhas apostilas sempre com as minhas amigas. “Eu quero vender, mas não sei calcular. Me ensina”, vou atrás, ajudo, levo minha apostila, faz o curso sozinha em casa, tem a revista do dissertativo, vê uma vídeo aula. Então é muito importante que a gente apareça, dê as caras, para ver se essa pessoa que mora na periferia, ou mesmo você que mora em um bairro melhor, mas que não tem recurso; que não tem oportunidade, pode ser você contando sua história amanhã. Então se ver do outro lado da telinha também é muito importante. Uma imagem de uma pessoa que venceu. Coisas menores ou maiores que você, motiva, dá um gás enorme. E eu tenho muitas inspirações de olhar e ver que eu falei: “Eu também posso. Aquela pessoa começou com cinquenta reais e eu com 190. Então já ganhei. Já tenho um privilégio ai”. Eu ouço as histórias, tiro para mim, pego esse momento para me motivar. É muito importante se inspirar em alguém. Eu me inspiro muito e sigo muito a moça da Francisca Joias, que começou com cinquenta reais vendendo bijuteria e hoje tem a marca de joias dela. E tem os cursos motivacionais dela, ensina o que já aprendeu. Então a gente, sim, é capaz de aprender do zero, começar do zero e chegar em um patamar que passamos ensinar também e manter o que já aprendemos e se reinventar. A pandemia trouxe muito isso, tivemos que nos reinventar em tudo. Então você é capaz de fazer acontecer em um momento assim: de surpresas, que você não tinha nem como sair da sua casa, nem como ter contato com as pessoas; você conseguir se manter, reinventar um negócio que nem existe físico, de um estoque que você nem tem de produtos. Então é uma realidade possível e que mais mulheres, mais pessoas venham empreender, venham acreditar no potencial, no temperinho dela ali, seja um bolo de pote, se for uma unha, o que for, porque é assim que as mulheres estão mudando de vida, conseguindo independência financeira, sair de relacionamento abusivo, renda para família também. Não só mães, mas mulheres solteiras também. Então acho que a área de empreendedor e uma área que todo mundo deveria ir, porque abrange sim e consegue. Se você achar aquilo que é da sua identidade, que goste de fazer, é algo que é por amor, não por sobrevivência apenas, você consegue adaptar, diluir melhor os conhecimentos, absorver mais e ir se aprimorando.
P/1- E o que você achou de ter participado dessa entrevista, que é mais uma contação de história. Como foi para você?
R- Foi maravilhoso (risos). Quando fiquei sabendo, a semana ficou assim, vibrando. Falei: "meu deus, nem estou acreditando”. Eu nem lembrava, eu fiquei tentando trazer a memória quando escrevi, o que eu escrevi e eu falei: “Meu pai”. Aí entrei em contato com o Maurício e ele falou: “É do “1000 Mulheres” que você fez”, e eu: “Nem lembrava”. Tenho um certificado e acabei fazendo o mesmo conteúdo no curso online também, porque estava disponível na quarentena, online, uma versão do que a gente estudou no curso, estava fazendo também. Falei: “Nossa, não lembro”. Aí lembrei que foi esse formulário que minha amiga me enviou. Falei: “Como são as coisas, como o mundo é pequeno”. E em um momento bem marcante, que ontem mesmo estava aqui. “Vou dormir cedo, amanhã tem a entrevista. E ontem fiz os pedidos, que a promoção é hoje, do fornecedor”. Então ontem estava fazendo os pedidos para o estoque da sala do estúdio, aí foram dois acontecimentos importantes no mesmo dia praticamente, por questão de horas. Aí falei: “Foi muito no momento certo”. Então é isso. A entrevista me deixou muito mais alegre, mais motivada para acreditar que o espaço vai dar certo, que tenho que continuar, persistir e que é do pouquinho que o muito vem. Estou sem palavras, porque é uma alegria imensa e as meninas todas ansiosas: “Onde você vai?”, “Ah não, só vou contar quando der certo. Quando acabar eu conto”. Ai tirei foto hoje, toda feliz e elas: “Estou ansiosa para saber o que você foi fazer”. Então vai ser muito bacana poder compartilhar: “Fui chamada para um projeto de pessoas que leram minha história, que acreditaram também, além delas. E que estou compartilhando hoje, porque amanhã podem ser elas também”. É marcante demais para mim e vai ficar como mais um marco na minha história.
P/1- Franciele foi um prazer, um privilégio enorme ouvir sua história, mesmo que de longe. Normalmente a gente faz pertinho, todo mundo presente.Recolher