Eu vivia no meio da molecada e tinha virado o menino mais terrível de Santo Amaro. A gente ia caçar passarinho, a gente fazia todas as coisas, jogava bola, era um grupinho de moleques, podia ser os de Jorge Amado. Meu pai me pegou um dia e disse: “Você não vai virar vagabundo! Você vai tomar ...Continuar leitura
Eu vivia no meio da molecada e tinha virado o menino mais terrível de Santo Amaro. A gente ia caçar passarinho, a gente fazia todas as coisas, jogava bola, era um grupinho de moleques, podia ser os de Jorge Amado. Meu pai me pegou um dia e disse: “Você não vai virar vagabundo! Você vai tomar jeito\\\" então me botou numa oficina, numa oficina de marcenaria. O meu pai era ourives que é uma tradição muito antiga, em Salvador era uma tradição muito importante. Ele era sensível por lidar com ouro, pedra preciosa, mas tinha uma coisa bruta também de derreter o ouro no carvão...Meu pai era uma espécie de ourives que consertava relógios, fazia anéis até que no final ele tinha uma clientela muito grande de ciganos.
O Caetano Veloso que foi meu colega de classe ele gostava de pintar também, ele sempre diz que foi ele que me ensinou a pintar. E eu sempre digo que fui eu que o ensinei a cantar. Caetano pintava as paredes, tinha muito talento. Nós éramos muito colegas, porque eu era a única pessoa que entrava no quarto de Caetano, pra acordá-lo, porque até hoje, é um sujeito que acorda quatro horas da tarde. Então, eu o acordava, a gente ia pro ginásio, pintávamos, era uma amizade que tinha em Santo Amaro. Até hoje em Santo Amaro eu não sou conhecido como Emanoel Araújo, mas como filho de Vital. Santo Amaro fica no fundo da Bahia de todos os Santos, né? Lá tinha muito capoeirista muito importante, aquele Besouro foi um famoso capoeirista, tinha Gato, essa coisa popular negra, o bonde puxado a burro, que era Popó com maculelê, que eram pessoas batendo uma luta, como se fosse de espada. Tinha tudo em Santo Amaro, tanto que eu só vim pra Salvador com 18 anos.
Você não vai ser advogado?\\\" Me perguntou meu pai, e respondi que ia ser artista. Aquele choque, eu entro em sessenta na escola de Belas Artes. Eu já fazia uma coisa em Santo Amaro, chamado guache lavado. O guache lavado se constitui de você pintar com guache branco, depois passar nanquim preto. O nanquim é uma tinta indelével e o guache, uma tinta delével. Então, quando você lavava, o branco saía e ficava o preto, que dava impressão de gravura. E eu mostrei para um pessoal esses desenhos, e o Henrique Oswald, que me ensinou gravura própriamente dita. A gravura também me possibilitou ganhar dinheiros e também com ela eu fiz os cartazes .E
o diretor dos jornais, me leva o Carlos Lacerda na minha casa. O pessoal e ele me compraram umas gravuras e eu fiquei como bode expiatório. Começaram a dizer que eu era espião, porque eu tinha recebido o Carlos Lacerda no meu ateliê.
O governador me perguntou: “O que você faria como diretor do museu?”. Eu disse: “Faço isso, aquilo. e aquilo mais\\\". Ele disse: “Ah, você não serve, não é humilde”. Eu respondo: “‘Olha, quem tem que ser humilde é você. Porque você é governador, eleito pelo povo. Agora, eu sou um artista. E artista não tem que ser humilde, não”. Aí ele disse: “Ah, então serve” . Mas eu disse mais, que só despacharia com ele, não com secretário, diretor, direto com ele. Ele topou, fiquei sem jeito de cobrar um salário decente e acabei pagando do meu bolso pra ser diretor do Museu de Arte da Bahia.
O candomblé na Bahia na década de 40 era proibido. A polícia chegava e destruía tudo, saía desmanchando... O Jorge Amado que levou o Jean Paul Sartre, a Simone de Beauvoir, pra ver Dona Senhora. O Caymmi, um psiquiatra, professores, umas pessoas de classe média alta e ela reinava, de uma certa forma, com essa gente toda. Mas essa gente também era a proteção da casa.. Tinha uma certa mágica em tudo, aquele lugar, uma roça que você ia. A gente ia nas festas era muito cedo e muito bom. Era lindo ver toda aquela coisa das festas, dos orixás todos dançando. Ela era muito rígida, não permitia nenhum exagero, que hoje acontece... Tinha Daniel de Paula, que era um menino de Xangô e o Moacir que era de Ogum. Os dois eram verdadeiros bailarinos, eles dançavam, Xangô dança, pula, tem uma batalha. Era lindo, mas ela nunca deixou que eles se fantasiassem. Quando tinha um orixá fantasiado, ela mandava recolher. As pessoas estavam ali de verdade, não era uma coisa turística, essa história mais turística era mais uma proteção da polícia. A Dona Olga do Alaketu ficou uma grande amiga minha, eu dizia que queria ser de Xangô, mas ela disse que eu era de Ogum, contei isso para Dona Senhora que questionou: “Aquela negrinha disse que você era de Ogum?”. eu disse que sim, ela foi olhar, e era mesmo, assim sendo sou filho de Ogum mesmo querendo ser de Xangô.
Como você chama um baiano, preto, gay, pra dirigir a Pinacoteca de São Paulo? Aí tiveram que justificar que eu era capaz, apresentar currículo, não sei como o Adilson Monteiro Alves conseguiu trezentos ou quatrocentos telegramas de apoio e apresentou quem era o Emanoel Araújo. Isso me deu uma angústia de ter que provar que era baiano, gay, preto.. Eu tava há quase 30 anos em São Paulo e ele me via como baiano? Porque essa coisa do negro fui entender mesmo em São Paulo, quando eu ouvi: Você é o primeiro negro que está entrando na minha casa”. Eu disse:“Ah, sempre vai ter um primeiro, né? Então, sou eu o primeiro”.
O Afro é importante. É um museu da história, arte e memória. É um museu que ainda sofre muito do preconceito estrutural do Brasil, de São Paulo. É um museu que tem doze mil metros quadrados, no Parque Manuel da Nóbrega, o pavilhão, né? Aquele pavilhão é histórico, que foi lá a segunda Bienal Internacional de São Paulo. Ali teve a Guernica exposta, né? A bienal, a segunda bienal foi a coisa mais importante que esteve em São Paulo, dos Picassos e tudo o mais que veio. Então, eu montei um museu que eu chamo um museu em perspectiva. Ou seja, um museu que vai mudando, na medida em que vai surgindo novas coisas, novas pesquisas. Nesse país, que é um país de elite, né, você fazer uma coisa que você ressalta a história do negro no Brasil, é uma coisa gratificante. Quer dizer: as pessoas - eu tenho certeza - estrangeiras que passam e vai muito estrangeiro lá, sempre estão falando: “Esse museu é a cara do Brasil. Esse é o museu brasileiro. Esse é o museu brasileiro”. Ninguém quer ver o Masp. Em Nova Iorque está cheio de Masp lá. O Metropolitan, né, tudo. “Não, eu quero ver a cara do Brasil. O museu é a cara do Brasil”. Puxa vida, isso feito por uma pessoa, com o parco dinheiro que tem, do seu trabalho? Puxa vida... Eu acho que eu tiro o chapéu pra mim mesmo.Recolher