Projeto Um Século de Desenvolvimento Industrial no Brasil
100 anos da White Martins
Depoimento de Porfírio Marcos Rocha Andrade
Entrevistado por Monique Lordelo e Consuelo Montero
São Paulo, 23 de novembro de 2011
Realização Museu da Pessoa
Entrevista WM_HV59
Transcrito por Mariana Wolff
Revi...Continuar leitura
Projeto Um Século de Desenvolvimento Industrial no Brasil
100 anos da White Martins
Depoimento de Porfírio Marcos Rocha Andrade
Entrevistado por Monique Lordelo e Consuelo Montero
São Paulo, 23 de novembro de 2011
Realização Museu da Pessoa
Entrevista WM_HV59
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado por Carolina Maria Fossa
P/1 – Senhor Porfírio, obrigada pela sua presença, em nome da White Martins e do Museu da Pessoa, é um prazer tê-lo aqui.
R – Eu que agradeço a oportunidade, foi muito legal.
P/1 – Para começar, o seu nome completo, data e o local de nascimento, por favor.
R – Meu nome é Porfírio Marcos Rocha Andrade, eu nasci em 03 de outubro de 1957 em Belo Horizonte, Minas Gerais.
P/1 – O nome dos seus pais?
R – Porfírio Correia de Andrade Filho, e Edite Rocha Andrade, minha mãe.
P/1 – Você sabe um pouquinho da história deles, dos seus avôs?
R – Sei um pouco. A família do meu pai, era do Rio, de Campos, depois eles mudaram para o Espírito Santo. Meu pai nasceu em Vitória, depois mudou para Minas nos anos 20, por aí. Morou em Minas um tempo, depois foi para o Rio, depois voltou para Minas, uma cidade do interior, São João Del Rei. Depois morou em Santos Dumont, que é outra cidade do interior e
conheceu minha mãe. Eles se conheceram lá e se casaram. Resumidamente, assim que eu sei. Da minha mãe, eu sei um pouco mais, meu avô é de Portugal, família de portugueses, o pai da minha mãe nasceu no Porto em Portugal, veio pra cá, chegou ao Brasil em 15 de novembro de 1889, no dia da Proclamação da República. Um português chegando ao Brasil na Proclamação da República, não era exatamente um lugar seguro para um português. Ficou preso no navio (risos) um tempo, até a situação melhorar, o Imperador ir embora. Brasil deixou de ser um Império, ele veio para cá com o Brasil sendo um Império, chegou aqui, virou uma República, mas é que ele já tinha família, ele tinha um tio, irmão do pai dele que morava aqui, era dono de ferrovia. E trabalhou com eles, enfim, trabalhou com ferrovia durante a vida quase toda. Minha mãe nasceu em Sete Lagoas que é uma cidade do interior do Oeste de Minas, eles estavam construindo a ferrovia que liga o litoral até o interior, então minha mãe nasceu lá, depois ela voltou para Santos Dumont, onde conheceu o meu pai e eles se casaram, resumidamente, é isso.
P/1 – Você sabe como é que eles se conheceram?
R – Olha, não sei exatamente, quer dizer, meu pai trabalhava no Ministério da Agricultura. Ele fazia inspeção sanitária do Ministério, era químico e fazia inspeção sanitária. Santos Dumont é uma cidade de produção de laticínios, queijo, um centro de produção desse tipo de coisa. Foi lá para trabalhar com isso, eles se conheceram lá, mas eu não sei maiores detalhes, nunca tinham me perguntado isso, só o Museu da Pessoa... Então não sei, mas é exatamente isso, ele trabalhava lá, era uma cidade pequena, quer dizer, mais ou menos fácil de se conhecer, deve ter sido alguma coisa por aí.
P/1 – E você nasceu em Belo Horizonte, passou a infância lá?
R – Sempre vivi em Belo Horizonte. Meus pais se mudaram para Belo Horizonte nos anos 50, mas eles moraram em Juiz de Fora antes. Eu tenho duas irmãs que são de Juiz de Fora, depois meu pai mudou para Belo Horizonte. A essa altura, ele trabalhava com autopeças, era representante de uma empresa de autopeças. Em Belo Horizonte, ele montou uma empresa. Eu já nasci lá, nasci e sempre vivi lá e essas minhas duas irmãs, elas nasceram em Juiz de Fora, mas eu sempre vivi em Belo Horizonte. Passei minha infância lá. Vivo lá há 54 anos, é interessante.
P/1 – É só você e duas irmãs?
R – E duas irmãs. A mais velha, ela já faleceu, chamava Orcanda Andrade Patrús. Era médica, dermatologista. Minha outra irmã, mais nova, se chama Oneida Andrade Yunes, essa casada com um paulista, que foi Secretario de Saúde aqui em São Paulo. Ela mora aqui em São Paulo, inclusive ela é médica também, otorrino. Sou 14 anos mais novo do que a minha irmã mais nova. Sou muito mais novo do que elas, também sou médico, psiquiatra, então, nós somos 100% médicos na família. Não sei por conta de quê, porque não tem nenhuma história de médicos na família.
A partir da gente, se criou uma tradição, vamos dizer assim (risos), enfim, minha irmã nem sabe que eu estou aqui, tenho que contar para ela o que eu estou fazendo, ela ia gostar de saber.
P/1 – Vamos ver se a gente consegue investigar porque três médicos (risos).
R – Pois é sempre me perguntam isso: “alguém na família…?” Não, ninguém da família era médico. Minha irmã mais velha se formou primeiro, mas as duas foram contemporâneas de faculdade, quer dizer, a diferença de idade entre elas era pequena, então elas foram contemporâneas. Uma pode ter influenciado a outra, realmente, não sei. Três especialidades muito diferentes, dermatologista, otorrino, e um psiquiatra. A certa altura, resolvi, no ano do vestibular, “vou fazer medicina, vou fazer Psiquiatria vou fazer Medicina”. Fiz Medicina para fazer Psiquiatria, então, deve ter algum grau de coincidência, alguma coisa assim.
P/1 – Certo Porfírio, mas conta um pouco da tua infância então, o bairro em que você nasceu como é que foi?
R – Olha, eu vivi, eu nasci num bairro que chamava… Como é que chamava aquele bairro ali? Lourdes! Nasci no bairro de Lourdes, mas rapidamente, mudei para um bairro chamado Santo Antônio. Morei numa casa, meu pai comprou uma casa, eu devia ter uns seis anos de idade. Esse lugar é um lugar assim... Belo Horizonte é uma cidade, de alguma forma, ela tem uma semelhança com São Paulo, ela é uma cidade espalhada, não é como o Rio, que é uma cidade comprimida. É uma cidade, vamos dizer mais redonda, e tem uma avenida chamada Avenida do Contorno, que é uma avenida, o rodoanel de Belo Horizonte, isso. É uma avenida no meio da cidade que é muito maior hoje, mas, uma avenida que contornaria, seria o fim da cidade. Moro logo em seguida um lugar absolutamente central. Mas esse lugar apesar de ser muito central, era muito próximo dos bairros mais antigos da cidade. O lugar é muito interessante, é uma parte mais nova do bairro, então, tinha muita área sem construção, tinha campo de futebol de terra na frente da minha casa, tinha, enfim, próximo, tinha uma fazendinha, “caramba”!, Tinha uma fazendinha, inacreditável, tão distante assim no tempo, é curioso isso. Enfim, era um lugar muito engraçado, porque era meio isolado da cidade, quase um parque, numa cidade que já era maior para todos os lados, um lugar muito legal. Aproveitei muito lá, vivi até os 20 e tantos anos, até me formar praticamente, mudei de lá praticamente formado.
P/1 – Você conseguiu ver a transformação da região.
R – Com certeza, um monte de coisa apareceu, era um lugar diferente. Era meio que uma cidade de interior dentro de uma cidade maior. Por ser um lugar isolado era muito legal aquilo, um monte de amigos. Tive uma infância, era um mundo um pouco diferente, mais seguro, eu andava muito a pé. A gente andava a noite, eu saia à noite, eu me lembro de sair à noite. Adolescente, andava a pé, voltava para casa, sentia o cheiro da noite na rua, tem uma planta que chama dama da noite, é muito comum lá, tem um cheiro muito intenso, me lembro de andar a noite, ir para casa e era confortável. O clima em Belo Horizonte é muito ameno, muito diferente daqui, mudança rápida de tempo. A mudança súbita leva cinco dias. Aqui, você tem as quatro estações do ano num dia só em São Paulo. Enfim, a sensação que me ocorre quando eu penso nessa época, é isso, sossegado, tranqüilo, confortável.
P/1 – Como é que era a tua casa?
R – Minha casa... Estava vindo para cá, eu vi uma casa mais ou menos contemporânea. Uma casa dos anos 60, reta, grande, com uma fachada comprida num plano só, num piso só. Não tinha dois andares, tinha um andar em baixo que era a garagem, mas era num piso só. Entendo casa assim. É muito prático, você não tem que subir escada para fazer nada. O terreno era grande, tudo plano com vidro, a casa toda modernista vamos dizer assim - aqueles projetos do Niemeyer
era algo naquele estilo, muito vidro, alta, reta, tinha um telhado laje reta,
não aquele telhado de telha colonial, na verdade, uma casa moderna assim e era muito legal. Eu gostava de mexer com aeromodelo, tinha uma oficina na garagem, muita confusão lá, mexia com aeromodelo, gostava de fazer essas coisas, montar aviãozinho, carrinho miniatura. Gosto de contar caso: eu mexia com aeromodelo, deixei um combustível do aeromodelo guardado estragou e pensei: “o que eu vou fazer com isso? Vou jogar esse troço fora?” Um perigo, uma coisa explosiva na mão de um menino é uma coisa arriscada. Aí eu joguei no esgoto, pensei: “joguei isso no esgoto assim, não vou deixar assim”. Joguei um fósforo, estourou dentro do esgoto, tudo bem, só que era uma coisa muito explosiva, caiu dentro do esgoto da rua e de repente, um bueiro explodiu. Subiu aquela tampa do bueiro, explodiu aquele negócio, deu aquela confusão, chamaram bombeiro, chamaram a Prefeitura veio um técnico, o cara deu uma explicação: “não, isso é formação de gases no esgoto, gás tem explosão espontânea”, e eu (risos) escutando a história, lembrei desse caso que eu contei há pouco tempo atrás, não é muito educativo, meus filhos vão ver esse filme (risos), não é bom eles ouvirem essas coisas, não é? Mas enfim, eu me lembrei dessa história agora, era um lugar muito gostoso, gostava da casa toda, uma casa elegante, tinha um quarto só pra mim, uma família pequena de três, naquela época, as famílias eram muito grandes, minha família era pequena e as minhas irmãs muito mais velhas, quer dizer, então, a casa era minha. Essa fase da infância até o inicio da adolescência foi muito tranqüila, a casa era muito legal, tinha um quintal com uma mangueira que dava manga deliciosa, tinha uma amoreira, que eu adorava, a planta era pequenininha, cresceu, dava amora roxinha, uma delícia comer aquela amora lá, muito legal. Essa fase foi uma fase muito legal.
P/1 – Qual que é a diferença de idade de você para suas irmãs?
R – A irmã que faleceu era 16 anos mais velha
e a minha irmã mais nova, 14. Quer dizer, muita diferença. Eu tinha três mães, não sei se isso é vantagem, mas enfim, pelo menos eu não tinha irmã mais velha, era tão mais velha, que era quase como outra mãe.
P/1 – Como é que é esse negócio de ter três mães?
R – Não sei se é vantagem ou não é (risos), há controvérsias, dizem que mãe é uma só, graças a Deus, que se tivesse mais de uma, não salvava ninguém.
Na verdade essa distância muito grande de idade transformava a relação de irmão numa relação um pouco diferente. Não é uma relação de irmão de igual para igual, imagina, quando eu tinha cinco anos, a minha irmã tinha 20, quer dizer, mais que adulta. Podia ser minha mãe quase, quer dizer, com 16 anos até que dava enfim, mas foi muito legal. Eu tinha um contato um pouco maior com a minha irmã mais nova, era próxima até ela ir a São Paulo fazer residência, acho que em otorrino. A irmã mais velha formou, casou. Tive um contato maior com a mais nova. Não tive irmão homem e nem irmão da mesma idade para disputar as coisas, então, é uma vida meio diferente, meio atípica. Normalmente, a diferença de idade é pequena, tem disputa. Não tinha sentido eu disputar com uma mulher de 20 anos de idade, se comparar
a situação.
P/1 – Sua mãe trabalhava fora?
R – Não, minha mãe nunca trabalhou fora, ela sempre foi de casa, vamos dizer assim. Trabalhava assim, fazia coisas de artesanato, mais como um hobby, vamos dizer assim. Trabalhar mesmo, minha mãe nunca trabalhou. Meu pai sempre trabalhou fora. Tem aí uma história mais complicada a vida dele. Ele teve um problema cardíaco sério. Para mim, ele era novo. Quando eu nasci, ele já tinha 50 e alguma coisa. Minha mãe 45 anos, absolutamente fora do padrão da época. Absolutamente acidental, vamos dizer assim. Meu pai teve um problema cardíaco muito sério. Meu pai foi uma das primeiras pessoas a colocar uma ponte de safena, com doutor Zerbini ainda, no meio desses portugueses, não se fazia isso em lugar nenhum do Brasil. Eu tinha 11 anos, ele fez essa cirurgia, o que eu me lembro assim dessa fase próximo de 11 anos, 12 anos era ele muito doente, muito grave. Ele veio a São Paulo, colocou a ponte de safena e ficou ótimo. Passou um período assim super legal, depois adoeceu, teve um AVC, acidente vascular cerebral. A vida dele ficou muito complicada. Ele viveu anos muito doente, cada vez mais dependente. Então, a minha vida depois dos 14, 15 anos fica muito diferente, porque eu passo a cuidar muito mais dele especificamente do que cuidar de mim. Mais ou menos perco o pai aos 15 anos, ficou muito limitado, tinha limitação para andar e tudo mais. Essa historia que eu contei, até os 11, 12, fica muito diferente depois disso. Passo a ter um papel diferente lá, de cuidar dele, de ficar mais em casa, ajudar mais, fazer coisas que eu não fazia.
Compras, mercado, ajudar a minha mãe, coisas desse tipo.
Quando faleceu, eu tinha 27 anos, quer dizer, durou um período longo assim, essa história da doença dele. Apesar da proximidade ele já estava já não era a gente tinha uma relação até boa, mas era uma relação diferente, de cuidados. Um adolescente cuidando de uma pessoa de 60, quase 70 anos muito doente. Mas eu tenho boas lembranças dessa época também, não era só trabalho, não.
P/1 – Conta um pouquinho da escola então, como é que você entrou…
R – Na faculdade?
P/1 – Não, na escola mesmo, no primário…
R – Estudei no... Interessante, também outra coisa bem diferente, eu estudei em escola pública, as escolas públicas eram muito boas naquela época, eu estudei o jardim de infância, chamava-se assim naquela época, uma escola pública, chamava Bueno Brandão. Era bem próximo da minha casa, num bairro que virou algo equivalente aos Jardins aqui em São Paulo. Chamava-se Savassi. Um bocado de lojas, enfim, era um colégio muito legal, tenho uma ótima lembrança do jardim de infância. No primário eu estudei perto da minha casa, numa outra escola, no Barão de Rio Branco, também escola pública, depois eu estudei numa escola estadual, que era um colégio dificílimo, tinha quase que um vestibular para entrar lá. Era um colégio muito bacana, um dos melhores colégios da cidade e um colégio público. Pensar isso hoje é incrível, mas era. Estudei lá uns três anos do ginásio.
Depois mudei para o Marista, estudei a oitava série, o primeiro, o segundo e o terceiro ano no colégio Marista. Uma fase muito legal, o colégio era grande, muita gente, eu adorava o colégio. Gostava muito de Biologia e eu era monitor de Biologia. Por isso tinha acesso ao laboratório, adorava aquilo. Acabava fazendo Medicina de alguma forma, se você for pensar assim. Então, a fase do colégio foi uma fase muito legal, eu tenho amigos até hoje, quer dizer, eu não tenho amigos de relacionamento muito próximo, mas eu tenho ainda bons amigos da época da escola, tenho convívio com eles. Até pouco tempo atrás até mais próximo do que eu tinha com o pessoal da faculdade. Estudei lá e fiz vestibular para Medicina. Passei. Entrei. Tomei um choque com a escola. O colégio era muito melhor do que a escola, os laboratórios eram melhores no colégio do que na Faculdade Federal (risos). O início da faculdade foi uma decepção para mim, eu imaginava o mundo numa faculdade americana daquelas, laboratórios... O mundo acadêmico.. Aquilo era meio bagunçado, era uma coisa meio, me surpreendeu assim, engraçado, para mim foi uma surpresa, foi meio surpreendente mesmo, para pior. Achei o curso meio estranho, fiquei meio na dúvida com aquilo, resolvi fazer Filosofia. Fiz vestibular de novo. Fiz Filosofia. Comecei a fazer as duas coisas, “vou ser psiquiatra, até é bom estudar as duas coisas”. Depois de certo tempo eu vi que era incompatível, não dava para fazer as duas coisas. Desisti da Filosofia e continuei com a Medicina. Formei e fiz o que eu pensava fazer desde o início, eu pensava em fazer Psiquiatria. Durante o curso, a gente não tem um direcionamento claro... Gostava de aeromodelo, descobri que tinha muita habilidade manual e podia fazer cirurgia, tinha um professor: “você tem que ser cirurgião, não é possível, você vai ser cirurgião, que psiquiatra o quê, bobagem a psiquiatria, vai ser cirurgião”, mas eu nunca gostei, sempre gostei de psiquiatria e lá no final do curso
comecei a ser estagiário no Hospital do SEAD, no Hospital Santa Clara,
fiz residência e tudo mais e gostei muito.
P/1 – Você falou muita coisa importante, vou ter que voltar um pouco.
R – Falei tudo de uma vez.
P/1 – É que você passou por muitas escolas, você estudou em escola pública, conta um pouco, apesar de não ter irmãos, você acabou fazendo muitos amigos, você ia para casa deles, eles iam a sua casa?
R – Mais ou menos dentro daquilo que eu tinha falado antes, quer dizer, Belo Horizonte é uma cidade muito confortável porque ela é uma cidade pequena, quer dizer, se você pegar a Zona Sul de Belo Horizonte que equivale a Zona Sul carioca, todo mundo se conhecia no final das contas, porque eram
poucos bairros, com
pouca gente que freqüentava os mesmos colégios e a distância era pequena. Era muito fácil viver naquela cidade, tinha um clube, o Minas Tênis Clube que era próximo da minha casa, então, eu ia para o clube, nadava, a turma no clube era mais ou menos da mesma turma que estudava no colégio.Tinha amigos que estudavam em outros colégios, mas
eram vizinhos de bairro, então era isso, a gente convivia muito.
Belo Horizonte funcionava - apesar de ser uma cidade grande - naquela época existiam outros bairros, mas não para a gente, quer dizer, que diferença faz se existisse um bairro da Zona Norte? Ninguém ia lá, a gente convivia numa mesma região, as pessoas se conheciam, eu tinha muitos amigos e a gente não parava em casa, quer dizer, eu hoje chegando aqui em São Paulo, eu estava reparando, a quantidade de casas em São Paulo, pelo menos nessa região, Jardins, Pinheiros têm muita casa. Isso em Belo Horizonte, a gente não vê muito. Belo Horizonte é uma cidade de prédios, muito prédio. Esse bairro que eu vivi é basicamente um bairro de casas e as casas têm uma porção de novidades. Uma delas tinha um sótão, outra uma coisa interessante que era uma quadra, outra um porão. Lembro quando começaram a construir as casas em volta da minha. Era uma aventura aquilo, porque num quarteirão de pouquíssimas casas de repente, começaram a construir. Cada casa era um lugar para se descobrir, explorar, entrar. Uma construção sem ninguém dentro, num fim de semana, para uma criança é uma coisa desafiadora, não é? Misteriosa, cheia de escora, perigosíssimo, certamente. Mas a gente sobrevivia, andava de bicicleta sem capacete, enfim, ninguém morria. Hoje, as coisas são diferentes (risos), mas enfim, entrava no meio da construção, era um mundo meio que de aventura. Eu vi o bairro crescer, começava a construir uma casa, os colegas: “agora acabaram os buracos, vão fazer os alicerces”, as primeiras paredes... Era algo que sempre me deixava interessado, achava legal. A escola era muito próxima da minha casa, eu ia a pé, muitas vezes meu pai me levava de carro, mas muitas vezes eu ia a pé para aula, pegava o livro, pegava a mochila, ia a pé. A cidade era mesmo um jardim. Arborizada, só casa, não tinham prédio, então, casa do fulano, casa do cicrano, passava na frente, era…
P/1 – E os vizinhos estudavam na mesma escola que você?
R – É verdade, fui colega de turma de quase todos os meus colegas. Isso começa a dividir na época que a gente vai para o primeiro grau, quer dizer, depois de terminado o primário. Alguns foram para outras escolas, vários foram para o colégio estadual e ai, eu acho que eu vivi uma transformação interessante, que foi exatamente o fim da escola pública, quando eu entrei para o colégio estadual que era uma meta, quer dizer, eu pensava que as minhas irmãs tinham estudado lá, eram primeiras alunas, passaram - era dificílimo - entrei, achei uma bobagem. O colégio já era ruim, o ensino já não era tão legal, não era tão bacana como tinha sido nos anos 60 ou nos anos 50.
Não achei legal, não gostava daquele colégio. Eu tinha uns amigos que estudavam no Marista, gostavam de lá. Queria estudar no Marista, por causa de um amigo meu. Quando eu fui para lá, já estava na oitava série, só tinham oito séries naquela época, então, na oitava fui para o Marista e fiquei quatro anos lá, até o terceiro ano do segundo grau. Como eu já te falei antes, é uma fase de adolescente, de ficar mais autônomo, é uma fase muito legal, ter amigos, andar em turma, fazer coisa nova, começar a dirigir escondido com 16 anos. Podia-se fazer isso naquela época, não façam isso agora, é proibido, a cidade é perigosa (risos). Naquela época, dirigia com 16 anos, não tinha um guarda na rua, imagina, pegava o carro e dirigia, ia pra casa do vizinho de carro. Uma vez a gente desmontou o carburador do carro do pai de um amigo meu no fim de semana: “vamos limpar o motor, esse carro vai ficar ótimo, Dodge Dart, vai ficar uma beleza”. E para montar aquilo de novo? Peças sobrando para tudo quanto é lado, o pai dele chegando de viagem, aquela coisa toda desmontada, o carro não ligava. No final das contas, tudo acabou bem, o carro ligava mais ou menos no domingo, ele deve ter levado para oficina na segunda feira. Nós conseguimos montar aquilo, isso eu devia ter uns 16, 17 quando fizemos isso, resolvemos consertar o carro, imagina? Um carro hoje é uma coisa insondável não é? Cheio de fio, naquela época, era uma coisa muito mais simples, muito mais tranqüila de mexer. Misturei de novo a história da escola com a da adolescência, mas enfim, essa época do Marista também é muito marcante para mim, porque eu fiz varias turmas. Passei por vários tipos de turma, é o período que você começa a se definir. A certa altura eu andava com os nerds, não chamava assim na época, mas eu andava e depois eu andei com uma turma mais, não sei a expressão que se poderia usar na época. Assim, eu era amigo de um cara que jogava vôlei e a gente estudava junto, parece um High School Musical o que eu estou contando aqui... Mas (risos), era mais ou menos assim na época, a turma que jogava vôlei, uns caras bacanas, eu não jogava vôlei não, mas, enfim, andava com essa turma, foi uma época ótima. A gente saía de carro, com as meninas, era bacana. Foi um período interessante, andei com os alternativos, os caras ficaram meus amigos também, uns mais ripongos. Andei com essa turma também, fui muito eclético nessa época. Experimentei de tudo nessa fase, conheci essas três variedades. Eu lia muito
andava com os nerds da escola, estudava, a gente lia,
era um colégio muito solto, muito liberal, dava muito espaço para
a gente inventar as coisas.
P/1 – Tem algum professor específico você falou da área de Biologia que gostava, mas você já tinha um gosto…?
R – Tinha, tinha um professor de Biologia, que esse cara era muito bom, professor da UFMG, chamava Mario, ele me estimulou muito na área biológica, quer dizer, me dava força, eu fiz um trabalho numa Feira de Ciências uma vez. Ele gostou do projeto que eu fiz, ele achou bacana,
me estimulou a ser monitor, eu tomava conta das provas das turmas mais novas -
que eu
dava as aulas de tarde -
para quem precisasse de aulas de reforço, mesmo as aulas de Ciências pro primeiro… Então foi legal essa fase, eu gostei muito disso, adorava tomar conta de prova, amava aquilo, pegava as carteiras todas e punha embaixo da luz, sabia exatamente como fazia, colocava as carteiras todas na frente, colocava minha cadeira atrás, ficava todo mundo de costas para mim, eu sentado lá atrás, então, ninguém sabia o que eu estava olhando, eu não deixava colar de jeito nenhum,
eu não fazia nada, mas adorava fazer isso, adorava tomar conta de prova.
P/1 – Mas você cuidava de outra turma?
R – As turmas mais novas, eu era monitor, tomava conta de provas do pessoal do primeiro ano. Por exemplo, quando eu estava no terceiro. Adorava fazer isso, era muito divertido. Uma vez, eu estava tomando conta de uma prova, peguei o jornal e fiquei lendo o jornal, completamente fechado na minha frente assim, eu
não podia não estar olhando, eu tinha que estar olhando de alguma forma, então, aquela paranóia de como é que eu estava fazendo aquilo? Aí separei as provas em dois montes, a pessoa me entregava a prova eu punha aqui, entregava, eu punha num outro montinho. Não significava nada os montinhos. Fiz por fazer, só para criar... Um menino levantou da carteira e embolou as provas todas, embolou os dois montes, voltou e sentou. Eu gostava muito dessas histórias, nunca fui professor, nunca gostei de dar aula, mas essa história de tomar conta de prova, eu adorava aquilo, achava muito legal, fazia muita onda com os meninos.
P/1 – E por que você foi monitor, foi uma escolha sua?
R – Porque eu era bom aluno e com isso, eu tinha algumas coisas no laboratório também e fui ocupando esse espaço, quer dizer, de certa forma, era um start ser monitor, você era bom naquilo, você podia dar monitoria, dar aula e ajudar outras pessoas. Eu dava umas aulas para ajudar os meninos dos anos anteriores a estudarem. Assim estava no terceiro ano, dava monitoria para o primeiro, para o segundo. Era legal isso, eu me sentia favorecido. Por isso que eu te falei, foi um choque quando eu entrei na faculdade. Porque eu imaginava uma continuidade daquilo. Cheguei à faculdade eu absolutamente não era identificado ali. A faculdade era enorme, uma bagunça. Meu laboratório no colégio era muito melhor, o microscópio do colégio dava de dez no microscópio que eu usei na faculdade (risos). Quer dizer, no princípio foi uma surpresa. Depois, eu gostei muito também, foi ótimo, me diverti demais, aprendi muito, gostei muito. Mas a princípio, eu tomei um susto.
De um colégio super bacana, todo bem montado, todo legal, entrei numa faculdade que faltava tudo, faltava professor, tinha greve. “Greve, como assim greve? Ninguém vai ter aula?” “Não, estamos em greve, os professores não estão aí”. “Como assim, os professores entraram em greve? E agora?” “Não tem aula” “E agora, o que a gente faz?” “Nada”. Era inacreditável, eu não entendia aquilo, custou uns seis meses para entender aquilo, uns seis meses.
P/1 – Mas, Porfírio, por que Psiquiatria, você falou que desde cedo, você queria e seus professores ficavam falando em cirurgia e você já estava pensando na Psiquiatria?
R – Eu não sei exatamente o porquê não, uma vez, eu estava conversando sobre isso e uma pessoa me falou: “você era bom aluno em Matemática, mexia com aeromodelo, construía maquete, por que foi fazer Psiquiatria, por que você gostava tanto da área biológica, se na verdade, tinha facilidade para outra área”? Eu fiquei pensando sobre isso, quer dizer, eu acho que de alguma forma, eu fui movido por um desafio. Eu estava fazendo uma coisa que era difícil, depois que eu vivi aquilo, eu comecei a gostar, mas não era uma coisa simples... Engenharia, a área exata para mim é uma área muito fácil, muito natural. Todo mundo tinha certeza que eu ia ser engenheiro. Outra coisa também que eu nunca gostei foi fazer o óbvio. Fazer o que todo mundo esperava. Eu não era exatamente, quer dizer, uma postura meio adolescente. Fui adolescente muitos anos, fui adolescente até os 30, mas enfim, essa postura de não fazer exatamente o óbvio. Tenho essa sensação. A Biologia não era uma coisa intuitiva para mim no início, eu gostava muito mais de exatas, desde lá atrás no segundo grau, comecei a gostar da Biologia, comecei a estudar a área biológica, falei: “não, é muito mais complexo, é muito mais legal do que Engenharia. Engenharia é uma bobagem”. Nada contra os engenheiros, eu amo Engenharia, mas eu comecei a achar a célula, a molécula, o DNA, o cromossomo... Na Biologia, tem
comportamento, pensamento,
ficava mais complicado, mais desafiador. Ver como o ser humano pensa. Isso quem me despertou foram os meus colegas do segundo grau. Eu tinha um amigo que lia muito, eu sempre gostei de ler muito, eu aprendi a ler muito cedo, com cinco anos. Aos seis anos de idade já tinha lido todos os livros do Monteiro Lobato. Adorava ler, amava ler, amava televisão, já tinha televisão, mas eu adorava ler, fazia pipoca, colocava do lado, pegava um livro para ler e lia comendo pipoca. Eu me lembro disso, numa tarde chuvosa, ler comendo pipoca era um must completo (risos). A história do sítio do Pica Pau Amarelo, Monteiro Lobato era muito legal, era bacana. Nesse ínterim fui ficando interessado por pensar. Como é que o homem passou a pensar, como é que as pessoas pensam. Esse amigo meu, Danilo, lia muito e um dia nós descobrimos que a biblioteca do colégio lá no Marista tinha todos os livros que você imaginasse. Todos os livros importantes estavam lá, tinha de tudo, inclusive os livros que a igreja proibia. Esses então, nós lemos mesmo. Tinha o tal do Índex uma coisa antiga, quase que medieval da igreja católica, esses livros tinha lá. Eu
devorava os livros. Nessa altura, lia demais, e o meu pai teve um monte de problema, caiu doente, era uma saída também, não é? Sumir do mundo naquele momento ali. Então, nessa fase, eu comecei a ficar curioso sobre como as pessoas pensam, o pensar como é que é,
o comportamento, e quanto mais eu conhecia, mais curiosidade me dava. Acho que acabei caminhando um pouco para o lado da Psiquiatria por causa disso, do tanto que eu correlacionei. “Eu imaginava que seria psicanalista, pensei: “vou fazer Psiquiatria e vou ser psicanalista”. Na época era um desafio maior porque nos anos 80 psicanalista quando eu me formei tinha pouco recurso técnico. A evolução do antidepressivo veio depois. Então ia mexer com psicanálise. Acabei largando a psicanálise, mexendo com psiquiatria clínica, atendi pacientes complicados, quadros clínicos graves, cada vez eu ficava mais interessado nisso, quer dizer, e mais uma vez eu caminhei para um lado que as pessoas falavam: “gente, terapia, consultório, que beleza, mexer com psicótico em hospital!”Nessa fase eu estava absolutamente apaixonado por isso, entender, estudar, tratar, foi uma evolução dentro disso, da curiosidade mesmo como ser humano num todo. Até eu virar psiquiatra, foi uma seqüência de conseqüências mesmo. Toda uma linha lógica. Se for voltar muito lá atrás, dá essa historinha que eu te falei, da Engenharia para Psiquiatria (risos), nesse trajeto meio tortuoso que é a vida da gente mesmo. Acho que é mais ou menos isso. Daí... Bom, pulando as coisas, como é que eu chego ao que eu estou fazendo hoje? Hoje eu sou administrador. Não sei se eu estou pulando muitas etapas. Andando um pouquinho para frente (risos). Eu também caminho mais ou menos dentro dessa linha que eu falei da psiquiatria. Mais pra frente a gente fala disso (risos).
P/1 – Fala um pouquinho da faculdade então, estágio, você falou que começou a fazer.
R – A faculdade foi uma fase muito legal, muito interessante, porque eu fiz faculdade final dos anos 70, início dos anos 80. Peguei uma transição muito importante também, quer dizer, o Brasil partindo de uma realidade de ditadura militar para uma abertura. Eu vivi essa libertação toda que a universidade dá para gente, eu vivi isso simultaneamente ao Brasil também. Começando a viver um mundo mais libertário, as coisas com menos riscos. Nunca fui idealista, nunca tive uma postura de esquerda, então não me diverti tanto como muitos se divertiram no D.A, aquela coisa toda. Eu vivi uma época que você podia ser o que você era não tinha ou você era de esquerda, ou você era de direita, reacionária. Essa fase era uma fase boa dos anos 80. Com a faculdade se consolida tudo que passou. Você já está mais maduro, já sabe melhor o que você quer o que vai fazer, então, quer dizer, a faculdade acabou sendo um período muito legal dos anos 80 e a gente aprende muito coisa. Medicina é muito legal, o currículo da Universidade Federal era menos teórico nessa altura, fizeram o chamado currículo novo. Nesse currículo novo, a gente partia para a prática muito rapidamente, quer dizer, a partir do terceiro ano, eu estava vendo paciente, não estava medicando, mas estava tendo contato com o paciente, que é uma coisa que eu gosto. A própria pediatria, clinica médica, e tudo mais, as especialidades todas. Mas já em contato com o paciente. Eu adorava isso, isso foi muito legal e tive umas amizades muito boas na faculdade. É uma época em que você já cumpriu sua missão, já prestou vestibular, está fazendo faculdade, então não tem... Você chegou um pouco no auge. Eu tinha passado na Universidade Federal,
ali é uma... Se a vida é um rio, a faculdade é uma parte calma do rio. Não é uma cachoeira, é uma parte lenta, calma, tranqüila, é um momento para você se conhecer, conhecer gente, eu me divertia demais, viajava, acampava, greve, todas as greves, tinha que aproveitar e cair fora. Já sabia o que tinha que fazer com greve, já tinha aprendido. Greve é sinônimo de viajar, então, conheci o interior de Minas, conheci muito lugar legal. Tinha bons amigos, Mário, Marcão, Murilo, Gilmar foram meus colegas de faculdade. A gente viajava muito junto, fomos ao pico da Bandeira, o pico mais alto da região Sul do Brasil. No Nordeste o mais alto é o Pico da Neblina que fica sei lá onde e que não tem jeito de chegar naquilo. O pico da Bandeira é altamente acessível, na Mata Atlântica intocada interior de Minas, é lindo. Em volta, cachoeira de dois mil e tantos metros de altura. Vi o sol nascer, fiz de tudo, viajei muito, fui à Angra, mergulhava muito nessa época. Aprendi a mergulhar, gostei. Espetacular. Morando num estado sem mar, seu hobby é mergulho (risos). Uma facilidade incrível. Eu ia à Ilha Bela, mergulhei em Ilha Bela muitas vezes, não era uma coisa simples. Gostava muito de mergulhar nessa altura, era bacana. Então, fora a questão acadêmica especificamente, era uma fase muito legal. Conhecia aquele mundo de gente, gente diferente, gente de vários cursos, os primeiros anos da faculdade são muito legais porque no curso básico você era colega de um monte de gente fazendo veterinária, biologia, bioquímica, não sei o quê... Convivia com uma muita gente, era muito legal, muito bacana. A faculdade do ponto de vista de relacionamento é uma fase quase perfeita. Passar de ano é tranqüilo, não tem dificuldade, não é um desafio. Você já passou e a vida profissional ainda está longe, tem seis anos, imagina isso não acaba nunca. “Vou ficar anos aqui nessa escola”, no final das contas, passa rápido, mas a sensação é intensa e eu sabia que era bom. Aproveitei muito, de vez em quando eu converso com um colega que fala: “nossa, que saudades daquilo, poxa, podia ter feito isso”... Não deixei de fazer nada, fiz o que eu quis. Porque eu tinha consciência de aquilo era o melhor momento, “essa fase é um espetáculo, vou aproveitar isso no limite”. Gostei demais da faculdade, muito legal.
P/1 – Seus pais davam certa liberdade nesse sentido?
R – Tinha uma liberdade mais ou menos conquistada, era o lado bom daquele lado ruim que eu contei antes, quer dizer, o fato de eu ter que tomar conta do meu pai. Eu era muito responsável, tomava conta deles, tinha que ter carro. Aos 18 anos, eu não tinha carta, mas tinha carro. Porque eu tinha que dirigir, não é? Na minha casa, eu pegava o carro, fazia compra, levava o meu pai ao médico, levava minha mãe para não sei o quê. Teve um lado
ruim, o lado pesado desse problema de família, doença e tudo mais, mas teve um lado positivo: eu era autônomo, fazia o que queria, enfim, mantendo um certo contato para tomar conta deles: “olha, vocês estão bem, está ótimo então,
vou dormir no sitio”. Belo Horizonte, nessa parte da cidade onde moro é o fim da cidade, em seguida não tem nada no Sul. Hoje são os condomínios. Moro num condomínio, em Alphaville num lugar que era mata.. Era um lugar em volta de uma lagoa, a Lagoa dos Ingleses. A gente andava de barco lá e tudo isso, eu ia muito ao lugar que eu moro hoje,
tive um sitio num lugar chamado São Sebastião das Águas Claras. Na época da faculdade, alugamos um sitio, tinha uma casa de campo, só nossa, eu e meus amigos. Porque não era de pai de ninguém, era uma fazenda abandonada de um avô de um amigo nosso, nós alugamos, reformamos a casa toda. Lembro que
fiz um aquecimento solar para casa com radiador de um trator, você imagina naquela época (risos), fiz um aquecimento para ter chuveiro quente, fiz muitas coisas. Ia para lá e era legal demais, espetacular. Ficava muito próximo da cidade. Belo Horizonte é cercada por uma serra, chamada Serra do Curral. Chama Serra do Curral porque fecha a cidade como se fosse uma cerca e a gente estava exatamente do lado oposto. Tinha luz da cidade vinda por trás da serra. Eu não me esqueço disso, a serra ficava escura, porque não tinha nada desse lado, só tinha mato, isso a 15 quilômetros da cidade. Da minha casa, não era nada, e aquela serra do lado e a cidade atrás que iluminava as nuvens à noite... A gente ficava vendo, as nuvens iluminadas pela luz da cidade, a cidade iluminava a região, muito legal. Hoje, esse lugar é um monte de condomínio de casas. Tudo isso também é da época da faculdade, muito legal.
P/1 – Muitas namoradas?
R – Ah, tive uns casos (risos), tive algumas, nunca fui de namorar muito. Tinha amigos que namoravam, ficavam não sei quanto tempo. Eu nunca fui muito não, tinha muito amiga, namorava, ficava... Não se usava essa expressão, não é? Mas ficava muito, nunca fui de namorar firme, ficar apaixonado, namorar um tempão. Mas tive algumas namoradas na faculdade, mas não era namorador demais, de ficar firme, namorar. Meus colegas todos se casaram na faculdade, uma coisa incrível! Já têm neto, eu tenho filho de 13 anos de idade, de 14. Meus colegas têm neto, porque todos casaram na faculdade. Eu me
casei aos
30 anos, demorei a ter filho, então, quando eu conheci minha mulher a Luciana, eu já estava no último ano da faculdade. Incrível, porque todos eles namoravam demais, casavam muito cedo, achava aquilo loucura, eu ainda imaginava que eu iria para o exterior, morar fora, então, não tinha muita... Eu não imaginava isso, acabou acontecendo, mas, mais ou menos isso. Então só tenho lembrança boa da faculdade. Depois do primeiro, segundo ano que eu fiquei em choque. Achava
uma confusão, não conseguia entender aquele lugar, não me encaixava naquele troço de jeito nenhum. Depois disso, rapidamente me adaptei, quer dizer,
fiz Filosofia, como eu contei antes, então, passado esse choque inicial, foi ótimo, foi um espetáculo.
P/1 – Teve formatura, teve festa?
R – Claro! Festa de formatura memorável! Um espetáculo. No Minas Tênis Clube, tinha um ginásio grande lá, e é uma sensação também única formar, terminar Medicina, “poxa, sou médico’. Havia um vestibular para fazer residência, mas eu nunca me preocupei “vou passar, vou fazer”, não era uma tensão para mim. Me formar
era entrar na idade adulta, porque até aquela altura, eu estava na adolescência, atrasada (risos), vamos dizer assim. Nunca trabalhei antes de me formar, eu tinha uns colegas que trabalhavam durante a faculdade, trabalhava em banco, trabalhavam à noite, eu não precisava fazer isso.Felizmente pude estudar tudo e só comecei a trabalhar depois que eu terminei a residência, quer dizer, eu comecei a trabalhar depois de oito anos de curso. Medicina são seis anos, mais dois anos de residência, comecei a trabalhar aos
30 anos de idade, 29.
P/1 – Como é que foi essa trajetória até a Santa Casa?
R – É uma história. Eu trabalhava num hospital, um hospital conceituadíssimo na cidade. Entrei como estudante. Fiquei como residente. Quando eu ia fazer residência, o hospital fechou e se transformou em outra coisa. Eu já tinha uma rede de relacionamento, acompanhava um médico mais velho o professor Silvio Veloso que tinha uma clínica muito grande, eu trabalhava com ele. Com um ano de formado, o hospital fechou e eu montei uma clinica própria. Então, aos 30 anos, eu era dono de um hospital. Juntei com outros colegas, todos mais velhos do que eu, médicos mais antigos que tinham clínicas particulares grandes, nós montamos uma clínica na Rua do Clube da Esquina, já que vocês comentaram que vocês fizeram um trabalho no Clube da Esquina (risos), na Rua Paraisópolis, em Santa Tereza. Exatamente uma esquina abaixo do Clube da Esquina, daqueles músicos mineiros. Trabalhei... Daí começa a história que vai chegar na Santa Casa. Como eu era o mais novo, o mais focado em gestão, eu comecei a administrar a nossa própria clínica. Meus sócios eram muito mais velhos, não tinham o menor foco em gestão e administração, eu comecei a gostar daquilo. Era um desafio enorme. Olhava os meus pacientes... Era sócio de uma clínica, e tinha que administrar aquilo, isso foi... Montei essa clínica em 89 e eu fiquei com ela até 99.
P/1 – Era uma clínica psiquiátrica?
R – Psiquiátrica. Ao mesmo tempo, nos anos 80, eu comecei a trabalhar para o Estado. O estado de Minas Gerais tem uma situação um pouco diferente dos outros estados. Existe uma rede de hospitais e eu comecei a trabalhar num hospital eu ainda era estudante. Trabalhava na parte burocrática, fazia internação de paciente, uns serviços burocráticos. Depois eu formei, virei médico e nesse hospital atendia as consultas inter psiquiátricas. Ao mesmo tempo eu tinha essa clínica que eu montei e os pacientes no consultório. Tinha uma atividade que me dividia em ser médico no serviço público, dono de um hospital e a clínica particular de um consultório, onde eu atendia consultas de pacientes em terapia, pacientes de psiquiatria clínica também. Enfim, início dos anos 90, deve ter sido 91, 92, esse hospital que eu era médico estava vivendo uma contradição: tinha um hospital de tuberculose que estava sem sentido ao lado de outro hospital muito grande, e eles iam fechar. A gente decidiu um dia fechar o hospital: “não tem sentido, vamos mudar para o outro hospital, que também é do Estado, fecha esse, transforma numa escola, faz qualquer coisa”. Isso era numa época em que a epidemia de AIDS estava começando, aumentando e era um desafio naquele momento. Como não era a minha área, não era infectologista, não queria mexer com isso, falei: “de repente, se a gente fizer uma enfermaria de AIDS nesse hospital, a gente salva o hospital”, então, saímos uma noite, tomar cervejada: “vamos a algum lugar decidir o que vamos fazer com o hospital”, sentamos, tomamos chope e decidimos fechar o hospital. A certa altura, antes de terminar essa conversa, eu falei: “gente, olha só, eu acho que tem uma oportunidade de negócio, o hospital, se a gente focar em AIDS, faríamos
a primeira enfermaria de AIDS do Estado, não tem, vamos fazer, vamos tentar…” Transformamos o hospital em um hospital de doenças infecciosas,
o hospital cresceu, porque ele virou uma segunda referência, o Emílio Ribas aqui em São Paulo e nós em Minas. Esse hospital cresceu pra burro no final dos anos 80, começo dos anos 90, Hospital Eduardo de Menezes. Comecei a ajudar na gestão, porque uma das médicas que estava nessa conversa de fechar o hospital, Maria Luiza, virou diretora do hospital e eu virei assessor dela na diretoria. Acompanhava a parte administrativa do hospital junto com ela. As coisas foram acontecendo, isso aí nos anos 90, 92, 93, 94. Fui diretor clínico desse hospital e em 94, virei Diretor Geral.
Ela saiu do hospital, me indicou e tudo mais e eu acabei assumindo a direção. Comecei a me interessar por gestão, comecei a estudar gestão, “sou o Diretor Geral deste hospital, tenho que aprender isso”. Comecei a estudar gestão, fiz os primeiros cursos, fiz um curso na Fundação Getúlio Vargas, depois um da Escola de Saúde Pública. Daí, comecei a estudar gestão pública e me interessei e fiquei durante quatro anos, de 94 a 98 na direção desse hospital. Houve uma mudança de governo, fui convidado a ficar e continuei diretor. A essa altura eu estava completamente focado em gestão: “vou fazer isso, vou administrar o hospital, coisa que ninguém faz, é difícil os hospitais são muito amadores, eu vou tentar mexer com isso”.
P/1 – E a clínica e o consultório?
R – Fazendo tudo: a clínica própria, trabalhando nesse hospital e atendendo no consultório.
P/1 – E morando com seus pais ainda?
R – A essa altura eu já estava casado. Eu pulei isso? Pulei. Eu casei em 87, portanto, eu já estava casado a essa altura. Bom, vou voltar um passo atrás então (risos), para o meu casamento. Nós pulamos essa parte. Também completa e explica muita coisa, não é?
Eu conheci minha mulher, a Luciene no último ano da faculdade, quer dizer, conheci e me formei em seguida. Então, a gente se casou dois anos depois, namorou dois anos, se casou em 87, havia controvérsias em relação à data. Os dois esqueceram, graças a Deus. Porque quando os dois esquecem, está tudo perdoado. Nós dois esquecemos a data do casamento, mas enfim, casamos em 87, maio de 87. Ela me ajudou a montar a clínica. Essa história toda que eu contei da clínica com meus sócios, saí do hospital que eu trabalhava, eu já namorava, estava junto…
P/1 – Ela é médica?
R – Não, ela é decoradora, mas na época, ela trabalhava com confecção de roupa. A gente trabalhou muito nessa fase da abordagem da clínica, porque eu não tinha grana para montar, então, a gente trabalhou, fazia umas coisas, vendia, eu ajudava, ela fazia juntei grana e pacotes econômicos acontecendo, bloqueio de dinheiro, tudo aconteceu naquele período. Enfim só sei que deu certo, consegui montar a clínica, ela me ajudou demais nisso, foi fundamental nisso, senão, não tinha montado a minha clínica e não tinha acontecido tudo isso que eu já contei. Essa história toda de como é que eu me identifiquei em gestão, porque a história de casamento e filhos está toda misturada, tudo acontece simultaneamente. Estou casado, meu filho Henrique nasceu em 94, e eu
fazendo tudo isso. Já tinha família, administrava esses hospitais, enfim, agora eu me embolei aqui, não sei dizer para que caminho...
Vou concluir esse caminho profissional, como cheguei à Santa Casa, depois a gente volta na história familiar... Foi isso, quer dizer, eu comecei a me interessar por gestão, montei uma empresa de gestão. Aí acontece uma coisa. Uma fase que se mistura numa outra fase de história familiar que é a montagem de uma empresa para montar uma rede de hospitais em Belo Horizonte. Nosso primeiro contrato foi no Rio de Janeiro. Fiz uma proposta para um grupo financeiro no Rio de Janeiro, de montar uma empresa de gestão. Em 2000, do nada, eu com essa história toda, clínica, consultório, montei uma empresa chamada Gestal, essa empresa com esse grupo financeiro. Então faço um contato no Rio de Janeiro e o dono do hospital fala: “olha, doutor, se o senhor não for administrar o hospital, não tem contrato”. Fui para o Rio e minha família em Belo Horizonte.
Eu ia
na
terça
voltava
na quinta. Tinha consultório, a clínica, o hospital público - desse eu tirei licença - e comecei a administrar o hospital no Rio de Janeiro. Ai, eu posso até falar um pouquinho da White Martins a essa altura, eu administrei alguns hospitais no Rio. Administrei um chamado Casa de Portugal. Esse hospital tinha o oxigênio da White Martins, era um hospital muito antigo, aliás, eu gosto de administrar hospital velho, o mais antigo não foi nem esse, mas enfim,
tive um contato muito interessante com a White. Esse hospital estava numa crise de identidade terrível, uma dificuldade muito grande, e a White fez uma proposta para gente trabalhar gestão, infraestrutura, manutenção, engenharia, não sei o quê. Então, eu fiz um projeto para eles muito interessante. Não foi
adiante, porque eu saí de lá, voltei para Belo Horizonte, felizmente, voltei para Santa Casa, mas comecei com eles um projeto interessante. Essa fase do Rio foi um desafio familiar, porque na verdade, quando você se dedica a fazer alguma coisa, não interessa onde você está, quer dizer, você acaba tendo que ficar mais tempo. O que era uma coisa, eu ia na
terça e voltava na quinta, ou voltava na quarta, passou a ser um negócio que eu ia na segunda e voltava na quinta. Depois eu ia segunda e voltava na sexta. Vi que estava na hora de achar outro caminho. Eu tinha tido uma proposta em Belo Horizonte de assumir a gestão da Santa Casa lá do doutor Saulo. Fui pra lá. Daí começa a história da Santa Casa que é uma história da linha profissional. Sou muito feliz com a história da Santa Casa, muito legal. Fui para Santa Casa em 2000. A gente começou a trabalhar junto. Montamos uma equipe muito legal e ai vem uma história toda muito legal. Tive uma proposta, trabalhei, fui pra lá. Eu conhecia a Santa Casa sem identidade, um hospital fechando leito. É um hospital grandioso, um prédio enorme e bastante sucateado, medicina ruim, todo mundo insatisfeito de trabalhar lá. Fui convidado pelo provedor e fui para lá em 2003, no início de 2003. Reunimos a Prefeitura com várias pessoas, e começamos a trabalhar um projeto para focar a Santa Casa, crescer, abrir leito, reformar e tudo mais. Foi um mundo de desafio nesse período. Nessa altura, eu estava absolutamente focado na Santa Casa. Sai do trabalho no Estado, da direção do Eduardo de Menezes, fiquei focado lá na Santa Casa. Tarefa de tempo integral, não tem nem dúvida, não é? Foi um desafio enorme mesmo, a Santa Casa estava muito defasada em relação às outras Santas Casas do Brasil. Muito atrás, ameaçando ser fechada quando eu fui para lá. Havia uma discussão de transformá-la em hospital público. O Estado, as Prefeituras querendo assumir o hospital. Então, contamos com muita gente lá, todo mundo ajudou muito. Sou o
primeiro Diretor da Santa Casa que é médico, os outros diretores eram administradores, advogados, enfim, não entendiam do negócio especificamente, então, fortaleci o negócio da medicina, o trabalho com o médico, o atendimento, enfim, a Santa Casa cresceu mesmo
dentro da sua missão. Um desafio atrás do outro. Uma história longa de coisas da minha vida que valeria a pena ser até mais detalhada. É um pedaço que estou vivendo, mas a história da Santa Casa, essa mudança da Santa Casa de 2003 para cá é uma história muito interessante. Um desafio fantástico, porque não sabia exatamente por onde começar. Levei para lá
o Guilherme, que era diretor da FEMIG -
Fundação Hospitalar do Estado, em 2003.
Quando eu saí dessa empresa lá do Rio, vim pra Belo Horizonte, conversei com ele, falei: “Guilherme, eu estou com essa oportunidade, vou fazer isso…”, contei para ele todo empolgado “olha, cara, é uma oportunidade fantástica, isso não é pegar Toyota que tem que melhorar 10%, é pegar a coisa completamente quebrada e do zero transformar numa coisa, é um desafio”, ele ficou me olhando e a certa altura ele falou assim: “você está completamente maluco, está louco cara, não tem jeito, aqueles médicos são uma complicação, os funcionários são horrorosos, a dívida é incrível, o hospital está completamente acabado, você ficou doido, não vai conseguir fazer nada” “não, cara, nós vamos para lá, vai para lá junto comigo”. Custei a convencê-lo a ir para lá. Hoje, ele me agradece, ele fala: “foi uma oportunidade, foi muito legal, você é um visionário”, hoje eu sou chamado de visionário, na época, eu era chamado de maluco, porque parecia que não tinha solução para aquilo, mas é claro que tinha.
P/1 – Quem é esse colega seu?
R – Guilherme Risso, Diretor de Assistência da Santa Casa, eu sou o Diretor Geral. Médico também é cirurgião plástico
P/2 – Mas ele tinha formação empresarial?
R – Ele tinha sido gestor público, nunca tinha sido gestor de nada privado e a Santa Casa é uma empresa privada. Tem o foco em gestão, atende o serviço público, mas é uma sociedade civil. Ele não tinha formação em gestão desse tipo assim de instituição, ele havia sido superintendente da FEMIG,
uma rede de hospitais públicos. Gerir um hospital público é mais ou menos como gerir a Santa Casa com cheque especial, final do ano, você vira para o
Secretário: “manda mais um dinheiro que a conta não fechou”, a Santa Casa não tem para quem pedir. A conta tem que fechar, a gente tem que gerir aquilo ali e a conta tem que fechar. O desafio é completamente diferente. A Santa Casa tem uma parte que atende o SUS, e o SUS dava um prejuízo extraordinário. A gente teve que reverter o prejuízo do SUS, melhorar a medicina suplementar, crescer todos os outros negócios, refocar a Santa Casa. Um desafio incrível e numa fase da vida, quer dizer, eu já com 40 e alguma coisa anos de idade, uma coisa completamente nova. Considerando que sou movido a desafio, eu estava absolutamente na minha praia. Era completamente desafiador o que a gente estava se propondo a fazer. Tivemos muito apoio para isso e tivemos que agregar apoio. O primeiro desafio era mostrar para as pessoas que elas podiam acreditar. A Santa Casa tinha uma perspectiva. Não precisava fugir daquele barco que estava afundando, porque não estava afundando. O potencial ali era muito grande e as pessoas tinham que passar a acreditar. Numa das fotos que mostrei aparece o doutor Aluisio Faria
doando dinheiro para Santa Casa. Pensar em doação naquela altura era inimaginável, porque ninguém dava um centavo naquele lugar. O dinheiro sumia lá dentro, era um buraco negro. Absorvia energia de todo lado ali e não sobrava nada. A dívida era enorme. Com
funcionário, com
fornecedor, dívida
com não sei o que. O pessoal doava alguma coisa, isso se transformava em pagamento de dívida e não virava o que o doador gostaria de ver, aquilo se transformar em atendimento, em atenção às pessoas…
P/1 – Você estava falando dos desafios...
R – A Santa Casa tinha esse aspecto, principalmente o desafio em relação a pessoas, que é a coisa mais difícil. É uma empresa de prestação de serviços. Não é uma máquina, é gente. Pessoas têm fundamentalmente interesses opostos, quer dizer, cada um tem o seu interesse pessoal. Compatibilizar tudo aquilo com o interesse de uma instituição, então... O maior desafio era lidar com pessoas na Santa Casa, focar nas pessoas, dar
lguma direção a elas.
P/1 – Tinha quantos funcionários?
R – Na época era pouco, tinham uns três mil e poucos funcionários. Hoje nós temos quatro mil e quatrocentos. Tive que demitir funcionário quando eu entrei lá. Tem um caso engraçadíssimo resolvi demitir 300 pessoas, era novembro. Me
preparei,
aquela história toda, o pessoal fala que eu gosto de demitir, não tenho contradição quanto a isso, mas enfim, demitir essas pessoas. A Globo veio: “olha, tem uma entrevista aqui com um sindicalista, falando a questão do desemprego”… Não ...Foi uma rádio. O que eu fiz? Como eu tinha demitido 300 pessoas, claro que o cara do sindicato desceu o cacete. Então fui absolutamente lindo, falei, falei, dai, fui ver a matéria, na matéria o cara fala assim: “não, a direção da Santa Casa tomou uma medida dura, mas correta, demitiu as pessoas, mas pagou todos os seus direitos”, ou seja, o cara do sindicato defendeu e eu meti o cacete (risos), engraçado isso. Quer dizer, essas coisas aconteceram. Passado um tempo a gente lembra, mas na época, foi uma dureza, quer dizer, foi uma fase dificílima. A Santa Casa devendo vários meses de salário, devendo décimo terceiro. Nós resolvemos fazer uma festa de fim de ano, falei: “gente, vamos fazer uma festa de fim de ano, vamos fazer”, tem outro diretor da Santa Casa que hoje é muito meu amigo, um cara que eu motivei para ficar. Ele também me motivou a fazer muita coisa. “Vamos fazer essa festa, o pessoal: “vocês estão devendo meses de salário e vão fazer festa, ficaram doidos”? Fizemos a festa, a festa foi um sucesso, um espetáculo. Essa foi a primeira de uma série de festas que a gente faz no fim do ano, que a Santa casa nunca tinha feito festa dos funcionários, fizemos essa primeira. Peguei dos fornecedores presentes
e
na hora sorteamos os presentes para quem estava lá, foram muitas pessoas. Comparado com o que a gente faz hoje, a gente faz
festa para três mil pessoas,
num salão enorme
tipo uma Sala São Paulo, chamado Serraria Souza Pinto. Fica perto de uma estação ferroviária, uns armazéns que tem lá.
Devem ter ido
600, 700 pessoas no máximo, e todo mundo meio que com o pé atrás e tal, pintou um clima ruim no meio da festa, a gente ia sortear os prêmios,
eu fui lá na frente, peguei o microfone e falei: “ vamos sortear uns prêmios aqui”,
enfiei a mão no papel,
o primeiro prêmio que eu sorteei, falei assim: “que sorte, saiu eu, Porfírio, aqui”! A vaia dos
funcionários...Fizeram o que
queriam fazer -
vaiar. Eu dei uma razão, que não era a razão justa, (risos). Era uma razão equivocada vamos dizer assim, fiz uma piada e vaiaram, eu disse: “estou brincando, esse é do fulano”, eu pegava
outro
falava assim: “olha só, Guilherme Risso ganhou aqui”,
todo mundo vaiava,
o Guilherme Risso era o outro diretor, “ah, gente, estou brincando, quem ganhou não foi o Guilherme não, foi a fulana”, então, fui fazendo isso , quer dizer, foi um desafio lidar com essa...Estou
lembrando dessa história, dessa festa porque ela vai ser agora dia sete de dezembro, hoje é uma coisa absolutamente sem intenção, estamos fazendo uma festa cada vez melhor, mas essa primeira foi uma dureza, tinha que ter criatividade pra fazer aquilo. Então, Santa Casa foi isso. E agora, estamos
com um projeto, conseguimos melhorar a nossa relação de recebimento, conseguimos melhorar a relação com os médicos, conseguimos aumentar
o número de leitos. A
Santa Casa trabalhava com duzentos leitos abertos na época, hoje a gente tem 1045 leitos. Só do SUS. Mais os leitos do convênio.
Tem sido uma fase muito gratificante mesmo, muito legal, quer dizer, então, aquilo tudo que eu treinei antes em outros hospitais, que eu fiz o que eu aprendi na vida profissional, e o que a gente aprendeu na vida como pessoa também, uso hoje na Santa Casa. Estou muito feliz em fazer isso. Atualmente temos parceiros, as empresas acreditam, a White Martins acredita, não é? A White tem um contrato de 50 anos com a Santa Casa. Deu tudo certo, acertamos (risos). Foi ótimo. Hoje, está tudo bem lá, continuamos firmes com eles. Ficamos muito tempo sem pagar, já demos cano na White várias vezes, deságio, negociamos: “está bom, agora vamos pagar”. Não foi só com eles, quer dizer, foi com muita gente, mas hoje a gente está vivendo outro momento, felizmente. Hoje a gente se chama Grupo Santa Casa. Temos uma escola de enfermagem funcionando muito bem, temos plano de saúde, enfim, é dentro da linha, viver e vencer desafio. Levei para a Santa Casa o que eu tinha de bagagem mesmo. E a bagagem é tanto profissional, quanto pessoal. Vale a pena agora eu voltar um bocado atrás e falar da vida em família. Eu tinha deixado para falar mais ou menos no final, porque ela permeia essa história toda, é um capítulo totalmente diferente da história que eu contei antes, o adolescente que não teve chance de ser egoísta, porque tinha que tomar conta do pai com problema, tomar conta de casa. Fiquei muito individualista. Na fase que você quer viver com as pessoas, aos 20 e poucos anos eu não pensava em coisa de família, isso não passava na minha cabeça, não imaginava que… O que aconteceu? Quando conheci a Luciene vivia essa contradição, vivia no mundo invertido, quer dizer, era adolescente porque fazia coisas que eu não tinha podido fazer na época que estava cuidando do meu pai, aquela história toda. Eu a conheci, a gente começou a namorar, comecei a vislumbrar outra alternativa. Uma vida completamente diferente da vida da minha família. A gente casou, dois anos depois, nasce o meu filho o Henrique. Eu já estava com outra... Isso é que me deu base para fazer as coisas que eu fiz. Enfrentar aquelas dificuldades que eu contei, aquelas de trabalhar no Rio e tudo mais. Então, fomos vivendo os desafios
juntos, a Luciene me deu força demais, foi muito interessante ela era muito diferente do meu jeito, me completou muito, talvez deva ser assim mesmo, a gente deve conseguir conviver com quem é muito diferente da gente. Ela é completamente diferente. Eu fiz força a vida inteira exatamente por ter tido obrigação de algumas coisas muito objetivas.
O cotidiano, pagar conta, organizar a casa, passa ao largo isso ficou muito com ela. Ela me ajudou a focar, ajudou na minha vida profissional, a gente teve os meninos, primeiro o Henrique, depois a Julia. A Julia nasceu pertinho do meu aniversário, eu estava fazendo 40 anos, ou seja, não tive aniversário de 40 anos, foi ótimo, mas enfim, ela nasceu dia nove de outubro e o meu aniversário é dia três, Luciene com aquele barrigão. E a coisa fica mais divertida, porque dois filhos é melhor do que um. O Henrique tinha três aninhos quando ela nasceu, três para quatro anos, foi muito legal, a gente foi construindo as coisas,
devagarzinho, mudando para um apartamento mais legal,
fazendo outras coisas. Hoje moramos em Alphaville, num lugar que quando eu era novo, era mato.
A vida familiar é um capítulo à parte mesmo, acho que sem a vivência que eu tive, sem a dimensão de família que eu passei a ter com a minha própria família... É diferente do que eu vivi com o meu pai e com a minha mãe, com muita dificuldade. A gente ter que cuidar de uma pessoa quando deveria estar sendo cuidado, vamos dizer assim, isso inverteu um pouco, inverteu a ordem das coisas (risos), mas as coisas voltaram para ordem certa. É isso. Vou fazer 25 anos de casado no ano que vem. Ano que vem? É, já contei que esquecemos a data e isso absolveu os dois (risos)
P/1 – Hoje em dia, você consegue exercer a Psiquiatria?
R – Muito menos, atendo pouquíssimo no consultório, uma vez por semana, porque na verdade, a Santa Casa me absorveu muito. Tive que fazer uma opção, pela primeira vez na vida por uma coisa. Aquela história dos anos 90 de fazer quatro diferentes atividades profissionais simultaneamente. Na clínica atendia pacientes internados, psicóticos, quadro depressivo grave, quer dizer, pacientes que me exigiam muito tempo. Então, não posso fazer isso mais. Se eu tiver um paciente com problema, eu tenho um conflito de horário com a Santa Casa. Hoje, eu atendo muito menos no consultório do que eu atendia, atendo uma vez por semana. Tem semana que eu não atendo. Atendo clientes mais antigos, clientes que eu faço um acompanhamento para não perder contato com a clínica. Seria muito ruim, eu gosto. Realmente a Santa Casa me absorveu completamente, foi uma grande mudança.
Congresso de Psiquiatria eu já não vou há alguns anos, agora, nos de Administração Hospitalar, todo ano eu estou lá. Realmente estou
muito mais focado.
Medicina não é uma atividade também que permita uma divisão tão grande assim, não é possível, não dá.
P/1 – E porque a White por que não outra, teve alguma história marcante que a White esteve envolvida?
R – Quando trabalhei na Casa de Portugal lá no Rio foi muito interessante. começava um negócio que era um subproduto do trabalho da White. Eles são especialistas em fornecer um produto que é fundamental para medicamento, que é um gás. Oxigênio, gás comprimido, enfim, e outros gases medicinais. Eles têm uma expertise de gestão própria. Comecei um trabalho com eles nessa altura, talvez a atual direção da White nem saiba do que eu estou falando. Até porque nem conversei isso com o pessoal da White recentemente. Mas essa foi uma experiência interessante, então, eu tentei começar a fazer isso. O grande drama que o hospital vive é a gestão da estrutura meio, quer dizer, tudo que permite que a assistência funcione: água, luz, manutenção predial. Esse foi um projeto com a White, que não foi para frente. Saí do Rio e a coisa não andou. Depois disso, nem sei se a White trabalha nessa linha mais, mas com eles foi um trabalho que eu achei: “esse troço vai dar em alguma coisa”, porque os hospitais têm uma carência muito grande.
A gestão do equipamento médico que
tem contato com o gás que eles fornecem. Hospital tem que focar naquilo que é o seu negócio. Qual é o negócio do hospital? Saúde. Não é ficar fazendo manutenção em equipamento que quebra, trocando coisa, a gente quer alguém que faça isso e essa foi a idéia que eu tive com uma pessoa da White na época e que não dei andamento. Uma coisa que eu tenho certa mágoa por não ter ido para frente, acho que isso é uma oportunidade para todo mundo. Talvez um dia dê certo. Não sei se a White se interessou nisso, ou isso foi um beco sem saída e não andou, mas podia ser uma oportunidade interessante. Com a Santa Casa é um fenômeno extraordinário! A White está lá há 50 anos. Tentei encontrar, nem sabia como ia ser a condução disto, não sabia que ia ser tão pessoal quanto foi... Enfim, eu tentei achar o primeiro contrato, falei: “gente, eu quero o primeiro contrato com a White, que eu quero levar esse contrato lá”, ninguém achou o contrato: “então, encontrem uma Nota Fiscal antiga”, não conseguiram achar, até porque esse documento não está arquivado em nada ativo, está em arquivo morto, junto com outras coisas. Acharam dados lá que vinham dos anos 60, quer dizer, a White está na esta na Santa Casa há muito tempo, está lá por competência. Tivemos alguns desafios para enfrentar, a situação de inadimplência da Santa Casa nos levou a algumas situações de conflito, tivemos discussões duras. O representante de lá é uma pessoa amiga, gosto muito dele. A gente já tinha uma relação por causa da Fundação Hospitalar do Estado, ele salvou esse contrato, é verdade cheguei a ter problemas sérios, “estou num momento que a situação está complicada, se eu trocar de fornecedor, vai começar uma história nova, eu tenho crédito, começa uma história nova”. Uma vez que você rompeu com o passado, você tem essa perspectiva, mas não foi o que aconteceu. A White bancou as coisas que precisava, acertou, fizemos reajustes de valor e tudo mais, o preço caiu astronomicamente
nós fizemos um mix de produtos, começamos a tratar esse contrato de uma forma mais madura. Essa linha ”porque eu faço bem, eu faço o que eu quiser’, não cabe para nós. Não se tratam os outros assim. Na Santa Casa se tratava muito mal os fornecedores, não a White especificamente, mas tratava mal os fornecedores em geral. Acho que nós trouxemos uma relação mais profissional para a gestão. E por que a White? Porque tinha
um sistema que produzia oxigênio próprio, um dia um cara veio: “uma idéia miraculosa, olha, isso aqui é uma idéia fantástica, é baratinho, produz seu próprio oxigênio, vai ficar não sei quanto a menos”, então, fiquei pensando e disse: “gente, eu vou assumir a responsabilidade sobre uma coisa que eu tenho na Santa Casa, que funciona extraordinariamente bem há muito tempo, fornece um produto de alta qualidade, vou me arriscar a produzir esse troço no quintal”?
“Vamos dizer assim,
imagina se vou fazer isso, em hipótese nenhuma. Por que a White? A White é confiável, é antiga no mercado, ela tem uma usina próxima a Belo Horizonte. O oxigênio é produzido ali do lado, quer dizer, o fornecimento é absolutamente regular, nunca houve uma história. Trocar um fornecedor coerente, consistente e longevo não fazia sentido. Um fornecedor muito bom de um produto que é fundamental, que é um medicamento. O oxigênio é um medicamento. O oxigênio trata a pessoa você tem que tratar com o melhor. Não se deve colocar uma pessoa em risco, fazer uma aventura qualquer.
Com a vida das pessoas não dá para brincar, então, a White tem esse aspecto, é um nome, uma marca, uma grife.
P/1 – Já finalizando Porfírio, o que você achou desse projeto, a parceria da White com o Museu, 100 anos da White na industrialização no Brasil através de um projeto de memória? As pessoas vêm aqui e contam sua história.
R – Absolutamente surpreendente, eu não tinha idéia do que fosse. Achei ótima a idéia, achei fantástica, eu não sabia que existia o Museu, gostei demais de conhecer. Acho que a idéia é muito boa, perenizar a memória através das memórias individuais de cada um. Na verdade, no final das contas, você vai ter uma colcha de retalhos que completa, faz sentido. Não é narrada por um narrador que colheu as histórias, juntou aquilo e formou uma história própria escrita pela sua própria mão. É uma história contada por cada um. Um grande mosaico, que lido no conjunto, deve ficar muito interessante. Achei a idéia do Museu muito interessante, eu tenho pena que algumas pessoas não estejam aqui mais, a gente podia ter aproveitado muito. O sogro da minha irmã, que era aqui de São Paulo, faleceu com 104 anos de idade, absolutamente lúcido, teria sido uma história extraordinária. Vocês veriam a história de uma cidade contada por um professor que remou no Tietê, ganhou uma regata com prêmio, ele era um atleta. O Tietê era um rio limpíssimo com as encostas de mato. Uma cidade vazia em volta, quer dizer, um mundo que nenhum de nós nem sonha, outra época. Ele passou por tudo, você imagina, passou pela Revolução de 30, essa cidade cercada, quer dizer, viu tudo acontecer aqui nessa cidade. Isso contado por uma pessoa é muito legal. Narrado por um terceiro, que anotou e escreveu num livro, é uma coisa. Mas essa memória ao vivo que vocês estão fazendo, incrível, muito legal. Fiquei muito satisfeito, uma oportunidade que a White me deu também muito interessante de falar e viver, isso vai ficar guardado, vai ter um arquivo, vou ter uma cópia da história, que fica paras outras pessoas também, é muito legal. Achei ótimo. Tenho que agradecer a White acabei ganhando um presente deles no final das contas, gostei muito.
P/1 - Obrigada Porfírio, parabéns pela históriaRecolher