Depoimento de Jucileide Macedo Dias
Entrevistado por Lucas Lara
São Paulo, 09 de junho de 2020
Programa Conte Sua História
Entrevista: PSCH_HV852
Transcrito e revisado por Fernanda Regina
P/1 – Ju, bom dia. Seja bem vinda ao Programa Conte Sua História. Para começar, eu vou pedir para você m...Continuar leitura
Depoimento de Jucileide Macedo Dias
Entrevistado por Lucas Lara
São Paulo, 09 de junho de 2020
Programa Conte Sua História
Entrevista: PSCH_HV852
Transcrito e revisado por Fernanda Regina
P/1 – Ju, bom dia. Seja bem vinda ao Programa Conte Sua História. Para começar, eu vou pedir para você me dizer seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Jucileide Macedo Dias, São Paulo, 18 de maio de 1981.
P/1 – E você sabe a história do seu nome? A origem da sua família?
R – A minha família é baiana, sertão da Bahia, lá, por exemplo, minha mãe e meu pai são da mesma região. E na Bahia, no nordeste tem muito essa questão de composição de nomes, né? De juntar os nomes, então a mistura do meu nome é Ju com Leide. E, por exemplo, a minha irmã mais velha chama Jucileia, eu sou Jucileide. Aí, quando a gente era criança não dava para chamar de Ju, né? Porque são as duas, aí chama Leide e Leia. Então na minha casa eu sou a Leide, não sou a Ju e a minha irmã mais velha é a Leia, assim como várias, né? Na Bahia tem muito isso de misturar os nomes e ter alguma coisa diferente, assim. Então, conheci poucas Jucileides, até hoje eu acho que no Facebook eu já pesquisei e aí tem algumas, assim, e a maioria são nordestinas.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Raquel e José.
P/1 – Conta um pouquinho para mim sobre eles.
R – O meu pai era jardineiro, ele faleceu já faz nove anos, teve um câncer e ele tinha muito essa questão de conexão com a terra, né? Então nós crescemos, assim, com... Na minha casa tinha uma horta onde a gente cultivava ali alface, enfim, algumas coisas básicas. Então eu tenho até... Eu e meus irmãos também pegaram um pouco essa questão de cultivo, de terra, eu tenho várias plantas, adoro. Meu pai era, assim, como homem nordestino, muito duro, muito sisudo, tinha essa questão de não ter uma abertura emocional, então eu tenho sempre lembranças do meu pai sempre muito fechado, sempre muito na dele. Ele era o que sustentava a casa, trabalhava de madrugada, então à noite e durante o dia ele dormia, ele trabalhou por um bom tempo como porteiro, fora os bicos de jardinagem que ele fazia. O relacionamento...
P/1 – Ju, deixa eu só pedir, acho que a gente está com um chiadinho no som...
R – Vou tirar, melhorou?
P/1 – Agora melhorou. Desculpa, você estava falando do relacionamento deles.
R – Sim, sim. Então meu pai era essa pessoa sempre muito fechada, muito fechado, que veio muito da educação, daquela coisa do homem nordestino de ser muito... De ser duro, essa coisa que a criação veio trazendo. Já a minha mãe é a mulher que cuidava dos filhos, que dava o carinho que o pai não dava, que tinha essa coisa mais humana, assim, mais de estar presente, de valorizar muito a família, a união. A minha mãe ela é uma pessoa muito... Ela tem 70 anos, nasceu em 50 e até hoje ela é a figura de juntar a família, de valorizar essa questão da união dos irmãos, nós somos em quatro, né? Aí ela é a pessoa, que, por exemplo, o bairro que a minha família mora, ela é avó, então as pessoas vão lá, pegam bolo, pegam pão e sentam para prosear, assim. Ela era costureira, hoje ela não costura mais, costura bem pouco, então a minha casa sempre foi muito movimentada, assim, tinha sempre gente para levar costura. A minha mãe sofreu um acidente quando eu era bebê, o que fez com que mudasse muito a vida dela, a partir dali ela não podia mais trabalhar fora, então ela foi aposentada por invalidez. Aí ela sempre foi essa presença de estar em casa, de costurar, de cuidar dos filhos, é isso.
P/1 – Desculpa, qual foi o acidente? O que aconteceu?
R – Ela foi atropelada, logo quando ela voltou da licença maternidade, quando me teve, ela sofreu um acidente muito grave quando ela voltou a trabalhar em uma fábrica, a fábrica de costura, uma perua prensou ela no muro. Então ela teve várias questões no corpo, assim, teve que passar por muito tempo por cirurgias, várias cirurgias, para conseguir minimamente andar e movimentar o braço. Ela ficou uns dois anos em um processo de recuperação, né? Então muito tempo ela ficou de cama, cadeira de rodas, depois muleta, a gente cresceu meio vendo a minha mãe nesse processo de se recuperar disso que aconteceu. Eu era muito bebê, né? Então eu fiquei com a minha tia, a irmã da minha mãe, ela cuidou de mim durante esses dois anos que foi o processo da minha mãe se recuperar, porque tinha mais os meus dois irmãos mais velhos que é a minha irmã Jucileia e o meu irmão Ronaldo, eles eram também pequenos, né? Então a gente tinha aí dois anos de diferença cada, aí meu pai cuidava deles dois, enquanto a minha mãe estava nesse processo de hospital.
P/1 – Voltando para os seus pais, você sabe a história de como eles se conheceram?
R – Sim, eles são de uma cidade chamada Covão, bem ‘sertaozão’, assim, então a minha mãe conta muita história, meu pai não contava tantas histórias, mas a minha mãe até hoje adora contar os casos dela. Era uma cidade pequena, né? Tipo um vilarejo onde eram poucas famílias e meus pais se conheceram de lá, minha mãe teve um noivo, o qual não deu certo, depois ela começou a namorar meu pai. Meu pai veio para São Paulo, ali na questão da Revolução Industrial e tal, anos 70, aí a minha mãe veio depois, porque as minhas tias também, as irmãs da minha mãe, já estavam em São Paulo. Aí tinha aquela coisa de você ir para São Paulo para tentar a vida, aí minha mãe veio e já tinha contato com meu pai aqui em São Paulo, aí eles começaram a namorar, de fato, e casaram. A minha vó continuou lá na Bahia, meus avós por parte de pai continuaram também. Então o meu pai tem um irmão que mora aqui, que é perto, mora no Jardim Vera Cruz também, perto da casa da minha mãe. Mas a maioria da família do lado do meu pai continuou lá e eu não tenho muito contato, depois do falecimento do meu pai, a gente não recebeu mais muitas notícias. Agora a família da minha mãe são oito, minha vó teve oito filhos, dois continuam lá na Bahia, mas o restante está tudo aqui em São Paulo. A minha vó, meu avô paterno faleceu, aí minha vó veio ficar com os filhos em São Paulo também, depois do falecimento. Aí minha avó e meu avô por parte de pai já faleceram. A minha mãe conta muita história deles, que era uma relação... Meu avô também sempre muito machista, sisudo, inclusive, meu avô dormia na cama e minha avó dormia no chão, então coisas que eram bem difíceis, assim, que você aqui na cidade nem imagina. E é isso.
P/1 – E Ju, você falou dos seus irmãos, queria saber em nome de todos e como é que é a Ju nessa escadinha, aí, né? Eu sei que você já tem dois mais velhos, é isso?
R – Sim. Minha irmã mais velha é Jucileia Macedo Rocha, ela tem 42 anos, eu acho, por aí, ela é casada, tem duas filhas, a Gabriele e a Giovana, a Gabi tem 25 anos, fez essa semana, a Giovana tem 20... Vai fazer 22 agora em novembro, as duas tem uma doença rara, que é chamada Niemann-Pick, elas foram diagnosticadas muito, muito cedo. A Gabi tinha ali por volta dos cinco anos. É uma doença neurodegenerativa, então a Gabi hoje já é cadeirante, que veio essa questão da doença e a Giovana, que é a mais nova, também está caminhando para essa questão, assim, elas vão perdendo, elas fazem tratamento e tal. A minha irmã é casada, ela casou muito cedo, que é a realidade também, a maioria das mulheres quando você crescia na quebrada, então com 15, 16 anos, as meninas já engravidam ou casam, a maioria, né? Aí a minha irmã não foi diferente, com 17 anos ela engravidou do primeiro namorado, meu pai ainda morava em casa, os meus pais separaram quando eu tinha 12 anos, né? Mas, então, a minha irmã, por ser mais velha, teve essa questão de ser mais presa, assim, pelo meu pai, né? Meu pai não deixava sair, não deixava... Enfim, era da escola para casa, enfim, era isso. Aí a minha irmã, de alguma forma, casou, arrumou um namorado e logo engravidou, casou e eles tem esse casamento até hoje, então já são vinte cinco anos de casamento, o que também é diferente de muitas relações que começam e terminam também rápido, assim. O meu irmão tem 41 anos, assim, eles têm poucos anos de diferença, e nós, eu e ele, temos dois anos. Ele é Ronaldo Macedo Dias, foi casado... Ele casou também, mas assim, minha sobrinha tem 12 anos, enfim, ele casou um pouco mais tarde, na verdade, foi um relacionamento que não deu certo, aí a minha sobrinha, que é a Nayara, depois do término do relacionamento do meu irmão, com quatro anos a mãe dela foi embora, aí o meu irmão ficou cuidando dela, da Nayara. Na verdade, a minha mãe que cuida, né? Porque meu irmão trabalha fora, aí acaba que a educação da Nayara acaba acontecendo pela minha mãe, que é a avó e que também a maioria das famílias na periferia tem essa presença da avó, né? De criar os netos. Aí tem eu, o meu irmão mora... A minha irmã mais velha mora na rua da minha mãe, assim, são quatro casas. O meu irmão mora na mesma casa, assim, em uma casa no mesmo terreno, mas uma casa construída a partir da casa da minha mãe, quando ele casou, que a gente fala que são os puxadinhos, aí ele continua morando lá. Ele casou depois de novo, ele se separou recentemente, então hoje ele mora sozinho lá na casa dele. Aí tem eu, eu fui a pessoa que saiu de casa muito cedo, né? Eu saí de casa com 21 anos, quando eu comecei a trabalhar, eu comecei a trabalhar muito cedo com 16, lá em casa a gente era assim, então dava 15 anos a gente já tinha que trabalhar para ajudar em casa. Aí eu comecei a trabalhar em uma empresa, e dali, fui, fui, aí fui fazer faculdade, aí fui morar em Pinheiros e morei lá por 12 anos. Aí vem a minha irmã caçula, que mora com a minha mãe, que é uma filha de um outro relacionamento da minha mãe depois da separação, que é a Josy. Ela tem cinco anos de diferença, ela tem trinta... Eu tenho 39, ela tem 34. Aí ela mora com a minha mãe, ela foi casada, se separou e voltou a morar com a minha mãe. Então dos quatro eu sou a única que mora um pouco mais longe, tenho essa independência, assim.
P/1 – E como é que foi, Ju, crescer no meio de tantos irmãs e irmãos com idade próxima, como é que eram as brincadeiras quando você era criança? O que vocês gostavam de fazer ou de aprontar?
R – Então, nós morávamos, onde a minha mãe mora ainda hoje, em um lugar que era próximo da represa Guarapiranga ali, então... Era assim, eram ruas de terras, por um lado muito afastado, abandonado pelo poder público. Então não tinha asfalto, tinha muita violência na rua, ali nos anos 80, 90, pensando que a gente está no território distrito Jardim Ângela, que foi um dos lugares mais violentos do mundo na época. Mas, assim, enquanto criança nós tínhamos muita liberdade, de estar na rua, de poder brincar na rua, não tinha essa coisa como é hoje que tem carros, muitos carros que passam e tal. Então a gente brincava bastante, ficava até tarde na rua, inventávamos várias brincadeiras, tinha a represa que a gente, às vezes, dava uma escapada e ia para represa, tinha muito mato, muita natureza, né? Então tinha muito verde na época, agora tem muita ocupação ali e já não tem mais tanto, tanta parte de mata, assim. Mas foi uma infância muito boa nesse sentido de aproveitar o espaço que a gente tinha para criatividade, para brincadeiras, para brincar com as outras crianças do bairro, então tinha muito brincar na terra, de escorregar, enfim, de fazer casa na árvore porque tinha muita árvore. Então eu acho que teve... Brincar de queimada na rua era uma constante, jogar vôlei, jogar bola. Então no horário de verão a gente podia ficar até tarde na rua brincando. É isso, foi muito intensa. E enquanto irmãos, nós tínhamos muito pouco espaço, era uma casa pequena, onde os quatro ficavam em um quarto só e tinha um tecido, assim, que separava o quarto da minha mãe ali, mas era um pano, aí o outro era os filhos ‘tudo’. Então tinha muita briga, mas também era bem unido. Minha mãe sempre trouxe muito a questão da gente, tipo, ah, sei lá: “A gente vai morrer e vocês tem que cuidar um dos outros, assim”. Então a gente brigava bastante, mas a gente é muito unido até hoje, sabe? Eu tenho uma relação muito boa. Eu sempre fui a mais rebelde, eu diria, então a mais briguenta também, eu sempre fui a mais questionadora. Por exemplo, meu pai, a gente apanhava muito, foi uma infância com muita violência, né? Tanto a violência da relação dos dois, quanto a violência com as crianças. Então qualquer coisa era motivo da gente apanhar e eu era a criança que questionava “O porquê que você está me batendo”. Aí não tinha porquê e apanhava mais. E também quanto aos meus irmãos, de causar ali, de brigar e enfim. Era isso. A gente também se protegia muito nesse sentido, nessa coisa de violência de cuidar um do outro, de fazer o possível para não gerar um atrito ali e causar que meu pai batesse na gente. Então a gente era muito ali um cuidando do outro, quando apanhava, apanhava todo mundo e era isso.
P/1 – E como é que era a Ju na escola? Você se lembra, assim, do seu primeiro dia de aula? Qual é a sua primeira lembrança de escola?
R – Cara, eu não lembro. Eu tenho lembranças muito vagas, assim, da minha infância, eu acho que momentos mais marcantes foram muito da questão da violência, a questão da liberdade que tinha enquanto criança, da escola que eu odiava, mas, enfim. Eu lembro de algumas cenas, assim, da gente ir para escola porque era obrigada, não tinha muito prazer em ir para escola. Eu nunca fui a menina mais inteligente da sala e também não era a mais bonita. Mas eu conversava muito, assim, de ser tagarela. Aí eu tinha muita amizade com as pessoas que eram os mais bagunceiros e também com os mais inteligentes ali, eu ficava ali no meio de campo, não sei se aproveitando, mas eu ficava ali. Então eu passava de ano, conseguia boas notas e também conversava com a galera do fundão. Eu ficava meio ali no meio, então eu era amiga da nerd da sala, que era as pessoas que eram normalmente rejeitadas, que tinham o estereótipo de serem gordinhas, magrinhas, de serem as mais estranhas e também amiga da galera mais popular, assim. Os meus irmãos, por exemplo, o meu irmão é muito tímido, né? Aí nós estudávamos na mesma escola e meu irmão era muito na dele, eles usam óculos, o meu irmão e meu irmão mais velho aí o pessoal chamava eles de quatro olhos. E eu era a ‘revolts’ que ia atrás dos meninos para defender meu irmão, assim. Aí meu irmão tinha vergonha de repetir a comida, eu ia lá e repetia e pegava comida para eles, então até na escola a gente tinha essa questão de estar unido ali. Eu lembro de uma professora chamada Catarina, que era muito chata, assim. Eu acho que ela dava aula não sei o porquê, porque ela parecia que odiava as crianças cada dia que ela entrava na sala. Aí era aquela tensão da gente ir para escola, então aconteceu, esse ano, que foi o único ano que eu repeti, de eu, meu irmão e uns amigos da minha rua, a gente ia, falava que ia para escola, esperava bater o sinal, ficava do lado de fora, batia o sinal, voltava para casa falando que não tinha aula. Aí foi o ano que nós repetimos, o meu irmão já tinha repetido também, já estava na minha série, aí a gente cabulava a aula dessa forma. Ficava brincando enquanto isso ou fingia que tinha aula e depois voltava, que foi justamente o ano dessa Catarina aí que a gente odiava. Tenho também uma lembrança de quando eu tinha oito anos, que eu sofri um acidente na escola, não, a caminho da escola, então eu lembro que foi logo no início do ano, quando a gente estava com material novinho, era aquela coisa do cheiro do material, da mãe encadernar os cadernos e livros com aquele plástico lá todo quadriculado e tal, e tinha aquele cheiro de material novo, os cadernos sem orelha, era uma coisa muito gostosa, assim. Aí eu lembro que foi logo nesse início, que eu estava com esse material novo, eu fui atravessar a rua, conversar com alguém do outro lado, não lembro exatamente, aí veio um carro e me pegou. Aí eu acordei no hospital, desmaiei, não quebrei nada, assim, mas o carro me jogou longe e raspou tudo, o rosto, fiquei um tempo ali para me recuperar, fiquei bem, bem... Eu me olhava no espelho e eu estava bem mal, bem feinha, não ficou cicatriz, deu tudo certo. Eu lembro que minha mãe me dava uns camisetões e grudavam nas feridas, enfim. As lembranças da escola foram essas. Eu não era muito de brigar, eu acho que briguei poucas vezes na escola.
P/1 – Voltando para a questão desse acidente, você lembra de acordar no hospital, como foi esse dia, assim?
R – Eu lembro, sim. Eu lembro de acordar no hospital, assim, de não saber onde eu estava. E logo depois, tem uma cena muito louca, assim. Eu acho que eu nem contei, nunca contei isso para a minha mãe, mas foi um momento que eu vi meus pais juntos, eles chegaram meio juntos, de mão dadas, eu não lembro, mas que foi uma coisa que me deixou muito feliz, que era uma cena pouco presente, né? De eles estarem ali juntos e eu fiquei super emocionada com isso. Foi disso, assim. Essa é a lembrança que eu tenho no hospital. Aí a partir dali, eu sei que o rapaz que me atropelou me socorreu, mas eu não lembro, hoje eu não lembro do rosto dele, nem nada, então ele me socorreu em nível de hospital e aí meus pais chegaram lá depois.
P/1 – Você estava falando dos seus irmãos, dos seus pais, da relação e tal, da origem deles terem vindo da Bahia, existia algum costume, alguma tradição da sua família, sua família é religiosa, você lembra de alguma festa ou algum momento específico que marcava a rotina da casa?
R – Meus pais eram católicos, meu pai e minha mãe. E a minha mãe segue sendo também. Boa parte da família, que são os irmãos da minha mãe, viraram evangélicos, inclusive a minha avó, mas a minha mãe tem essa coisa da resistência e se manter em uma coisa que ela cresceu e tal. Aí, então quando a gente era criança, nós íamos muito à igreja, eu fui batizada, fiz primeira comunhão, fiz crisma, meus irmãos também. Então eu já tinha essa coisa toda encaminhadinha. Na igreja lá da minha rua, chama Santa Edwiges, então é uma igreja muito pequena, mas tinham as festas da Santa todo ano, tem quermesse, que é na igreja, então eu cresci em grupo de jovens, né? Então teve a questão da renovação carismática, eu era meio uma das... A minha irmã cantava na igreja, a minha irmã caçula. Aí era isso, a gente sempre participou muito da igreja, de novena, ainda hoje tem novena. Ano passado teve a novena de final de ano, que eu estava na casa da minha mãe, aí foi super emocionante, né? Elas levam Nossa Senhora, aí juntam as mulheres que fazem as orações e lê aquele caderninho lá da novena. Quando eu era criança, eu lembro quando eu comecei aprender a ler, dava um nervoso ler no meio das mulheres, que aí, né? Cada dia era em uma casa diferente e tinha as procissões, tinha o negócio da Semana Santa que a gente também fazia teatro lá na igreja, aí eu já fui mendiga, fui várias coisas, assim. Era divertido, eram coisas sociais que a gente tinha. Quando a gente era criança minha mãe ia nas reuniões da igreja, participava, ela sempre participou ativamente mesmo com as dificuldades de locomoção que ela tinha. Então ela levava a gente, nós ficávamos brincando do lado de fora e eles lá em reuniões, missa e coisas assim, o que era bem gostoso. Eu acho que a igreja teve um papel muito importante para tanto crianças e jovens terem um lugar para ficar, né? Em um cenário que a quebrada, que é abandonada pelo poder público, a igreja teve muito, com todas as críticas que tem, mas ela teve um papel importante nesse processo, inclusive político, né? Eu lembro de crescer e ver reuniões de base na época do PT lá atrás, do José Genuíno, então a gente cresceu nesse cenário e que me formou politicamente também, que foi importante.
P/1 – E falando dessas festividades e tudo mais, avançando um pouquinho nos anos, o que a Ju fazia para se divertir? Você comentou de estar sempre próximo de amigos, de ter amizade meio que com vários grupos diferentes e falou também da violência da quebrada, no caso. Então como é que foi crescer nesse ambiente? O que você fazia para se divertir quando você ficou um pouco mais velha?
R – Então, foi difícil crescer nesse ambiente, nós tínhamos muito essa questão de não ficar até tarde, assim, a gente tinha uma liberdade, mas também não podia exagerar. Então eu lembro de algumas fases assim, onde, para nós crianças, brincadeira as vezes eram ir ver corpos, assim? Então o cara foi morto ali, nós íamos lá, escondido das mães, porque as mães não deixavam, aí a gente ia ver alguém que foi baleado em tal lugar. Tem um campinho perto da casa da minha mãe onde teve uma manhã que amanheceu dois mortos, né? Aí o pessoal começou a brincar falando que eram os goleiros do time que foram assassinados ali. Aí a gente ia, contava e aqueles corpos ficavam, às vezes, um dia inteiro para ser retirado e aí era nesse processo: ressecados pelo sol. Aí você via um carro da polícia, você já sentir aquele tremor, porque você sabe que ali tinha algum corpo, que a polícia ia ficar lá até vim o IML (Instituto Médico Legal) e retirar aquele corpo, né? Então era a cena das mulheres chorando, a maioria mães, enfim. Isso foi uma realidade, eu lembro de uma cena quando a minha irmã estava jogando vôlei, a mais velha, jogando vôlei, ela adorava, aí nós estávamos sentadas na calçada, assim, um monte de criança assistindo, o pessoal jogando. Daqui a pouco veio um carro atirando para tudo quanto é lado, a minha irmã me puxa e desce, tem um quintal de uma vizinha, que era descida, ela me puxa, eu não sei como e me arrastou para lá, assim, todo mundo correndo. Eu lembro disso também na escola, quando eu tinha ali uns treze, quatorze anos, de a gente estar lá do lado de fora e começar um tiroteio, você ter que correr, eu lembro que eu caí e me machuquei toda. Então eram cenas meio fortes, assim, se cresce com essa violência presente. Ao mesmo tempo que você começa a normalizar de alguma forma aquilo, né? Então várias pessoas, homens, a maioria são homens, da minha rua morreram, aí você tem essa imagem de “Você não pode ser bandido que você vai morrer”, essa coisa assim. Ao mesmo tempo, tinha os bandidos mesmo que protegiam de alguma forma a comunidade. Aí, por exemplo, de não poder assaltar as casas ali, então era muita briga, na época, por tráfico, eram outras questões, não existia a violência que existe hoje, por exemplo, de você estar em um ponto de ônibus, passar uma moto e ficar roubando os trabalhadores. Então tinha, que eram os chamados bandidões, que protegiam de alguma forma a comunidade para que você não sofresse alguma coisa. Então mulher chegava tarde ali e tinha uma certa proteção. O que mais? Para me divertir, quando eu comecei a crescer, assim, meus pais separaram quando eu tinha 12 anos e isso influenciou muito na minha liberdade, de alguma forma. Mas, ao mesmo tempo, era uma liberdade que eu saia, às vezes, saia escondido. Eu era uma menina bem rebelde, eu dei muito trabalho para a minha mãe porque desde criança eu era a que questionava, que brigava e não brigava só com meu pai, brigava com a minha mãe, brigava com meus irmãos, que era uma forma de... Hoje, né? Já entendendo, era uma forma de me colocar contra aquilo tudo que estava acontecendo, então era uma menina muito revoltada, uma criança muito revoltada. Aí quando eu cresci, os meus irmãos não eram, não davam trabalho nenhum, assim, mas eu cresci eu queria participar dos bailes, queria ir e minha mãe não deixava. Aí, às vezes, eu saia escondido, ou saia e falava que ia chegar em tal horário e não chegava. Eu lembro de várias vezes chegando a minha mãe estar lá sentada, esperando. Aí ela, por exemplo, para sair assim, era como se fosse funk hoje, tinha as quermesses lá no Jardim Ângela, tinha o Clarice, o Jardim (Beck?), eram quermesses bem famosas onde tinham show dos Racionais, bem lá atrás e eram muito cheias e eram muito cheias, assim, e muito perigosas. Então você estava lá na quermesse, estava a galera passando armada, mas era o lugar que a gente tinha para frequentar, assim. Aí eu ia com uma amiga minha, a gente saia bastante, ia nos sambas, isso com 15 anos, eu estava nessa fase aí de sair, de não querer muito ir para escola, faltava muito também, ficava do lado de fora tomando vinho, enfim, bagunçando. Foi essa aí, eu dei muito trabalho para a minha mãe, tadinha, ela fala hoje que graças a Deus passou. Eu acho que o que mudou foi que aí as minhas amigas engravidaram, a maioria, foi uma... Eu penso que foi um, não sei se sorte, né? Mas foi por muito pouco, para mim, já estava dado que meu futuro seria isso: eu iria engravidar, eu iria casar, a gente estava ali nessa, tinha interesse por vários caras do território, ali, então seria mais ou menos esse cenário de casar com alguém dali, de casar super cedo. E o que aconteceu que mudou um pouco isso foi começar a trabalhar com 15 anos, eu comecei a trabalhar em uma empresa na 9 de julho, aí eu ficava muito tempo no deslocamento, aí, enfim, comecei a ficar cansada e era isso.
P/1 – Isso que eu ia te perguntar, como é que foi esse começo do trabalho tão cedo? Como é que era essa rotina de acordar, sair de casa e ir para esse trabalho distante? O que era esse trabalho?
R – Então, a maioria, lá em casa todos os filhos começaram a trabalhar cedo, então dava 15 anos, a minha mãe já começava a ver alguma coisa para a gente trabalhar, por uma realidade, para ajudar em casa mesmo, sustenta-la em casa. Então o meu irmão trabalhou no mercado, a minha irmã trabalhava no mercado Sonda. Aí, na minha época, que foi de começar a trabalhar foi de... Eu arrumei, uma amiga, na verdade, me indicou um curso chamado Camping, que é tipo um menor aprendiz hoje, onde você aprende lá, eu aprendi a passar fax, gente, fax, nem existe mais! Mas, enfim, passar fax, tirar xerox, atender telefone. Minha mãe pagou, na época, um curso de computação para eu ir, assim. Enfim, que era aquela coisa da tela preta do (dos?) [36:55], era uma coisa surreal, eu sou bem velha. Aí eu comecei a fazer esse curso, as minhas amigas todas, na época, fizeram, todas que eu conhecia da escola começaram a trabalhar menos eu, demorou um ano para eu ser chamada, porque depois do curso, você é chamado para fazer entrevistas. Aí eu comecei a fazer algumas entrevistas e não passava nas entrevistas, aí eu fiquei, a minha mãe perguntava: “Você deve estar falando alguma coisa nessas entrevistas que você não passa”, assim, como ela já me conhecia, por eu ser uma pessoa bocuda, respondona, ela achava questionadora, achava que eu me comportava mal nas entrevistas. Até que eu fui chamada para uma entrevista de uma empresa multinacional francesa, aí era engraçado, porque no curso a pessoa falava: “Ah, você leva um livro para se mostrar intelectual”. Aí eu levei um livro que eu acho que eu nunca nem tinha lido, que era esses livros de vestibular, acho que era José de Alencar, não sei, um livro muito chato, que eu nunca li. É engraçado que na entrevista a pessoa falou: “Ah, que legal, você gosta de ler” e era tudo mentira. Acabou que eu passei, demorou a resposta dessa entrevista, mas aí eu passei. Eu era para ser a menina da xerox, aí eu fui trabalhar, até para fazer a entrevista foi difícil porque foi em um lugar próximo a 9 de julho, que é ali na Cidade Jardim, ali no comecinho da 9 de julho, eu fui parar lá perto do Terminal Bandeira. Então pensa em uma menina com 15 para 16 anos, da periferia, que não sabe andar em São Paulo, lá no centro vendo aquela cidade, parecia uma menina do mato. Aí demorou um pouco para eu achar e deu certo, peguei o ônibus certo, desci e fui fazer entrevista. Aí comecei a trabalhar nesse lugar, o que foi uma abertura muito grande, né? De mundos e de universo. Era uma empresa de luxo, que eles falam, mercado de luxo e era uma disparidade de onde eu vinha para onde eu ia todos os dias. Ali eu fiquei a menina da xerox por três anos, então eu fazia compra de material de almoxarifado ali gerais e cuidava das xeroxes, as pessoas mandavam documentos para fazer xerox. O que mais?
P/1 – Você lembra o que você fez com o seu primeiro pagamento?
R – Eu lembro que eu recebia muito pouco, era 125 reais, era muito baixo, mas tinha uns tickets na época, que era até de destacar e vale transporte e que o ticket era muito bom, e eu lembro que eu fui no MC Donald’s pela primeira vez na vida, que era um sonho. Aí eu comia muita besteira, adorava ir ao MC Donald’s, pisar lá e eu ajudava a minha mãe. Então acho que o dinheiro foi para a minha mãe ali, a gente, na verdade, a realidade era essa de ajudar em casa, né? Aí eu acho que a maior parte foi isso. Aí a questão do ticket a gente vendia, assim, não podia, mas a gente vendia porque era um valor bom, aí eu vendia uma parte, a outra parte comprava comida, mas aí eu comia cachorro quente, às vezes, para economizar para o final de mês. Essas coisas assim na rua mesmo, sabe?
P/1 – Aí você ficou nessa empresa por três anos, como é que foi depois, você voltou a estudar, você foi para outro lugar, como se encaminhou?
R – Então, uma coisa que você perguntou de como era esse transporte, eu saia muito cedo, eu entrava tipo oito da manhã e eu saia meio cinco e meia, seis horas, era muito cedo porque hoje já tem trânsito, na época era muito mais trânsito, tem a M'Boi Mirim, que teve um alargamento da M'Boi, mas antes tinha um trânsito infernal. Tem uma ponte perto da casa da minha mãe, essa ponte travava, o povo fazia protestos nessa ponte e passava só um carro por vez. Então muitas vezes demoravam três horas para chegar no trabalho, praticamente. Eram ônibus cheios, eu passava mal porque eu tenho a pressão baixa, então muitas vezes eu passava mal porque eu não conseguia sentar, era um caos. Para voltar, eu ia para escola, né? Na época, eu estava estudando também, terminando, chegava em casa tarde, então era um caos, porque você entrava no ônibus e ficava rezando para ter alguém conhecido, porque do ponto de ônibus até a casa da minha mãe, você tem que andar aí uns dez minutos. Aí tem alguns pontos que são bem escuros, por exemplo, esse campinho que eu falei, que era um lugar de violência, que não tinha muita iluminação e você passa ali beirando esse campinho, e muitas vezes eu estava em um ponto, no outro eu começava ali corria, corria, corria, bem rápido para chegar no outro ponto onde não tinha iluminação. Já aconteceu de um cara, uma vez, correu atrás de mim, então era um caos, a gente enquanto mulher era muito pesada essa preocupação de você entrar no ônibus rezando para ter alguém conhecido para te proteger, para você voltar. Às vezes, meu irmão ia me buscar no ponto, mas era pesado para ele também. Enfim, era isso. Na empresa, eu trabalhei três ali na xerox, na verdade, o contrato do Camping lá, que foi o curso que eu fiz, era de um ano, aí depois de um ano a pessoa que cuidava ali do RH, cuidava da gente, porque tinha o office boy, tinha eu o office boy, enfim... Era a galera menor aprendiz, que a gente é amigo até hoje, é muito engraçado. Aí ela pegou depois de um ano, ela falou assim: “Ah, a gente vai renovar, porque a gente não quer contratar, todo ano fica isso de ensinar todo serviço, de confiar”. Aí eles falaram que iam renovar a equipe inteira, que era o Gil, que era o office boy, eu que era da xerox, enfim, essa turma. Aí depois, eu fui ficando, renovou, renovou, ficaram três anos. Depois de três anos, eu tirei coragem não sei de onde, aí eu fui falar com a menina do RH falando que eu queria aprender outras coisas. Eu era maloqueira, né? Aquela menina de quebrada que ia nos, pancadões hoje, né? Mas que ia nas quermesses, falava bem errado, aquela coisa de falar errado no sentido de gírias, eu era aquela menina, tal. Aí eu cheguei, falei que eu estava terminando os estudos, que eu tinha terminado e queria aprender alguma coisa diferente, se eu podia ficar na recepção, que recepção já era uma promoção para mim. Aí a menina do RH falou assim: “Ah, ta bom, por enquanto não tem nenhum lugar, assim, mas interessante você trazer isso, tal”. Aí, depois de um tempo, teve uma das marcas, que é um grupo de luxo francês, mas eu trabalhava na parte de bebidas, que é uma marca chamada Chandon, tal. Aí eles fizeram, na verdade, o grupo foi comprado, a Chandon, que é brasileira, foi comprado por esse grupo francês que é LVMH, onde tem a parte de cosméticos. Aí uma das marcas, que eram várias marcas, tinha uma menina do marketing, que precisava de uma assistente e ela conversava muito comigo, então, eu converso pouco, eu virava meio amiga da galera do escritório, eu era meio a menina da xerox que era divertida, enfim. E a Sheila conversava muito comigo e quando ela foi procurar alguém no RH, ela não imaginava, não passou pela cabeça dela me chamar, nem nada, até porque, não sei, assim. Aí o RH falou: “Tem a Ju que veio, falou que tinha interesse”. Ela falou: “Ah, é verdade?”. Aí ela veio falar comigo, perguntou se eu tinha interesse, se eu queria aprender e era louco porque eu via todas as áreas da empresa, então tinha o pessoal da contabilidade, pessoal do financeiro, pessoal de importação, enfim, de todas as áreas, eu via a galera meio ali, de social, meio quadrado, mesmo sem saber de fato aquilo, o que representava cada coisa. Mas eu via ali e falava: “Ah, esse pessoal parece... Essa área parece interessante”, ficava imaginando, assim, as pessoas... Para mim, seria qualquer área, mas lá no inconsciente eu imaginava que o pessoal do Marketing era mais legal, porque eram pessoas mais descoladas. Aí acabou que a Sheila, que é do Marketing, ela precisou de alguém. Aí ela falou assim: “Ah, Ju, legal, eu posso te ensinar algumas coisas, a princípio você vai atender telefone, eu vou te ensinando aos poucos as coisas”. Aí foi que eu fui para, depois de três anos, eu fui trabalhar com ela, aí ela foi me ensinando aos poucos as coisas. E ela me falou que seria importante fazer uma faculdade, eu falei: “Nossa, imagina, eu nunca tinha pensado em fazer uma faculdade na vida”. Não era uma realidade, porque na época não existia Prouni (Programa Universidade para Todos), não existia nenhum programa público para incentivar o pessoal da periferia a fazer uma universidade. Eu falei: “Não, eu não consigo”, ela falou: “A empresa pode pagar uma parte da sua faculdade, você tem que escolher um curso que vai ser importante para você continuar aqui”. Eu não tinha muita saída, eu fui fazer Turismo na época, porque eu achei que Turismo era para viajar, depois de um ano de Turismo, eu descobri ou você vai trabalhar na hotelaria, ou você vai trabalhar em uma agência de turismo, que você não ia viajar necessariamente e depois eu fui fazer Comunicação, Propaganda e Marketing, porque a Sheila falou: “Ah, eu acho que você tem esse olhar mais estético, mais essa pegada de comunicação social”. Dali eu fui, passei, fiz a Anhembi Morumbi, a empresa pagava 70%, eu pagava o resto e mesmo assim era difícil, então eu terminei a faculdade devendo um ano ainda, foi bem pesado, assim.
P/1 – E como foi essa sensação de entrar na faculdade, como foi para você, para sua família?
R – Foi muito legal, assim, para a minha mãe, ela ficou super orgulhosa, eu fui a primeira, né? Da família inteira a fazer uma universidade, a entrar em uma faculdade, então foi motivo de orgulho para todo mundo. Hoje a maioria dos meus primos já fizeram faculdade, aí era isso, né? Você está estudando, você está em uma empresa bacana, então era uma coisa de sonhos, assim, né? Aí na faculdade, era aquilo, porque, na verdade, antes de entrar na faculdade, eu fiz cursinho na USP, tem um cursinho lá chamado Psico USP, que é do pessoal da Psicologia, e eu fiz cursinho, só que era aquilo, eu saia da USP, ia para casa, chegava uma da manhã para sair às seis. Assim, você nunca vai passar no vestibular sem esse tempo para estudar, aí eu não passei no vestibular, na época, o que me deixou bem mal, assim. Foi isso, a Sheila foi trazendo essa coisa de: “Não, vamos fazer uma faculdade, a gente paga, acho que você não consegue pensar em uma faculdade pública hoje, precisa estudar e tal”. Aí foi quando eu entrei na faculdade, aí era isso, a Anhembi Morumbi era uma faculdade de playboy, porque quem podia pagar uma faculdade eram os pais que pagavam, a maioria, então, para mim, era uma coisa muito cansativa, porque eu chegava cansada na faculdade. Mas fui fazendo, a gente conseguiu, passei em tudo lá. Eu tinha um grupo na faculdade, a gente era os excluídos, como sempre, né? Na escola eu me aproximava da galera que era mais inteligente, e esse grupo era de quem também estava trabalhando, que estava precisando fazer uma faculdade para melhorar o currículo, eram os estranhos da escola, porque a maioria eram filhinhos de papai, que os pais pagavam ali a faculdade. E esse grupo era o mais interessante, por exemplo, a gente fez um trabalho do Almodóvar, aí ninguém conhecia Almodóvar na classe, na sala, eram dois gays, uma menina toda tatuada da cabeça aos pés, que é a Mari, e eu, a alternativazinha, então era divertido também, ao mesmo tempo, deu para aproveitar.
P/1 – E nessa época você já tinha mudado de casa, você ainda morava com a sua mãe? Como foi?
R – Então, foi aí que eu comecei a estar muito cansada, fazendo faculdade e trabalhar, chegar em casa tarde, sair cedo, era bem puxado, assim, porque uma coisa era quando eu fazia, estava terminando lá a escola pública, era perto da minha casa, então eu já chegava do trabalho, ia para escola, mas em dez minutos eu estava em casa, pegava um ônibus, estava em casa. Aí a faculdade era na Vila Olímpia, aí até chegar em casa também era um processo, os ônibus madrugada, à noite, demoram muito mais, então eu chegava por volta da meia noite, uma hora da manhã para sair às seis. Aí nessa época, foi quando aconteceu de um cara correr atrás de mim e também eu comecei a chegar muito atrasada no trabalho. Aí a Sheila pegou e falou assim: “Ju, porque você não pensa em um lugar, morar mais perto”. Aí de novo: “Imagina que eu vou morar mais perto, não tenho nem condições”. Meu salário continuava baixo, eu estava ali como menor aprendiz, continuava super baixo o salário, aí ela falou: “Não, tem pensionato, tem república de estudantes, tem lugares que pode ser que você consiga”. Aí ficou um tempo, depois ela chegou e falou assim: “Ah, encontrei um lugar, indicaram um lugar aqui em Pinheiros, que é só de mulheres, que pode ser que você goste e sua mãe deixe você se mudar”. Aí eu falei: “Sheila, eu não tenho dinheiro, eu preciso ajudar em casal e tal”. Aí ela falou assim: “Não, eu posso te ajudar a pagar e durante tanto tempo e lá na frente você depois me paga”. Aí ela pagou metade, durante seis meses aí do meu aluguel, uma república de estudantes, onde dividia quarto, ali na Cardeal Arcoverde, então com 21 anos, eu fui mudar, eu me mudei para lá, foi quando eu estava também na faculdade, aí foi isso. Na época, eu tinha um namorado, mudou tanto a minha vida que aí terminei namoro, muita coisa aconteceu a partir daquele momento. Para a minha mãe foi difícil, né? Sair de casa, ela aceitar eu sair de casa, morar sozinha, morar na cidade, minha mãe fala que é cidade, né? “Filha, você vai para a cidade?”, enfim. É isso, foi um momento de muita mudança ali. E ali na pensão eu conheci, como era na Cardeal, tinha muito estudante da USP e da PUC, que vinham do interior, que moravam muito longe e precisavam morar mais perto. Aí eu conheci um monte de mulherada que era politicamente engajada, enfim, que tinha outra formação ali, que era diferente da minha, então eu era a menina da quebrada, que estava ali naquele meio e que foi muito legal, porque me abriu para várias coisas, a cabeça, de conhecer outras culturas. Por exemplo, de ir em vários lugares ali tipo sambas que eu curtia ali no Ó do Borogodo, enfim, aproveitei bastante também essa fase. Eu fazia faculdade, conseguia me divertir, trabalhava, ia a pé para o trabalho, porque nessa época o trabalho era na Avenida Brasil, então eu ia andando praticamente, a qualidade de vida é outra coisa, é muito bom.
P/1 – E quanto tempo você ficou lá? Você terminou a faculdade? O que aconteceu depois disso?
R – Eu morei na pensão, eu acho que morei uns quatro anos lá, depois eu fui morar em um apartamento com umas amigas, eu fui mudando, assim, umas cinco vezes, sempre nesse processo de dividir apartamento, de conseguir pagar mais em conta. Mas, assim, em um todo eu morei em Pinheiros doze anos, ali Vila Madalena, Pinheiros. Na empresa, eu me formei, continuei nessa empresa, a Sheila saiu, aí foi o processo de ter que me provar enquanto profissional, porque a pessoa que era de referência, que estava ali, que me cuidava, que me ajudava e que me ensinou muita coisa. Então ela me ensinou a mexer em ferramentas importantes como Photoshop, a entender essa coisa de universo de imagens e tal, de estética, ela saiu e aí eu tive que me provar enquanto, realmente, de fato, profissional. Aí depois veio uma outra pessoa, que não entendia muito de imagem, de edição, acabou que isso foi um diferencial para eu ficar na empresa. Então eu comecei a mexer em Photoshop, ali minimamente no Ilustrator, então, de cuidar dessa parte de identidade visual das empresas. Nessa marca, que eu trabalhei eu fiquei uns seis anos, mais ou menos, que ali era da parte que eu fui de assistente, que eu fiquei um bom tempo, até cuidar ali... Na verdade, não sei se coordenadora, porque eu nunca tive um cargo muito alto nesse sentido nessa empresa. Então era sempre, por exemplo, as estagiarias que começavam na empresa, elas já chegavam com outras línguas, falando outras línguas, já chegavam com um currículo, tipo FAAP, FGV, então as estagiárias já chegavam em um nível hard, e eu era a menina que veio da xerox, que estava aprendendo, que tinha que ficar provando a todo momento a minha competência no sentido de profissional. Aí eu fui ficando, eu comecei a cuidar muito dessa parte de visual merchandising, então tinha o lançamento dos produtos, que eram perfumes, aí eu cuidava toda a parte de mandar produzir banner, pancarte, de mandar o material para as lojas do Brasil inteiro, de falar com fornecedor de banner, de negociar valores, então eu fazia muito isso, eu comecei a me especializar mais nessa área, de ponto de venda, de PDV. Aí depois, nessa parte de grupos, assim, da empresa, uma marca se uniu a outra. Aí uma marca x tinha mais gama de produto, portfólio, tinha cosméticos, maquiagem, tal, tal, tal, se uniu com essa que eu trabalhava que eram só perfumes. Então essas marcas se juntaram, aí a equipe, tanto do Marketing, quanto Comercial, ficou dessa marca maior. Aí nós fomos demitidas, eu, mais a gerente comercial, enfim, uma galera dessa outra marca. Eu fiquei desempregada e depois disso eu fui trabalhar em uma outra marca... Ah, sim, aí eu já tinha me formado e tal e eu fui trabalhar em uma agência de comunicação, agência de publicidade, era uma agência pequena ali na Berrini. Aí eu falei: “Bom, me formei, preciso saber como é que é isso”. Fui trabalhar nessa agência como assistente de planejamento. Trabalhei um ano nessa agência, a agência fechou, faliu, os sócios quebraram, tal. Mas, assim, foi bom porque eu percebi que eu não gostava de agência, achei um saco, é aquela coisa de status, as pessoas acham legal ficar trabalhando todo dia, virando a noite, e assim, eu não me adaptei. Quando eu estava nas outras empresas, eu tinha horário para sair, tal, não curti tanto trabalhar em agência. Depois eu saí, quando fechou. Aí eu fui chamada por uma mulher de uma das marcas que eu trabalhei lá atrás, essa empresa, eu não trabalhei direto com ela, ela era de outra marca, mas a gente se conhecia, todo mundo estava trabalhando no mesmo escritório, né? Era separado por baias. Aí ela falou: “Ju, estou trabalhando em tal marca, estou aqui como gerente de Marketing, queria te chamar para você me ajudar aqui nessa parte de ponto de vendas”. Aí eu fui trabalhar com ela, essa era uma marca de super luxo, assim, os cosméticos custavam, um creme lá 800 reais, antirrugas. Aí eu cuidava também dessa coisa de móveis no ponto de venda, de como colocar o layout, né? Tipo você tem que colocar os cosméticos, tipo você tem uma área dos olhos é onde você coloca os produtos que você quer vender de fato, que vão sair, assim como no supermercado, você tem ali uma linha racional para aquilo. Aí eu cuidava disso, de ver esses posicionamentos da marca nas farmácias, nas drogarias, em lojas de cosméticos no Brasil inteiro. Trabalhei ali um ano e meio, não sei se dois anos. Ah, sim! Aí veio uma marca, eu fui chamada para uma empresa que só tinha fora do Brasil, ela veio para o Brasil, que é uma grande marca de maquiagem, loja, que chama Sephora, a Sephora. Aí a marca estava chegando no Brasil e a primeira loja foi ali no JK, que é naquele shopping classe A. Aí a diretora, que era americana, ela também me conheceu no grupo que eu trabalhei lá atrás, na primeira empresa, com a Sheila. Aí ela falou: “Ju, a gente está trazendo essa marca para o Brasil e eu queria alguém para cuidar da parte de visual merchandising, ponto de comunicação, ponto de venda. E eu queria que fosse você”. Aí eu saí dessa outra empresa e fui chamada para trabalhar nessa. Era um desafio, né? Bem grande, assim, de trabalhar. Aí foi um desafio você montar uma loja, você tinha toda a amostra de material, que você tinha que chegar na qualidade, tinha tudo ali, você tinha que, por exemplo, os banners, os painéis, você tinha aquele tipo de material. Então o meu papel era encontrar fornecedores, fazer teste, mandar para eles lá fora em Nova York para validarem aquele material, aquelas amostras, você tinha que estar em um nível igual, assim. E adaptar os guides que vinham de fora, os guias de comunicação para as marcas. Então cada marca tinha que mandar imagem de tal formato, aí eu cuidava desse processo. Aí eu fui trabalhar lá, fiquei uma média de dois anos, só que aconteceu que você trabalha muito, né? Então essa parte de ponto de vendas, assim, começou a abrir outras lojas em outros estados, eu viajava, enfim, era um processo de trabalho, muito trabalho, muito trabalho. Era isso, tinha que trocar vitrine em tal data, e você tinha que trocar em todas as lojas ao mesmo tempo e organizar equipe de troca, fornecedor tem que mandar RG, você tem que contatar o shopping, enfim, aí não dava certo, era aquele estresse, assim. Aí eu comecei a adoecer nesse processo de criar uma síndrome do pânico, comecei a ficar deprimida nesse processo. E também tinha a questão de diferença, né? Então eu estava em um shopping, que era o JK almoçando, eu estava ali com o pessoal, frequentava aqueles lugares, morando na Vila Madalena, e, ao mesmo tempo, a minha família seguia o mesmo destino que era, estava ali a minha mãe, a minha família, um primo sendo assassinado pela polícia, enfim. Tinha essa disparidade de coisas e isso mexeu muito comigo psicologicamente, era uma coisa que eu carregava, que eu via como uma culpa, assim, sabe? “Ah, eu estou aqui, mas os meus não estão”. Como que é isso? Eu não conseguia ficar em paz com isso, por mais que as pessoas diziam ali que “Nossa, você virou uma executiva, você está em um emprego dos sonhos, morando em um lugar dos sonhos, você é a mulher de sucesso”. E eu não conseguia engolir isso, sabe? Dali eu desenvolvi uma bulimia, que vinha crescendo cada vez mais que era uma coisa de angústia, de botar para fora as coisas, eu não conseguia lidar com aquele cenário, comecei adoecer mesmo. É isso. Aí, enfim, eu fiquei nessa marca até pedir demissão para sair, depois eu trabalhei em uma outra marca que era de joias, aí eu fiquei um tempo sem trabalhar, aí eu acho que foi um ano mais ou menos, aí comecei a procurar serviço de novo, aí caí em uma empresa de joias que também estava nesse processo de crescimento, de abrir o mercado, de abrir filiais no Brasil inteiro. Então era uma coisa meio frenética, tinha um objetivo de abrir, sei lá, quarenta lojas em tantos anos. Aí para cada abertura você tem que viajar para o lugar, você tem que ir lá ver tapume, desde o tapume até às questões depois de vestir as lojas, a loja estar cem por cento pronta para abertura. Aí tinha prazos, prazos de shoppings, enfim, são várias questões.
P/1 – E quando tudo isso deu a virada na sua cabeça?
R – Qual virada, assim?
P/1 – Quando é que você decidiu mudar o que você estava fazendo, ter uma iniciativa sua, como isso aconteceu?
R – Então, foi nesse processo que eu comecei a adoecer, a ficar muito deprimida, de não ver sentido nas coisas que eu fazia, nos atos, enfim. Me senti muito ansiosa, eu ficava muito ansiosa com tudo, aí eu já não dormia direito, aí você começa a ficar naquelas piras de não estar bem mesmo. Aí eu comecei a fazer terapia, na verdade, eu fazia terapia já há um bom tempo, mas mesmo assim, a minha terapeuta falava que eu tinha que me cuidar, que eu tinha que aceitar que eu estava mudando, o processo. E para mim, aquilo não fazia sentido, assim. Eu tinha que, parece que ter um propósito de vida, ter alguma coisa, alguma coisa estava me angustiando nesse processo. Aí nessa terceira marca que eu trabalhei foi bem difícil e era muita pressão, você tinha que entregar, era aquela coisa. Porque assim, eu comecei a trabalhar lá atrás em um cenário onde eu trabalhei oito anos na primeira empresa, onde eu conhecia as pessoas, as pessoas viram a minha formação e eu acho que tinha uma coisa de um outro ambiente de trabalho, você tinha que entregar, mas era uma coisa que não era tão estressante, eu diria, não tinha tanta pressão. Apesar de ter trabalhado com um francês que me fez chorar muitas vezes, ele tem um nível de qualidade, assim, que era quase inalcançável, mas foi me forjando ali na questão de estética. Aí, depois dessas outras empresas, as duas últimas que eram mais varejo, você tem uma cobrança muito para o resultado, né? Aí, para mim, aquilo começou a ficar muito angustiante, de você ter que negociar com fornecedor, ficar espremendo fornecedor para ele, né, te dar desconto. Aí, assim, eu não via um sentido real naquilo, né? De falar: “Mano, eu vou, sei lá, quebrar o cara, o cara tem que, só para continuar trabalhando comigo”, sabe? De ficar pressionando, enfim, enquanto a fome está aí, um monte de gente aí, então eu ficava com essas crises, assim. Aí, na última empresa, eu tinha uma líder, que era bem difícil, assim, aí eu adoeci de fato, eu fiquei mal, emagreci muito, emagreci dez quilos, eu já não tinha mais controle da minha questão de bulimia, das coisas que estavam acontecendo comigo. Aí, até que eu pirei, dei uma surtada e saí. Aí eu fui demitida, eu saí da empresa. Isso foi em 2016. Aí, assim na minha cabeça, eu ia melhorar, eu ia me cuidar e ia voltar a trabalhar, só que eu não enxergava aquela situação, o quão doente eu estava, né? Aí, eu não conseguia emprego, eu estava muito ansiosa, estava em uma fase de sair muito, de beber muito, até que acabou meu dinheiro, não consegui mais me manter em Pinheiros. Aí voltar para a casa da minha mãe era uma coisa que era impensável, porque, por mais que eu gostasse da minha família, e que isso tudo me trazia angústia e tal, era regredir de alguma forma, então era voltar para trás, era também um cenário que eu sofri muito abuso na minha infância, teve abuso do meu pai, mas também abuso sexual, enquanto criança. Aí era uma coisa de voltar para esse universo, que era um lugar que eu fugia, mas eu não consegui mais, não consegui me manter, não tinha mais dinheiro, eu voltei ali, parece que eu estava no fundo do poço, de todas as formas. Aí eu tive que voltar, minha mãe falou: “Olha, você vai ter que vir para casa, você precisa se cuidar”. Aí eu voltei para casa em 2016, fiquei mega deprimida, fiquei uns três meses sem sair do quarto, sem vontade de tomar banho, enfim, foi uma fase bem difícil e a minha mãe ficou muito mal com aquilo, ela vendo a filha dela naquele estado, assim. Aqui começou um... [barulho externo] Continua? Beleza. Enfim, eu fiquei bem mal, assim, depressiva, na casa da minha mãe é uma casa muito pequena, são três cômodos, que é a cozinha, a sala, mas a cozinha é dividida só com meio murinho, aí tem o quarto da minha mãe e um quarto minúsculo que a minha irmã usava. Na época, a minha irmã tinha casado, tinha ido morar em Pinheiros, que ela conheceu o marido dela, na época, em uma festa comigo em Pinheiros, aí a minha irmã casou e estava morando em Pinheiros e eu fiquei nesse quarto, que era um quarto pequeno, super úmido, que não tinha iluminação, o que piorou muito o meu quadro ali. Eu fiquei nesse processo, eu acho que de fundo do poço mesmo, não sabia nem se eu ia melhorar do atual cenário. A minha família tentando entender, tentando me ajudar, mas ao mesmo tempo não sabia, né? Por questões de preconceito mesmo com a questão de psicológico, assim. A minha mãe sempre questionava essa questão de eu fazer terapia, de tomar remédio, ela achava que isso era para gente meio louca, assim, até que eu tive um cunhado que cometeu suicídio, que foi um ex noivo da minha irmã, que aí a minha família começou a achar que isso era realmente algo grave, assim, sabe? A entender e respeitar um pouco mais essa questão de problemas psicológicos, de fazer terapia e tal. O que mais? Então, aí nesse processo, eu super mal, deprimida, aí eu comecei a fazer, consegui uma terapia lá na UBS, no Vera Cruz, que é onde minha mãe mora. A terapeuta, na UBS você tem tipo 15 minutos de terapia, você não tem, que eles têm que atender uma demanda muito grande e essa parte de saúde mental, infelizmente, no SUS é muito difícil, eles não conseguem atender todo mundo. Aí essa terapeuta, quando eu contei a minha história, ela falou assim: “Nossa”. Ela de alguma forma se apegou, quis me apoiar de alguma forma e começou a encaixar sessões ali, que o ideal é quando você tem esse acompanhamento próximo quando você está muito, não sei se fora da casinha, mas você está muito ruim, assim. Mas ali ela falou: “Não, vamos lá, eu vou te ajudar, vamos fazer parte de uns grupos”, tinha uns grupos lá de artesanato, aí eu comecei a fazer, comecei também a passar mais com ela. Aí, foi ali que eu comecei a colocar um pouco a cabeça para fora de todo aquele pesadelo que eu estava, comecei a pensar de novo como recomeçar, não tinha ideia de como seria, não tinha ideia, ao mesmo tempo que eu queria voltar a trabalhar e morar no centro de novo, aquilo tudo me trazia ansiedade, porque me trouxe traumas. Então quando eu pensava na minha área eu já tinha essa ansiedade de voltar para aquele mercado, de voltar para aquela loucura, de ficar meio enlouquecida de novo, assim. Aí eu comecei, enquanto eu estava nesse processo de fazer terapia, de começar esse acompanhamento, eu comecei a fazer trufa, pão de mel e bolo de pote, que a minha irmã caçula ela faz essas coisas, então ela me passava as receitas, me ensinava a fazer, aí eu fazia e vendia lá na porta da minha mãe, deixava lá a placa e com esse dinheiro eu pagava condução, eu conseguia pagar minimamente meus custos, assim, porque a minha mãe não tinha condições de ficar também me sustentando. Aí eu queria participar de curso, eu comecei a entrar em algumas coisas para ocupar a minha cabeça. Comecei a ser voluntária em um projeto de crianças especiais, onde as minhas sobrinhas ficam, aí eu ia uma vez por semana também lá para ficar com as crianças, o que também foi muito bom. Aí eu comecei a frequentar curso de artes, curso de SESC, comecei a conhecer uma... Aí foi essa virada, eu comecei a conhecer um território que eu não conhecia, porque eu comecei a trabalhar muito cedo, fora aquele contato que eu tinha ali minimamente. Depois eu me afastei uns dez, doze anos e eu não conhecia esse território, fora visitar a minha mãe e voltar, eu não tinha acesso ao que estava acontecendo. Então, eu estava ali, na época, em Pinheiros, as meninas falavam de sarau, eu não conhecia os saraus, e os saraus são aqui no território que eu nasci e cresci. Então, nesse processo, eu comecei a conhecer os saraus, comecei a conhecer as lideranças sociais, as lideranças culturais, a minha irmã trabalhava em uma ONG, aí eu comecei a conhecer esse pessoal de movimento, de ONG’s aqui do território. Eu comecei e falei: “Cara, olha tudo isso, olha essa coisa toda que está acontecendo, que é aqui na periferia”. A gente aprende a dar valor muito para o que é de fora, então de não valorizar o que está aqui dentro, mas mesmo assim, ainda estava nessa fase de me curar, arrumar emprego e sair da quebrada, de sair do território, porque lá no meu inconsciente era isso, você se torna gente ali, quando você está bem, quando você não mora mais na periferia. Lá eu estava vendendo uns bolos, uns doces, estava começando a receber, porque eu conseguia divulgar bem, pela minha experiência de divulgação, aí eu...
P/1 – E como é que era a venda, Ju? Você entregava, as pessoas buscavam, como é que funcionava essa divulgação e essa venda toda?
R – As pessoas buscavam, então era uma plaquinha na casa da minha mãe, às vezes, eu divulgava ali, a minha irmã arrumava pessoas para vender, que fazia encomenda de pão de mel, de trufas, aí eu ia entregar esse material, eu ia em tal lugar quando era alguma encomenda grande para restaurante, tal. Era assim. Mas quando eu estava em casa, a venda era que as pessoas gostavam de ir lá, de me ver. A minha mãe, né? Lá em casa sempre foi muito frequentado, assim, tipo dos vizinhos, então a minha mãe também vendia bem, era dessa forma. Bom, aí foi isso. Em 2017, começo do ano, eu já estava melhor, assim, já estava nesse processo de sair de casa, de procurar soluções e tal. Aí em 2017, a minha irmã falou assim: “Ah, tem um curso sobre empreendedorismo para você aprender a precificar, essas coisas todas, vamos fazer?”. Porque ela também vendia essas coisas, paralelo a ela trabalhar na ONG, ela também fazia bolo de aniversário, essas coisas todas, eu falei: “Ah, vamos, vamos fazer”. É bom porque aí já vinha a páscoa, então a gente aprendia a precificar e vender na páscoa. Aí eu comecei a fazer esse curso, dali eu aprendi, né, tem as coisas básicas, várias ferramentas, tipo Sebrae ali, mas não era Sebrae, era Sebrae da quebrada, chama Empreende Aí. Aí, logo no início, eu tinha uma ideia de criar uma rede de mulheres que faziam doces, de mapear essas mulheres todas da quebrada que fazem doces, pão de mel, essas coisas todas e que a gente conseguisse atender uma demanda e vender para grandes empresas, hotéis, essas coisas. Aí ia chamar Sabor Delas, eu já tinha uma amiga, minha irmã não queria ser sócia, porque ela já tinha o trabalho dela enquanto ONG também, as coisas que ela fazia, aí eu arrumei uma amiga, a gente ia fazer isso. Aí, beleza, começou a parte do curso de fazer lá a parte de planejamento e da rã rã. E logo no início, tinha umas questões que chama, uma ferramenta chamada Curtigrama, eu acho. Aí nessa ferramenta tem ali o que você gosta de fazer e faz bem, o que você não gosta de fazer, mas faz, porque, enfim, precisa fazer, são algumas perguntas que vão te norteando. Aí, nisso, já ficou uma coisa muito visível, eu não gosto de cozinhar, eu não gosto de fazer comida, eu gosto de comer, eu sou taurina, adoro comer, mas assim, eu faço porque sou obrigada, porque precisa e morando esses tempos, assim, as minhas amigas que cozinhavam. Então não era uma coisa que eu tinha afeição. Eu estava ali para conseguir pagar minimamente as minhas contas e era um sonho pensar que eu ia viver daquilo, não era uma coisa que brilhava os meus olhos. Era uma coisa que era fácil, eu pegava a receita, fazia, embalava, fazia coisas diferentinhas e vendia por isso. Dali, comecei a fazer trabalho voluntário de comunicação para a minha irmã que trabalhava em ONG, para essa ONG que eu trabalhava de crianças especiais e enfim. Aí eu comecei a fazer ali, ali e ali, aí surgiu essa ideia, a minha irmã mesmo falou assim: “Ah, você é tão boa no que você faz, que é comunicação, porque você não pensa nisso com um propósito”, porque isso ainda me trazia angústia, me trazia ansiedade, eu comecei associar comunicação com algo que me deixava doente. Aí eu não via muito essa coisa de saída, de pensar, de viver daquilo, né? Então eu estava procurando uma saída ali que fosse esquecer toda a bagagem que eu tinha, porque eu fiquei doente, aí, nesse processo, foi que, sabe? A quebrada precisa, a periferia você pode fazer algo que é pegar tudo que você aprendeu, toda essa bagagem, transformar isso e fazer algo que você se identifica, ressignificar isso, né? Aí foi esse processo que surgiu a Bora Lá, surge em maio de 2017. Aí eu começo a pensar mesmo como ter um negócio, como viver daquilo, não sabia precificar nada, não sabia o que cobrar, não sabia o que eu ia oferecer direito, comecei fazer muito sentindo mesmo. Aí foi que aconteceu, em 2017, o Temer liberou o Fundo de Garantia, então o dinheiro que eu tinha, que era das empresas que eu pedi demissão, que tinha lá salvo, eu tinha não sei se era cinco mil reais, era mais ou menos isso. Aí eu peguei esse dinheiro, aí eu sou uma pessoa que eu gosto de me arriscar, tem algumas coisas que eu vou e me jogo, se eu quero, se eu penso alguma coisa. Aí surgiu essa ideia da Bora Lá, peguei o dinheiro que eu tinha, aí eu falei para minha mãe: “Mãe, eu não vou querer mais morar no centro, eu acho que eu vou querer ficar por aqui”, porque para a minha mãe ela ficava até triste, porque ela queria a filha dela perto e ela achava que eu desmerecia essa questão da periferia e de achar que não era um bom lugar, enfim, por muitas vezes eu falava que eu odiava onde eu morava, onde eu nasci. Aí quando eu falei assim: “Ah, mãe, eu acho que eu não quero mais voltar para o centro, hoje não faz sentido, sabe? Pode ser que amanhã eu queira voltar, mas hoje não faz sentido, acho que vou ficar aqui mais perto, mais perto da senhora, mais perto da minha família e dessa coisa que eu estou conhecendo agora e me apropriar mais desse território”. Aí eu aluguei uma casa, porque onde a minha mora é muito longe, é isso, não tem internet quase, ainda hoje é um lugar abandonado pelo Poder Público, onde não tem saneamento básico, então quando eu estava lá, tinha dias que a gente ficava quatro dias sem água, então eu criava ali, criei com os vizinhos um manifesto para a gente pressionar a Sabesp, enfim, mas aquela coisa do Coronelismo, enfim, dos Coronéis, que dominam ainda o território. Então tem aquelas figuras públicas, políticas, que vão ali na época de campanha oferecem um churrasco, falam que tão fazendo isso e aquilo, mas depois somem e o lugar é abandonado. Aí, nesse processo, eu falei: “Bom, se eu quero fazer um negócio, não vou poder fazer aqui, porque ainda assim aqui é difícil transporte, é difícil não ter internet de qualidade, não chega internet, não tem assim, você não consegue ligar e falar ‘Quero internet na minha casa’ porque não vai”. Aí eu peguei esse dinheiro, aluguei um lugar que é meio termo, fica perto do Terminal João Dias, aqui perto da Giovanni Gronchi, aqui do Campo Limpo, metrô Campo Limpo, que também está perto dos lugares que eu estava frequentando, que é Campo Limpo, Jardim Ângela, Capão Redondo. Aí eu arrumei, uma amiga indicou uma casa que era barata para a localização que é o território que eu moro, que é onde você tem metrô, que é a linha Lilás que vai para o centro, tem aqui a estrada de Itapecerica, que tem ônibus para todos os lugares. Aí ela falou: “Ah, Ju, tem uma casa, que é um quintalzão que tem nove casas e tem uma casa que é super baratinha, de dois cômodos, vai lá ver. Aí eu cheguei para ver essa casa, aí estava para alugar, eu aluguei, paguei seis meses de aluguel antecipado, comprei um monte de móveis usados, fui Carlos André Luiz e me joguei. Falei: “Bom, eu vou fazer, vamos fazer isso, vamos ver no que vai dar, se nada der certo, eu vou voltar para casa da minha mãe e vou ter que procurar emprego”. Aí foi esse processo, desde 2017 estamos aí.
P/1 – E de onde é que veio o nome da Bora Lá e como é que ela funciona?
R – Então, a Bora Lá foi, assim, sinceramente, não sei a hora que surgiu esse nome, eu sei que a referência é a minha mãe, a Bahia, então acho que é uma coisa que é muito popular, então esse nome popular. E o pessoal do nordeste tem muito essa coisa de bora fazer isso, bora, bora, bora. Aí tem muito essa coisa dessa força, né? Desse “vamos fazer, vamos lá, bora fazer”. Aí surge daí esse nome Bora Lá, o logo foi um amigo que deu, que é designer, então o logo lá pink, toda a questão de ser feminista ou não, tem esse logo que tem para mim, que traz uma identidade que é minha também. Ela começou, a ideia é atender empreendimentos, negócios sociais e culturais da periferia, mas não só da periferia, então tenho clientes que são de Pinheiros ou que eram de Pinheiros agora estão no centro, mas que eles querem comunicar com a periferia, por exemplo, tem um projeto que foi um edital, que eles conseguiram da prefeitura e onde o edital roda nas periferias de São Paulo. Então eles queriam uma agência que conversasse com essa periferia, que tivesse essa linguagem, em vez de ter homens brancos cis que são do centro, eles fazerem algo, eles queriam alguém que fosse já da periferia, que conversasse, cuidasse das redes sociais, esse é um perfil. Então tem muito essa questão de atender esse território, que muitas vezes não é atendido, assim, esse trabalho de comunicação visual. Então você vai em uma gráfica lá, você quer um cartão de visita, o cara monta o logo ali de qualquer jeito e faz, não tem essa personalização, não tem essa coisa de entender o que a pessoa quer, de escutar. É um processo muito louco, assim, porque para criar um logo, eu tenho um questionário, que o pessoal da agência fala que é briefing, onde a pessoa vai colocando o que ela espera daquele logo. Então, muitas vezes, quando eu mando esse questionário para essa pessoa que entrou em contato, a pessoa fala: “Nossa, eu nunca parei para pensar nisso”. Que é o que você quer? Qual sentimento que você quer quando a pessoa vai receber esse logo? Quais as cores? Quais as palavras? Então é uma coisa que até para preencher aquilo é um passo importante, né, para essa cliente, assim. Às vezes, até a pessoa fala: “Ah, Ju, posso mandar por áudio no Whatsapp”. Então essa ideia de ser acessível, de ser uma coisa que aproxima, né? De você querer ouvir aquela pessoa e o que ela pensa realmente ali, né? Vou criar porque eu acho que é estético, está na moda, é tendência, não, eu acho que é isso, é imaginar, trazer, puxar daquela pessoa o que ela espera. É muito mais importante, porque eu acho que a gente tem uma questão da comunicação que é muito isso, né? “Ah, qual tendência, quais as cores, quais as fontes”. E para aquela pessoa ela não quer, então já tenho cliente que falou: “Olha, eu sou uma cozinheira negra, eu quero uma cozinheira negra ali na minha logo”, assim, sabe? É isso e nada mais. E você vai pegar aquilo e transformar visualmente para aquilo que a pessoa espera. Como funciona? A Bora Lá já tem mais de 120 clientes que atendi nesses três anos, vai desde a questão de eu mesma criar, às vezes, quando eu não consigo passar para um designer, mas eu tenho dois designers que são parceiros, que acreditam também nessa questão de democratizar a comunicação. Não adianta... Eu acho que no início, tive muita dificuldade de conseguir parcerias, porque é isso, eu era uma menina que estava chegando aqui na quebrada, as pessoas não me conheciam, não sabiam qual era o meu real objetivo, propósito. Aí até você conseguir mostrar aquilo para o que você veio, das pessoas confiarem em você, foi muito difícil porque, primeiro, eu não sabia precificar, eu não sabia quanto custa a minha hora, até hoje é difícil assim, você cobrar, você passa um valor e você se esconde, né? Porque essa coisa de você encontrar valor em você, no que você entrega, é uma dificuldade de nós empreendedores, assim, eu acho que na periferia mais, não sei, mas assim, vendo enquanto mulher da quebrada, assim. Existe essa dificuldade. Aí , no início teve essa questão de como ter parceiros, porque assim, eu consigo atender até uma certa demanda, a partir daquilo eu não consigo e eu sou a responsável por divulgar, sou responsável por atender, responsável por criar, você acaba fazendo tudo e não faz nada. Aí eu precisava de começar achar parceiros que acreditassem no propósito da Bora Lá e que aceitassem cobrar um valor menor, porque enquanto se cobra 1200 reais, 1500 para fazer uma logo, eu tinha que cobrar um valor reduzido, então 300 reais que eu cobro para quem é da periferia, como achar alguém que tope fazer isso por esse preço e que se identifique com a proposta. Aí eu tenho dois designers que são um é militante que é totalmente, tem essa questão de militância, de fazer com que o designer, que essa coisa da comunicação que é muito elitizada, que seja uma coisa mais democrática, que é de Curitiba, e tem um outro que é de Campinas, e são homens. A ideia é também ter mulheres, mas por enquanto eu ainda não encontrei, a ideia é ter alguém aqui do território que consiga me auxiliar nisso. Então a gente pega, eu pego esses trabalhos, eu tenho, por exemplo, também uma web designer que é a Lu, que é aqui do território, que é uma mulher negra, programadora, que faz sites muito bem, então quando eu tenho orçamento para sites, eu faço para ela. Tem uma outra amiga que é jornalista, que pega essa demanda de jornalismo. Então a ideia é a gente criar uma rede, que eu penso no futuro, talvez, de ter uma plataforma onde a gente consiga conectar de fato, da Bora Lá ser um meio de campo, de não só eu pegar os trabalhos, de ser tipo um Match de pegar quem faz, quem está aqui no território que produz isso, que tem muitos profissionais e que eu ainda não conheço, por exemplo, e quem precisa disso. Então de ter isso, não só do território, mas quem é de fora e quiser valorizar esses profissionais da quebrada, de ter isso e uma plataforma. Isso é um plano que eu tenho lá para o futuro, que eu não sei como vai ser, mas é uma ideia que eu tenho em mente, um sonho.
P/1 – E você falou um pouco de futuro, também falou desses profissionais que acabam atuando de forma remota, né? Como é que está o trabalho, como é que está a sua vida nesse contexto de pandemia? Mudou muita coisa? Não mudou?
R – Mudou. Eu acho que está um caos, enfim, falando de periferia, está todo mundo bem perdido, não sabe para onde ir, eu acho que em março, que foi logo quando estourou aquilo, de todo mundo ficar fechado e tal, foi um, acho que para todo mundo, não só periferia. A gente não sabia o que fazer, não sabia como seria, não existia a ideia do auxílio, que também não ajuda muita coisa, mas enquanto empreendedor, de como que você vai sobreviver. Para a Bora Lá caiu oitenta por cento, uma média de nove, dez clientes que tenho por mês, caiu bastante, aí de imediato, uma iniciativa que eu tive foi de “Bom, estou aqui, vou fazer o quê?”. Eu acho que a nossa área que é design, jornalismo, essas coisas é o que realmente parou, assim. Então eu sugeri de fazer artes até de forma gratuita, ou de ter designers que pudessem também acolher, pudessem entregar esse material de forma voluntária, já que a gente estava meio sem trabalhar. Então isso foi uma ação, na época, teve uma campanha de Páscoa que eu fiz, que chama Páscoa do Bem, onde, por exemplo, a minha irmã, que hoje vive disso, né? Ela já tinha comprado todos os chocolates para fazer os ovos de Páscoa, quando estourou a crise, então ela já estava com aquilo, ela ficou: “Vendi vinte por cento, estou ferrada, vou morrer com esses chocolates”. Aí outras amigas também de grupos de empreendedoras, né? Daqui do território estavam falando disso, que as manas que faziam ovos de páscoa estavam com dificuldade. Aí, junto com mais duas amigas, a gente pensou de fazer essa campanha, onde seria um catálogo virtual, onde juntassem essas empreendedoras em um único lugar e que a gente pudesse divulgar de forma massiva, cada um em suas redes, aí juntava tudo ali e divulgava de uma forma mais eficiente. Aí a Katiana, que é Kinah, ela tem muito... Ela é de RH, trabalhou muito em RH, então ela tem acesso a muitas empresas, ela tem facilidade com Linkedin, tal. Então ela ficou nesse papel de divulgar para as empresas para que essas empreendedoras conseguissem, ali na última semana ter um respiro, conseguisse vender. Então essa foi uma ação. Aí depois, eu me inscrevi em um Matchfunding da Enfrente, que é da Tide Setubal, que estava rodando, acho que ainda está rolando, onde você escreve lá um projeto, desde pagar as próprias contas, até ter alguma contrapartida. E, no meu caso, eu pedi para que, no caso, captando o valor, você capta o valor e eles triplicam o valor do fundo que foi por empresas de iniciativa privada. Aí eu coloquei um objetivo de me sustentar, de bancar a estrutura da Bora Lá nos próximos cinco meses e em contrapartida, eu pegaria esse valor e reverteria em arte gratuita para o pessoal aqui da periferia da zona sul, para empreendedores, projetos sociais e culturais. Acabou que foi a primeira campanha de Matchfunding, de crowdfunding, essa coisa que eu fiz. Eu me vi ali sem saber como fazer uma campanha, mas deu certo, consegui captar os dez mil, eles colocam mais vinte mil em cima, e hoje eu estou nesse processo de começar a entregar essa contrapartida desse projeto, que é durante cinco meses atender duzentos empreendimentos da periferia da zona sul. É isso.
P/1 – E só para a gente ir para um momento mais conclusivo, assim, eu queria que você falasse um pouquinho da sua rotina hoje, então tem esse projeto rolando, mas como é que é seu dia a dia, você acorda, você faz o que? O que você gosta de fazer para passar o tempo, para se divertir, enfim?
R – Então, é até louco isso, porque se ver empreendedora, essa coisa do empreendedorismo, eu tenho uma rotina de trabalho, de estar ali pelo menos seis horas de seis a oito horas trabalhando e de ter um aplicativozinho de horas, assim, de me comprometer, porque eu acho que é isso, né? Quando a gente vê e se vê, e você precisa trabalhar com aquilo, eu me adaptei a isso, de ter na semana esse tempo de trabalho, então de responder mensagens, de ter uma rotina de trabalho. Paralelo a isso eu gosto de correr de manhã, fazer caminhada, correr, gosto muito de podcast, então eu escuto bastante podcast, de ler, assim, na verdade, nessa quarentena eu não tenho tido muita concentração para leitura, mas eu estava em um ritmo antes de ler um livro por mês, de tentar pelo menos, mas esse ano abortei a missão e não estou me cobrando por isso. O que mais? Gente, assim, está em um momento muito difícil, então eu tenho tentado não me cobrar tanto, porque tem dia que eu não estou nada bem. Eu acho que isso é geral, até conversando com as amigas, tem dias que você quer sentar e chorar e tudo bem, vamos lá, que você não produz quase nada, minha concentração está muito baixa, assim. É louco porque isso é para geral, né? Então falando no cenário político, falando no cenário de doença, de pandemia, do que está causando, é muito angustiante alguém te cobrar que você seja produtiva. Eu, hoje, ainda bem, eu tenho um perfil de cliente, de parceiros, de pessoas que eu lido, que tem ali, talvez ali o mesmo, que enxergam, tem as mesmas ideologias e que bom, assim. Porque, às vezes, eu falo: “Olha, hoje eu não consigo te entregar tal coisa”. Eu acho que uma coisa que eu valorizo muito é o comprometimento com os trabalhos, desses 120 clientes que eu atendi, foram todos indicações, que veio de um, que veio de outro. Eu nunca impulsionei um post para “Compre logo, compre cartão de visita”, então foram clientes que vieram chegando, que você vai conquistando essa confiança, a maioria são mulheres, oitenta por cento do meu público são mulheres, a maioria é negra, falando de empreendedores na periferia são mulheres negras. Essa confiança que você tem, eu acho que de você ser sincera, né? Eu acho que sinceridade, assim. Aí nesse momento, com essa dificuldade de concentração eu tenho me permitido não estar tão bem, assim, sabe? É louco porque no final do ano passado, eu tinha totalmente um planejamento, de fazer, porque assim, a Bora Lá, nesses três anos, eu passei por duas acelerações. O que é uma aceleração? Então, tem um projeto que você escreve lá, a agência ou o seu empreendimento, voltado para negócios de impacto social, aí nesse processo, você tem um acompanhamento, mentoria, tanto na parte financeira de estratégia, de fazer o Canva e na na na. Aí eu passei por duas acelerações, então você já tem ali tudo que tem que fazer, porque o pessoal já traz, tem umas críticas minhas que a galera traz umas ferramentas prontas e quer que a gente da periferia se adéque aquilo que não é nossa realidade. Mas, enfim, aí a ideia era pensar esse ano um crescimento, de pensar de talvez escrever esse projeto desse site, da plataforma, de ter alguém para me ajudar. Ano passado eu já tinha a Yasmin, que trabalhou comigo, começou em fevereiro e saiu em novembro, que ela estava na faculdade, ela foi fazer de gastronomia, ela tinha que fazer alguma coisa na área dela, aí eu fiquei sem ninguém novembro, dezembro e em janeiro eu pensava em começar a pensar em uma pessoa, só que aí o movimento caiu bastante. Aí veio fevereiro, veio o carnaval, veio o Corona Vírus e acabou com todos os planejamentos possíveis, então é complicado, porque eu tenho que fazer a rotina, né? A gente está falando de produção, mas tem as redes sociais, então você tem que cuidar das redes, você tem que ver a questão de atender os clientes, hoje o que eu tenho feito é dado pouca atenção para as redes e recebo muita crítica por causa disso, porque sou uma agência de comunicação que não está com um planejamento eficaz nas redes sociais, mas assim, eu não consigo, eu preciso de alguém para me ajudar. Aí o que eu tenho feito é atender esse pessoal do Enfrente, de começar a mapear esses empreendimentos, que vou receber essas artes, já começar a entregar isso, atender os clientes que já estavam comigo, dois continuaram nessa demanda de ter um acompanhamento, fora os outros que estão começando a chegar, de pedir coisas, enfim. E é isso.
P/1 – Mas para gente ir mais para os finalmentes, qual você acha que é seu maior sonho hoje?
R – Depende, sonhos em quais áreas? Tem a área pessoal, a área profissional.
P/1 – O que você quiser falar, fica a seu critério escolher?
R – Nossa, são tantos sonhos, eu não sei, assim, tipo acho que tem muito a questão, eu participo de uma escola feminista aqui da periferia chamada Abya Yala, a gente agora, nesse processo de pandemia, você não só pela escola, mas outros coletivos sociais, que estão fazendo essa questão de distribuição de cesta básica. Você ver que a pessoa vem pedir comida, assim, para mim é uma coisa que me dói muito, sabe? Então, essa desigualdade é algo que me choca, acho que trabalhar um pouco para que se reduza essa desigualdade, ainda mais falando de mulher, porque até conversando com outras mulheres do território, quem vem realmente, quem dá a cara a tapa, quem vai pedir de fato, quem se expõe para pedir comida para os filhos são as mulheres, então isso é uma coisa que me deixa muito triste e, ao mesmo tempo, eu tenho um sonho da gente enquanto coletivo, enquanto escola de poder reduzir minimamente essa desigualdade e essa violência. Por exemplo, falando do Capão Redondo, é o lugar que tem mais violência contra mulher no Brasil, assim. Então é uma região que existe, esse tema para mim é muito forte pelas questões permearam a minha infância, da minha família. Eu acho que tem outros sonhos que é aprender a tocar algum instrumento, eu estou aprendendo pandeiro, está difícil, mas saí, às vezes. Eu acho que pensar em um projeto de comunicação inclusive, comunicação social, de formar jovens que, por exemplo, que em vez de ir para um primeiro trabalho que seja subemprego, da gente conseguir dar o mínimo de formação para essa galera, que ela consiga iniciar já trabalhando em alguma coisa de comunicação ali, sei lá ter cursos básicos de apresentar, porque existe muito curso ali CCA, CCJ da juventude, mas depois esse jovem saí e não tem para onde ir, então acaba indo, ele tem aquela formação, mas vai para um subemprego depois porque precisa trabalhar, como aconteceu comigo lá atrás. E se você ter oportunidade de iniciar esse jovem na área, de conseguir minimamente trabalhos, eu acho que é importante, sabe? Eu não vejo uma iniciativa de comunicação visual, porque jornalismo, audiovisual tem muita coisa acontecendo, tem muitos coletivos maravilhosos que estão fazendo esse trabalho. Mas a parte de comunicação visual, de publicidade, de propaganda, dessa coisa de redes sociais tem muito pouco ainda. Então de ter algum projeto inclusivo disso, de pensar nisso, né? De ser essa ponte. E eu acho que a Bora Lá, eu imagino que ela vai ter vida própria, eu penso em um futuro que ela caminhe com as próprias pernas e eu não tenho essa coisa de ser muito apegada, assim. Eu acho que ela vai crescer, a ideia que seja, enfim. Hoje o maior sonho é me manter viva e militante, atuando de alguma forma para melhorar a situação do nosso país, talvez.
P/1 – Tem alguma coisa que eu não tenha perguntado que você queira falar?
R – Cara, tem muita coisa, assim, que eu já passei pela minha infância, que eu não falei, mas assim, eu acho que são vários pontos, sabe? Eu não sei, assim, se caberia já contar agora, mas eu acho em um todo, eu passei bem, assim. Uma linha do tempo pela minha história. Teve uma coisa que foi muito importante para mim, por exemplo, que eu não comentei, que foi viajar para fora do Brasil. Então quando eu era, estava lá com meus vinte e poucos anos, eu fui para França, eu fui para o México, eu fui para a África, e foi uma coisa que foi muito emocionante para minha mãe. Então no meu bairro lá, ela falava: “Ah, minha filha foi viajar de avião”. E era uma coisa “Foi para fora do Brasil”. Aí o pessoal me cumprimentava falando que eu era a menina que viajou, sabe? São pontos, assim, por exemplo, crescer o meu pai ele falava que eu era o motivo de orgulho da família, que eu estava fazendo faculdade, enfim, me apresentava para os vizinhos falando que eu era a menina que fazia faculdade, sabe, da família. Enfim, teve na minha infância também questões importantes, por exemplo, de racismo, né? Porque a minha irmã caçula, ela é filha de outra relação da minha mãe, que é com homem negro, então a minha irmã é negra e a gente enquanto brancas, assim, eu, minha irmã e meu irmão mais velho, meus irmãos são galegos, são loiros, cabelo liso. Aí a minha irmã, a gente percebia muito isso, essa diferença, inclusive em casa, porque a minha mãe teve essa relação com o pai dela, ela estava separada do meu pai, mas depois eles voltaram e meu pai chamava ela de negrinha, sabe? Então era uma coisa, assim, que era muito forte, enquanto as pessoas falavam que eu, a minha irmã e meu irmão pareciam filhos de ricos, pelos traços que a gente tinha, e com a minha irmã não tinham esse olhar. Então eu acho que uma coisa forte que a gente presenciou. O que mais? E não sei, eu acho que tem essa questão de ser muito sonhadora, eu sempre sonhei muita coisa, de pensar e até de ser uma coisa quando eu era criança das pessoas falarem que eu viajava muito, tipo Fantástico Mundo de Bob, de pensar em um mundo melhor, que não fosse aquele e que também tinha essa coisa da minha reação violenta diante das coisas que aconteciam, sabe? É isso.
P/1 – Foi um ‘prazerzaço’ fazer essa entrevista com você, foi linda, linda a sua história e eu queria te agradecer muito por ter separado esse tempo para conversar comigo, sabendo que a sua história agora faz parte do acervo do Museu da Pessoa, vai ficar preservada para que você, seus familiares e quem mais quiser ter acesso possa se encantar também com a sua história, ta bom?
R – Obrigada.Recolher