Museu da Pessoa

Amigos da rua, colegas de classe

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ruy Ohtake

Depoimento de Ruy Ohtake
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 31 de outubro de 2019
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Entrevista número PSCH_HV808
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiz Egypto


P/1 – Muito bom dia, Ruy. Muito obrigado por ter aceitado nosso convite. Nós estamos muito felizes de tê-lo aqui, para esse projeto. Vamos começar, para efeito de registro, eu queria que você dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Eu também estou muito feliz em estar aqui com vocês porque falar sobre o Vlado é falar sobre um personagem da história do Brasil muito importante, e que só mais recentemente isso vem sendo reconhecido. Mas, muito merecidamente. Eu sou Ruy Ohtake. Qual é a minha convivência com o Vlado? Nós fizemos juntos, na mesma classe, o curso primário, no Colégio Estadual de São Paulo. Hoje é Colégio Estadual de São Paulo, na época chamava-se Colégio Estadual Presidente Roosevelt. Além de estarmos na mesma classe, nós moramos muito próximo um do outro. Então, frequentemente a gente ia ao colégio, à escola, juntos. E daí surgiu uma convivência muito gostosa em toda a fase do primário. E o colegial ele preferiu fazer no Colégio Estadual de São Paulo, que é do mesmo grupo, porque no Estadual Presidente Roosevelt, onde nós fizemos o primário, não havia colegial à noite. Mas eu fiz à noite, mesmo, o colegial. O Vlado foi para o que a gente conhecia como [colégio] São Joaquim.




P/1 – Nós vamos detalhar isso na sequência, mas eu gostaria de ter, primeiro, também, a sua data de nascimento e o local onde o senhor nasceu. São Paulo?
R – Eu sou nascido em São Paulo, a 27 de janeiro de 1938, e eu nasci na casa onde eu vivi a minha infância, na Mooca. Muito próximo à casa do Vlado. Bom, de lá fiz o colegial etc.
P/1 – O nome dos seus pais, por favor.
R – Meu pai é Ushio Ohtake, falecido já há 40 e poucos anos, e minha mãe é Tomie Ohtake, pintora, artista, falecida há cinco anos.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Não. Eu não conheci, porque eles, meu pai e minha mãe, se casaram um pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Eles se casaram em 1936. E eu nasci em 1938 e, portanto, eu tinha dois anos quando se iniciou a Segunda Guerra Mundial, que foi 39-40, não é? E as interligações entre o Brasil e a Europa e o Oriente ficaram interrompidas durante toda a fase da guerra. Então, eu não fui ao Japão. Quando eu tive oportunidade de ir, eles dois, meus avós, já tinham morrido. Minha mãe chegou a ter contato com a mãe dela, minha avó, porque ela foi uma das primeiras japonesas que regressou ao Japão logo depois da guerra, mas não com o intuito de voltar para o Japão – ela quis rever os parentes. Eu estava no [curso] primário, se não me engano, mas aí minha avó morreu, enquanto minha mãe estava lá.
P/1 – Havia, na família, histórias sobre a vinda dos seus pais para o Brasil? Como eles vieram? Em que circunstâncias vieram? Por que vieram? O senhor tinha esse tipo de informação na família?
R – A vinda deles é muito parecida com a vinda dos imigrantes japoneses. Meu pai fez o curso de Agronomia lá no Japão. Se formou e veio para cá. Chegando aqui, ele não queria exercer Agronomia. Ele quis ficar na cidade mesmo, em São Paulo. Então, ele trabalhou como comerciante. E minha mãe gostava de pintura, desenho, mas aí nascemos: eu, primeiro, e depois o Ricardo. E ela se dedicou à nossa educação, dizendo o seguinte: “Enquanto eles estiverem estudando no primário, colegial, naquela época, eu vou me dedicar a eles”. E depois que o Ricardo entrou na faculdade, ele entrou depois que eu, portanto eu já estava na faculdade e o Ricardo entrou na faculdade, também de Arquitetura, daí minha mãe falou: “Bom, agora eu vou começar a pintar de uma forma mais sistemática. Eles já estão fazendo, já, o colegial, faculdade etc.”.
P/1 – Onde é que era sua casa de infância, sua casa na Mooca?
R – Rua da Paz, 96.
P/1 – Como era essa casa? Dá para descrevê-la?
R – Uma casa muito simples. Um sobrado, tinha um jardim que minha mãe tratava com muito cuidado; depois entrava, à esquerda da entrada tinha uma sala que eles chamavam sala de visita; mais para frente, uma sala maior, que era a sala mais de convivência, mesmo; e na terceira já era a cozinha. Então, essa sala do meio, de convivência, era meio sala de jantar, meio sala de todo mundo; depois a cozinha, a área de serviço e o quintal.
P/1 – O que tinha nesse quintal? Árvore frutífera, alguma coisa desse tipo?
R – Não, não tinha. Não tinha, não. Tinha área, um pouco para o Ricardo e eu brincarmos, um pouco área de estender roupa etc.
P/1 – Os dois irmãos tinham algum tipo de obrigação na casa, algumas coisas que vocês tinham que fazer pra ajudar na administração da casa?
R – De uma forma sutil, acho que teve, sim. Mas nunca foi obrigação. Obrigação era fazer um bom curso na escola. Essa foi a fase infantil, estudantil.
P/1 – E a sua primeira escola, você se lembra?
R – Foi o Roosevelt.
P/1 – A primeira escola?
R – Não, desculpe. A primeira escola foi um colégio de padres. Por quê? Tinha um colégio de padres pertinho da minha casa. Padres jesuítas. Então, para ir à essa escola não precisava de condução, ia a pé, e nem meu pai nem minha mãe eram católicos, nem religiosos, mas pelo fato de a escola ser muito próxima, isso aí, para eles, valeu mais do que o colégio do estado, que era perto também, mas um pouco mais longe do que os salesianos. Foi o meu primeiro colégio, escola, sim. Foi o primário. E o ginásio é que eu fui para o [Colégio] Estadual de São Paulo.
P/1 – Nessa fase do primário tem algum professor ou professora que tivesse ficado na sua lembrança, que você se recorda, que tivesse lhe marcado?
R – Tinha o padre Luiz e o outro era o padre, que eu esqueço o nome, ambos muito cuidadosos na evolução e formação dos meninos lá do Colégio Salesiano. E a tal ponto que ele, o padre Luiz, que era mais ou menos o diretor geral da escola, foi à casa do meu pai tentar convencer meu pai para que eu fizesse... como chama aquilo?
























P/1 – Seminário?
R – Seminário. Meu pai falou: “Não, seminário ele não vai fazer, não. Ele ainda tem oito anos de idade, deixa ele crescer, mas ele não vai fazer seminário”. E, realmente, quando terminou o primário, eu passei para o colégio do estado e me tornei ateu. Logo em dois anos do colégio do estado, virei ateu.
P/1 – Deu tudo ao contrário. E foi no primário que você conheceu o Vlado?
R – No ginásio.
P/1 – E vocês moravam perto?
R – Muito próximos.
P/1 – Se lembra quando se travou o primeiro conhecimento, quando se viram pela primeira vez?
R – Quando nós descobrimos que morávamos muito perto, nós descobrimos lá no colégio. Morávamos a três quadras. E o David Lerer, a duas quadras. E [estudávamos] na mesma classe.
P/1 – Ele estudou no Roosevelt?








R – Roosevelt, grande colégio.


P/1 – E como era essa convivência de vocês três, nesse tempo de escola?
R – Foi uma convivência muito boa. De um lado, o Vlado, muito reservado, foi um colega no ginásio e no colégio bastante quieto, não conversava muito, sempre com um livrinho na mão. Ele lia muito. E, nas discussões ou temas mais, vamos dizer assim, políticos ou sociais, aí ele tinha uma boa participação.
P/1 – Como é que vocês se divertiam?
R – Lá no colégio eu fazia um pouquinho de esporte. O Vlado não fazia esporte. Ele ficava no canto, sempre com um livro, lendo livro, e, nas conversas sobre a questão daquele nível de ensino, que já era discutido, mas num nível bem, ainda, primário, aí ele participava mais e colocava lá suas opiniões, que eram, sempre, as melhores. Natural, não é?
P/2 – Ele contava sobre a guerra, sobre o que tinha sido a vida deles antes de chegar no Brasil?
R – Não. Eu soube por acaso. Apesar de eu ir à casa dele várias vezes, porque eram muito próximas as duas casas. A mãe dele era mais aberta, falava mais; mas sobre a guerra, praticamente a gente não conversou, não.
P/2 – E ele tinha sotaque?
R – Um pouquinho. Um pouco. É claro, a mãe e o pai tinham bastante. Mas ele, um pouquinho. Sotaque estrangeiro, a gente falava sotaque estrangeiro. E depois eu terminei a FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo] em 1961. O David Lerer terminou Medicina, se não me engano, em 1961, 62. E o Vlado ficou meio entre Filosofia... eu não me lembro se naquela época já existia a escola... não vou lembrar o nome... e em 1963, portanto, às vésperas do golpe militar, Cuba realizou o primeiro Congresso Internacional de Arquitetura. Foi um congresso muito importante. E foi a primeira vez que o Fidel [Castro] tinha assumido o governo e reunido num congresso, num grande congresso. Então, eu fui. Uma peripécia até chegar em Cuba, uma aventura. Não ter passaporte, passagem, tem que ir primeiro para Praga, depois para Paris e depois para Praga e depois para chegar em Havana. E o Vlado, sabendo que eu ia para lá e ele não foi, o congresso era de Arquitetura, falou: “Ruy, você pode levar isso aqui para mim, para Cuba?” É um filme que ele fez, que o Vlado fez, chamado “Os Meninos do Tietê”. [Este filme, na realidade, é de Maurice Capovilla; muito provavelmente, Vladimir Herzog terá pedido a Ruy Ohtake que levasse uma cópia do filme de Capovilla para Cuba, onde poderia ser guardado com segurança.] Esse filme a gente tem que achar. Então, eu levei para ele. E ele me deu o nome da instituição cubana [Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC)]. Naquela época a fotografia e o cinema cubanos eram muito fortes. Continuam fortes. Então, eu procurei a pessoa lá do cinema cubano e falei: “Olha, o Vlado Herzog é um jovem cineasta brasileiro, não é arquiteto, e então não pôde vir. Ele pediu para eu entregar isso aqui para vocês”. “Puxa vida.” Aí eu vi o filme, sobre a situação dos meninos na borda do Tietê. Daí a dois dias esses cubanos me procuraram: “Olha, nós vamos pedir para você levar um filme nosso para o Vlado”. Falei: “Poxa, eu levo”. Aí trouxe o livro para o Vlado. O livro, não, o filme. E depois eu tive alguns encontros com o Vlado, quando ele se tornou repórter da BBC. Eu fui para Londres, tinha um seminário lá, e me encontrei com o Vlado. Poxa, ele tinha crescido como pessoa! Ele já era um intelectual em formação. Não era mais o estudante curioso, não. Ele já tinha o caminho de um intelectual. Ele, junto com o Jordão...
P/2 – Fernando.
R – O Fernando também estava lá em Londres. E a mulher do Fernando, a...
P/2 – Fátima.






R – E saímos algumas vezes para jantar. Eu fiquei lá uma semana. Vlado trabalhando na BBC, contratado, já estava há um tempo. Bom, é por aí.
P/1 – Eu queria retomar um pouco esse momento primevo da relação de vocês, quando estavam estudando juntos ainda. Vocês saíam juntos, iam assistir filme juntos, iam à cidade? Como que era a cidade na época da sua meninice?
R – A cidade estava encostada. Ou seja: o colégio era na ponta do Centro da cidade, grudado à Praça da Sé. Ainda existia Praça da Sé e Praça Clóvis [Beviláqua]. E a Praça da Sé era um lugar de um bom encontro. Porque tinha, além de um bar, uma choperia muito famosa, a choperia que depois eu vou lembrar o nome, e, lá em cima desse prédio, tinha o ateliê do [Alfredo] Volpi, dos grandes artistas. Esse prédio foi demolido quando o governo resolveu juntar a Praça da Sé com a Praça Clóvis. E aí, esse ponto de encontro, que era muito fácil para nós, começou a ficar meio difícil. E depois ele [Vlado] foi fazer Filosofia, e eu, Arquitetura. Então, nós nos encontrávamos muito pouco. E alguns encontros, naquela época, de discussão, vou chamar assim, social, eram muito mais raros. E, nesses encontros raros, a gente se cruzou várias vezes.
P/1 – Nesse período de adolescência [e juventude], ele já manifestava uma atenção grande para o cinema? Ele falava sobre cinema, gostava de conversar sobre cinema?
R – Tanto é que eu levei um filme dele para Cuba, não é? Um filme que ele tinha feito. Esse filme não era nem para entrar no circuito comercial, ele fez porque ele gostava de cinema. Ele tinha um círculo de cinema que eu sei que eles discutiam bastante. Eu participei pouco desse círculo de cinema, estava mais ligado à Arquitetura.
P/1 – E como é que nasceu essa vocação? Quer dizer: como é que o garoto Ruy descobriu que queria ser arquiteto?
R – Desde a época do colegial. Eu gostava de desenhar casinhas existentes em algum trecho da cidade. E fui fazendo esses desenhos, até que no final do colegial, eu falei para minha mãe: “Acho que vou fazer colegial [i.e., arquitetura]”. Ela falou: “Acho ótimo”. Porque a minha mãe já pintava. “Ótimo”. E fui fazer o colegial [i.e., curso de arquitetura].
P/2 – Faculdade de Arquitetura?
R – É, na FAU.


P/2 – Que ainda era junto com a Poli ou já tinha...
R – Já. A FAU se desmembrou da Poli em 1954, se não me engano. E criou-se a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Sendo que uma parte dos professores, principalmente das áreas técnicas, eram professores emprestados ainda da Politécnica. Aí a FAU foi criando cursos próprios, professores próprios, até que ela se tornou totalmente independente, em 1958, 59. Principalmente com o regresso do [João Batista] Vilanova Artigas, que estava excluído da USP. Nós fizemos um movimento, conseguimos trazer o Artigas de volta no campo do ensino, e ele deu a personalidade de se fazer a Faculdade de Arquitetura, mesmo.
P/1 – Era um momento de ebulição, né?
R – Ebulição. Eu considero essa época, final da década de 1950, começo da década de 60, como um dos períodos mais ricos na vida cultural brasileira. Você veja: começou o Teatro de Arena e o Teatro Oficina – 1958, 59 e 60. E foi germe da verdadeira dramaturgia brasileira. Não era mais TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], era esse núcleo. Na literatura, o Guimarães Rosa, aquele do norte...
P/2 – Graciliano Ramos?
P/1 – Graciliano, Jorge Amado.
R – É.
P/1 – José Lins do Rego.
R – Isso. Depois, na música...
P/1 - ...João Gilberto.
R – É. João Gilberto. Eu ia falar de alguns clássicos, depois da bossa nova, o surgimento da bossa nova. Foi um período muito rico na nossa cultura, e que 64 acabou... acabou, não, destruiu uma parte disso.
P/1 – Essa conversa sobre esse período, você mantinha diálogo com o Vlado e com seus amigos?
R – Pouco. Com o pessoal da Filosofia, a turma da FAU conversou muito. A Filosofia e a FAU eram muito próximos. Na Rua Maranhão e Maria Antônia. Eu conversava um pouco com essa turma e mais com a turma da Arquitetura propriamente dita.
P/1 – E depois de formado, o que se apresentava para você fazer, o que você decidiu fazer, o que você gostaria de ter feito e não fez?
R – O que eu gostaria, mesmo, era fazer uma arquitetura de convivência. Mas era muito difícil naquela época. Tinha que pegar uma escola e ir, além das salas de aula, transformar a escola num centro de convivência, de discussões. Alguns centros culturais bem modestos, mas ter, dentro desse centro cultural, alguns recintos para começar a fazer discussão de questões de bairro etc. Essa questão me vem até hoje, como uma das linhas que a arquitetura brasileira não pode perder.




P/1 – Ou eu muito me engano ou isso está impregnado na sua obra, não é? Esse estímulo à convivência, das pessoas se encontrarem. É isso mesmo?
R – É isso mesmo.






P/1 – O que significou o golpe em todo esse processo de criatividade, de ebulição intelectual? O que significou o golpe para esses jovens rapazes daquele momento?
R – Significou um retrocesso, ou uma paralisação muito grande. Aquilo que vinha se formando para discutir e alterar programas escolares, por exemplo, tudo isso se perdeu. Volta o programa clássico, acadêmico, antigo. E retomou tudo de novo. E nós, as outras atividades de artes... A Arquitetura estava tendo um desenvolvimento muito grande, inclusive em 1960, com a inauguração de Brasília. Mas isso tudo se perdeu. Se perdeu como? Chegaram os militares e falaram? Não, eles não fizeram isso na Arquitetura. Eles alteraram os programas. Foram mais sutis. E essas alterações de programa ocorreram também da seguinte forma: surgiu, nessa época, 1970, pelo lado socioeconômico, a ideia do “Brasil Grande”. Então, fazer as grandes usinas hidrelétricas, de Itaipu e de todas aquelas outras, os grandes aeroportos Cumbica, aquele de Campo Grande, aquele de Manaus, alguns outros. Só que o Brasil não tinha quadros para fazer os projetos desse vulto. Então, o que o governo militar fez? Estimulou e se formaram alguns grandes escritórios de engenharia geral. A mais conhecida foi a Hidroservice que, na época, tinha seis mil profissionais. A Hidroservice, junto com essas outras, várias delas agora enroscadas na Lava Jato, se associaram e fizeram os grandes projetos. Sem nenhuma questão de uma Arquitetura mais brasileira: esse desvio do “Brasil Grande”, das grandes obras, para esse campo de formar, com metodologia francesa, todos esses grandes planos de aeroportos, tudo com metodologia francesa. Essa aí foi uma outra perda muito grande. Agora nós, eu me situo entre nós, nós tínhamos o quê? Trinta anos, 35, trabalhando os meandros dessas coisas, fazendo algumas sobras. Eu fiz várias obras sem grandes repercussões, mas que eu fazia com cuidado e foram importantes na minha formação paulatina.
P/1 – Tem algum traço que caracteriza a sua arquitetura, que você julga definidor da sua arquitetura? O que ela é, afinal?
R – Eu procuro fazer, principalmente a partir de 1975-80, uma arquitetura contemporânea brasileira. Ou seja: a arquitetura brasileira, a partir de 1940 e pouco, com o Oscar Niemeyer fazendo Pampulha lá em Minas Gerais, e logo depois acabou a guerra mundial, então os projetos de Pampulha puderam ser divulgados pelo mundo, abriu um olhar de interesse do mundo em relação a essa nova arquitetura que os brasileiros estavam fazendo. E culminou com 1960, com a inauguração de Brasília. Mas logo depois veio a “gloriosa”, não é? O Oscar, por exemplo, mudou-se para Paris e ficou trabalhando lá. Fez cada obra lindíssima para a Argélia, para a França, para a Itália, alguns desses países. E, aqui, a grande maioria dos arquitetos ficou por aqui e a arquitetura que começou a ser feita era de um Brasil contemporâneo, mas estagnado em 1970 e 80. Estagnado. Eu procurei dar uma contemporaneidade nisso. Com o quê? Cores. Fui o primeiro a usar cores, não cores azul claro e amarelinho, não: azul forte, vermelho. Grandes curvas e fazendo com que esses tons ficassem mais marcantes nas nossas cidades. E eu acho que esse é um dos caminhos da arquitetura contemporânea brasileira.
P/1 – Como foi o impacto? Porque o seu curso de Arquitetura foi, digamos, quase concomitante a construção e inauguração de Brasília. O que significou aquilo na cabeça dos jovens arquitetos e estudantes de Arquitetura? Brasília foi uma loucura feita em dois anos e meio.
R – Em termos quantitativos não foi muito grande, porque até 1960, ou na época de 1960, eram poucas escolas de Arquitetura. Mas provocou, sim. Eu não sei explicar. Não sei se é timidez dos arquitetos brasileiros ou excesso de "guarda origem" do Le Corbusier [pseudônimo do arquiteto franco-suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris], que foi um grande mestre. Le Corbusier é que originou alguns arquitetos importantes, inclusive Oscar Niemeyer. Só que o Oscar Niemeyer pegou o Corbusier e logo começou a traçar o seu caminho próprio. Os brasileiros ficaram no pé do Corbusier. Acho que isso foi e está sendo um atraso.
P/2 – Voltando para o Vlado, alguma vez você e o Vlado conversaram sobre arquitetura ou não?
R – De vez em quando.




P/2 – O que ele falava de arquitetura?
R – A posição dele era assim: “Ruy, você entende mais de Arquitetura do que eu. Então, toca o bonde da Arquitetura, que eu toco o bonde do cinema”.
P/2 – E, embora jornalista, quando você o conheceu em Londres, era possível supor que ele queria ser cineasta, tudo que ele almejava?
R – Ele sempre teve vontade de fazer cinema. Quando eu levei o filme dele, “Os Meninos do Tietê”, nós éramos, eu e ele, recém-formados, cada um na sua escola. A BBC vem bem depois.


P/1 – Você se lembra desse filme?
R – “Os Meninos do Tietê”? Lembro.
P/1 – Pode contar, um pouco?
R – Eu vi lá em Cuba, não vi aqui. Eu levei o filme fechado e falei: “Eu estou trazendo o filme do Vlado, mas eu não vi o filme no Brasil. Eu queria ver aqui”. “Então vamos ver.” Quando eles estrearam o filme, é a questão da pobreza nas margens do Tietê. O Tietê é um rio tão importante para a cidade de São Paulo, assim estava colocado lá, e, no entanto, é de uma pobreza muito grande. Muito pouco das margens do Tietê estão sendo utilizadas ou aproveitadas para a educação, para a criação dos meninos. No fundo era essa a questão.
P/1 – Um documentário?
R – Sim, mas era um documentário mais crítico.
P/1 – Quando vocês se separaram, e cada um seguiu seu rumo, você na arquitetura e ele no jornalismo, vocês se encontravam com alguma frequência?
R – Às vezes. Não com muita frequência. Principalmente quando, lá na Filosofia, fizeram muitas atividades. Desde antes do golpe militar. Aquela Rua [Maria] Antônia era um lugar muito rico de discussão. Então, eu ia lá de vez em quando. E nesse de vez em quando cruzava com o Vlado.
P/2 – Sua memória da casa do Vlado... o Vlado ia à sua casa e você à dele? Para quê?
R – Porque era caminho da escola.
P/2 – Mas vocês se visitavam?






R – Sim. Eu ia mais à casa dele, do que ele na minha casa. A casa dele tinha a porta, entrava por um corredor aberto, que ia até o fundo, até o quintal, e, abrindo para esse corredor, tinha a sala de jantar e os quartos. Uma casa bem simples, mas muito acolhedora no sentido de um recantozinho de estudo. Eu não cheguei a conhecer bem o pai dele, mas eu sei que o pai dele estimulava muito o estudo.
P/2 – E vocês estudavam juntos na casa dele?




R – Enquanto éramos colegas de classe.




P/2 – Tinha matérias que ele te ajudava, matérias que você o ajudava? Disciplinas.
R – Mais ou menos. Ele mais me ajudava do que eu a ele. Porque ele era um tremendo, não estudioso, um tremendo pesquisador. Tinha aula de inglês, por exemplo: ele não se limitava a cumprir a lição de inglês. Ele ia mais para o fundo, para ver as ramificações desse inglês. Ou seja: desde essa época ele já se mostrava um intelectual. Ele foi intelectual.
P/1 – Você acompanhou a carreira jornalística dele?


R – Acompanhei pouco, mas acompanhei.
P/1 – Quando ele decidiu ir para Londres, você soube disso com antecedência?
R – Não. Eu soube quando ele já estava lá.
P/1 – E quando vocês se encontraram lá em Londres?
R – Foi, se não me engano, em 1976.


P/2 – 1966.
R – É, se não me engano.
P/2 – E a Clarice já tinha filhos?


R – Não. Não tinha.
P/2 – Você era leitor da revista “Visão”?




R – Era da “Realidade”. Da “Visão”, menos. Mais da “Realidade”, onde o editor era o Parra...
P/1 – Paulo Patarra.
R – Patarra era o editor e, com o Patarra eu me encontrava muito.






P/1 – Você se lembra da casa que o Vlado morava lá em Londres? Como era a casa?










R – Não. Não cheguei a ir à casa dele.


P/1 – E vocês se encontraram o quê? Jantar?
R – É, para jantar.


P/1 – E como é que ele se comportava? Ele estava longe do país...
R – Ele estava bem lá. As vezes em que eu vi o Vlado bem feliz; gostei de ver o Vlado lá.
P/1 – Chegaram a comentar a situação do Brasil?




R – É, muito.
P/1 – Mas isso não o incomodava?
R – Mas acho que ele preferiu ficar lá, quando ele tinha condições boas de trabalho.
P/2 – Vou dar um salto de tempo. Quando você soube da morte do Vlado, como foi? Como chegou a você a notícia do assassinato?
R – Chegou no dia em que ele morreu.


P/2 – Por quem? Você lembra do que se passou?
R – Eu vou lembrar, mas não me lembro assim de chofre, porque aconteceu o seguinte: todos esses encontros nossos eram muito rápidos e de muita informação: “Parece que o Vlado morreu” “Em que circunstância?” Ele tinha sido preso na véspera, dois dias antes, e depois o Dops disse que ele foi...
P/2 – DOI-Codi.
R – É. Se suicidou. E o Vlado não era um cara de se suicidar. Aí começou a ver a coisa no âmbito geral, para esclarecer isso. Estava muito estranha a versão oficial. Até que se descobriu que houve tortura mesmo. O [José] Mindlin, que era o secretário da Cultura, teve um papel digno. Porque ele era secretário dos militares, mas ele quis averiguar até o final as circunstâncias da morte do Vlado.
P/1 – Você esteve no velório?




R – Sim. No velório, e depois na igreja da Sé.
P/1 – Como foi esse dia, o ato ecumênico?
R – Foi uma maravilha! Eu acho que foi a maior reunião que a igreja da Sé teve. Ela cumpriu, a igreja da Sé, aquilo que a gente falava de local de reunião. Quer dizer: uma igreja é um local de reunião, qualquer que seja a religião das pessoas. A reunião foi um ato lindíssimo.
P/1 – Muitas análises convergem para o fato de que esse ato ecumênico teria simbolizado o começo do fim da ditadura. Você comunga [com isso]?


R – Eu acredito que tenha sido a origem.


P/1 – Quando você foi para o ato, você se sentiu ameaçado? Havia um aparato militar?


R – Tinha. Mas eu não me senti ameaçado, não.
P/1 – O que ficou desse crime? O que você avalia que tenha ficado para a memória do Brasil, para a compreensão do país? O que esse crime significou, na sua avaliação?
R – Que crimes desse porte têm que ser mais discutidos pela população, mais documentados, como está sendo feito... [na “Ocupação Vladimir Herzog”, no Itaú Cultura, em São Paulo, de 14/08 a 20/10/2019; https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/vladimir-herzog/]. Eu tentei fazer uma coisa do Vlado, com o Ivo, o filho dele, lá naquela rua ali, a Bento Freitas. Um prédio, ficar com um andar, cheguei a fazer desenho, ele foi atrás das coisas e quase saiu. Acabou não dando certo.
P/1 – Era uma construção?
R – Não. Era um andar.


P/1 – No Sindicato dos Jornalistas?
R – É, Sindicato dos Jornalistas. É isso mesmo.
P/1 – Na Rego Freitas?
R – Na Rego Freitas.
P/2 – Os seus pais, a sua mãe, lembravam de quem era o Vlado quando ele morreu? Como repercutiu na sua casa?
R – Lembraram. Foi uma coisa meio inacreditável. Como é que vai acontecer isso com o Vlado, pô?








P/1 – Essa memória toda, esse lado da vida dele, que é um lado rico, o que significa para você a existência de uma entidade como o Instituto Vladimir Herzog? Para que serve um instituto como o Instituto Vladimir Herzog?
R – Que o Brasil atravessou fases tão penosas, como essa do falecimento, assassinato do Vlado, que não podem ser esquecidas. Tem que ter livro, filme, de toda ordem, para discutir isso. E de mais algumas pessoas importantes que morreram.
P/1 – A pauta dos direitos humanos ainda tem relevância?
R – Tem muita relevância.
P/1 – Você frequenta o instituto? Conhece? Foi ver a Ocupação Vladimir Herzog?


R – Não fui, não.
P/1 – Que linhas de ação o instituto deveria priorizar, na sua opinião? Em que sentido o instituto deveria investir suas energias?
R – De um lado, sobre aspectos que eu vou chamar assim de filmografia: cinema, espetáculos para adolescentes e publicações, sempre.


P/1 – Eu queria voltar para o lado pessoal: você é casado?




R – Agora não. Já fui três vezes.
P/1 – Tem filhos?
R – Dois.
P/1 – Quem são seus filhos?
R – O Rodrigo frequenta, mais que eu, hoje, o [Instituto Vladimir Herzog]. O meu irmão também frequenta mais do que eu. o Ricardo. E tenho uma filha, a Elisa, que faz dança contemporânea, performance.
P/2 – Seu filho é arquiteto?
R – O Rodrigo é arquiteto e ela fez a escola [Arte Dramática, da ECA-USP].
P/2 – O seu filho trabalha com você, no escritório?
R – Trabalhou durante alguns anos. Depois a gente achou que era melhor ele tocar o bonde sozinho. Mas a gente se encontra sempre.
P/2 – De alguma forma sua mãe influenciou o seu jeito de fazer arquitetura?
R – Ela acha que não. Eu acho que um pouco, sim. Ela acha que não porque ela nunca falou sobre arquitetura, nem que eu fizesse o curso de Arquitetura ou passasse por algum lugar e falasse: “Olha, você não acha interessante essa obra aqui?” Mas a questão é que o ateliê dela sempre foi na casa onde ela morou. Ela queria isso aí: ateliê não num outro local. A gente saía e voltava e encontrava ela pintando. Aí é inevitável a gente ter uma curiosidade de ver.
P/2 – E depois, ao longo da vida, vocês trocavam ideias sobre arte, sobre cores, modos de fazer?
R – Sim. Eu levava principalmente alguns livros de arquitetura e mostrava para ela. Principalmente influências: “Um pintor europeu, não sei o quê”. “Olha, esse cara está fazendo umas coisas que alguém lá...” “Tá bom, cada um faz o que acha melhor.”
P/1 – O fato de ter um ateliê dentro de casa não causava muito rebuliço na casa, não? Na rotina da casa.
R – Às vezes causava, sim. Mas eu achava bom. O que causava? De vez em quando ela fazia reunião com alguns pintores. Pintores mais conhecidos. Enchia de dez, quinze pintores, uma balbúrdia. E eu era garoto ainda, ficava olhando. Mas era interessante.
P/1 – Você se lembra de algumas pessoas que frequentavam essa casa?
R – Lembro. Willys de Castro, Hércules Barsotti, Haroldo de Campos – este é um craque, hein!
P/1 – Mário Pedrosa era amigo da sua mãe?
R – Muito, muito amigo. Ele é do Rio de Janeiro. Ele vinha a São Paulo e sempre falava: “Tomie, eu estou indo aí, eu vou tomar um cafezinho na sua casa”.
P/1 – Ruy, você chegou a ter alguma militância política?
R – Quando eu era estudante da FAU, eu fui da UJC, União da Juventude Comunista. Até o final do curso, durante três anos, só. E depois eu fui do Partidão, durante alguns anos, até 1963. Uma turma boa, viu? Uma turma muito boa. Até hoje nós nos reunimos uma vez por mês, cada vez na casa de um. Somos uns dez.






P/2 – Quem são?








R – Eu vou falar, mas: Júlio Katinsky; Armen; a viúva do Patarra, a Judith; a Renina...
P/2 – Katz?
R – O sobrenome?
P/2 – É.
R – Não. Ela morou em Moscou, na transição, na época do...
P/1 – Gorbatchov?
R – Gorbatchov. Ficou três, quatro anos lá.
P/2 – Katinsky, Judith, Renina, você...


R – Geraldo Vespaziano Puntoni. O Ricardo vai de vez em quando.


P/2 – Quantos anos mais novo que você, o Ricardo?
R – Quatro.
P/1 – O que fez você desistir da militância?
R – Houve uma fuga geral, não é? Não é fuga: houve uma dispersão geral. A dispersão foi tão desorganizada, por exemplo, que eu queimei muitos livros de filosofia socialista, comunista, capa vermelha.
P/2 – Ruy, e agora dando mais um salto, porque a gente está indo no tempo para frente e para trás, como surgiu a ideia do Instituto Tomie Ohtake? É sua e do seu irmão? Como se deu toda a constituição desse espaço?
R – Eu fiz dois projetos para o Grupo Aché. Um foi de um laboratório e outro foi de outra instituição. Daí se criou um laço bem amigável com um dos três sócios, Victor Siaulys. Ele era um cara de esquerda, morreu há uns sete, oito anos. Eles tinham um pequeno terreno, ali onde é o instituto. E do lado, contíguo, tinha um laboratório italiano, de produção farmacêutica. Eles queriam sair do país e ofereceram para o Aché. O Aché comprou, então, e ficou com um terreno grande e o Aché falou: “Bom, vamos fazer o escritório do Aché aqui, fora do laboratório”. Eles ficaram discutindo: “Vamos fazer a administração continuando junto ao laboratório. Vamos fazer um prédio”. Aí o Victor falou: “Tá bom, vamos fazer um prédio, mas no térreo vamos falar para o Ruy fazer uma área para a cidade de São Paulo”. Então foi feito aquilo lá. E agora, estava quase pronto o edifício, o Victor falou assim: “Vamos pôr o nome da Tomie. Uma grande pintora, amiga nossa etc., etc.” E aí ficou Tomie. Nós não temos nenhuma participação, infelizmente. Tudo aquilo é da Aché. Mas o nome ficou Tomie e o Victor morreu há uns quatro, cinco anos.
P/1 – Mas o Ricardo...
R – Aí se fez o estatuto, e o Ricardo ficou diretor presidente, e o Conselho é do Aché. Há uma renovação, se eu não me engano, a cada dois anos, e o Ricardo é mantido no cargo até hoje.




P/2 – Mas para você é importante que exista esse lugar com nome da sua mãe?
R – Acho que é uma homenagem, que é bonita.
P/1 – A sua mãe tinha uma capacidade quase de ubiquidade, que ela estava sempre presente nos vernissages, nas aberturas de exposição dos fotógrafos, dos artistas plásticos. Ela sempre prestigiava com a presença dela artistas dos mais obscuros, mas que ela julgava que tinham qualidade.


R – Era incrível a presença dela. Ela magnetizava. Ela chegava, as pessoas faziam aquela roda, e ela não era de falar muito, mas, enfim, chegava para você. “Tomie, aquilo lá é bom assim?” Ela falava: “Você é que tem que saber”.


P/2 – Mas você e seu irmão também gostam de prestigiar os vernissages, os trabalhos dos outros.
R – Lá no instituto?
P/2 – Não. Você e o Ricardo... eu encontrei você no do [Jorge] Wilheim.
R – Porque o Jorge foi um arquiteto amigo da gente e o esforço que a Ana, a filha, está fazendo, para não perder o ginásio, é muito grande; e estava demorando um pouco o reconhecimento cultural do Jorge Wilheim. E surgiu agora: foi uma festa muito bonita lá. Mas depois, o banco da praça, eu viajei naquele fim de semana, não pude ir, mas depois a Ana me contou que foi um grande sucesso. E o Ricardo, por razão do Instituto Tomie Ohtake, em certos eventos ele tem que aparecer.
















P/2 – E naquele período do ginásio, a gente perguntou do professor, você falou dos padres. Com o Vlado, tinha algum professor que marcou a sua vida?
R – No colégio do estado tem alguns. Um deles era o professor de História, Almeida Magalhães. Ele era um intelectual, mas ele resolveu dar aula. Ele dava aula e cada aula dele era um discurso bonito. O de inglês era de origem inglesa, ou americana. Na verdade, tinha uns conservadores ferrenhos.
P/2 – E a história de se tornar ateu, como surgiu essa ideia de que você, então, não ia mais acreditar em Deus?
R – Essa história de Deus está muito mal contada. Começa a duvidar de uma coisa, duvidar de outra, no fim acaba ateu.
P/1 – Ruy e hoje, como é que é a sua rotina? Você falou que ainda precisa trabalhar para pagar as contas. Como é que é o seu dia a dia, sua rotina diária?
R – Eu gosto de trabalhar bastante na Arquitetura, nos trabalhos que eu faço. Gosto de trabalhar bastante. Mas há dois anos eu sofri um acidente na perna, logo depois eu tive que ser internado, e então eu estou trabalhando num volume menor e dedicado, um pouco, a pensar nas coisas, que eu acho ótimo isso também. Mas ter escritório de arquitetura é uma despesa muito grande. Muito grande.
P/1 – Você tem equipe, ainda?
R – Tenho uma pequena equipe. Você vê: em São Paulo, os arquitetos mais antigos, todos eles, ou fecharam escritório ou então trabalham no que os americanos estão chamando de “coworking”.






P/2 – Ou chamam, alguns, escritório parceiro, por projeto.
R – É.
P/1 - Você disse que está dedicado a pensar as coisas. Você escreve, toma notas?
R – Eu anoto algumas coisas e deixo algum sumário feito. Porque eu estou sendo muito convidado para fazer palestras. Então eu pego um daqueles escritos e dou uma atualizada, ilustro com algumas imagens. Semana retrasada eu estive na Espanha, em Barcelona. Eu fui presidente do júri internacional de design, em Barcelona. Então tive que fazer um discurso. Eu fiz um discurso sobre a questão do design nos países da América do Sul. E no começo desse ano, no meio desse ano, eu ganhei um prêmio internacional na Alemanha, também de design. E aproveitei e faço um discurso, que é importante juntar a criatividade com tecnologia.
P/1 – Livros? Está produzindo algum livro? Tem alguma coisa?
R – Tem um com o [arquiteto] Abílio [Guerra], que está em fase quase final.


P/2 – O do Abílio é um livro só sobre obras ou tem textos também?
R – Tem um pouco de texto. Você diz texto e obra? E algumas obras.
P/2 – Textos seus?
R – Meu só tem um.






P/2 – E esse que saiu recentemente?
R – Não. Do Abílio não saiu ainda.
P/2 – O anterior.
R – O anterior saiu há um ano. Dá um trabalho, não? Puxa vida, viu! (risos)
P/2 – Mas quando você olha a quantidade, o que tem vêm à cabeça? A quantidade de obras que você fez.
R – Que é preciso fazer mais. Tem muitas coisas ainda a escrever, a desenhar sobre São Paulo.
P/1 – Você sente que sua obra foi apropriada pelos moradores, pelos habitantes da cidade?








R – Houve um caso lá em Heliópolis. É favela, não é? Mas hoje se chama comunidade. E logo depois que a Dilma [Rousseff] criou o projeto “Minha Casa, Minha Vida”, eu fui falar com ela lá em Brasília, que, ao meu ver, precisava de alguns acertos na proposta. Senão, o “Minha Casa, Minha Vida” iria beneficiar basicamente as grandes construtoras, como aconteceu. Ela falou: “Ruy, você tem razão, mas eu não posso fazer isso porque, se eu for democrática demais, primeiro, eu dou verba para a prefeitura comprar o terreno, depois a prefeitura faz a licitação do projeto, a licitação da obra. Para fazer uma obra de certo porte, eu fico quatro anos para cumprir todos os requisitos de licitação. E aí eu perco todo o tempo. O que eu estou fazendo? Eu faço uma única licitação para uma grande construtora. Ela, então, vai comprar o terreno, faz um acordo com a prefeitura, contrata a construtora, o arquiteto. Então, em uma única licitação eu cumpro tudo isso e consigo fazer um programa ‘Minha Casa, Minha Vida’ em um ano e meio.” Porque esse de Heliópolis, apesar de correr todos esses caminhos, ficou pronto em um ano e meio. É um grande exemplo de construção para famílias de salários até mil reais, porque dá uma dignidade de vida. O fato de o prédio ser circular, é chamado de “Redondinho”, acontece que todas as janelas são assim, todos os apartamentos recebem sol, vento direto e depois não tem apartamento de frente e de fundo. Ou seja: dá uma dignidade de moradia. Mas o governo do Lula não se interessou por isso, deixou as grandes construtoras ganharem o dinheiro todo e, como a construtora é uma instituição privada, eles não fazem concorrência. Eles podem contratar, como eles fizeram. Então, se perdeu muito disso. O objetivo das grandes construtoras é unicamente financeiro.
P/1 – E no mais das vezes os conjuntos habitacionais são massas de casas próximas umas das outras, sem uma árvore, sem uma praça, sem uma área de convivência.
R – É uma tragédia. Eu falei para a Dilma, ela começou a rir: “Virou plantação de alface”.
P/1 – Vamos encaminhar para o final. Eu queria saber de você, ainda sobre o Vlado, uma coisa: qual é a importância que ele tem – a vida dele, não a morte.
R – Pois é. A gente não pode dar importância para o Vlado pela morte dele. Tem que dar importância pelo que ele fez e pelo que ele lutou, por aquilo que ele lutou. Acho que aí que está o valor grande do Vlado.
P/1 – E a atuação que ele teve, do trabalho que ele desenvolveu no jornal, na academia, no cinema.
R – Isso mesmo. Então, esse espaço Vlado Herzog que está se fazendo, conseguindo fazer algumas atividades desse tipo já é um passo muito bom, eu acho. Acho que não deve ficar só no Vlado morreu.
P/1 – Isso é o de menos. Está certo. Ruy, tem alguma coisa que você gostaria de ter dito e a gente não te perguntou?
R – Eu falei 220 coisas a mais do que eu pensava falar nesse bate papo com vocês. Está bem.


P/1 – E como é que você se sentiu dando esse depoimento?


R – Eu me senti bem, porque eu disse algumas coisas que o Instituto Vladimir Herzog tem que fazer, eu acho. Tem que fazer. Não pode ficar só “in memoriam” do falecimento. A morte dele, infelizmente, serviu para uma série de atitudes, principalmente dos jovens, que o Brasil tem que continuar tendo. O Vlado é um pedaço do Brasil.
P/1 – Ruy, quais são seus sonhos?
R – Eu tinha alguns sonhos muito distantes. Por exemplo: que todos os brasileiros pudessem viver de uma forma boa, amigável, com o mínimo de requisitos de bom viver. E que o trânsito, o andar de todos nós, brasileiros, fosse um andar bem livre, bem aberto, usufruindo das atividades culturais que nós temos. Essas atividades, acho que em épocas anteriores foram mais intensas, mas não tem importância, vamos em frente com aquilo que a gente pode fazer. Às vezes essas questões são um pouco utópicas, mas a gente tem que ter uma certa vontade utópica para ir alcançando as coisas.
P/1 – Sem utopia ninguém vive.
R – É. Então! Você vê que todos nós estamos aí. O Vlado, se estivesse vivo, ele queria que todo mundo fizesse essas coisas.






P/1 – Muito obrigado, então, Ruy! Foi um prazer enorme ouvi-lo, ter, um pouco, cavoucado a sua memória. Foi muito rico psra nós ouvir você falar essas coisas bonitas que você nos disse.
R – Tá bom.
P/2 – Eu também agradeço. Muito obrigado! Foi um prazer te conhecer. E que você continue produzindo coisas importantes, como sempre.
R – Tá bom.


P/1 – É isso aí.