Depoimento de Marco Antônio Rocha
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 12 de setembro de 2019
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Entrevista número PSCH_HV807
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiz Egypto
P/1 – Muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. Eu queria que você começasse dizendo seu nome completo, local e a data do seu nascimento.
R – Marco Antônio de Souza Rocha é meu nome completo. O local de meu nascimento é a cidade de Olímpia, no estado de São Paulo. E a data é 11 de abril de 1936.
P/1 – O nome dos seus pais, por favor.
R – Antônio Rocha, meu pai e Alzira de Souza Rocha, minha mãe.
P/1 – O que faziam seus pais?
P/1 – Meu pai era funcionário federal, da Fazenda. Era exator fiscal, como dizem hoje. Naquele tempo não tinha esse nome, o cargo. Era coletor federal, porque recolhia impostos. Hoje chama-se exator fiscal. Ele foi, 50 anos, isso aí. Quer dizer: dos 20 aos 70. Se aposentou com 70 anos, compulsoriamente, por causa da idade e viveu até os 100. Então, ele era daqueles funcionários públicos que deram prejuízo para a Previdência. Viveu mais 30 anos recebendo salário integral, sem contribuir com nada.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe, Alzira de Souza Rocha, era dona de casa. Nasceu em São José do Rio Preto. Meu pai era de Rio Claro. E ela era de Rio Preto.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Conheci. Não todos. Conheci os meus avós maternos e um avô paterno.
P/1 – Lembra o nome deles?
R – Sim. O avô paterno era Manoel Simões da Rocha, morreu com 98 anos. Foi um dos primeiros maquinistas da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, esse meu avô paterno. Meu avô materno era Amado Rodrigues de Souza, o nome dele, e a minha avó materna era Izabel Maria de Souza.
P/1 – Havia histórias na família sobre de onde vieram seus avós, o que faziam? Tinha história sobre eles na família?
R – Algo, mas poucas histórias. Meu avô paterno, por exemplo, que é esse que morreu com essa idade provecta, era de Rio Claro, como meu pai. Então, as histórias dele eram as mesmas do meu pai. E a minha mãe, que era de Rio Preto, a família dela tinha raízes mais distantes. O meu avô materno era de Minas Gerais, Três Corações, se não me engano, e a mãe dela, minha avó materna, era de uma cidade que desapareceu, chamada Turvo, não sei do que do Turvo, uma cidade que desapareceu. Tanto é que o cartório de registro foi transferido pra outra cidade. Cada vez que a gente precisava de uma certidão do nascimento da minha avó materna, tinha que procurar noutro lugar.
P/1 – Foi inundada a cidade? Alguma usina hidrelétrica, uma coisa assim?
R – Não.
P/1 – Desapareceu como?
R – O povo foi embora. Principalmente na época em que começou o desenvolvimento do café, no norte do Paraná. Como aquele povo daquela região do estado de São Paulo era de uma região de café, quer dizer, a atividade deles era de plantação de café, cuidados com café, tratamento do café e tal, muita gente foi embora para o norte do Paraná, inclusive dessa cidadezinha. Acabou a cidade.
P/1 – Interessante. Você tem irmãos ou irmãs?
R – Tenho uma irmã, Cibele Maria de Souza Rocha.
P/1 – Você é o irmão mais velho? Mais velha ou mais nova que você?
R – É mais nova, cinco anos mais nova e é socióloga. Quer dizer: formada. Hoje não trabalha mais. Mas é.
P/1 – E a sua Olímpia da infância, como era essa cidade?
R – Olímpia? Era uma cidade pequena, praticamente ponta terminal da estrada de ferro São Paulo-Goiás, que não existe mais, e eu cheguei a viajar nela várias vezes, entre Araraquara e Olímpia, porque Araraquara era e é servida pela Companhia Paulista, antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro, hoje Fepasa. Mas você ia: pegava o trem em Araraquara e fazia baldeação em Bebedouro, para a São Paulo-Goiás. O nome dessa estrada de ferro é curioso, porque o fundador dela, o cara que pretendeu construir a estrada, pretendia que a estrada fosse de Bebedouro até Goiás, mas nunca chegou em Goiás. Ficou um trecho, Bebedouro a Nova Granada. E Olímpia era praticamente – perto de Nova Granada –a estação terminal da poderosa estrada de ferro São Paulo-Goiás.
P/1 – Que não chegava a Goiás.
R – Que não chegava. Ficava só aqui, São Paulo. E que foi desativada em 1968.
P/2 – Essas estradas você sabe por conta do seu avô maquinista?
R – Não. Essa história eu sei por mim mesmo. Porque eu ia muito à Olímpia e meus tios e meus primos que ainda moravam lá me contavam. Até recentemente tinha um museu na cidade, eu acho que ainda tem – a última vez que eu estive lá em Olímpia foi em 2007. Acho que ainda tem um museu que tinha até a locomotiva da estrada de ferro, tinha a história da estrada de ferro, tinha muita coisa.
P/1 – E como era sua casa em Olímpia?
R – Eu não tinha casa em Olímpia. Tinha casa em Araraquara, que era onde eu morava. Em Olímpia tinha a casa do meu tio e da minha avó, na Rua Síria, em Olímpia, que era uma casa grande, com a varanda enorme dando para a rua, toda térrea, com um quintal também, um vastíssimo quintal. Eu frequentei muito essa casa, desde menino. Em uma certa época meu tio, que era o dono da casa, reformou, irmão da minha mãe, fez uma reforma, expandiu ainda a casa, aumentou a casa, que já era grande. Eu e meu primo, esse que morava lá na casa, porque era filho do meu tio, a gente brincava muito nessa casa, quando menino. A gente fazia coisas que hoje em dia são condenáveis, são politicamente incorretas. Por exemplo: minha avó pedia para a gente matar os leitões no Natal. E a gente ia lá para o quintal, caçava o leitão e matava. Hoje eu conto isso para a criançada, elas ficam horrorizadas. Porque era outra época, outra história. Frango, a mesma coisa. Minha avó sabia matar frango, mas ela não tinha mais força. Ela destroncava o pescoço. Então, a gente se encarregava de matar o frango, mas a gente não sabia destroncar o pescoço, então a gente cortava, simplesmente, o pescoço do frango.
P/1 – Deixa eu entender, Marco Antônio: essa casa é em Olímpia? A casa do seu tio. E que história é essa de Araraquara? Vocês viviam em Araraquara?
R – É. Meu pai, que era funcionário federal... eu nasci em Olímpia. Mas, logo depois que eu nasci, seis meses de idade, ele foi transferido para Araraquara, Então eu fui morar em Araraquara, com a família.
P/1 – E essa casa de Araraquara, como ela era?
R – Era uma casa simples, de classe média, na Rua Quatro, que era uma das principais ruas da cidade. Era, não, ainda é. E ficava perto, a meio quarteirão, da cadeia pública. A cadeia era belíssima. Tinha um jardim fantástico, com flores em roda da cadeia. Praticamente não tinha portão, tinha um portão de ferro que ficava o dia inteiro aberto e então a gente ia brincar no jardim da cadeia. E, às vezes, dentro da cadeia, quando o delegado deixava. Não tinha ninguém preso, então ele abria a porta das celas e tudo o mais e a gente ia brincar de bandido e mocinho dentro da cadeia. E a casa ficava nessa Rua Quatro. Quer dizer: para cima, saindo à esquerda da casa, era a cadeia; saindo para a direita, dois, três quarteirões abaixo, tinha a igreja da matriz, a matriz de Araraquara, que era uma igreja enorme. Anos depois foi reconstruída. Ficou maior ainda. Onde a gente ia assistir missa, essas coisas. A cidade era muito organizada, Araraquara. E era uma cidade de classe média, basicamente. Porque a classe operária que tinha em Araraquara eram os funcionários da estrada de ferro, a Ferroviária, que até hoje é o time de futebol de Araraquara, eram os funcionários da ferrovia, Estrada de Ferro Araraquarense, e o pessoal da fábrica de meias Lupo – os operários, que também eram operários, mas eram classe média. Porque, inclusive, a fábrica Lupo tinha uma tradição de, todo ano, fechar a fábrica e botar todo mundo de férias e trazer todos os operários para Santos, para passar as férias em Santos. Então, era um operariado que não era pé de chinelo. E a folha de pagamento em Araraquara era a estrada de ferro, a ferroviária, a fábrica de meias Lupo e o DER, Departamento Estadual de Estradas de Rodagem. Funcionários públicos. Isso, além dos professores de escolas, escola estadual, escola primária, profissionais advogados, médicos e tal. Então, a cidade era de classe média. Tinha algumas pessoas riquíssimas, como os Lupo, por exemplo, como os Morganti, a família Morganti, que era produtora de açúcar, cana de açúcar, dona da Usina Tamoio, uma imensa fazenda e usina de açúcar, que tinha perto de Araraquara, que tinha até estrada de ferro dentro da fazenda. Eram as famílias ricas de Araraquara: os Morganti e os Lupo. O resto era tudo classe média: ou funcionário público ou operário qualificado.
P/1 – E a sua primeira escola, qual foi, lá em Araraquara?
R – Na verdade, não tive primeira escola. Quer dizer: um grupo escolar, como tinha na época. Tinha um grupo escolar em Araraquara, mas eu fiz o curso primário com uma professora que, naquele tempo, era permitido uma professora que tinha uma escolinha primária. Só que a escolinha dela só tinha quatro alunos: eu e mais três amigos. Fizemos o curso primário ali, com ela, Dona Lilita.
P/2 – E era na casa dela?
R – Era. Que era uma casa grande, também, em Araraquara, perto de casa, virando a esquina, assim. Ela tinha esse curso primário, que ela ensinava a ler, fazer conta, o diabo a quatro, escrever. Fizemos, ali, até o quarto ano, digamos assim.
P/1 – Era amiga dos seus pais? Por isso essa ‘escola’?
R – Era. Irmã de um advogado que morava na frente da nossa casa, doutor Fortes, que era outra família, que também foi a primeira família que meus pais fizeram amizade quando foram para Araraquara. Tanto é que o primeiro filho deles, desse advogado, esse doutor Fortes, nasceu no mesmo ano que eu. No mesmo mês que eu. Nove dias depois. Ele morreu ano passado, Hugo Salinas Fortes. E o irmão dele, Luiz Roberto Salinas Fortes, que foi professor da USP aqui, ficou famoso porque capturou, gravou e traduziu uma conferência do Jean-Paul Sartre, que o Sartre foi a Araraquara fazer uma palestra na Faculdade de Filosofia de Araraquara, para responder a uma pergunta que um dos professores, o professor Castilho, tinha feito para ele, por carta. Quando veio ao Brasil, ele fez questão de ir à Araraquara, para responder à pergunta pessoalmente, para os professores da Faculdade de Filosofia. E, nessa ocasião, ele aproveitou e fez, também, uma palestra para os estudantes de Araraquara, no Teatro Municipal. Na época deu muita repercussão nos jornais porque ele estava em uma campanha a favor do Fidel Castro e de Cuba, o Sartre. Ele escrevia e, inclusive, ele tinha uma coluna na “Última Hora”, o jornal onde eu trabalhava. Ele tinha uma coluna chamada “Furacão sobre Cuba”.
P/1 – O Sartre?
R – O Sartre. Ele defendia, não só as ideias do Fidel Castro, como a Revolução Cubana em geral. E eu, como era repórter da “Última Hora” na época e ele tinha essa coluna...
P/2 – Que ano?
R – 1959 para 60. O Fidel tinha acabado de assumir, praticamente, lá em Cuba. A Revolução Cubana tinha sido vitoriosa em final de 1959, se não me engano; em 1960 o Fidel assumiu lá e começou a fazer propaganda da revolução pela América Latina. Um dos primeiros propagandistas foi o Sartre.
P/2 – Você acompanhou essa visita?
R – Acompanhei, porque a “Última Hora” me designou. Essa é outra história cultural da época: eu era um dos poucos jornalistas, repórter naquela época, que sabia francês, que falava francês. Porque todo mundo só se interessava em aprender inglês. Eu era dos poucos que tinha aprendido francês. Então, eu fui acompanhar o Sartre, primeiro na visita que ele fez ao próprio jornal “Última Hora”. Eu fiquei lá no mesão do jornal, junto com outros repórteres, fazendo pergunta para ele, anotando as respostas e tudo o mais, para transformar numa matéria. Depois fomos para Araraquara junto com ele – junto com ele, não, fomos em viaturas separadas. Mas porque ele foi primeiro para essa cidade que tem aqui perto de Campinas, onde a família Mesquita...
P/1 – Louveira?
R – Louveira. [Onde a família] Mesquita tem uma fazenda. Ele foi passar a noite lá, com os Mesquita. E conversar com o doutor Júlio [de Mesquita Filho], com o pessoal do “Estadão”. E eu fui direto para Araraquara, no jipe da “Última Hora”, que era o Candango. Não sei se vocês chegaram a saber desse veículo, que era um jipe Vemag, que tinha sido feito especialmente para rodar em Brasília. E que tinha esse apelido de Candango, por causa dos nordestinos que iam trabalhar em Brasília, que tinham o apelido de candango também.
P/1 – O Vlado também cobriu essa visita do Sartre, não é?
R – Também. Para o “Estadão”. O Vlado era repórter do “Estadão” e eu era repórter da “Última Hora”. Nós somos da mesma idade, certo? 1936. Acho que ele é de 1937. Acho que ele é um ano mais novo que eu. É, era. Então, nós éramos da mesma idade. E o Vlado foi nessa cobertura também, do Sartre. E aí o Sartre fez essa palestra para os professores, que está editada por esse amigo meu, o Luiz Roberto Salinas Fortes, que gravou a palestra e depois traduziu e editou, chamada “Conferência de Araraquara”. Entre as obras do Sartre, está essa “Conferência de Araraquara”, que é filosófica, uma conferência sobre Filosofia. E depois ele fez a palestra para os estudantes, no Teatro Municipal, falando sobre Cuba. E aí, para minha surpresa, na época, é que ele não falava português, mas entendia tudo que se falasse em português. Ele ouvia as perguntas dos estudantes e não precisava de tradutor, respondia em francês. Depois, eu soube que ele tinha morado na Espanha um tempo enorme e então era normal que ele entendesse português.
P/1 – Eu queria voltar nesse assunto, mas antes eu queria fazer um “flashback”: onde foi seu ginásio, como é que você saiu dessa escola da Dona Lilita?
R – O ginásio foi em Araraquara, também. Um ginásio particular. Chamava Ginásio São Bento, que ficava quase na frente da minha casa, em Araraquara. Araraquara tinha, também, o ginásio do estado, que hoje é conhecido como IEBA, Instituto de Educação Bento de Abreu. Bento de Abreu é um dos fundadores de Araraquara. Bento de Abreu Sampaio Vidal. O colégio estadual chamava Instituto de Educação Bento de Abreu. Eu fui fazer exame lá e fui reprovado. Depois fui fazer segunda época num colégio particular, no São Bento, porque no colégio do estado era o seguinte: quem era reprovado na primeira época, era reprovado também na segunda: os professores não deixavam passar. Aí, fui fazer no ginásio São Bento, que era na frente da minha casa. Era muito prático.
P/2 – Para os seus pais era importante você estudar?
R – Era muito importante, muito importante. Não queriam relaxamento. Relaxamento foi obra minha. Mas eles exigiam muito.
P/2 – Que lembrança você tem dessa escola?
R – Uma boa lembrança dos professores. Na verdade, os professores eram todos também do colégio estadual. Então, o nível de ensino era praticamente o mesmo. E eu costumo dizer para muitos amigos meus, e até para o meu neto, que os conhecimentos que eu tenho hoje, e que eu uso, foram aprendidos nesse ginásio. O que eu aprendi na faculdade praticamente não me serve para nada, para a minha profissão de jornalista. Então, por exemplo, escrever bem eu aprendi nesse ginásio; falar inglês e francês, aprendi nesse ginásio; falar latim, ler, eu não falo, mas eu leio latim, foi lá no ginásio que eu aprendi. Muita coisa da história do Brasil e de história do mundo aprendi lá. O livro de história do mundo era francês, de um autor chamado Mallet Isaac. A gente lia o livro em francês, porque a gente sabia francês. Olha, a minha cultura, digamos assim, a base da minha cultura está nesse ginásio, não está na faculdade. Na faculdade eu só aprendi bobagem, para falar a verdade. Eu falo para o meu neto: “Não faça faculdade. Larga mão. Se você quiser uma profissão, faça um curso técnico. Agora, para cultura geral, para você ser um sábio, um intelectual, a faculdade não vai adiantar.
P/1 – Os anos de formação é que são importantes, não é?
R – Exatamente.
P/2 – E bons amigos nesse tempo?
R – Bons, muito bons amigos. Meus amigos de infância e adolescência são todos dessa época: ou do ginásio São Bento ou do ginásio estadual. Por exemplo: vocês conhecem o Ignácio de Loyola [Brandão], que é escritor? Era meu amigo de infância também, em Araraquara. E era do colégio estadual. Os filhos desse advogado que eu mencionei eram, todos, também, do colégio estadual. Meu pai, que era funcionário federal, era exator fiscal – uma certa época, não tinha nenhuma autoridade do ensino federal em Araraquara – foi nomeado, provisoriamente, como inspetor de ensino, pelo Ministério da Educação. Inspetor federal do ensino. Então, ele tinha que verificar se o colégio estadual estava cumprindo todas as normas, essa coisa toda. Muitos amigos meus de infância pensam: “Não, seu pai era aquele cara que suspendia a gente das aulas”. Tenho que explicar: “Não é nada disso, meu pai recolhia impostos, isso que ele fazia. Por acaso ele também foi designado, durante meia dúzia de meses, como inspetor de ensino pelo Ministério da Educação”.
P/1 – Marco Antônio, como esse grupo de amigos se divertia? Você e seu bando, digamos assim?
R – Na rua. Jogando futebol na rua, andando de bicicleta nas ruas, não tinha trânsito de automóveis. As mães não ficavam alucinadas porque o filho está na rua, porque não tinha banditismo. Não tinha nada disso. Então, as nossas brincadeiras todas de infância, eram na rua: andar de bicicleta, jogar bola, correr pra cá e pra lá, inventar aquela famosa – não sei, parece que até hoje brincam – “uma na mula”. O nome era esse. Essa brincadeira que um fica agachado e o outro vem e pula por cima.
P/1 – Também chamado de “carniça”.
R – É, isso aí. Essas brincadeiras que existem até hoje, certo? São as mesmas brincadeiras da infância de hoje. Mas era tudo na rua. E não tinha academia de ginástica, essas coisas. Aliás, a aula de ginástica no ginásio, no colégio, era dada na rua também. Não tinha academia de ginástica, nem tinha instalações. Quando foi construído isso em Araraquara, eu já estava no final do curso de ginásio. Cheguei a ter umas duas ou três aulas lá e depois mudei para São Paulo. Vim para São Paulo com 15 anos. Ou seja: em 1951.
P/1 - Por quê?
R – Porque meu pai foi transferido pra cá, de novo. A mesma causa.
P/1 – Vocês vieram morar onde, em São Paulo?
R – Fui morar na Aclimação.
P/2 – Como foi essa mudança?
R – Num primeiro momento foi chocante. Porque eu não entendia a cidade. Araraquara é uma cidade muito fácil, porque ela é quadriculada. Era, na época. Hoje, não. Hoje tem zonas de uma nova Araraquara, que é diferente, mas naquela época era um xadrez, um quadrado, com as ruas numeradas: Rua 0, Rua 1, Rua 2, Rua 3, Rua 4, Rua 5. E as avenidas com nome: Avenida José Bonifácio, Avenida Duque de Caxias, avenida não sei o que, cruzando as ruas. E, nesse quadrilátero, tinha jardins, praças, igrejas etc., que nós sabíamos toda localização e tudo. A gente atravessava a cidade de um ponto a outro a pé em 30 minutos, por aí. A gente ia da Vila do Carmo, que era o limite da cidade para o lado da rodovia, até a Vila Xavier, que era o outro limite da cidade, atravessando a estrada de ferro. Quer dizer: a cidade tinha a cidade à direita da estrada de ferro e à esquerda da estrada de ferro. A gente cruzava a estrada de ferro e atravessava a cidade toda a pé, moleques, em 30, 40 minutos, no máximo. De bicicleta, então, era dez minutos. Quando eu vim morar em São Paulo, com 15 anos, em 1951, eu fui morar na Aclimação e fiquei sócio do Clube Tietê que, recentemente, foi transformado pela prefeitura em não sei o quê. Mas o Clube Tietê ficava lá, ao lado do Tietê. E tinha barcos. Eu me interessei em ficar sócio do Tietê para remar no rio Tietê. Ia remar no Tietê uma vez por semana, pelo menos. E ia de bicicleta da Aclimação, onde eu morava, até o Tietê. Ia no barracão, puxava o caiaque, colocava no rio, passava uma água nele, entrava no caiaque e ia remando até a confluência com o [rio] Pinheiros e voltava. Nas margens tinha mulheres lavando roupa, tinha japonês pescando. Isso em 1951. Trinta anos depois, ou seja, em 1980, tinham acabado com o rio que a natureza levou milhões de anos para fazer. Você está entendendo? Isso é uma coisa que até hoje me espanta. Me espanta.
P/1 – Para a História, realmente, não é tempo nenhum. 30 anos é um abrir e fechar de olhos aí.
R – É.
P/1 – E o que esse garoto queria ser quando crescesse?
R –O que eu queria ser? Eu não sabia. Eu aventava umas hipóteses. Bom, primordialmente, como todo garoto da minha época, acho que todos, 100% queria ser piloto, queria ser aviador. Mas, naquela época, só conseguia ser aviador quem fosse filho de aviador. Porque precisava aprender a voar e custava caro aprender a voar de avião. Custava muito caro. Então, não fui ser aviador. Meu pai queria que eu fosse médico. Até fiz o cursinho para Medicina, no fim do colegial, fui prestar exame na USP e fui reprovado. Ou melhor, não consegui o nível. Fui reprovado em Física.
P/1 - E onde você fez o colegial?
P/2 – Mas, aos 15, quando você chega, você vai estudar onde? Na Aclimação?
R – É. Eu fui estudar no Colégio Roosevelt, que ficava na Rua São Joaquim. E o Roosevelt, naquela época, era o colégio padrão do ensino do estado de São Paulo, da Secretaria de Educação. Os professores do interior do estado, quem queria ser professor colegial, tinha que passar por um exame no Colégio Roosevelt, pra ser professor de colégio nas cidades do interior. Eu fui aluno do Roosevelt, que era um colégio excelente. O meu colega que prestou exame de Medicina comigo e que ficou em primeiro lugar, era colega de classe do Roosevelt. O primeiro colocado.
P/2 – Como ele chamava?
R – Esqueci o nome dele, mas durante muitos anos ele foi presidente da Associação Brasileira de Gastroenterologia.
P/2 – E como era esse percurso entre a casa, o colégio...
R – Aqui em São Paulo? Eu ia a pé. Na Aclimação era Rua Bueno de Andrade, entrava numas quebradas lá, saía na Galvão Bueno, depois subia a Rua São Joaquim e estava lá o Colégio Roosevelt, que eu me matriculei em 1951. Eu ia a pé.
P/2 – Era clássico, científico...
R – Tanto é que, numa das minhas caminhadas mais memorizáveis, que eu tenho a maior lembrança, foi numa dessas idas para a escola, passando na frente de uma padaria que tinha na Rua Galvão Bueno, ouvi o “Repórter Esso” dando a notícia do suicídio do Getúlio. Fui, terminei a caminhada lá na escola, o diretor da escola, Doutor Ivan, tinha reunido todos os alunos e tinha dispensado as aulas, recomendando que todo mundo fosse para casa e ficasse em casa, porque a cidade podia entrar em ebulição. De fato, entrou. Só que eu não fui para casa. Eu peguei o bonde e fui para o Largo São Francisco, onde eu sabia que ia haver tumulto, porque os estudantes da faculdade de Direito estavam contra o Getúlio e andavam... naquela época a gente usava paletó e gravata para entrar na faculdade. Então eles estavam com um “R” na lapela do paletó, pedindo a renúncia do Getúlio, que o Carlos Lacerda tinha proposto. O Carlos Lacerda, que era da UDN, antigetulista, tinha proposto a renúncia do Getúlio. Então, os estudantes andavam com isso pelas ruas. Então, eu fui lá para o Largo São Francisco, saber o que ia dar. Eu tinha 18 anos.
P/2 – E você era politizado?
R – Já. Já acompanhava até comício do Partido Comunista, no Largo Cambuci. Foi lá que eu vi o [Luis Carlos] Prestes pela primeira vez, fazendo discurso. Aí fui para a escola, o diretor dispensou, eu não fui para casa, fui para o Largo São Francisco. Cheguei lá e estava, realmente, uma multidão querendo invadir a faculdade de Direito e quebrar tudo. Multidão de getulistas, naturalmente, que era maioria, principalmente em São Paulo, uma cidade operária. O Getúlio era o homem que começava os discursos dizendo: “Trabalhadores do Brasil”. E que fez a legislação trabalhista. E que criou os sindicatos. Então, vamos dizer, o operariado, o proletariado de São Paulo estavam com ele. Não estavam com o Carlos Lacerda. Carlos Lacerda era da UDN, UDN era a elite paulistana do Jardim América.
P/2 – E esse seu interesse pela política vinha de casa, do colégio?
R – Vinha um pouco de casa, porque meu pai era do PSD. Naquela época era PSD que chamava, Partido Social Democrático. Que era o partido do Getúlio. Getúlio tinha dois partidos. Ele tinha um pé num e um pé noutro. O PSD e o PTB. Partido Trabalhista Brasileiro e o PSD. Meu pai era getulista também. Foi ele que me levou quando eu tinha... em 1950 eu ainda morava em Araraquara. Em 1949, Getúlio foi candidato em 50 e ganhou as eleições. Em 1949 ele fez um comício em Araraquara, no Largo da Câmara, e meu pai me levou para conhecer o Getúlio e ouvir o que ele falava, o que ele dizia. Eu ouvia. Eu era um pouco getulista, embora fosse mais comunista do que getulista.
P/2 – Esses discursos do Prestes, seu pai ia ou não?
R – Exatamente. Muito. Não que ele falasse bem. Ele falava pessimamente. Porque depois eu tive outros contatos com ele, em outras oportunidades. Quando o Prestes Maia era prefeito aqui em São Paulo, a mulher dele, a Dona Maria, era do Partidão, era comunista. E convidava muito o Prestes para jantar na casa dela. E como eu tinha trabalhado na campanha do Prestes Maia, eu ia lá também, para conversar com o Prestes. Uma das ocasiões ele foi lá... aliás, o Prestes Maia, o prefeito, o convidou para ir lá, para pedir para ele amainar uma greve dos motoristas da CMTC [Companhia Municipal de Transportes Coletivos], que estavam ameaçando paralisar a cidade. E o prefeito quis fazer um acordo com o Prestes, para dispensar a greve, evitar a greve, que ia criar muito tumulto na cidade. Eu fui lá na casa do Doutor Maia nessa conversa. Não assisti à conversa. A Dona Maria botou a gente para fora da sala, quando o prefeito foi conversar com o Prestes.
P/1 – Vamos chegar lá, mas nesse momento em que você vai fazer vestibular, de repente se vê sem uma carreira pela frente e o que você foi fazer da vida?
R – Então, eu fui fazer Medicina. Não passei. Aí falei: “Bom, agora o que eu vou fazer?” Não me lembro se foi um amigo meu que falou ou algum amigo do meu pai: “Faça Direito. Você fazendo Direito, depois, o que você quiser fazer, abre porta pra qualquer profissão. Você não precisa ser advogado, você faz o que você quiser depois. A faculdade de Direito é uma forma de adquirir cultura, conhecimentos gerais. E serve para qualquer coisa”. Esse meu amigo falou para o meu pai, meu pai me falou também, aí eu fui fazer faculdade de Direito, fui prestar vestibular e tudo.
P/1 – São Francisco?
R – São Francisco.
P/1 – Que também não era um vestibular fácil?
R – Não. E aí é que está a história: o que eu tinha aprendido no ginásio. Eu tive dez de Francês, no exame oral. Porque o vestibular tinha a prova escrita e a oral. Era individual. Não era esse negócio... como é que chama hoje? Fundesp, não sei o que, Unesp, [Fuvest] essa coisa de 500 milhões de alunos e tal. Não. Cada faculdade tinha o seu vestibular e a sua maneira de fazer as provas. Então, prova escrita e oral. Eu tive dez de Francês no vestibular da USP, de Direito. Tive dez de Latim. O vestibular era uma língua estrangeira, Latim, Português, noções de Contabilidade e Código Civil.
P/2 – Você estudou?
R – Estudei um pouco, porque a língua estrangeira eu já sabia, falava fluentemente. Latim também. Caiu Cícero para mim, ainda tive essa sorte. Os discursos de Cícero era a coisa que a gente mais estudava em Latim. Depois, que mais que eu falei? Português. Tudo com base... praticamente não precisei estudar para o vestibular. A base que eu tinha do ginásio em Araraquara e do Colégio Roosevelt, aqui em São Paulo, foram suficientes para eu passar bem no vestibular de Direito.
P/1 – Esses anos de faculdade de Direito foram efervescentes no país, não é?
R – Foram.
P/1 – Como é que foi a sua trajetória na faculdade e a sua aproximação da política orgânica, militante?
R – Durante a faculdade?
P/1 – Isso.
R – Eu continuava fazendo política, mas estudantil. Acompanhando as coisas do Centro Acadêmico, greves e protestos e passeatas e o diabo a quatro. Eu me lembro que uma das que eu participei, com grande ferocidade, foi para pagar meia entrada no cinema, que foi uma puta de uma briga dos estudantes. Depois também teve para pagar meia passagem de ônibus. No cinema eles fizeram, os estudantes inventaram aquela greve que tinha um nome... que era o seguinte: você ia ao cinema, oito, dez, vinte estudantes e faziam uma fila na bilheteria do cinema, e o primeiro que chegasse na bilheteria voltava para o fim da fila, não comprava o ingresso. Os donos do cinema ficavam... ninguém entrava no cinema. Ninguém comprava o ingresso, porque todo mundo que chegava lá via aquela bruta fila e não ia, certo?
P/1 – Inteligência.
R – É. Era o tipo de política que a gente fazia, era isso: coisa de passagem de ônibus, greve de cinema, greve estudantil propriamente dita, também para diminuir o preço... Nessa época eu comecei a atuar mais politicamente no PTB. A presidente do PTB em São Paulo, a então deputada Ivete Vargas, criou o Departamento Estudantil do PTB, que, depois, passou a se chamar Juventude Trabalhista. Eu e outros amigos, entramos para a Juventude Trabalhista. E começamos a funcionar politicamente a favor do PTB: participar de campanha política, de campanha para vereador, de campanha para prefeito. A campanha para prefeito do Prestes Maia, por exemplo, na qual eu trabalhei muito, foi promovida pelo PTB e por um outro partido pequeno, que eu nem lembro o nome, porque o Prestes Maia, na verdade, tinha sido prefeito de São Paulo antes, na década de 40, e tinha ingressado na UDN, mas quando chegou nessa campanha dele, de 1962, 61, por aí, a UDN preferiu outro candidato. Não lembro, parece que o deputado Emílio Carlos. Porque o Prestes Maia estava velho, gagá, não sei o quê. Aí, a Ivete Vargas, muito espertamente... o PTB tinha um candidato, que era o Frota Moreira, que era o secretário-geral do PTB e tinha sido lançado como candidato a prefeito de São Paulo. O que eles fizeram, ele e a Ivete? Retiraram a candidatura do PTB, do Frota Moreira, desde que o partido aprovasse o nome do Prestes Maia para prefeito. Foi um escândalo, na época, porque o Partido Trabalhista [Brasileiro] apoiar um candidato, um cara da UDN? Foi um escândalo. Mas ganhou a eleição. A UDN perdeu, com o candidato dela, e o Prestes Maia saiu vitorioso. Eu não apenas trabalhei muito na campanha do Prestes Maia, como membro da Juventude Trabalhista... um dos caras que está numa daquelas fotografias da faculdade de Direito foi presidente da Juventude Trabalhista. Eu era o vice-presidente. Ele foi presidente.
P/2 - E tinha professores, também, envolvidos?
R – Tinha professores da faculdade, que não podiam aparecer. Porque eram professores da faculdade, não podiam aparecer, mas que davam assistência, orientação e tudo o mais.
P/1 – O que você fazia na campanha, mais especificamente?
R – Armar comício. Naquela época, campanha pela televisão, pelo rádio, não tinha a menor importância. Importante eram os comícios nas praças, nas ruas. A gente corria de Ceca e Meca, tinha dois, três comícios por dia. No caso do Prestes Maia tinha até menos. O candidato da UDN, por exemplo, que era moço forte, fazia quatro, cinco comícios por dia. O velho Maia, meio capengando, fazia um! E a gente corria, todos os dias, para armar o comício, levar, armar o palco, botar faixa nos locais onde ia ser o comício.
P/1 – Prestes Maia eleito, você teve alguma participação no governo dele?
R – Não. Não tivemos. Nós éramos puristas. Porque eu já era repórter da “Última Hora”. Aí o pessoal da “Última Hora”, que estava contra o Prestes Maia, estava apoiando o Emílio Carlos, meus colegas de jornal, quando o Prestes Maia ganhou: “Marco, agora você aproveita essa boca aí e vai ter um emprego na prefeitura e tudo o mais”. Nós éramos jovens puristas. Nós chegamos para o Doutor Maia e falamos que não queríamos nada. Continuaríamos a trabalhar para ele, o que ele precisasse, mas sem nenhum cargo na prefeitura. Isso aí é bom contar para o Dória.
P/1 – No episódio do suicídio do Getúlio, estava ali o germe do repórter, quando você foi buscar logo o centro dos acontecimentos. E como foi sua chegada ao jornalismo?
R – Ah, isso foi mais tarde. Isso foram três anos, praticamente, depois. O Getúlio se matou em 1954.
P/1 – Sim. É porque você disse que já era repórter da “Última Hora”. Quero saber como foi o início da sua carreira no jornalismo.
R – Então, foi em 1957.
P/2 – Faculdade e trabalho?
R – Não. A faculdade eu já tinha terminado. Não, não. O que é isso? Eu estava entrando na faculdade em 1957, de Filosofia. Eu já estava na faculdade de Direito e fiz exame também para Filosofia, na PUC. Estava entrando eu, o Zé Celso [Martinez Corrêa], o Plínio Pimenta e mais dois rapazes, cinco alunos, no curso de Filosofia da PUC. 1957. Aí, o Ignácio de Loyola, que tinha vindo de Araraquara com o resto da turma, a chamada Turma de Araraquara, que éramos eu, Zé Celso, o Loyola, o Plínio Pimenta, o Bento Carnais, que está numa dessas fotografias aí também, enfim, o bando de Araraquara, uma parte que era da faculdade de Direito tinha entrado também na Filosofia da PUC. E praticamente todos, com exceção do Zé Celso, faziam parte da Juventude Trabalhista. O outro Pimenta, o Antônio Marcos Pimenta Neves, era primo desse que era, também, da Juventude Trabalhista. Você perguntou como é que eu fui para o jornalismo. Eu já não aguentava mais pedir dinheiro para o meu pai. Preciso trabalhar, fazer alguma coisa. O Loyola, que tinha vindo de Araraquara também, estava trabalhando na “Última Hora”. Aí eu fui falar com ele: “Ignácio, preciso de um emprego, fazer qualquer coisa nesse jornal. Você dá um jeito?” Ele falou: “Eu vou falar com o chefe de reportagem e você conversa com ele”. Fui lá, era o Barroso, o chefe de reportagem. Barrosinho. Um cara gordinho e pequenininho. O Barroso falou: “Você quer ser repórter? Anota seu telefone aí e vamos ver o que dá”. Fui embora para casa. Uns três, quatro dias depois ele me telefona. Olha como eram as coisas, naquela época! “Marco Antônio, você que veio aqui procurar emprego de repórter?” “Fui eu.” “Tem um serviço aqui. Nós estamos sem repórter hoje, aqui está todo mundo ocupado e tem um serviço aqui que é interessante. Não é propriamente um caso de jornal, mas seria bom mandar um repórter lá. Vem aqui e eu te explico.” Eu fui lá no jornal. A “Última Hora” ficava embaixo do viaduto Santa Ifigênia, a redação. Onde é, hoje, uma estação do metrô, se não me engano. Aí ele falou: “Olha, é o seguinte: você sabe do teatro rebolado?” Falei: “Sei”. Teatro rebolado, naquela época, era a expressão que a gente usava para falar do teatro de variedades, o teatro das vedetes, de comédia e tudo o mais. “Variety”, como diziam os americanos. Falei: “Claro que eu sei do teatro rebolado”. “Então, o seguinte: as vedetes vão fazer um jogo de futebol no Pacaembu, em benefício do Hospital do Câncer. Você vai lá cobrir o treino delas, que vai ser hoje” – era uma quarta-feira – “elas vão fazer um treino hoje, quarta-feira, vamos ver o que dá a sua reportagem. Pega um fotógrafo e vai para lá.” Eu peguei o fotógrafo, Kanai, era um japonês, entramos no jipe da “Última Hora”, no Candango, e fomos para o Pacaembu. Chega lá, teve o treino – sempre lembrando que a gente andava de gravata e paletó, sempre, quando ficava na rua, fosse como estudante, fosse como repórter – chegamos lá, ficamos assistindo ao treino, estavam todas as vedetes famosas na época, que depois viriam a ser personagens da coluna do Stanislaw Ponte Preta: Marly Marley... como é a famosa que diziam que tinha sido amante do Getúlio?
P/1 – Virgínia Lane?
R – Virgínia Lane. Qual mais? Sônia Grey.
P/1 – As Certinhas do Lalau.
R - As Certinhas do Lalau. Estavam lá treinando futebol. Consuelo Leandro. Aí, terminou o treino delas, o Kanai, fotógrafo, fala: “Marco, vamos lá para o vestiário fazer umas entrevistas”. Eu falei: “Como, rapaz? Vamos entrar no vestiário, elas vão estar todas peladas”. Minha cabeça era de Araraquara e era daquela época, certo? Imagine entrar no vestiário de mulher pelada! “Vamos lá, deixa comigo, não se preocupe.” Fomos, eu atrás dele. Fomos entrando no vestiário, ele parou um pouco, eu fiquei atrás, olhando lá para dentro. Aí a Consuelo Leandro, que estava sentada na frente de um espelho de camarim, aqueles com lampadinhas, olhou lá do banquinho dela e falou: “Kanai, quem é esse moço aí? Quem é esse garoto aí?” “É um repórter novo” – ela de calcinha e sutiã, sentada no banquinho – “que está começando, eu estou dando umas dicas para ele.” E ela: “Vem cá, meu filho, vem cá que eu quero conversar com você”. Eu vou lá, com o caderninho na mão e uma caneta, para fazer a entrevista.
P/1 – Não tremeu nas bases, não?
R – Nada. Fui chegando perto, ela falou: “Olha, aqui, vamos fazer o seguinte: senta no meu colo, que o Kanai vai te fotografar aqui”.
P/1 – Não acredito.
R – Eu falei: “Nada disso. Dona Consuelo, a senhora me desculpe” – olha o linguajar! – “mas eu estou trabalhando, eu não posso fazer essas coisas. A senhora me desculpe. Kanai, nada de fotografia, hein, porra”. Bati um resto de papo com ela, terminou ali, o Kanai virou para mim e falou: “Marco, não se preocupe, ninguém vai publicar o que você vai escrever. O que o jornal está interessado são as fotografias. Eles vão jogar fora o que você escrever”.
P/1 – E, de fato, jogaram?
R – Não. Aproveitaram para fazer legenda. Deram uma página inteira de fotos do treino das moças, do vestiário inclusive, as mais publicáveis, não as peladonas, e botaram legenda com algumas coisas que eu escrevi. O título era meu. A única coisa que era. O título: “Futebol rebolado no Pacaembu”. Esse foi o título da matéria, na primeira página.
P/2 – Sua primeira matéria saiu na primeira página?
R – Primeira página. É, exatamente.
P/1 – Pelo menos o título.
P/2 – Você levou muito a sério esse trabalho?
R – Levei a sério o trabalho, fiz anotações para encher 15 laudas.
P/1 – E daí, como é que continuou a carreira? Gostou da coisa?
R – Gostei da coisa, lógico. E aí até fiz amizade com algumas das moças. A Sônia Grey, por exemplo, morava em um prédio que me parece, pela lembrança, onde tinha aquela loja em frente... sabe o edifício Andraus, que depois pegou fogo e tudo o mais? Na frente, do outro lado da avenida, tinha uma loja de automóveis e tinha um prédio enorme em cima. Ela morava lá na cobertura, no último andar, num apartamento, e toda semana ela dava um churrasco para amigos, para jornalistas, no apartamento dela. E ela me convidou várias vezes para o churrasco dela. Eu ia para lá e vinham outras vedetes, também famosas, para o churrasco.
P/1 – Você continuou na “Última Hora” cobrindo variedades?
R – Não. Na semana seguinte, o [Jorge de] Miranda Jordão, que era o chefe de redação, o diretor de redação, não era o chefe da reportagem. O chefe da reportagem era o Barroso. O Miranda Jordão, que é o diretor de redação, falou: “Eu gostei muito daquela sua matéria”. Eu fiquei pensando: “Que matéria, porra? Ele gostou das fotografias”. “Tem um assunto aí que eu preciso de uma cabeça que nem a sua.” Eu falei: “Qual é?” “Teve um crime lá na Vila dos Remédios. Um moço de 14 anos matou a namorada, que tinha 13 anos.” Naquela época isso era uma coisa totalmente fora de propósito. Era uma notícia de dar 15 manchetes. “Você vai para lá, procura todo mundo: famílias, vizinhos, o diabo a quatro, conversa com todo mundo sobre o assunto e eu quero uma matéria sociopsicológica, porque você é bom para essas coisas. Mostrando o ambiente, a formação dos dois, onde eles estudavam, como era a família. Porque não tem propósito um menino de 14 anos matar uma menina de 13 anos por causa de namoro. Isso aí é um acontecimento sociológico, não é nem criminal. Então, você vai para lá, eu quero uma matéria sociológica”. Eu fui, passei uns três, quatro dias na Vila dos Remédios que, naquele tempo, você precisava pegar estrada para chegar lá. Hoje está aqui, pouco depois da Avenida Rebouças. E não era calçada, era tudo rua de terra, um bairro pobre. Fiz entrevistas, quem era a família, quem eram os meninos, como era a vida deles. Isso que você está fazendo comigo. Como era a vida deles antes do acontecimento e tudo o mais. E montei uma matéria, que era um verdadeiro romance policial. Não tinha nada de romance policial, porque foi um crime de ciúme. O menino matou a menina porque achou que ela estava interessada em outro. Mas, enfim, eu fiz um romance policial. O Miranda pegou isso aí, fez um caderno na “Última Hora”, de quatro páginas, com a matéria, com as fotos, com a história toda. Assinado: Marco Antônio Rocha.
P/1 – Nossa, o jovem repórter ficou...
R – O jornal inteiro: “O que é isso aí? O que você fez para puxar o saco do Miranda desse jeito? Que merda é essa?” E não tinha, na época, repórter feminina. Ele provavelmente teria mandado uma, se existisse isso. Não existia. A única mulher que tinha na redação da “Última Hora” era a diagramadora. Não tinha repórter. Aliás, eu acho que não tinha repórter mulher em jornal nenhum naquela época.
P/1 – Era raro.
P/2 – Isso é final dos anos 1950.
R – É. A única repórter, a primeira repórter de jornal, mulher, que eu conheci, foi a mulher do Vlado, a Clarice.
P/1 – Na “Última Hora”?
R – Não. No “Estadão”. Ela trabalhava no “Estadão”.
P/1 – Ela não trabalhou na “Última Hora” também?
R - Eu acho que não. Só se trabalhou depois que eu saí, mas na época que eu estava, não. Porque a Clarice, na minha visão, na minha memória, foi a primeira repórter mulher. Na imprensa paulistana, pelo menos.
P/2 – Isso impressionava? Você achava que era devido, que precisava de mulheres?
R – Precisava de mulheres. Eu achava que tinha que ter uma visão de mulher nessas histórias. Essa história, por exemplo, que eu fui cobrir, fui fazer, de qualquer maneira, embora fosse uma coisa meio intelectual, tinha uma visão só masculina do acontecimento. Que era a minha visão, a minha opinião, o meu achismo. Precisava de alguém que tivesse...
P/2 – E aí você já se entende jornalista?
R – As mulheres que tinha na imprensa, na época, ou eram cronistas, ou eram da arte: diagramação etc. Repórter de rua, não. Não tinha.
P/1 – Era uma profissão masculina, mesmo.
R – Masculina. Ainda mais de esporte.
P/2 – E você, rapidamente, descobriu que tinha verve para o jornalismo, então chegou em casa e falou: “Virei jornalista”?
R – É, porque, na época, eu achava que o jornalismo era escrever. Jornalismo se confundia com escrita. E como eu sabia escrever bem, eu achava que eu escrevia bem, e as pessoas também achavam, falei: “Agora eu sou jornalista, eu vou ser jornalista. Eu vou ser isso aqui. Eu vou fazer isso”.
P/2 – E tinha terminado a faculdade de Direito?
R – Não. Eu estou falando de 1957, 58. Não tinha terminado a faculdade de Direito, que eu só terminei em 1962. A faculdade de Filosofia eu não terminei, porque eu só fiz o primeiro ano. Aliás, o primeiro e o segundo ano. Só dois anos. Depois não completei, não fiz mais. Esse meu colega, o Salinas, que já morreu, começou comigo na faculdade de Filosofia da PUC, mas dali ele passou para a USP e foi ser catedrático de Filosofia na USP. Esse que traduziu o Sartre, que fez a conferência de Araraquara.
P/2 – E, com isso, você tendo uma profissão, consegue sair de casa, você continua morando com seus pais?
R – Continuei morando com meus pais, porque o salário não era, assim, essas coisas, para alugar apartamento. O único que morava de aluguel era o Loyola. Porque a família dele não morava em São Paulo, continuou morando em Araraquara. Então, ele morava num apartamentozinho alugado na Praça Roosevelt, um apartamento de um quarto só, e o pai dele, de vez em quando, mandava dinheiro para ele se aguentar, lá de Araraquara. E o pai dele era pobre, também. Era ferroviário.
P/1 – Nesse momento você já tinha decidido fazer o que, depois de formado em Direito? O que você ia fazer com o diploma? Pendurar na parede?
R – Não. Eu falei: “Eu vou tirar o diploma, vou tirar o meu certificado da Ordem [dos Advogados do Brasil], da OAB, e aí fico vendo o que dá”. Tinha uns jornalistas da “Última Hora”, já mais velhos, que já tinham anos de jornal, que também tinham feito curso de Direito e dois ou três deles eram procuradores do Estado. Tinham prestado concurso no serviço público e eram procuradores dos institutos de aposentadoria que tinha naquela época: IAPC, IAPI, IAPB, Instituto de Aposentadoria dos Comerciários, Instituto de Aposentadoria dos Bancários, Instituto de Aposentadoria dos Industriários, sei lá eu. E eram todos organismos com o funcionalismo público.
P/1 – Autarquias.
R – Autarquias. E esses meus colegas da “Última Hora”, por exemplo, um deles, o Ennio Pesce, que era comentarista e repórter político, era procurador de um desses institutos. Então eu falei: “Eu vou terminar o curso de Direito, pegar o diploma, o certificado da OAB e ficar na expectativa. Se aparecer uma boca boa aí no serviço público, eu me apresento”. Mas não apareceu. Naquele tempo funcionário público ganhava pouco. Ganhava menos que um repórter da “Última Hora”. Então, se você quisesse ficar rico, não era por ali, não era para ser.
P/1 – E a política, nesse momento da sua vida, como ela estava presente?
R – Estava tudo misturado. Estava junto e misturado. Eu fazia política, jornalismo e teatro. A partir de 1958 eu comecei a fazer teatro. Me juntei com esse grupo do Teatro Oficina. A gente fazia “teatro de bolso”, que a gente chamava. Não tinha esse nome naquela época, mas depois ganhou esse nome. Eram representações de peças de um ato ou, no máximo, de dois atos, peças pequenas, que a gente levava para serem apresentadas em casas de famílias ricas de São Paulo, que gostavam de ter um negócio desse no aniversário, na festa da sobrinha, essas coisas. A gente ia com tudo montado, fazia um cenariozinho de esquema de cabo de vassoura e fazia a representação ali. Eu, o Renato Borghi, a própria Etty Fraser também, Zé Celso, todo mundo ali. E, às vezes, quando a apresentação era de peças de dois atos, no intervalo a gente apresentava um espetaculozinho musical. Aí, quem é que cantava, tocando violão? Eram duas moças que tocavam violão e cantavam. Uma delas era a Miúcha que, depois, foi casar com o João Gilberto. Outro dia eu estava vendo no Youtube uma apresentação dela com o João Gilberto, em Nova York. Acho que a última vez que eu vi a Miúcha foi numa dessas apresentações, em 1960, 61, 62, por aí. Depois nunca mais vi. Ela mudou para o Rio de Janeiro. Eles mudaram, toda a família. Porque eles moravam aqui em São Paulo, no Pacaembu. Nessa época acho que o Chico [Buarque de Holanda] usava calça curta. Eu tenho impressão que foi a Miúcha que o ensinou a tocar violão, inclusive, porque ela era mais velha.
P/2 – Era ela e quem mais?
R – A Dora Meireles, que era amiga dela, tocava muito violão, tocava, mesmo. Coisa séria. As duas cantavam e tocavam violão.
P/2 – E você era bom ator?
R – E eu era ator. Eu tinha, até, em casa, gravado, uma gravação da Miúcha cantando. Eu já procurei várias vezes, para ver se ofereço para alguma gravadora. Uma gravação em fita. Ela cantando aquela... como é? “No alto da Casa Verde, a raça dorme em paz/ Meus colegas de maloca, quando começa a guerra, não para mais/ Silêncio, silêncio, é madrugada/ O samba na Casa Verde... ” Era o título. Bonito samba, inclusive. Eu gravei isso, numa dessas ocasiões, num gravador de fita, que a gente usava para botar o fundo musical nas peças. Eu gravei numa fita. E já procurei, porque eu tenho um rolo de coisas gravadas em casa. Já procurei isso aí e não consigo achar.
P/1 – Marco, como é que foi 31 de março de 1964 para você?
R – Sessenta e quatro, foi o seguinte: a gente já estava prevendo que ia haver uma tentativa de derrubada do Jango. Veja bem: eu era do PTB, eu era do partido do Jango. A gente estava preparado para isso. A crise foi se avolumando, porque, na verdade, o Jango nunca tinha sido aceito pelo estamento militar. Quando o Jânio [Quadros] renunciou, o Jango, que era o vice-presidente, estava na China, em missão diplomática. Então, houve uma tentativa de declará-lo impedido, porque estava fora do Brasil na ocasião em que o Jânio renunciou, e que o presidente deveria continuar a ser o presidente da Câmara Federal, que era o deputado Ranieri Mazzilli. A ideia era essa: impedir o Jango de tomar posse, para satisfazer o estamento militar e depois se resolver. Só que houve aquele movimento [Rede da Legalidade] liderado pelo [Leonel] Brizola, exigindo a posse do vice-presidente João Goulart, apoiado no Terceiro Exército, que era do Rio Grande do Sul, que era a parte mais equipada e mais poderosa do exército brasileiro. Era o Terceiro Exército. Por duas razões: porque a estratégia do exército brasileiro durante muitos anos foi de que o Brasil teria que se preparar para uma guerra contra a Argentina. Portanto, fortalecer o Terceiro Exército sempre tinha sido uma política de governo e do próprio exército. O Terceiro Exército era a divisão mais forte do exército brasileiro, que se declarou solidária ao governador Brizola, que queria a posse do Jango. Então, o que aconteceu? Nenhum outro militar brasileiro teve peito para enfrentar o Terceiro Exército. Mesmo assim o Jango demorou para chegar ao Brasil e tomar posse. Mas veio. E o Brizola ficou famoso na época por causa disso. Na verdade, foi ele que deu a posse ao presidente. Ele era do PTB. Nós todos do PTB fizemos uma força danada para o Jango tomar posse. O Jango tomou posse, depois o país entrou em crise, foi aquela coisa atada.
P/1 – Tomou posse na base do arranjo parlamentarista.
R – Arranjo parlamentarista. Mudaram o regime para ele poder tomar posse, mas ele próprio acabou destruindo o parlamentarismo e governando, um pouco, assim, no estilo do Bolsonaro, pessoalmente, por cima do Parlamento e dos conchavos políticos, meio fazendo o que ele queria e com apoio dos sindicatos e de uma parte do exército. Isso aí açulou os ânimos dos militares que tinham ficado contra ele na posse. “Aí, a gente não dizia? É um comunista, é um isso, é um aquilo.” Chegamos no 31 de março na expectativa. Eu, pessoalmente, como jornalista e como militante do PTB, achei que ele ia ser derrubado mesmo. O meu sentimento é de que ele ia ser derrubado. E quando foi dia 31 de março, eu estava em casa, na Aclimação, ouvindo rádio, à noitinha, e quem estava falando no rádio era o governador de São Paulo, doutor Adhemar de Barros, aderindo ao golpe contra o Jango. Aí eu desliguei o rádio e fui dormir. Vários amigos ficaram telefonando: “Nós vamos organizar uma resistência, uma luta”. Eu falei: “Gente, com o governo de São Paulo contra, nós nem saímos de casa. O governo de São Paulo manda nos prender antes da gente sair de casa para fazer resistência, o escambau”. Aí, fui dormir num estado de completa apatia. E pensando comigo: o Brasil acabou. Um pensamento que eu tive recentemente, de novo. Que eu tenho tido, de maneira recorrente.
P/1 – Mas o grupamento da Juventude Trabalhista estava, de alguma forma, ameaçado?
R – Não, não estava. O que estava ameaçado era o Partido Comunista.
P/1 – E você já tinha alguma proximidade com ele?
R – Nós tínhamos, nós trabalhávamos [em conjunto], porque o PTB, na verdade, aqui em São Paulo, fornecia legenda para os candidatos do Partido Comunista.
P/2 – O PCB?
R – O PTB. Havia um trabalho.
P/1 – O PCB era ilegal.
R – É, o Partido Comunista era ilegal. Então, os candidatos comunistas, para se candidatarem a qualquer coisa, precisavam de uma legenda. A legenda era a do PTB. Então, havia esse entrosamento. Todo mundo que era do PTB e todo mundo que era da Juventude Trabalhista estava sob a vigilância dos militares, por causa da “aliança comunopetebista”, como dizia o “Estadão”.
P/1 – Você trabalhava no jornal identificado com o governo então deposto. Como é que ficou o seu dia a dia?
R – É, exatamente. Trabalhava na “Última Hora”. Na verdade, tinha trabalhado na “Última Hora”: eu já tinha saído da “Última Hora” quando veio o golpe. Eu tinha ido para a Editora Abril.
P/1 – Fazer...
R – Trabalhar na revista “Quatro Rodas”. Em 1962 eu fui para a Editora Abril, ser repórter da “Quatro Rodas”. Eu e mais um repórter da “Última Hora”, o José Roberto Pena. Eu e ele fomos convidados pela Editora Abril e fomos para lá em 62, para ser repórteres da “Quatro Rodas”. O Pena ficou o resto da vida na “Quatro Rodas”, fazendo aquelas matérias de turismo no Brasil. Morreu como repórter da “Quatro Rodas”.
P/1 – Essa época foi o início da revista? 62 era o início da “Quatro Rodas”?
R – Não, não era o início, mas era quase o início.
P/1 – Foi criada pelo Mino Carta?
R – Pelo Mino. O Mino ainda estava dirigindo a “Quatro Rodas”. Foi ele quem nos convidou para ir pra lá. Depois ele faria a mesma coisa na revista “Veja”. Só que aí eu já trabalhava na Editora Abril, e ele não me chamou para ir para a “Veja” porque eu já trabalhava na Editora Abril e ele queria gente de fora, nova. Mas ele me pediu para treinar: daquele grupo de jornalistas que estavam se candidatando à revista “Veja”, ele me deu 20 caras para eu treinar. Esses caras estão por aí até hoje.
P/1 – Como é que você conheceu o Vladimir Herzog?
R – Eu conheci assim, de passagem. Nós já éramos adultos e repórteres, ele do “Estadão” e eu da “Última Hora”. A gente se cruzava em coberturas eventuais, a gente se contatava: eu, ele e a mulher dele, a Clarice. Foi aí que a gente se conheceu. Os primeiros contatos foram como repórter.
P/1 – Vocês se cruzaram na cobertura da viagem da visita do Sartre ao Brasil?
R – Sim.
P/2 – Ali vocês já se conheciam?
R – A gente já se conhecia. Depois, essa ligação foi se aprofundando. Começamos a frequentar a casa um do outro, até que o Vlado se ligou também, ou talvez já fosse ligado, mas enfim, a um pessoal que também era do Partido Comunista, do Partidão. Veja: eu era do PTB, mas trabalhava junto com o Partidão. E tinha um pessoal jovem, que era só do Partidão. E que também se ligou ao Vlado. Conheceu, se ligou e também começou a frequentar a casa do Vlado. Nessa casa, na casa do Vlado, a gente fazia reuniões para discutir assuntos do Partido Comunista: linhas de ação, pensamento e coisa e tal. Quando houve a grande discussão entre luta armada e luta democrática, a gente fez várias reuniões para discutir isso. Vinham uns dirigentes do Partidão fazer palestra para gente, vinham do Rio de Janeiro, e que estavam contra. O Partidão sempre foi contra a luta armada. Tem até um idiota que escreve na minha página de Facebook, que diz: “Vocês, comunistas, pegaram no pau de fogo pra matar gente”. Não adianta explicar para ele que nós, comunistas, do Partidão, nunca pegamos no pau de fogo. Porque éramos contra o pau de fogo. Mas não adiantam essas coisas, porque o idiota não conhece, enfim.
P/1 – Nem quer conhecer.
R – Não conhece a História, então...
P/2 – Essa sua aproximação com o Vlado se dá quando ele já voltou de Londres?
R – Ah, já. Já tinha voltado de Londres.
P/2 – Começo dos anos 70?
R – É, exatamente.
P/2 – Você trabalhava na Abril e ele já estava na revista “Visão”?
R – Não. A revista “Visão” nós fomos juntos para lá.
P/2 – Eu acho que era 1969.
R – A revista “Visão”: eu estava na Editora Abril ainda, trabalhando na revista “Realidade”. Eu tinha feito várias escalas na Abril, várias revistas, várias coisas. Inclusive aquelas revistas técnicas da Editora Abril, que tinha revista de metalurgia, revista de transportes, revista de química e derivados. Não sei se vocês conhecem um jornalista, o Raimundo [Rodrigues] Pereira, foi meu colega na revista de “Metalurgia e Mecânica”, da Editora Abril. O Bernardo Kucinski, idem, foi meu colega na revista também. Os dois tinham feito o curso do ITA [Instituto Tecnológico da Aeronáutica], mas tinham sido expulsos do ITA, no golpe, porque eram de esquerda. Foram pedir emprego na Editora Abril. Como eles tinham curso técnico, não tinham se formado, porque tinham sido expulsos, mas tinham estudado no ITA – que não é brincadeira –, aí os botaram na revista técnica, [para] trabalhar nas revistas técnicas, uma das quais eu dirigia. Foi aí que eu fiquei conhecendo o Raimundo e o Bernardo. Aliás, dois jornalistas espetaculares. Não sei até por que foram estudar Engenharia.
P/2 – E a revista “Visão”, como é que é?
R – Eu estava na Editora Abril, entrei na Abril em 1962 e saí no começo de 1970, quando estava na revista “Realidade”, que estava acabando, praticamente. Porque depois do golpe ela começou a ser perseguida. De 1969 para 70, a revista “Realidade” estava acabando. Daí o Pimenta [Neves], que estava dirigindo a revista “Visão”, foi lá na Editora Abril me procurar – era meu amigo de infância, de Araraquara – e falar: “Você que está aí escrevendo sobre Economia, nós estamos precisando de um editor de Economia lá na revista ‘Visão’. Você não quer ir para lá?” Aí eu fui. A “Realidade” estava acabando, acabou naquele ano, fim de 1969, por aí, aí eu fui para a “Visão”, no começo de 1970. Fiquei quase cinco anos na “Visão”, como editor de Economia. O diretor era o Pimenta, o nosso Pimenta.
P/1 – O Pimenta assassino?
R – É, um maluco.
P/1 – Como era a convivência com o Vlado na época “Visão”?
R – O Pimenta também levou o Vlado para lá, na mesma época. Ele cuidava da editoria cultural da revista “Visão”. Minha convivência era ótima, era muito boa, porque nós já tínhamos aquela convivência anterior, política, digamos assim, das reuniões na casa dele, de tudo o mais. Não houve nenhum problema de aproximação, nem nada. A gente saía bem. E, nas reuniões de pauta da “Visão”, as ideias que a gente professava eram as mesmas, eram idênticas. O Vlado não era comunista. Não era ligado a partido nenhum, nem ao PTB, nem ao Partido Comunista, nem nada. Essa foi a coisa que eu mais proclamei quando ele foi morto, porque ele foi morto como comunista. Por ter sido considerado comunista, pelos assassinos do DOI-Codi. E porque, na nota que eles distribuíram sobre a morte do Vlado, diziam que ele era comunista. A nota do Segundo Exército dizia que ele era comunista e, por isso, ele tinha sido preso. O Vlado não era comunista. Nunca tinha participado do Partido Comunista e nem de partido nenhum. Ele era um homem independente.
P/1 – Como era o dia a dia do trabalho na redação da “Visão”? Como ele se portava, se comportava? Como era sua impressão dele?
R – A impressão é de que era um homem muito culto, muito bem informado, principalmente sobre arte, sobre cultura. Tal coisa que não era da minha alçada, eu era jornalista de Economia. Eu só me preocupava, na área cultural, em saber se as peças de teatro estavam dando lucro ou não. Ele, não: ele queria saber se eram boas peças ou não.
P/2 – Você tinha feito teatro.
R – É, eu tinha feito, mas enfim, a relação e as ideias, no que elas casavam, casavam muito bem. As propostas dele para pautas de matérias, eu aprovava. Não era minha função aprovar nada, mas eu concordava 100% com as pautas que ele apresentava. E ele também aprovava 100% as pautas que eu apresentava, embora dizendo: “Eu não entendo nada desse assunto, mas tudo bem, sendo você que apresentou...”
P/1 – Marco Antônio, um episódio que a gente queria esclarecer também, foi o momento em que vocês se tornaram professores na Faap [Fundação Armando Álvares Penteado]. Como é que foi isso?
R – Isso aí foi um convite que nós recebemos, eu não lembro mais exatamente partindo de quem. Mas o grupo todo: eu, o Vlado, o Rodolfo Konder. O Konder é que nos trouxe o convite – eu não sei a partir de quem – para darmos aula na Faap, no curso de Jornalismo, que estava começando. Eles não tinham professores, e nós também não éramos professores: nós éramos jornalistas. Mas eles supunham que a gente entendesse alguma coisa de Jornalismo para poder dar aula.
P/1 – Como é que foi essa experiência?
R – Eu fui encarregado da cadeira de Jornalismo Comparado. Eu nunca tinha pensado nisso na minha vida. Aí fui procurar saber do que se tratava. E, como o próprio nome indica, trata-se de fazer uma comparação entre publicações de diferentes setores, diferentes categorias, e de mostrar as relações entre os públicos e a rentabilidade desses veículos para esses públicos. Fazer esse tipo de comparação. Aí eu comecei a estudar isso. O [Carlos] Tramontina, por exemplo, da Globo, foi meu aluno na Faap.
P/2 – E do Vlado também.
R – E do Vlado. Tem uma porção de gente que foram meus alunos por aí, na praça, exercendo o jornalismo.
P/2 – Você lembra de mais alunos desse começo?
R – O Sílvio... que fala sobre comida...
P/1 – Sílvio Lancellotti.
R – O Lancellotti. O Moacir Bueno, que a gente chamava de “Comandante”, porque ele era piloto de avião, que trabalhou na “Veja”. Uma porção de gente, uns dez caras, acho, que estão por aí, foram meus alunos. Tem uns que não sabem se foram ou não, mas parece que foram e falam no Facebook: “Parece que eu fui seu aluno”.
P/2 – O Vlado dava aula do quê?
R – Ele dava aula, não sei exatamente do que. Ah, de cinema. É, negócio de cinema.
P/2 – E o Rodolfo Konder?
R – O Rodolfo dava aula de política. Aí, o que aconteceu? O Vlado foi preso e assassinado. Nós todos, que éramos professores, também na Faap, também fomos presos, interrogados e o Konder foi muito torturado, o Markun foi muito torturado, junto com a mulher dele. Essa barbaridade que esse bestão diz que não existiu no Brasil, esse cretino que nós elegemos para presidente da República. Não precisa cortar essa frase, não. Esse cretino que nós elegemos para presidente de República diz que não existiu. Markun e a mulher dele foram torturados, um na frente do outro.
P/2 – Markun também era professor na Faap?
R – Era.
P/2 – Era a Diléa [Frate], a mulher?
R – A Diléa. Que depois foi diretora do programa do Jô Soares, na Globo, durante muitos anos. Mulher inteligentíssima. A Ana, filha deles, nasceu quando o Markun estava preso. Tanto é que uma das coisas que nos salvou do mesmo destino do Vlado foi que o Markun foi solto no dia do batizado da filha dele; [soltaram-no] para assistir ao batizado. E, na igreja, ele contou para alguém ligado a nós, amigo nosso, que eu nem lembro mais quem foi, para nos avisar que nós todos iríamos ser procurados: eu, o Konder, todo mundo. Eles estavam à caça de todo mundo. Então, que a gente abrisse o olho. Eu fiquei sabendo disso pelo próprio Vlado. Na quarta-feira, antes dele ser assassinado, teve um jantar na casa do cônsul da Inglaterra em São Paulo, porque o Vlado e o Konder tinham sido muito ligados à BBC de Londres. O cônsul inglês que estava aqui em São Paulo há não sei quanto tempo, e que estava voltando para a Inglaterra, estava se despedindo e deu um jantar na casa dele, para se despedir dos amigos, dos jornalistas que ele conhecia. E eu fui nesse jantar porque eu também tinha estado na Inglaterra meses antes, junto com o Konder. Até tem uma fotografia, entre as fotografias que nós trouxemos, eu e o Konder, ao lado de um lorde inglês, que nos recebeu no Parliament House, para nos mostrar como funcionava a Casa dos Lordes. Nós estamos na porta do Parlamento: eu, o Konder e o lorde inglês. Eu tinha estado com o Konder lá, e o cônsul me convidou também para esse jantar de despedida, na casa dele. Fui lá. Na saída, a Clarice falou: “Marco, venha conosco no carro” – porque o Vlado tinha um Fusca, mas ele não guiava, não sabia guiar; a Clarice é que guiava – “porque a gente precisa conversar um assunto”. Aí fui lá. Fiquei no banco de trás, a Clarice e o Vlado nos bancos da frente. A Clarice no banco do motorista. E aí o Vlado contou que o Markun tinha sido solto para assistir ao batizado da filha e tinha contado para alguém, que eu não lembro, que nós todos íamos ser caçados naquela semana. Aí a Clarice me perguntou: “Marco, o que você acha que nós devemos fazer?” Eu falei: “Olha, vocês dois peguem os filhos e desapareçam de São Paulo”. “Mas por que você acha?” Eu falei: “Porque é o seguinte: na semana que vem vai ter, no Rio de Janeiro, um congresso das agências de turismo internacionais e tem 600 jornalistas estrangeiros credenciados para a cobertura desse congresso. De modo que, se eles querem prender alguém, algum jornalista, só pode ser nesse fim de semana, porque, na semana que vem, eles não vão poder prender jornalista nenhum, porque vai dar uma repercussão no mundo inteiro, por causa dos 600 jornalistas estrangeiros que estarão no Rio de Janeiro. Então, eu, se fosse vocês, pegava os filhos e ia para o raio que o parta, para uma estação de águas em Minas Gerais. E deixassem passar o fim de semana”. Aí o Vlado falou: “Mas isso não posso fazer. Eu tenho o jornal lá na [TV] Cultura para cuidar”. E a Clarice: “Mas Vlado, eu não sei. O Marco está falando uma coisa que tem propósito”. “Bom, vamos decidir.”
P/2 – E você pensava em fazer o quê?
R – A mesma coisa. Isso foi na quarta-feira; na quinta-feira, não aconteceu nada. Na sexta-feira, sete horas da manhã, seis e meia da manhã, toca o telefone em casa, a minha mulher foi atender, voltou para a cama com o olho arregalado e fala: “Marco, prenderam o Konder”. Aí eu fui no telefone, era a mulher do Konder que estava chorando do outro lado da linha: “Como é que foi? Como é que não foi?” Ela me contou que chegaram lá e levaram o Konder na bruta, sem dar explicação nenhuma, sem merda nenhuma. Aí desliguei o telefone e virei para a minha mulher e falei: “Olha, eu vou trocar de roupa e vou sair de casa. Vou pegar o carro” – nós tínhamos um Fusca também – “na garagem e vou na DPaschoal trocar os pneus, porque eu vou pegar a estrada. Você pega as crianças, põe num táxi e vai me encontrar na agência da DPaschoal, na Rua Clélia. Vamos embora”. Peguei ela, os filhos e fui para a fazenda do meu sogro, em Guaratinguetá. Sexta-feira. Fiquei lá esperando o que desse e viesse. Quando foi no sábado de manhã, o rádio começou a dar a notícia. Meu sogro ouviu pelo rádio a notícia da morte do Vlado. E aí aparece a nota do Segundo Exército, dizendo que o Vlado tinha se suicidado, não sei o que, porque ele tinha sido chamado para prestar depoimento e se desesperou e se suicidou. Prestar depoimento sobre a célula comunista que se reunia na casa dele, ,e aí estavam os nomes, todos, da célula comunista: eu, o Markun, o Anthony de Cristo, não sei quem mais, enfim. Os nomes todos. Aí meu sogro falou: “Marco, o seu nome está aí”. Eu falei: “É e é verdade. A gente se reunia, mesmo, na casa do Vlado”. “E o que você vai fazer?” Falei: “Deixa eu pensar um pouco, vamos ver”. Demorei uns 15 minutos para resolver. Falei para ele: “Olha, eu vou pegar o carro e vou dar um telefonema. Conforme o resultado desse telefonema, de duas, uma: ou eu volto pra São Paulo, ou eu vou para Brasília, pedir asilo na embaixada da Iugoslávia”. Que, naquele tempo, ainda era Iugoslávia e estava recebendo refugiados políticos. Peguei o telefone e liguei para o meu patrão, Ruy Mesquita: “Doutor Ruy, está acontecendo isso, isso e isso”. “É, eu estou ouvindo aqui no rádio, estou vendo na televisão, Marco. Isso tudo é bobagem. Não se preocupe.” Eu falei: “Não, eu estou preocupado, então eu estou resolvendo o seguinte: eu acho que vou para Brasília e peço asilo na embaixada da Iugoslávia. Então, segunda-feira eu não vou trabalhar no jornal”. Ele falou: “Que Brasília o quê! Venha para São Paulo, mas não vá para a sua casa, venha para o jornal e não traga sua mulher, nem seus filhos”. Voltei lá para o sogro, para a mulher, e falei: “A ordem do patrão é essa. Eu não quero perder o emprego, eu vou para o jornal”. Porque ele falou no telefone: “Venha para o jornal, porque eu quero ver quem é que vem te buscar aqui no jornal”. Voltamos, eu e minha mulher, só, de táxi, para São Paulo, porque eu resolvi deixar meus filhos com meu sogro. Chegamos, fomos direto para o jornal, e o Ruy falou: “Fica por aí que eu vou dar uns telefonemas. Não vá para a sua casa”. Eu falei: “Mas, e de noite? Eu durmo aqui no jornal?” Ele falou: “Não. De noite você dorme na minha casa, se for o caso. E sua mulher põe num hotel, se você quiser”. Esperei, ele deu os telefonemas dele para o Armando Falcão, que era o ministro da Justiça. Uma parte desses telefonemas eu ouvi, porque eu estava na frente dele: “Ô, Falcão” – foi nesses termos – “eu estou aqui, na minha frente, com aquele repórter que vocês estão caçando. O rádio está dizendo que vocês estão caçando. Aquele repórter está aqui na minha frente. Eu quero te dizer o seguinte: se você quiser caçar esse meu repórter, você manda o pelotão de policial que você tem aí invadir o jornal e caçá-lo aqui dentro”. O Armando Falcão: “Ô, Ruy, que coisa! Isso aí não é possível, você está louco, não tem propósito o que você está falando. Nós não estamos atrás de caçar, de matar ninguém”. E o Ruy falando: “Você não sabe o que está acontecendo aqui em São Paulo. O que eu estou dizendo é o seguinte: ele vai ficar aqui no jornal, não vai sair daqui. Então, se vocês quiserem, mesmo, se você receber ordem aí de quem quer que seja, para caçar o menino, você manda invadir o meu jornal”. Claro que não houve a invasão. Mais tarde, lá pelas cinco horas da tarde, o Armando Falcão ligou para ele de novo, falou: “Olha, o ponto é o seguinte: não vamos caçar ninguém. Você fala para o seu garoto que é para ir na segunda-feira no comando do Segundo Exército, falar com o comandante que estiver lá, que o seu garoto está se apresentando para prestar depoimento. Mas no comando do Segundo Exército, não é no DOI-Codi”. Você vê como aí já havia um quiproquó entre as duas alas, certo? Está bom, fiquei lá, fui para a casa dele [Ruy Mesquita] de noite, sábado, domingo: “Você dorme no quarto do meu filho, que está na Europa” – era o Ruyzito, que estava em Portugal fazendo matéria. Fiquei dormindo na casa dele.
P/1- Já com a notícia terrível circulando?
R – Circulando. Na segunda-feira, fomos eu, o doutor Ruy, o Audálio Dantas, que era presidente do sindicato [dos Jornalistas no Estado de São Paulo] e minha mulher, para o Segundo Exército, para eu me apresentar. Aí vem outra coisa, que me fez repensar muito as coisas na minha vida. O Ruy Mesquita, quando eu comecei a dizer que ia trabalhar com ele no “Jornal da Tarde”, muita gente me disse que era um direitista, um reacionário brutal, que eu não confiasse nele, que isso e mais aquilo. Chegou no comando do Segundo Exército, o general D’Ávila Mello não estava presente, tinha ido para Brasília, o Geisel o tinha chamado – provavelmente o negócio da morte do Vlado já tinha feito o Geisel repensar os assuntos. O comandante não estava, o vice comandante era o general Ferreira Marques. Nos apresentamos, estava lá o general Ferreira Marques, mais dois coronéis que eu não lembro os nomes, na sala. E entramos: eu, o Ruy, o Audálio Dantas e minha mulher. O Ruy falou: “General Ferreira Marques, eu recebi orientação do Armando Falcão para eu me apresentar ao comandante do Segundo Exército, mas como o comandante não está, eu estou me apresentando ao senhor. Esse é o meu repórter que vocês estão caçando, segundo a nota que o Segundo Exército emitiu, e ele veio se apresentar aqui para saber do que se trata, por que a caçada”. “Doutor Ruy, isso é pura formalidade. Nós queremos a presença dele aqui para prestar um depoimento, porque morreu o colega dele, o colega dele se suicidou no DOI-Codi e nós queremos um depoimento dele, para saber o porquê. Então, o senhor não precisa ter preocupação nenhuma. Nós estamos aqui para saber, desbravar” – ele usou uma expressão assim ou era outra palavra – “a verdade. Então, o senhor deixa ele aqui, ele vai prestar depoimento perante os meus oficiais e depois vai embora para casa. Ele não está sendo preso”. Aí o Ruy: “Está bom. Confio na palavra do senhor. Agora, deixa eu lhe dizer algo mais: vamos deixá-lo aqui para prestar o depoimento que o senhor está falando, mas se alguma coisa acontecer com ele, como aconteceu no sábado com o colega dele, o meu jornal vai considerar o senhor pessoalmente responsável por isso. A notícia que vai sair no meu jornal é que o general Ferreira Marques era o responsável pela custódia do senhor Marco Antônio Rocha”. “O que é isso, doutor Ruy? Imagina! Não vai acontecer nada. Eu estou falando para o senhor que ele vai fazer um depoimento, vai dar a opinião dele, vai nos ajudar a procurar a verdade e vai embora para casa. Não vejo por que essa declaração do senhor.” “A única razão dessa declaração minha é que o colega dele, que veio para cá prestar depoimento também, saiu morto. É só essa a causa da minha declaração.”
P/2 – E como foi?
R – Tudo bem, o próprio general me perguntou: “O senhor concorda em ficar e dar seu depoimento?” Eu falei: “Concordo, não tem problema nenhum. Como o senhor está dizendo, é só um depoimento”. Aí ele pegou um cartão de visita e estendeu para a minha mulher: “Olha, Dona Olinda, aqui está o meu telefone pessoal. Se a senhora tiver alguma preocupação hoje, durante o dia, com o seu marido, a senhora liga para esse telefone que está aqui e fala comigo”. Minha mulher virou e falou: “General, eu tenho o maior respeito pela palavra de um oficial do exército brasileiro, de modo que eu não preciso pegar o seu cartão, porque eu sei que não vai acontecer nada para ele. Eu confio inteiramente no que o senhor acabou de nos dizer. Não preciso pegar seu cartão”. E não pegou. Terminou nesse ambiente a coisa.
P/2 – E o depoimento?
R – Aí o depoimento é o seguinte: eu comecei a fazer o depoimento numa sala separada para um, “soi-disant”, capitão Ari, que mais tarde, anos depois, eu fiquei sabendo que não era capitão, nada. Não era capitão do exército. Estava fardado como capitão, tinha as estrelas de capitão, mas não era capitão, era um policial civil, porque anos depois eu cruzo com ele. Fui renovar minha carteira de identidade, cruzo com ele no Departamento de Investigações e falei: “Ué, o senhor deixou o exército?” Ele falou: “Não, naquela ocasião eu estava lá de capitão, mas eu não sou capitão”. Olha que coisa! Era algum cara da tropa civil do general D’Avila Mello, que tinha sido convocado para torturar as pessoas, para ninguém poder dizer que o exército é que torturava. Você está entendendo? É como um encanador, que prestava serviço de encanamento no prédio do DOI-Codi, que foi convocado para a mesma coisa e que torturou o Konder. O Konder ficou sabendo disso porque ele tinha uma âncora tatuada no braço. O Konder até conta isso no livro. E, tempos depois, ele viu o cara – não viu o cara porque quando ele foi torturado, ele estava encapuzado, mas ouviu a voz do camarada – achou que era o mesmo camarada, foi reparar, tinha a âncora tatuada no braço.
P/2 – E esse inquérito...
R – Então, é o seguinte: o que eles faziam, os oficiais do Segundo Exército? Por isso que o bestalhão aí pode dizer que o major [Carlos Alberto Brilhante] Ustra nunca torturou ninguém. Não torturou, mesmo. Na minha opinião, acho que não torturou. Ele convocava o faxineiro do Segundo Exército, o encanador da rua, para executar o que ele mandava.
P/2 – E esse depoimento que você presta é rápido?
R – Não. O depoimento demorou uma semana. Eu fui lá no primeiro dia, fiquei de voltar no segundo dia, mas aí já por minha conta. Ia para casa e voltava no dia seguinte. Ia para casa e voltava no dia seguinte. Ia para casa e voltava no dia seguinte. Por causa disso eu fui impedido de comparecer à missa [do Vlado] na Sé, porque eu tinha que ir ao Segundo Exército. E no que consistiu meu depoimento? Nisso que eu estou fazendo aqui, contar a minha biografia. A minha biografia inteira que aparecer nesse filme, se vocês forem pegar, não mais no Dops, o processo, porque depois disso eu fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional, porque eu confessei que eu era comunista, que isso e que aquilo, que eu participava de reuniões do partido, eu fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional e fui processado pela Justiça Militar, baseado na Lei de Segurança Nacional. O processo levou dois anos, e finalmente eu fui absolvido pela Justiça Militar. De modo que hoje, quando me acusam, eu digo: “Eu sou um comunista absolvido pela Justiça Militar”. [O depoimento] demorou uma semana, porque foi praticamente a minha biografia inteira, desde que eu nasci, em Olímpia, quem eu conheci, com quem eu andava, com quem eu conversava e tudo o mais. E tinha outras pessoas que ficavam me ouvindo falar. Um deles era um japonês, que não era fardado, não tinha farda, tinha roupa civil, mas tinha sido da esquerda, da guerrilha, e tinha sido feito prisioneiro e tinha mudado de lado. Então, ele prestava o serviço de ficar ouvindo os caras que eram interrogados para dizer se aquilo fazia sentido ou não. Então, eu dizia uma coisa, o tal capitão Ari perguntava para ele: “Isso que ele está falando tem cabimento, faz sentido?” O cara dizia: “Faz, sim”. No final, até o último dia do interrogatório, para encerrar as coisas, o capitão Ari falou: “Fulano” – eu não lembro o nome com que ele era tratado, o japonês, mas não era nome japonês, era Paulo, uma coisa assim – “Paulo, tudo que ele falou aqui você concorda, está certo?” Porque leram o meu depoimento todo, levou horas lendo, e aí a pergunta: “Paulo, tudo que ele falou você concorda, faz sentido?” E ele falou: “Ô, Ari, esse aí não participou de merda nenhuma, é um bunda mole”.
P/2 - Essa posição do Ruy Mesquita, naquele momento, foi fundamental.
R –Foi uma coisa fundamental e mudou a minha visão de uma pessoa que se diz democrata, mas tem namoros com coisas antidemocráticas. Ali eu fiquei convencido de que o Ruy não era um democrata de boca para fora. Era um democrata porque acreditava no que estava falando e no que valia a democracia. Quer dizer: essas atitudes dele que, primeiro: “Venham invadir meu jornal, para pegar o rapaz”. E depois, lá na frente do general: “O senhor vai ser, perante o meu jornal, responsável pelo que acontecer com ele aqui”.
P/2 – E você era recém-chegado ao “O Estado de S. Paulo”, o jornal?
R – Espera aí. De que ano nós estamos falando?
P/1 – 1975.
R – É, eu tinha entrado em 1974 no jornal. Quer dizer: eu tinha um ano. Alguns comunistas, no jornal, diziam para eu tomar cuidado com o Ruy, porque o Ruy era muito reacionário e, se fosse preciso, ele me mandava prender.
P/1 – Exatamente o contrário.
R – Exatamente o contrário.
P/2 – E é nesse jornal que você fica até recentemente? Nessa mesma empresa, você trabalha...
R – É, fiquei até 2016.
P/1 – Aposentou-se?
R – Aposentei-me. Com os régios proventos da Previdência, os régios proventos do INSS. Se não fosse uma herança que minha ex-mulher recebeu da família dela, lá em Guaratinguetá, uma fazenda, agora eu estava aí, matando cachorro a grito, para viver com dois mil e quinhentos reais por mês.
P/2 – Marco Antônio, esse episódio é muito forte, do que acontece nessa semana. Eu queria só explorar um pouco a parte da Faap, porque o Claudiney Ferreira, com quem eu fiz a exposição do Itaú Cultural, sobre a vida e a profissão do Vlado, foi um aluno que prestou vestibular em 1975 e começaria o curso da Faap em 1976. Você continua e ele fala que o curso, teoricamente, foi fechado e quem prestou vestibular... você lembra como foi esse processo na Faap, pra manter o curso existindo?
R – Não. Eu me lembro que levou um tempo até o fechamento se completar no curso. Até começar um outro curso no lugar. Porque eu dava aula no terceiro ano, os meus alunos eram do terceiro ano. A Faap não podia mandá-los embora e dizer que o curso acabou. Eles precisavam terminar o curso. Acho que a mesma coisa com os alunos do segundo ano ou do primeiro ano. Quer dizer: a Faap precisou de um tempo para, realmente, extinguir o curso. Agora, eu não continuei dando aula lá. Em 1976 eu caí fora.
P/2 – Mas você convidou o Paulo Ludman para dar aula?
R – Exatamente.
P/1 – Como você avalia a existência de uma entidade como o Instituto Vladimir Herzog, que está aí atuando em áreas muito específicas, em educação, direitos humanos, preservando a memória do teu amigo Vlado? Como você avalia a existência de um instituto como esse?
R – Eu avalio, em resumo, positivamente, porque eu acho que essa história e o desfecho dessa história têm que ser preservados na memória nacional. Se o IVH está batalhando nisso, é muito positivo o seu papel. Além disso, também desenvolver o trabalho que o Vlado começou a desenvolver na história do cinema brasileiro, na história da cultura brasileira, na história do próprio teatro brasileiro. Agora tem uma exposição, no Itaú Cultural, Ocupação Vladimir Herzog, onde estão as cartas, os papéis, os documentos, os palpites do Vlado, errados ou certos, no trabalho dele. Coisas que ele escreveu, coisas que ele promoveu, estão ali. Eu acho isso importante. Não só para a promoção dos direitos humanos, mas para a preservação e promoção de uma memória, que é um ponto importante da história do Brasil. Nesse período em que eu sou jornalista – 62 anos, de 1957 a... é isso? – até agora, houve dois, três, não mais que quatro eventos importantíssimos para a história do Brasil. Um deles foi o suicídio do Getúlio, o outro foi a derrubada do João Goulart, o terceiro foi o golpe de 1964 e o quarto foi o assassinato do Vlado. Não por causa do Vlado, em si, mas pelo que aquilo produziu no país. A redemocratização brasileira começou naquele momento. Aquela multidão na Praça da Sé, silenciosa – como disse o Audálio num livro que ele escreveu: “O silêncio mais barulhento da história do Brasil”. É isso. Esses quatro eventos que marcaram a minha existência como jornalista, até hoje – eu poderia acrescentar, talvez, a eleição desse maluco aí, mas eu acho cedo, depende de ter uma perspectiva. Mas, enfim, esses quatro eventos, na minha carreira jornalística, para mim foram pontos importantíssimos para se acompanhar e compreender a história do Brasil da metade do século XX para cá. Eu queria acrescentar uma coisa que eu tenho pensando muito: eu nasci em 1936. E o Vlado, se não me engano, em 1937. Quando nós nascemos e até um certo ciclo depois do nosso nascimento, até, digamos, uns 15 anos da nossa idade, a cultura brasileira, o pensamento brasileiro, a visão de mundo que os brasileiros tinham vinha do século XIX. O século XIX só terminou em 1950, na minha opinião, com o “rock and roll”. O “Rock Around the Clock”, do Bill Haley, foi o começo do século XX porque marcou uma mudança de pensamento, de cultura, de comportamento, de tudo, que vinha do século XIX. Os Beatles foram os promotores da mudança de século. Veja: a Segunda Guerra Mundial foi feita por causa de doutrinas e políticas e pensamentos do século XIX – as duas guerras mundiais, aliás: a primeira e a segunda. O nazismo foi produto de cultura e pensamento do século XIX. O fascismo, a mesma coisa. Estou certo ou estou errado?
P/1 – É uma tese.
R – Então, você teve, até 1950, uma literatura, um teatro, um cinema, uma história, vinda do século XIX, com bases no século XIX. Você só vai ter cultura, literatura, teatro, cinema, desenvolvimento, com base no século XX a partir de 1950. Ou a partir de quando nós tínhamos 15 anos, eu e o Vlado. Você me perguntou da minha infância, por exemplo. A minha infância era isso que eu falei para vocês: a avó pedir para as crianças matarem o porco. Isso é do século XIX, era um costume no século XIX. Esse costume só vai mudar a partir de 1950. Quando nós nascemos, nós estávamos no século XIX e nele vivemos até os 15 anos.
P/1 – É uma boa tese.
R – Quer dizer: se eu fosse sociólogo, eu iria até fazer uma pesquisa aprofundada, para provar a tese, sabe?
P/2 – Mas a sua geração é a que assiste e constitui todo o processo de mudança. Depois integra o processo.
R – Exatamente. No começo, inclusive, a gente ficou perplexo. Quando essa mudança começou, a gente ficou perplexo. Não apenas nós, eu e o Vlado, mas toda uma geração que tinha nos acompanhando. Como é que o rock and roll foi recebido, em 1950? Como é que ele foi recebido?
P/1 – Com estranhamento.
R – Por gente que estava habituada com samba canção, que estava com a cabeça no século XIX. Eu tenho uma história que corrobora isso. Como chama aquela menina que fez um puta sucesso no final na década de 50?
P/1 – Celly Campello?
R – Celly Campello, lá de Taubaté. O irmão dela, Tony Campello, trabalhava comigo na Globo, me contou que, no começo, em 1950, eles cantavam no Clube Recreativo de Taubaté, todo domingo à tarde, para a matinê dançante das crianças e dos jovens. Um belo dia, a Celly ouviu o Bill Haley no rádio, cantando “Rock Around the Clock”. Ficou maravilhada com aquilo e falou para o irmão: “Tony, vamos fazer um arranjo disso, vamos apresentar no clube, na matinê”. Ele topou imediatamente, ele era que era o músico da dupla. Fez lá o arranjo, porque tinha uma banda no clube, que tocava também. Fez um arranjo para violão, porque ele não tinha guitarra. Botaram no ar no primeiro domingo de matinê que apareceu. A molecada veio para o salão, brincou, tal, e tudo bem. Na terça-feira foram chamados pela diretoria do clube, para dizer que eles não precisavam mais cantar nas matinês dominicais. “Mas por quê? O que aconteceu?” “Porque esse tipo de música não é bem-vinda aqui no nosso clube”. Ele falou: “Tá, tudo bem”. Ele e a irmã. Falou: “Vamos cantar noutra freguesia”.
P/1 – E fizeram o sucesso que fizeram.
R – Tudo bem. Isso na terça-feira. Na sexta, ou seja, três dias depois, a diretoria chamou-os de novo, para dizer: “Olha, resolvemos mudar, porque houve muito pedido da molecada no clube para vocês se apresentarem de novo e a diretoria resolveu não contrariar a molecada”. Voltaram a cantar no clube. Olha, esse episódio, para mim, é típico da época que a gente vivia. Onde estava acontecendo um fenômeno cultural e musical e as pessoas que vinham do outro degrau da escada resistiam a aceitar esse fenômeno. Eu mesmo, pô. Eu passei a minha infância cantando samba canção, Dolores Duran, Sílvio Caldas. Sei de cor! As músicas que eu sei de cor, que eu tenho na minha cabeça e que eu estudo no violão, são dessa época, da década de 40! “Boêmia, aqui me tens de regresso e suplicante eu lhe peço...” É isso aí.
P/2 – Para não deixar passar, por telefone você me falou da TV Cultura. Você participou da “Hora da Notícia”?
R – Participei como convidado.
P/2 – Como que era isso?
R – E participei também como apresentador.
P/2 – Era o Fernando Pacheco [Jordão], o Vlado...
R – Não, isso no jornalismo. No “Hora da Notícia”, eu participava como comentarista de Economia. Agora, no “Roda Viva”, eu fui convidado várias vezes para participar como um daqueles convidados e outras vezes eu substituí o [Jorge] Escosteguy. O Escosteguy foi apresentador do “Roda Viva” muito tempo. Às vezes, quando ele ficava de férias, me convocavam para fazer o que ele fazia. E outras vezes também o Rodolfo Konder foi apresentador do “Roda Viva” e também teve épocas que ele não estava aí, ficava de férias ou viajava, e eu ia ser o apresentador. Mas nunca fui o apresentador oficial do “Roda Viva”, não.
P/2 – E no “Hora da Notícia” você chegava para dar a notícia? Comentar?
R – Para comentar notícia na área de Economia. Aí eu era contratado, de fato, como funcionário da rádio Cultura e da TV Cultura.
P/1 – Eu queria trazer um pouco, de novo, a conversa para o plano pessoal. Você é casado, tem filhos?
R – Eu sou viúvo. Tenho dois filhos.
P/1 – O nome deles.
R – O Alexandre Malmegrin Rocha. Malmegrin era o sobrenome da minha falecida mulher. E uma filha, Júlia Malmegrin Rocha de Aragon. Aragon é o marido dela.
P/1 – E o que eles fazem?
R – Ela formou-se em Zootecnia, em Botucatu. Ela tem 51 anos, nasceu em 1968. E hoje trabalha como nutricionista de grandes animais, vacas, principalmente. Porque o marido é veterinário, então eles trabalham numa empresa de inseminação artificial de gado chamada Semex, uma empresa canadense, e moram em Blumenau. E ele é jornalista, o Alexandre, meu filho. Ele trabalha para... aliás, vocês podiam fazer uma entrevista com ele, que é muito interessante: ele trabalha para a Câmara de Comércio Brasil Árabe e faz uma publicação chamada Agência de Notícias Brasil Árabe, Anba, que está no Google. Agora mesmo ele esteve na Síria, fazendo reportagens. Porque teve uma feira internacional árabe na Síria, em Damasco. Ele foi lá para cobrir a feira. E esteve visitando.... Uma tristeza: me mostrou fotografias de Homs, que ele esteve percorrendo, a cidade totalmente destruída. A cidade é uma caveira. Ninguém mora lá. Quer dizer: é uma cidade abandonada, como acontecia no tempo de Ur, na Caldeia, como acontecia em tempos primordiais. As fotos, dá vontade de chorar. Edificações lindas, maravilhosas, templos, tudo completamente destruído. Homs, Alepo, que é uma cidade milenar, cidade que tem seis mil anos. Quer dizer: é brincadeira?
P/1 – Destruída.
R – Quando a humanidade estava aprendendo a ler, acho, que com aqueles caracteres cuneiformes, essas cidades já existiam.
P/2 – Uma tragédia.
R – Totalmente destruída.
P/1 – Marco Antônio, como é que você se sentiu dando esse depoimento pra nós?
R – Me senti em que sentido? Se eu fiquei feliz?
P/1 – Foi bom?
R - Muito bom. Eu acho que é uma oportunidade de eu falar muita coisa ao meu respeito, que eu penso e não falo. E quando você fala as coisas que você tem dentro de si, ela se se tornam mais claras, mais objetivas.
P/1 – E tem alguma coisa que você gostaria de ter dito e a gente não te perguntou ou não te estimulou a dizer?
R – Eu acho que não. Acho que as coisas importantes, que eu gostaria de dizer em qualquer lugar, em qualquer parte, eu disse.
P/1 – Algo a acrescentar?
R – Não.
P/1 – Eu gostaria, bastante, de te agradecer e queria, apenas, como última questão: quais são os seus sonhos?
R – Aos 83 anos? Morrer bem. Não, tudo bem. O meu sonho no momento, o meu desejo no momento, é aprender tocar violão bem. Porque piano eu aprendi bem, mas o piano não me deu uma coisa que o violão pode me dar – e por isso que eu quero aprender bem –, que é distinguir as tonalidades das coisas que eu ouço. Por exemplo: o tocador de violão, você canta e fala, como o que eu estava cantando agora: “Boêmia, aqui me tens de regresso...”. O tocador de violão fala: “Lá maior”. É ou não é? Ou, então, alguém que vai cantar com violão, fala para o cara do violão: “Dá um ré maior aí para mim”. Esse aprendizado sonoro, de distinguir as tonalidades pelo ouvido, é que eu quero aprender direito. Por isso que eu estou estudando violão. O piano não dá isso, porque no piano você enxerga as tonalidades. Quando você toca um dó maior, que está escrito no papel, você sabe quais os dedos que você usou e quais as teclas que você... Então você não aprende a distinguir pelo ouvido, você aprende a distinguir pela visão. Dó maior, dó, mi, sol, si. Então, você põe aqui o dó, mi na mão esquerda e o sol, si na mão direita, e você tem o dó maior. Mas você vê isso, você não precisa saber por ouvir. É ou não é?
P/1 – É um belíssimo desafio aprender música com esse foco, com essa pauta.
R – É um desafio.
P/1 – Marco Antônio, eu queria agradecer muitíssimo a sua entrevista, o seu depoimento foi muito rico para nós, você pode ter certeza que vai ser muito útil para o trabalho que o Museu e o Instituto Vladimir Herzog estão fazendo em relação a essa coleção do Vladimir Herzog.
R – Muito obrigado!
P/1 – Você pode ter certeza que vai ser de muita valia pra nós todos essa bela história que você contou pra nós.
R – Eu acho importante.
P/2 – Também agradeço muito a oportunidade de poder conhecê-lo melhor. Você tem muitas facetas muito interessantes. Uma história de vida muito rica. Obrigado!
R – Só para finalizar: você perguntou qual o meu sonho. E eu disse que não tenho sonho, mas eu gostaria apenas de voltar a ser jornalista de novo. Não como repórter. De voltar para a imprensa de alguma forma, seja como cronista, seja como comentarista, seja como editorialista, que foi o meu último trabalho no “Estadão”. Eu gostaria muito de voltar a ser jornalista, mas do jeito que está a imprensa... o problema é que está caindo verticalmente, faz meses. E você não tem a menor chance.
P/1 – Mas aquele germezinho do garoto que saiu pra ver a manifestação no Largo São Francisco continua vivo ainda?
R – Exatamente. Vivo. Aliás, preciso acrescentar um episódio naquele momento: fui para o Largo São Francisco. Aliás, duas coisas: eu disse que o povo está querendo invadir a faculdade e matar os estudantes, não era? O presidente do Centro Acadêmico 11 de Agosto, na época, Vitor Fasano, parente aí dessa família do restaurante, saiu no Largo São Francisco de peito aberto, subiu num patamar que tinha ali e começou a fazer um discurso, dizendo para o povo que aquele “R” no peito representava o repúdio deles, estudantes, à política de Getúlio. E não ao homem Getúlio Vargas, que os estudantes respeitavam e tudo o mais, patati, patatá. O povo foi ficando em silêncio, silêncio e acabou aplaudindo. Não é uma coisa incrível? Aí, fizeram o quê? Saíram do Largo São Francisco, aquele povaréu, o consulado americano era no prédio da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, que ficava ali no começo da Libero Badaró. Entraram, invadiram o prédio da Companhia Paulista, subiram no consulado americano e começaram a jogar os móveis do consulado pela janela. Outra coisa marcante daquele momento...
P/1 – Muito obrigado Marco Antônio, foi um prazer ouvi-lo.
P/2 – Obrigado, Marco Antônio!
R – Muito obrigado pra vocês.
P/1 – Muito bom ter você nesse projeto!
[pausa]
R – O Jorge [Okubaro] foi escrever um livro sobre o pai dele. O pai dele era imigrante japonês, veio para o Brasil. Um livro magnífico que ele escreveu sobre a vida do pai como imigrante japonês, vindo para o Brasil, começando a trabalhar, com tudo aquilo e tal, e, finalmente, no final da vida, como amava muito o Japão e tudo o mais, não acreditava que o mátrio Japão tivesse perdido a guerra e ingressou na Shindo Renmei, aquela organização japonesa terrorista contra os próprios japoneses.
P/1 – Contra os que acreditavam que perderam.
R – É. E foi preso pelo Dops. Então, ele foi buscar o processo do pai tudo lá no Arquivo Público. E o livro é magnífico. Chama-se “O Súdito”. Se vocês encontrarem por aí... foi premiado lá no Japão.
P/2 – Você tem livros publicados?
R – Não.
P/2 – O acervo do “Estadão” é substancial.
R – É impressionante. Ali você encontra coisas que o bicho comeu.
P/2 – Se fizer uma antologia sua ali...
R – O “Estadão” fez um vídeo, não sei se você chegou a ver.
P/2 – Sobre o período da ditadura?
R – É, sobre a censura.
P/2 – Do Camilo Tavares, não é?
R – É, exato. Sobre a censura no jornal.
P/2 – Eu tenho esse DVD. É muito surpreendente esse trabalho!
R – E tem um depoimento meu lá também, nesse vídeo.
P/1 – Aquele que tem a figura que o Getúlio interveio no jornal e que os Mesquita tiram, apagam esse DVD?
R – Não, agora.
P/2 – Sobre o período militar. 64, 65.
P/1 – O último período militar?
R – É, período militar. Agora, a censura.
P/2 – Foi feito um filme, que para os funcionários parecia que era uma coisa institucional, mas acaba que ele tem um corpo de documentário.
R – É um documentário.
P/2 – Que é como o jornal “O Estado de S. Paulo” lidou com a censura durante o período. Com muitos depoimentos. É interessante! O que eu fiquei muito surpreso, lá dentro...