Entrevista de João Batista de Andrade
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 11 de setembro de 2019
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Entrevista número PCSH_HV805
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiz Egypto
P/1 – Bom dia, João Batista! Muito obrigado por ter aceitado ...Continuar leitura
Entrevista de João Batista de Andrade
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 11 de setembro de 2019
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Entrevista número PCSH_HV805
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiz Egypto
P/1 – Bom dia, João Batista! Muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. Eu queria que você começasse dizendo, para registro, seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome completo é João Batista Moraes de Andrade, embora eu só use o nome artístico João Batista de Andrade. Eu nasci em Ituiutaba, no Triângulo Mineiro, em 1º de dezembro de 1939. Atualmente moro em São Paulo, sou casado com a Ana Andrade, que está aqui com a gente, e moro no Centro, região mais central, perto de Higienópolis, Rua Major Sertório, São Paulo.
P/1 – O nome dos seus pais, por favor.
R – Meu pai é Fernando Krüger de Andrade. Minha mãe é Maria da Conceição Moraes.
P/1 – E o que faziam seus pais?
R – Minha mãe era professora e depois virou diretora de área ali no Triângulo, e meu pai era um camponês sem-terra. Filho de família nobre, que foi à falência ali quando houve a gripe espanhola, que o pai dele morreu e eles perderam tudo e ele ficou sem nada e teve uma vida, praticamente, de camponês pobre.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Eu conheci a minha a avó materna, Jerônima Etelvina de Camargo. Meu avô, Alfredo Camargo, eu conheci assim muito criança, ele morreu cedo, me lembro vagamente dele. O meu avô, não, porque o pai do meu pai morreu na gripe espanhola. E a minha avó eu conheci muito doente, já de cama, brevemente. Ela é Clementina von Krüger, que nasceu na Alemanha, mas veio criança para o Brasil.
P/1 – A família tinha história da vinda dos seus avós para cá?
R – Não tinha. Por exemplo: a família Krüger, que é a família mais, vamos dizer, elite, que tinha história, o pioneiro von Krüger, eu não me lembro o primeiro nome dele, era ligado a Dom Pedro II, aquelas coisas, né? Ele veio para fazer um trabalho no Brasil, era engenheiro, e era construção de algumas estradas e acabou ficando no Brasil. E criou uma família Krüger, ou von Krüger aqui no Brasil. Eu tenho vários parentes von Krüger que eu não conheço. A família von Krüger eu, praticamente, desconheço. Conheço vagamente um tio do meu pai, que também tinha o nome do meu pai, Fernando e duas primas, que eu conheci, também, vagamente. Mas a gente ficou completamente isolado e sem contato com o resto da família Krüger. Eu só passei a ter esse contato quando alguém da família Krüger começou a fazer um levantamento e eles descobriram que eu era, apesar do meu nome, era conhecido, mas eles descobriram que eu era Krüger também, embora eu não tivesse Krüger no nome, por uma razão simples: a mãe do meu pai, minha avó, era Clementina von Krüger, mas o pai não tinha Krüger, era Andrade. Então, o nome do meu pai ficou Fernando Krüger de Andrade. Isto é: passou para os filhos só o Andrade. Então, nós não assinamos Krüger. E aí a gente começou a descobrir que tinha gente em São Paulo, em Santos, Brasília, no Rio Grande do Sul, no Rio, a família é dispersa e eu vou dizer: eu não conheço esse pessoal até hoje. Já há alguns anos que houve essa descoberta, mas eu não conheço pessoalmente esses parentes.
P/1 – Provavelmente foram as obrigações profissionais que o levaram o seu avô Krüger ao Triângulo Mineiro.
R – Pois é. Ele, na verdade, eu sei que não do primeiro deles – se eu lembrar, eu falo –, mas, em algum momento, principalmente o tio Fernando von Krüger, foi para Uberaba e lidou com gado zebu. Ele é um dos primeiros a trazer bois lá da Índia, nelore. Então, faz parte daquele movimento da criação de um novo gado. O gado que existia no Brasil era um gado rústico, chamado de “pé duro”, porque ele aguentava viver no mato, comia folha. Então, sob o ponto de vista de pastagem, era muito pobre o Brasil. Mas aí eles descobriram esse gado e ele fez parte do grupo que trouxe o gado nelore para o Brasil.
P/1 – Você tem irmãos, João?
R – Eu tenho, nós somos seis. Os dois mais velhos, a Dagmar Andrade, já faleceu há uns três anos e meu irmão mais velho, o Geraldo Luiz Moraes de Andrade, também faleceu, há uns dois anos. E aí, vivos, tenho o terceiro, que é Lázaro José Moraes de Andrade, que mora em Uberlândia, fez universidade, era muito ligado à Física, foi professor e mora hoje, aposentado, em Uberlândia. Depois tem eu e duas irmãs bem mais novas: a Maria José Moraes de Andrade, a Zezé Andrade, que mora no interior de Minas, no sul de Minas e que é ligada aos orgânicos. Zezé Andrade. E a mais nova que ela dois anos ainda, Maria de Fátima Moraes de Andrade, que mora em Ituiutaba ainda e tem uma família ligada lá, com os filhos, se ligaram a uma família de Uberaba e hoje mora em Uberlândia.
P/1 – João, como era sua infância lá em Ituiutaba? Como era sua casa na infância?
R – Precisa ver qual casa, porque a gente mudou muito de casa em razão de problemas econômicos. O meu pai, como eu estava dizendo, era uma pessoa excepcional, talvez a pessoa que mais marque a família, pela generosidade dele, pelo lado sonhador dele, o amor imenso à natureza e uma pessoa essencialmente boa e alegre, mas com um peso muito grande de ter perdido, com 12 anos, o pai, com várias fazendas e tudo e ver aquilo desaparecer. E ele ficou, como eu disse, um camponês pobre. Gostava de terra, fez um curso improvisado, virou barbeiro. Minha mãe o conheceu aí, como barbeiro. Então, a gente sempre tem uma admiração, uma ligação muito forte com ele. A minha mãe... Só terminando, o meu pai, então, tinha uma dificuldade enorme de fazer com que o trabalho dele rendesse. Então, teve tudo: torrefação de café, padaria, sempre alugava uma terra e não dava certo, depois criava porco e não dava certo, milho. Era uma guerra de camponês com a natureza, com o mercado, tudo. Então, ganhava dinheiro às vezes, perdia em outras, ou não ganhava outras vezes. Agora, minha mãe, não. Minha mãe tinha salário, era professora. Então, na verdade, a garantia da subsistência da família era o salário da minha mãe como professora. E minha mãe era muito rígida, era de uma família também bastante pobre de uma cidade do interior, lá perto de Ituiutaba, que era a cidade do Prata, a mais antiga da região. E é perto de Ituiutaba. E o meu avô tem muitas histórias sobre ele. Eu não sei dizer se ele era índio caiapó, se era filho de índio, mas tinha uma ligação forte. E bastante pobres. E uma família que se dispersou bastante. Então, se acomodou muito nessa pobreza cultural e tal. Minha mãe, não. A única delas, são seis, sete filhos, seis, sete irmãos, a minha mãe não se acomodou e o desespero dela é que os filhos estudassem. Então, tudo que ela fazia era para que a gente estudasse, para que a gente saísse daquilo. Então, trabalhava demais, vários cursos, direção de escola e ainda cuidava da casa. Lavava roupa, cozinhava muito bem, fazia as chamadas quitandas muito bem: rosca, pão de queijo, broa e tal, que fizeram história na cidade. E às vezes preparava à noite e, de madrugada, levantava, para poder assar aquelas coisas. E é uma coisa que fez escola, todo mudo se lembra da qualidade das coisas dela. Mas muito rígida com a gente, muito rígida, mesmo. É uma pessoa com sorrisos raros, sempre muito fechada e tudo, e também marcou a gente bastante.
P/1 – Os irmãos tinham obrigações em casa, tarefas a desempenhar?
R – Não. Meu pai, como tinha um espírito bem camponês, ele sempre pensava e gostava quando a gente fosse para fazenda ou para o sítio ou para terrinha dele, que a gente trabalhasse. No fundo acho que ele sonhava que a gente ficasse com ele. A minha mãe não aceitava. A minha mãe queria que a gente estudasse. Mas a gente tinha uma relação de afeto, vamos dizer, natural, generoso, com meu pai. E tinha um afeto respeitoso com a minha mãe. Era um pouco assim. Mas não tinha trabalho de maneira alguma. Mamãe pensava que a gente devia estudar, não trabalhar.
P/1 – Como é que a garotada se divertia? Como o garoto João brincava? O que vocês faziam na época?
R – Eu gostava de fazenda, de terra. Então, o meu sonho era chegarem as férias e ir pra uma fazendinha de uma irmã da minha mãe e tal. E às vezes passava o período todo de férias lá. Então, minha paixão era aquilo: o cerrado. Ali é bem o cerrado goiano, mineiro. Cerrado, mesmo. E loucura, andar a cavalo, pescar, subir em árvore, andar no meio do mato, de manhã tirar leite, aquelas coisas de fazenda mesmo. A minha paixão toda, ainda é a minha paixão. Eu sou cineasta, sou escritor, mas a minha paixão é o cerrado. A minha paixão é impressionante, em termos de atividade, é o cerrado. Agora, era uma educação muito dura, porque as coisas eram muito difíceis e eu, particularmente, tenho uma formação diferente dos meus irmãos, porque eu era muito rebelde. E, quando criança, eu tenho uma imagem que eu era muito patético, muito avoado e tal, mas tinha a imaginação muito grande. Mas logo muito criança ainda, a gente formou um grupo, acabou criando um grupo de amigos, nós éramos inseparáveis: eram cinco pessoas, cinco garotos, éramos inseparáveis e realmente muito amigos. Mas principalmente dois deles, que eram os mais amigos, os mais solidários, eram os filhos do homem mais rico da minha terra. Então, essa coisa me marcou muito, porque com eles, embora eu ficasse super sem graça e era uma coisa difícil, mas com eles que eu tomei guaraná, comi castanha, as coisas de Natal, também, lá, tudo, só com eles. Eu não tive essas coisas: bicicleta, não tive velocípede, nada, e então isso aí me marcou muito. Por incrível que pareça, eram os amigos mais solidários. E os outros dois amigos, que eram primos deles, mas era o lado pobre da família, ela professora e ele motorista de carro, os dois eram muito preconceituosos comigo. Minha mãe era muito morena e eu também, bem moreno. Então, meu apelido era Nego, ali. Mas justamente dos dois, não dos filhos do homem mais rico de Ituiutaba, Vilela o nome dele, que insistiam muito e eu falava: “Não, não vou, seu pai não vai gostar”. Aí puxava para lá, quebrava castanha, pegava bebida, guaraná, aquelas coisas. E isso parece brincadeira, mas me marcou profundamente. Primeiro, me levou a um sofrimento muito grande, porque quando eu fiquei adolescente, essas coisas me confundiam demais, era uma confusão muito grande. Aí eu ficava mudando de religião. Minha mãe é católica e meu pai espírita. Ficou espírita. Ele não era, mas com a gente já no mundo, ele acabou virando espírita. E conviviam os dois em casa: ele com os livros espíritas dele e minha mãe na sala com a Bíblia e então já tinha essa divisão dentro de casa. E eu ainda com esse histórico de um certo sofrimento nessa relação com os amigos. Era uma amizade muito profunda e, ao mesmo tempo, uma divisão muito grande: eu saía da casa deles e ia para uma casinha nossa. Aliás, falando sobre as casas, porque a gente vivia mudando de casa, porque quando conseguia comprar uma casa daqui a pouco tinha que vender, por causa das dívidas. A gente teve não sei quantas moradias. Então, a diferença era muito grande, mesmo. Eu sei que eu fui estudar, saí de Ituiutaba com 16 anos.
P/1 – Fala da primeira escola de Ituiutaba.
R – A primeira escola eu estudei, no primário, num colégio tradicional de lá. Eu fui com sete anos. Entrei no primeiro ano dessa escola, que chamava João Pinheiro, uma escola mais antiga. E dizem as pessoas, meus irmãos mais velhos, que quando eu entrei, eu praticamente já sabia ler. Eu lia muito gibi, gostava muito de gibi. E praticamente já sabia ler. Mas eu era gordo feito uma pipazinha, baixinho, uma pipa, mas era um problema qualquer, tanto que eu peguei uma coqueluche quando entrei na escola e coqueluche eram seis meses, não tinha remédio. Então, aquela tosse comprida. E eu emagreci, fiquei magrinho. E depois, nunca mais engordei, mesmo. Quer dizer: aí acabou com a gordura. Os próprios médicos diziam, e eu também acho, que a doença acabou resolvendo algum problema do organismo, glândula, alguma coisa. Então, eu perdi aquela gordura feia: eu era um pacotinho redondo, assim. Tem foto minha assim. Mas aí, com sete anos, eu fiz o primeiro e o segundo ano lá em Ituiutaba, nessa escola, e depois minha mãe resolveu, como o salário dela era fundamental, ir para Belo Horizonte, para fazer um curso de especialização para poder subir de posto e virar inspetora de educação no Triângulo Mineiro. E ela juntou os filhos, quatro filhos que, nessa altura, nós éramos quatro: minha irmã Dagmar, meu irmão Geraldo, o Lázaro e eu. Mas só que eu era bem mais novo do que os outros. Então, eu era criança e eles já eram rapazes. E nós fomos pra Belo Horizonte [por] dois anos. Então, ficamos lá 1949 e 50. Belo Horizonte era pequenininha. E lá eu fui muito aventureiro também, então tinha um grupo de amigos e a gente pegava o bonde, aquele bonde aberto, pegava andando o bonde, segurava no balaústre e pulava no estribo. O cobrador vinha para lá e a gente passava para o outro lado, e descia também com o bonde andando. E aí a gente ia para os recantos. Então, Belo Horizonte era pequena. A gente ia na periferia, tinha aqueles morros, eu lembro de ficar escorregando nos morros com tábua, e a gente acabou criando uma espécie de quadrilha de moleques. Se fosse em outro tempo, virava marginal, porque era um grupo. E tinha outros grupos que se confrontavam com a gente, com porrete e tal. E a gente fazia bobagem, apertar campainha e sair correndo, entrar numa escola do bairro. Nós morávamos em uma pensão lá em Belo Horizonte, depois mudamos para um hotel e morávamos apertados, em um quarto só, porque não tinha dinheiro, e eu lembro que, no hotel, o dono tinha que dar para a gente um quilo de goiabada quando pagava o mês. Mas eu tinha uma vida completamente independente, assim.
P/1 – A sua mãe ia fazer os cursos dela e vocês ficavam sós?
R – É, ia fazer o curso e eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. Os irmãos também não tinham a menor ideia. É uma coisa impressionante. Eles me tratavam muito como criança e eu saía pelo mundo e ninguém tinha a menor ideia. Os meus irmãos não sabem disso até hoje. Não sabem. Bom, os dois mais velhos morreram, só tem um mais velho agora, mas eles não sabiam dessa história, morreram sem saber dessa história de Belo Horizonte, em dois anos.
P/1 – Passado esse período, vocês retornaram pra Ituiutaba?
R – Retornamos para Ituiutaba, terminei lá o primário, aí fiz o chamado ginásio, lá em Ituiutaba também, numa instituição mais forte de Ituiutaba, que se chamava Instituto Marden. De influência americana. O Marden que tem livros de como vencer na vida, essas coisas. O pioneiro era o Marden. Esses valores, assim, do capitalismo. E minha mãe, acho que com esperteza, como ela era professora, ela conheceu o Doutor Álvaro, que era o dono do colégio. E tiveram uma relação boa e ele acabou virando meu padrinho. Eu não sei a história. Ela deve ter dito para ele que gostaria que ele fosse padrinho e ele, com isso, me deu o colégio. Acho que foi uma certa esperteza da minha mãe. Então, eu fiz o colégio de graça. Terminei o colégio e em 1956 eu fui para Uberaba, porque meu irmão já estudava lá. O meu irmão tinha feito vestibular, o mais velho, Geraldo, era não sei quantos anos mais velho que eu, talvez uns seis anos e o outro, uns quatro. O Geraldo entrou na Odontologia. E aquela mesma história: queria fazer Medicina, mas não dava, ele entrou em Odontologia. E era muito inteligente, muito, mesmo. Esforçado. Ele trabalhou no grupo Triângulo Mineiro lá, que é fundado pelo escritor Mário Palmério e, com o Mário Palmério, ele conseguiu emprego lá, uma espécie de bedel, uma coisa assim. Ele conseguiu, então, que eu também tivesse a escola de graça lá no curso que antigamente chamava científico, que corresponde ao colégio hoje. Eu fiz o primeiro e o segundo ano lá, muita divergência com meu irmão, porque, com essa dificuldade econômica do meu pai, meu irmão virou uma espécie de segundo pai. Então minha mãe jogava sobre ele a responsabilidade de ele ajudar a conduzir a família no sentido mais materialista possível.
P/1 – Primogênito.
R – É, ele é o primogênito. E essa coisa eu acho que é até natural: os irmãos mais novos sofrem muito com isso e ficam rebeldes. Eu, muito rebelde com ele, brigava muito. Aí eu fiz o colégio, eu era muito bom aluno, ao ponto que estava no primeiro ano no colégio e o professor, por exemplo, de Física e Matemática, os dois, às vezes me levavam lá para o terceiro ano, para resolver um problema que o pessoal não conseguia resolver. Eu passava a maior vergonha do mundo, mas eu era muito bom aluno, mesmo. Muito bom.
P/1 – E o que esse garoto João queria ser quando crescesse?
R – Eu era muito sonhador, sabe? Eu tinha uma coisa meio, vamos dizer, uma dificuldade muito grande de me prender à realidade. Eu sou, muito, assim, ainda. Então, capacidade de análise eu sempre tive muito, mas avoada. Mas a minha tendência era de alguma coisa artística, mesmo. Tanto que quando eu estava em Belo Horizonte com a minha mãe, em 1949 e 50, acho que em 1950 fizeram um teste vocacional lá. E a Escola de Aplicação foi pioneira no Brasil. É onde nasceu uma nova forma de educação. Inclusive, por exemplo, eu estudava conjuntos, lá no terceiro ano primário. Estudava Matemática já pensando em conjunto. Foi uma coisa pioneira, mesmo, lá. E o teste deu vocação para arte. A minha mãe escondeu esse teste, nunca me mostrou. Eu fiquei sabendo disso depois que eu virei cineasta, não tinha mais jeito. Aí que a minha irmã mais velha revelou que a minha mãe tinha escondido esse teste. É engraçado, porque eu tinha a vocação pelas coisas abstratas. Sempre fui melhor aluno em Matemática e tinha essa coisa de escrever pequenos poemas e, ao mesmo tempo, tentar inventar teoremas matemáticos. Sempre foi uma coisa assim. Mas quando eu voltei para Belo Horizonte, depois, em 1958, aí para fazer o terceiro ano colegial, que é o terceiro científico, foi o ano, talvez, mais marcante da minha vida, porque eu fui para lá – já não tinha meu irmão, com quem eu brigava muito em Uberaba – morar com o outro, numa república, irmão meu que não estava nem aí. Ele era o irresponsável da família. Se ele ganhasse dez mil reais, ele gastava tudo em cebola, que achava que cebola era boa para o cérebro ou fazia qualquer loucura, completamente irresponsável. Ele não tinha a menor ideia de quem eu era, o que eu fazia, nada. Então, para mim foi bom. Mas era uma república, tinha uns primos também que tomavam conta da república, mas aí o que acontece? Sem que ele percebesse, estava morando lá, eu vivi a maior crise da minha vida, uma crise terrível, que parecia que era religiosa, porque era católico e passei a ser espírita, aí comecei a questionar o espiritismo, achando que era tudo uma bobagem e tal. E também não sabia o que eu ia fazer, se era Engenharia ou se era Agronomia ou se era Geologia, porque eu gostava de tudo aquilo. Cheguei até a pensar em Medicina, umas coisas loucas, assim. E aquilo foi criando uma bola de problemas que eu não conseguia resolver. Eu, às voltas com os meus mistérios matemáticos, teoremas, tenho até curiosidade de achar alguns, porque eu acho que era interessante, mas era meu mundo assim. Aí eu comecei a beber, porque era uma agonia, assim, muito enorme.
P/1 – Dezesseis, dezessete anos?
R – Nessa altura já estava com 17 anos. Exatamente, 16, 17 anos. Saía da escola à noite, o Colégio Batista Mineiro, tinha feito um exame lá e também fiz de graça o Batista, porque eu era bom, então isso me ajudou bastante, até depois. Mas aí eu fiz o colégio e eu era muito bom no colégio e então eu conseguia tudo, mas a crise era profunda. Eu saía do colégio à noite, ia a pé para casa e parava nos bares, tomava aquele traçado, pinga com vermute, imagina! E me lembro de, sentado na calçada, bêbado, sem conseguir levantar. Era uma coisa: eu não aguentava aquela crise, sabe? Não tinha saída para ela.
P/2 – Não tinha com quem compartilhar?
R – Não tinha. Aí terminei o curso e eu era a maior esperança, nos vestibulares, da minha turma. Os professores ficavam jogando para mim essa coisa. Aí eu fui, resolvi que eu ia fazer a faculdade em São Paulo. Resolvi que era Engenharia mesmo, porque era o que me ofereciam. Medicina... aí eu fui fazer Engenharia. Parece que não tinha escolha. Você ia ser engenheiro, médico ou advogado. Eu sou, ainda, talvez da última geração, que só tinha essas três opções de verdade. Se não conseguisse, aí ia para outra: Odontologia, Administração. Eu escolhi Engenharia porque eu gostava de Matemática. E vim para São Paulo.
P/1 – Sozinho para São Paulo?
R – Sozinho. Aí vim sozinho para São Paulo. Eu tinha dois amigos que já moravam aqui, estudavam aqui e ficavam num hotel, ali, perto do finalzinho da Paulista, a região, ali, como é que chama? Paraíso. E o hotel chamava Hotel Paraíso. Era um hotel, nada, era uma pensão pobre e tal. Mas tinha, já, três ituiutabanos lá. Então, era referência e eu fui para lá e fiquei lá, mas era sozinho. Aí eu comecei a entrar em contato com as pessoas e eu vi que meu nível de conhecimento era baixo demais. E meu nível cultural também, de informação cultural. Aí eu não quis fazer vestibular, fui para o cursinho Anglo Latino e tinha lá também um concurso para vagas; eu fiz e passei também e consegui de graça o Anglo Latino. Aí eu fiz o Anglo Latino e, no ano seguinte, fiz o vestibular e passei muito bem.
P/1 – Engenharia?
R - Engenharia da Politécnica, da USP. Eu passei muito bem. Eram acho que 200 vagas, eu passei em quadragésimo lugar.
P/2 – Por que deu essa sensação de que você não estava preparado, de que você não tinha...
R - Não sei. Talvez um receio. Acho que não sei. É difícil saber hoje. Eu não sei se eu não queria um fracasso ou a sensação de que eu não ia conseguir passar. Tinha um certo receio, assim.
P/2 – Foi um disparate cultural entre São Paulo e Belo Horizonte?
R – Um disparate cultural absurdo. Tanto que, quando eu entrei na Engenharia, eu comecei a conhecer, eu fiz amizades, minha vida mudou também.
P/1 – Nós estamos falando de que ano?
R – Eu entrei em 1960. Fiz vestibular, em 59 vim para cá, fiz o cursinho, fiz o vestibular e entrei em 60 no primeiro ano. Só para dar um pulo, por isso que em 1964 eu estava no quinto ano, e tive que sair por causa do golpe. Aí fui morar em um apartamento de um daqueles amigos meus, filho do homem mais rico de Ituiutaba, que era completamente anticomunista, não gostava de mim, mas ele me salvou do meio da rua e me levou para o apartamento dele. Então você vê que a vida, às vezes as coisas não são fáceis de entender. Mas aí eu fiz o cursinho, passei muito bem. No final do ano de 1959, eu tive a má sorte de ser convocado para o serviço militar, mas pela entrevista – primeiro que eu jogava xadrez, e depois eu era bom de cabeça – me jogaram no CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva]. Então, quando chegou no final do ano eu já tinha que fazer o CPOR. Eu tinha verdadeiro horror de militar e do CPOR. E era muito rebelde também. E me atrapalhou muito, porque eu tinha que ir todo fim de semana para o CPOR, às vezes tinha que ir a semana toda e eu no cursinho, me preparando pro vestibular. Quer dizer: eu poderia ter saído até melhor no vestibular se não fosse ele. Atrapalhou, mesmo. Mas o CPOR até merece algum depoimento, porque eu tenho, realmente, horror a militares e à disciplina, à autoridade, tal. Eu não sei de onde eu levei isso, se foi de casa, não sei. Mas, quando eu entrei, eu já conhecia algumas coisas. Por exemplo: eu já sabia da Revolução Cubana, mas não tinha ligação nenhuma, não tinha muita consistência ideológica, nada. Mas eu já tinha uma aproximação com isso, tinha um certo prazer de ver aquilo. E entrei no CPOR no final de 59 e a segunda vez que houve uma reunião lá com o capitão que coordenava o nosso grupo, ele pediu para os alunos levarem um estudo sobre estratégias na guerra, da Segunda Guerra Mundial. E ele disse o seguinte: “Sobre a estratégia russa, você aí, 2-15, que conhece bem isso, traz na próxima aula um texto sobre a estratégia russa”. Era um massacre aquilo. Eu estava no meio do Exército ali, o capitão, cheio de militares em volta dele, tenente, sargento e aquilo me oprimia de uma maneira tal e eu era muito rebelde. Aí eu tive que fazer um estudo lá e depois relatar publicamente e eu, relatando e dizendo: “Vou relatar, mas eu não sei por que o capitão logo veio para mim, como se eu conhecesse. Conheço o quê?” Aí ele falou: “Você é pago para fazer, não para reclamar”. É muita repressão. Mas eu levei esse nível de repressão muitas vezes dentro do Exército e era uma agonia aquilo. Eu sonhava com aquilo, tinha pesadelo com o CPOR.
P/1 – Durou um ano, apenas?
R – Não, dois anos o CPOR. Pegava os fins de semana, um pouco de férias.
P/2 – Nenhuma amizade, nada, lá? Não fez nenhuma amizade?
R – Não fiz muita amizade, não, porque eu estava muito mais tocado nas amizades que eu fiz na universidade. Porque ali eu conheci, fiquei amigo de pessoas que conheciam muito a música erudita e que eu ia, morava na Casa do Estudante, morei na Casa do Estudante. Morei um pouco numas pensões baratas, depois, perto da Poli. Bem baratas. Cheia de cabos, soldados da Força Pública, ali. Onde era a Politécnica, na Tiradentes, ali do lado tem vários quartéis. Então, a pensão tinha vários militares: soldados, sargentos... sargentos, não, mas cabos. Depois, fiz aquele atestado de pobreza e aí me inscrevi para ir para a Casa do Politécnico; fui agraciado e fui morar na Casa do Politécnico. Por curiosidade, eu morava – parece que eu tenho uma coisa pregada na testa – eu fui para o sétimo andar, que era o andar comunista, o mais politizado, sempre. É o último andar da Casa. O resto do tempo, desde o segundo ano, terceiro, quarto e o começo do quinto, até 1964, eu morei na Casa do Politécnico.
P/1 – Como você se sustentava em São Paulo?
R – Minha mãe mandava uma mesadinha, porque como a escola era gratuita, a mesadinha era praticamente para comer. Eu comia lá no bandejão, que era muito barato e, se não tivesse dinheiro, comia também, guardava lá e tal. E não tinha dinheiro para mais nada. Não tinha dinheiro para nada. Era um pingadinho só que minha mãe, imagina, com o salário de professora, mandava.
P/1 – Você viveu um tempo efervescente da universidade, não é?
R – Profundamente efervescente. É isso que eu estava dizendo. Eu me liguei muito a amigos. Tinha um amigo que me fez conhecer a música erudita. Um outro amigo tinha feito um filmezinho com super-8, era o Francisco Ramalho, que é cineasta hoje. Então, eu fiquei muito amigo dele e nós acabamos fazendo um grupo de cinema, chamado Grupo Kuatro. Eu me liguei a mais uns três amigos que escreviam e eu também já estava escrevendo coisas, poemas, contos, pequenos contos. Sem publicar nada, mas estava escrevendo. Aí fizemos um jornalzinho lá na Casa do Estudante, que chamava “O Politécnico”. E aí nós criamos lá uma escola literária que chamava “Psicorealista”, porque essa palavra “psico” tem um significado muito particular. A Casa do Estudante era a casa do psiquismo completo. Quer dizer: porque era tudo pobre, sem dinheiro e morando junto, um vivendo a pobreza do outro, a dificuldade do outro e tal. Era um “animus”, assim, completamente particular e doido lá dentro. Então a gente chamava aquilo, a nossa escola literária de Escola Psicorealista. Eu conheci Graciliano [Ramos], Guimarães [Rosa]... para falar só dos escritores que ainda são os que eu mais gosto. Guimarães, Mário de Andrade, [Fiódor] Dostoievski, Leon Tolstoi, Stendhal, para falar dos cinco que eu mais gosto. Sempre, desde aquela época, são os que eu não me separo deles. Eu conheci ali, não conhecia nada disso. A música também, eu fiquei apaixonado, aprendi muito a ouvir música e tenho relativo conhecimento de música erudita. Eu gosto mais dessa música, clássica, do que da popular. Gosto da música popular, também, bastante, mas minha cabeça é mais pra essa música clássica.
P/2 – Você lembra o nome desse amigo que te apresentou a música clássica?
R – Toledo. Eu não vou conseguir lembrar o nome dele. Será que é Luiz Alberto Toledo? A gente o chamava de Toledo. Ele morava na Casa do Estudante também. Ele tinha muito disco e tinha uma vitrolinha. Era um luxo na Casa do Estudante. Então, eu ia muito ouvir música lá com ele: Vivaldi, essas coisas eu conheci lá, com ele. Cinema, com o Ramalho e com um amigo nosso, que era o Antonio Benetasso, que fazia Arquitetura, mas era muito amigo. Ficamos muito amigos: eu, o Ramalho, muito amigos dele. O Claudio Bueno, que era da Poli também. E o Benetasso era um talento intelectual. Jovem, universitário e ele conhecia [György] Lukács, essa literatura já crítica. O [Arnold] Hauser, com a história da arte. Eu tenho, inclusive, um livro que ele me deu naquela época, acho que 1961, 62, que eu estava, talvez, no segundo ano de Engenharia, ele me deu um livro do Lukács, “A Destruição da Razão”. Para mim parece que era uma piscina de cultura e eu mergulhei naquela piscina. E, na verdade, não saí mais, porque eu fiquei tomado por essa cultura. Inclusive, uma cultura muito crítica. Tanto que, no terceiro ano, eu já tinha atuação política e, no segundo ano, 1961, já tinha participado de movimento contra o golpe de Estado, na renúncia do Jânio [Quadros] e até passeata a gente fez e eu fiquei muito ligado a essas coisas.
P/2 – Campanha da Legalidade, não é?
R – É, ligado a essas coisas da realidade. Sempre de uma forma... eu acho que eu tenho um espírito, uma capacidade de abstração muito grande, então eu conseguia ligar aquilo às coisas que eu lia. Até Marx eu comecei a ler também, acho que no segundo ano, além do Lukács. Então, no terceiro ano, eu já entrei para o partido, o Partido Comunista Brasileiro.
P/1 – Como é que foi esse processo?
R – Tinha lá o que a gente chamava de base. Era uma célula do partido, na escola. E tinha uma pessoa que ficou muito minha amiga, o Mário Grosbaum. Morreu cedo, mas era uma pessoa maravilhosa. Uma pessoa que é uma pena muito grande, porque ele morreu novo, logo depois que se formou. Ele jogava basquete. Teve uma síncope e morreu, assim, de repente. Ele era muito grande, muito forte. Uma pessoa maravilhosa.
P/2 – Tinha os móveis Scriba, não é? Ele era dono dos móveis Scriba.
R – Eu acho que era da família dos móveis Scriba. Chamava Marião. E aí o Mário, um dia, conversou comigo e começou a falar sobre isso e contou o que é que ele fazia, o que era o partido e perguntou se eu não queria entrar. Aí eu topei e entrei. Acho que final de 1962. Acabei entrando para o partido. E fui bem no partido, porque eu tinha essa capacidade. Eu sempre falo para o pessoal: quando as pessoas falam um, fica todo mundo pensando se é um copo, se é uma melancia e tal. Um é um pra mim, é o número um. A outra associação já é uma coisa fora da Matemática. Aí é o uso da Matemática. Então, eu tenho o espírito abstrato, a capacidade de pensamento abstrata desde muito novo. Eu não sei por que também, não é? Porque isso não é sinal de inteligência, nada. Sei lá, é uma forma de pensar. Não sei por que me levou a isso, também. É difícil saber. Mas aí eu entrei e eu acho que, com esse tipo de pensamento, eu conseguia separar muito, tudo que eu lia. Aí eu lia tudo. No terceiro ano eu lia tudo, já: lia Lênin, lia muito Lukács, lia Marx, lia esses escritores todos. Eu tinha uma predileção muito grande pelo Stendhal, talvez até por uma relação pessoal com o personagem dele no “O Vermelho e o Negro”, porque o “O Vermelho e o Negro” é o personagem de baixo, jovem, talentoso, bonito, e que através da capacidade dele de pensar, das ideias, de compreensão e pelo brilho dele, tenta a ascensão social e vai ganhando espaço dentro da Corte. Até que no final, é o final do mito napoleônico, dão um papilote nele. Ele pode parecer que é nobre, mas ele não é. Então, como eu senti muito isso, a minha relação com os meus amigos ricos, eu nunca alimentei aquela ilusão de que eu era amigo deles, nunca, e que, com isso, eu ia...
P/1 - ... ser um deles?
R – Nunca, de fato. Mas eu vislumbrei essa possibilidade. Eu vi que existia um caminho desse que podia tentar galgar, mas eu não fui. Eu era um pouco crítico a isso também, mas eu sofria muito com esse conflito: como é que eu posso ser tão amigo dessas pessoas, com tanta diferença social? E você vê que eu tinha razão. 1964, logo que houve o golpe, eu falava em nome do partido publicamente. Estava na assembleia – alguns dias depois do golpe, lá na Cidade Universitária – convocada pelo DCE e estava lá o salão cheio – com tábua ainda das obras – cheio de gente e aí ele fala: “Agora vai falar pelo Partido Comunista Brasileiro o João Batista Andrade”. Aí eu lembro que eu vim lá atrás, pisando naquelas tábuas, bum bum bum bum. Aquilo ecoa na minha cabeça até hoje. E eu fui lá e falei em nome do Partidão. Isso três, quatro dias depois do golpe. Aí eu voltei para casa. Quando eu cheguei em casa, na Casa do Politécnico, tinha uns amigos meus com uma malinha minha com roupa e os livros que sabiam que eu não separava: o Stendhal, tinha um Dostoievski e Graciliano lá na mala. E eles: “Vai embora, vai embora, vai embora, porque vieram procurar você aqui”. Aí eu peguei a malinha, fui para a rua. Escrevi um livro depois baseado em textos que eu escrevi naquele momento, naqueles dias do golpe. Então, são coisas que aconteciam: a gente lá no sétimo andar tentando escutar a rádio Legalidade ou reunindo à noite. Eu lembro do dia que o Adhemar de Barros... nós estávamos reunidos lá embaixo, no salão, acho que era sobreloja, primeiro andar, sobreloja, com a televisão, e a gente ficava ouvindo o noticiário e eu lembro direitinho o Adhemar de Barros, bêbado, com o comandante, acho que Albuquerque Lima, do Segundo Exército, e era uma esperança, porque ele era um homem do Jango [Goulart]; e o Ademar, bêbado, apresentando o comandante do Segundo Exército e dizendo: “O Exército está conosco”. E ele, bêbado, falava assim: “Vai embora, Jango. Vá cuidar da sua Tereza”. Bêbado. E aquele traidor militar ali ao lado dele, já fazendo parte do golpe. E a gente estava lá assistindo, naquele dia, a gente assistia lá. Mas aí houve esse problema, eu fui para o meio da rua, não tinha para onde ir, porque eu fiquei pensando: “Para Ituiutaba eu não vou, porque era uma vergonha absoluta”. Minha mãe mandava dinheirinho dela para me manter, para fazer universidade, que era o sonho dela que a gente estudasse, se formasse e tal, e eu metido na política até o pescoço e já com cinema também, filmando, grupo nosso, escrevendo naquele jornalzinho, as três atividades, e eu fiquei desesperado, não sabia o que fazer. Eu tenho, inclusive, uns poemas compridos que falam desse momento das pessoas passando, aquele som de marchas militares no Centro da cidade, os caminhões do Exército novinhos, pintados, eu ficava olhando e falava: “Deram esse caminhões para o Exército”. Claro, era a Ford, a GM, a Volks que davam os carros.
P/1 – Onde é que você passou a primeira noite?
R – Eu não passei nem uma primeira noite, porque eu estava na rua, estava “Perdido no Meio da Rua”, que é o meu livro, que depois foi publicado e, de repente, eu estava desesperado, não sabia o que fazer, aí para um carro e me chama pelo apelido. Aliás, meu apelido, hoje, é atual, era Bacurau. O nome do filme. Aí: “Bacurau”. Porra, nome de infância, meu apelido de infância. Eu com a malinha ali, eu lembro direitinho aqueles muros cheios de cartazes rasgados. Eu não sei nem onde é, mais. É um muro pop, uma paisagem pop. Aí eu olhei, era o Márcio Feres Vilela, que era o meu amigo de infância, filho do homem mais rico da minha terra e ele: “Eu estava preocupado com você. Onde é que você estava? Entra aí, eu vou te levar para fazenda do meu pai”. Eu falei: “Não, de jeito nenhum. Para fazenda do seu pai eu não vou. Não posso ir. Seu pai vai me entregar”. Ele falou: “Não. Eu tenho um apartamento que eu acabei de comprar aí. Eu te levo lá, você fica lá. Ele está vazio”. Aí levou para esse apartamento e eu fiquei seis meses nesse apartamento. Descia muito pouco, para comer, e depois de uns quatro meses eu comecei a sair e comecei a procurar algumas pessoas que eram ligadas ao partido, mas não eram militantes, como o Rudá Andrade. Aí o Rudá me convidou para dirigir a Sociedade de Amigos da Cinemateca. Aí, devagarzinho, mais no final do ano, eu já comecei a atuar, perdi o ano, tudo...
P/2 – Isso era 65?
R – 64. Era o quinto ano. Perdi. Para falar a verdade, eu já estava completamente desligado. Eu não era mau aluno, mas eu estava completamente desligado de Engenharia. Já estava com a cabeça em outro lugar: no cinema ou na literatura ou na política, alguma coisa assim.
P/1 – Como é que foi quando você foi mordido por esse bichinho do cinema? Como é que isso aconteceu?
R – Aconteceu com esse encontro com o Francisco Ramalho. Ele tinha feito um filmezinho, onde o ator era justamente o Antonio Benetasso – que foi morto, depois: ele foi para a ALN e acabou sendo morto. Mas era um talento, uma pessoa admirável. E eu vi o filme e comecei a ver que aquilo era possível. Aí eu me interessei muito e comecei a frequentar, a gente fazia encontro, apresentava filme, aí comecei a conhecer os primeiros filmes, tipo “Aruanda”, lá do Linduarte Noronha, lá da Paraíba, que é uma espécie de pioneiro do Cinema Novo. Ele, no documentário e o Nelson Pereira como ficção. Mas eu comecei a descobrir outras coisas para ver também e fui me encantando com aquilo, porque o que marcou muito é que quebrou a visão do cinema que eu trazia da infância. Cinema era aquilo lá, americano, e, de repente, a coisa da beleza também do cinema, o que é belo, começou a bagunçar comigo e, logo no começo, eu conheci também um filme do Fernando Birri, da Argentina, que chamava “Tiré Dié”. Porque ele veio ao Brasil... é uma história que precisa voltar, porque o Vlado tinha feito o curso que o cineasta Arne Sucksdorff tinha feito no Rio, basicamente um pessoal ligado ao Cinema Novo, do começo. E o Vlado queria fazer cinema. Ele foi para lá e fez o curso, onde ele conheceu o Walter Lima, o pessoal todo ali, o Gustavo Dahl, o Cacá [Diegues], o Nelson [Pereira dos Santos]. E um dia, ele e o [Maurice] Capovilla, já muito interessados no cinema, foram para Argentina para conversar com o Birri, porque eles tinham notícias do Birri e resolveram fazer um curso lá. Foram lá e perguntaram se era possível fazer o curso. Depois não fizeram, mas ficou aquela ligação com o Birri. No próprio casamento do Vlado, logo em seguida, o Birri veio ao Brasil e, antes disso, o Vlado conseguiu que se fizesse uma mostra de cinema do Birri. Então, em 1963 eu vi o “Tiré Dié”, vi “Los Inundados”, e nós fizemos uma entrevista com ele, com o Birri, está publicada na nossa... nós tínhamos uma revista, também, de cinema: chamava “Caderno da Poli”, e era sobre cinema, que nós publicávamos. Tinha uma atividade muito grande. O jornalzinho do grêmio estudantil era chamado de “Jornal Vermelho” na universidade. E a gente chegou a distribuir em banca o jornal, e o Ramalho era editor do jornal e eu escrevia lá alguma coisa, às vezes mais crônica ou contos. E eu já militante, mesmo; eu tinha um papel já maior como membro militante do partido. Já coordenava coisas de juventude, já dava assistência para outras bases da universidade. Mas aí, o cinema... quando eu vi o filme do Birri, o que me pegou mais, foi essa coisa da discussão do que é o belo. Na verdade, eu lembro direitinho que às vezes o pessoal fala: “A favela é feia”. Às vezes eu olho e a favela é bonita, é uma outra coisa, tem uma carga humana, de busca de viver, de sobrevivência, de luta, de não desistência e cada casinha daquela tem uma carga humana enorme lá dentro, não é? Quando eu fiz televisão, por exemplo, era comum falar assim para o pessoal, não tinha nenhuma ideia: “Vamos para um lugar bem bonito”. Aí eles falavam assim: “Jardim Europa” Eu falava: “Que Jardim Europa! Vamos para o Jardim Maria Luiza, vamos lá para a Freguesia do Ó”. Descobrir que o fato da gente ser um país pobre, não impedia que a gente fizesse um grande cinema. Então foi a maior descoberta para mim, quando eu vi o cinema do Birri, foi essa. Vendo também o “Aruanda”, do Linduarte, já os primeiros filmes. Aí conheci também o... como chama, o que fez o “Matraga”?... o Roberto Santos. Conheci o [Luís Sérgio] Person, o Capovilla, o Vlado também conheci, porque quando nós formamos o grupo de cinema, atraiu atenção do Jean-Claude Bernardet, do Capovilla, que fez uma matéria no “Jornal da Tarde” sobre a gente.
P/2 – Como chamava esse grupo?
R – Grupo Kuatro. E éramos, o Ramalho, eu, o João Silvério Trevisan, porque ele queria fazer cinema. Ele era novo. Quem tinha mais conhecimento, nesse momento, era o Ramalho e eu. Aí nós fizemos o grupo, entrou o Trevisan e o Cosme Bueno, que virou, depois, cenógrafo e diretor de arte, até morreu, há alguns anos. Era muito novo ainda. Mas o Cosme nunca se envolveu na atividade nossa. Nós compramos uma câmera 16 milímetros e começamos a filmar. Eu tinha um projeto ficção, aliás, passava numa favela. Engraçado. Mas nós começamos a filmar passeatas, eventos, Marcha da Família, aquelas coisas. Então, a paixão foi avassaladora. Agora, a minha paixão pela literatura era do mesmo tamanho. E tanto na literatura, quanto no cinema, eu fui descobrindo valores novos, que eu não conhecia quando vim para cá. Aí, me liguei muito à corrente do neorrealismo italiano, conhecia todo mundo ali, conhecia aqueles autores todos, o cinema russo: [Sergei] Eisenstein, [Vsevolod Illarionovich] Pudovkin, mais tarde o cinema de Dziga Vertov. Esses clássicos, na época.
P/1 – Nessa altura, o curso de Engenharia já foi para as calendas.
R – Eu continuei bem até o quarto ano. Não fui mal, não, até o quarto ano. Mas, no quarto ano, já caí bastante de rendimento.
P/1 – E abandonou?
R – Abandonei, porque eu não voltei mais depois de 64. Eu tentei voltar em 1965. Eu fui lá, tentando, e eles não tiveram problema nenhum. Eu tentei voltar, mas eu ia para a aula e me dava uma alergia louca, começava a pipocar. Era impressionante. Pipocava o braço, assim, de alergia. Aquela coceira louca, eu não conseguia ficar em aula. Não conseguia de jeito nenhum. Aí, depois de um mês, eu desisti de fato, falei: “Pô, isso aí não dá”. Uma pena, porque eu tinha pena da minha mãe, de ter gasto o precioso dinheirinho dela para me ver formado e de repente eu estar...
P/1 - Nesse momento nós tínhamos um cineasta em potencial e um militante político.
R – E um escritor. A militância política era séria. Porque eu já estava com um nível de assistência em outras organizações. Mas aí, quando eu tive que sair, fiquei no apartamento do meu amigo, do Márcio, eu comecei a pensar no futuro e aí eu achei que a literatura não ia me dar uma profissão. Eu não sabia como viver da literatura. Não tinha noção de como viver. Quer dizer: eu sabia como eram as coisas, conhecia, as pessoas não viviam de literatura. Até hoje não vivem. Escritor trabalha em jornal, dá aula ou vai ler livro, para dar opinião. O cinema eu achava que dava, pelo que eu já conhecia, porque havia uma ascensão de geração no cinema. E as pessoas estavam filmando. Então, eu via que tinha possibilidade, que tinha alguma fonte de financiamento. Aí eu resolvi optar pelo cinema. Nunca parei de escrever. Mas o que eu escrevia ficava em uma mala, ia jogando em uma mala. E logo nessa altura, depois que eu saí do apartamento do Márcio, em 64, em 1965 eu me casei. Precocemente. Eu tinha uma relação de namoro, mas foi muito precoce. Então, eu me casei em 65 e a gente alugou, eu já estava trabalhando...
P/1 – Como chamava sua mulher?
R – Assunção. Hoje ela é dona da produtora que eu criei, a Raiz Produções. Assunção Hernandes. Que é a mãe dos meus dois filhos: o Fernando Andrade, que é produtor de cinema e o Vinícius Andrade, que é o arquiteto. Aliás, o arquiteto que fez o projeto [Instituto] Moreira Sales [na avenida Paulista, em São Paulo]. E o Fernando é muito conhecido como produtor. Ele é muito bom produtor e está sempre produzindo filme de alguém. Mas aí alugamos um apartamento junto com amigos, eram dois casais, em cima do Ferro’s Bar, ali no Centro. Quer dizer: aí passei a ter uma moradia. Aí eu trabalhava. O Rudá, no começo, me levou para a Cinemateca. Depois ele pediu pra eu assumir a Sociedade Amigos da Cinemateca, em 65 ainda, que tinha atividade de cineclube, ali no Cine Coral, e que arrecadava dinheiro para a Cinemateca. A Cinemateca não tinha dinheiro. Daí eu fui pra lá, trabalhei lá, fiz vários festivais ali e várias “premières” de filme brasileiro, documentários e tal. Uma atividade maravilhosa. A Sociedade Amigos da Cinemateca como cineclube era uma coisa polêmica pra caramba, era o surgimento do Cinema Novo e tudo. E aí, pronto, eu comecei a trabalhar e já ganhava alguma coisa. Depois disso, com o golpe de 64, nosso Grupo Kuatro acabou, sem terminar dois filmes. E esse material desapareceu. Nunca encontramos esse material. Não sei o que aconteceu. Sinceramente, o Ramalho talvez saiba mais, porque o Ramalho era o mais organizado do grupo, mas o Ramalho também diz que não sabe. Então, não sei.
P/1 – Como é que você conheceu o Vlado?
R – O Vlado eu conheci logo que a gente fez o Grupo Kuatro, que a gente resolveu fazer a revista, primeiro a gente conheceu o Jean-Claude, que era crítico e tal. A gente conheceu o Jean-Claude, ele se interessou pela gente desde aquela época, acho que 1963, por aí, e aí foi uma coisa passando pra outra. Eu não lembro exatamente como é que foi, mas eu sei que naquele ano mesmo eu já conhecia o Vlado. Eu não sei exatamente quando foi, nada, mas o Vlado já fazia parte do círculo que a gente tinha, tanto eu, quanto o Ramalho. E eu me lembro dele quando o Birri veio a São Paulo, tenho uma vaga lembrança. Eu acho que eu não estava no casamento dele, mas eu acho que no trabalho com o [Thomaz] Farkas, o Vlado também acabou participando de algum filme. Então, a gente tinha uma relação assim. Agora, a gente ficou amigo, mesmo, depois. Amigo, mesmo, assim, como a gente foi, a gente ficou depois. Porque logo depois de 64, ele e o Fernando Jordão foram embora para a Inglaterra. Eles não achavam que iam conseguir fazer nada aqui e o Fernando e o Vlado tinham conseguido lá uma espécie de estágio na BBC e foram para Londres e ficaram lá. Não sei se 66, por aí. Então, logo no começo distanciou bastante, mas a gente ficou com laços muito bons de amizade.
P/1 – Se correspondiam?
R – Não, nada. Nem com o Fernando, nem com o Vlado. Nada. E eu só voltei a encontrar o Vlado e o Fernando em 1968. Então, na verdade, era uma amizade muito iniciante, ainda sem muita ligação, mas em 68 a coisa se precipitou, que aí é outra história, porque 68 eu era muito ligado ao movimento universitário – 67, aliás. Então, eu propus para o pessoal da UNE produzir um filme meu que eu queria fazer logo depois da lei da imprensa, da ditadura. E chamava “Liberdade de Imprensa”. Coincidiu que a UNE também estava apoiando a criação de um jornal dirigido pelo Raimundo Pereira. O jornal chamava... agora eu esqueci o nome do jornal, mas eu vou lembrar. Então, eu vou fazer o filme sobre a liberdade de imprensa e, ao mesmo tempo, o jornal da UNE. É um jornal mais de esquerda, mesmo. Aí eles toparam e o grêmio da Filosofia quem dirigia era... agora eu vou começar a esquecer o nome, um atrás do outro, porque eu esqueci um, vai virando... eu vou lembrar também. Mas o grêmio da Filosofia, o presidente era um cara de esquerda e ele era casado com a Lola, que era irmã da mulher do Renato Tapajós. Então, com isso, a gente conhecia, porque o Renato Tapajós... é preciso pular um pouco atrás... tinha filmado em super-8 uma coisa lá no Amazonas, numa palafita. E ele me procurou, me mostrou esse material e pediu para eu ajudar a montar, para discutir comigo o filme. Aí eu achei que dava, discutimos bastante e o ajudei a montar o filme super-8, chama “Vila da Barca”. Isso em 60 e quanto? 65, eu acho. Porque eu já estava no apartamento lá em cima do Ferro’s Bar. O Renato conseguiu dinheiro do grêmio de Filosofia para fazer o filme sobre estudantes e aí me chamou também para fazer com ele, porque ele tinha muito pouca experiência em cinema e eu, pouca experiência prática de fazer um filme e tal, mas eu tinha muito conhecimento teórico do cinema, da própria prática: o que é o filme, como filma, como monta, tudo. Aí eu fui fazer com ele o filme. Com isso eu entrei em contato com a faculdade de Filosofia e aí propus que houvesse... porque ele estava ligado à UNE e eu conhecia também o [José] Dirceu, esse pessoal mais novo que estava surgindo ali. Eu sei que acabou levando a discussão para UNE e a UNE, então, acertou com o grêmio, para o grêmio financiar. O grêmio financiou, me deu um dinheirinho, assim, para filmar, e eu fiz o “Liberdade de Imprensa” em 1967. “Liberdade de Imprensa” é um filme muito importante para mim. Não sou eu que digo, não, mas o Jean-Claude, que é importante também para o documentário brasileiro, porque ele é um cinema completamente inovador. Um cinema onde eu dizia que a realidade, como tal, é um fetiche. E que você, para ver o que ela está escondendo, o que está por trás daquela forma, era preciso mexer com ela. Então, o Jean-Claude chamou isso de “cinema de intervenção”, que é o que se inaugura com o “Liberdade de Imprensa”. O que era, por exemplo, cinema de intervenção? Eu pegava livros sobre a questão da imprensa, na rua, e levava para as pessoas lerem. Filmava a distribuição, filmava eles lendo, filmava eles falando o que tinham lido. E depois eu perguntava: “O que você acha disso?” Quer dizer: eu criava uma imprensa livre ali. Aí eles davam a opinião deles. Sempre, muita coisa, assim. Por exemplo: eu fui conversar com um cara que tomava conta de uma banca de jornal e era um sujeito, já com uma certa idade, negro, e ele começou a conversar e era extremamente reacionário. E ele era operário do “Estadão”. Nas horas vagas ele trabalhava na banca. Era do Estadão. Aquilo me bateu, assim, feito choque. Como é que pode um cara operário, negro e ser reacionário desse jeito? Era a favor da intervenção americana, completamente reacionário. E eu fiquei intrigado com aquilo. E o filme acabou mergulhando nesse personagem. Ele virou o personagem principal do filme, que era a minha grande pergunta: “Como é que a pessoa que sofre em razão do sistema, pode ter um apoio tão resolvido, a favor desse sistema, que humilha?” Ele falava assim: “Eu moro na periferia” e eu falei: “Então eu vou lá ver onde o senhor mora”. Fui lá na periferia. O filme “Liberdade de Imprensa” começa com isso: ele, na frente da casinha dele de periferia, falava: “Essa aqui é a minha família”, aí mostrava. “Essa aqui é a minha casa, eu estou fazendo essa casa há sete anos.” Uma casinha daquelas bem pobre, mesmo, com poço na frente. Aí, em seguida, ele fala uma coisa completamente reacionária, assim, logo de cara, no filme. É um documentário. Ao contrário, não eram os meus desejos. Ao contrário do tradicional documentário. Não eram meus desejos. Eram os conflitos, até dos meus desejos, com a realidade. E o Jean-Claude chamou esse cinema... acabou ganhando essa alcunha de “cinema de intervenção”. Tem o livro sobre isso, que tem até um debate, o Jean-Claude participa, televisão, tudo. É muito interessante.
P1 – E como você foi trabalhar na TV com o Vlado?
R – Mas aí é o seguinte: “Liberdade de Imprensa” foi apreendido no Congresso da UNE, e foi proibido, em 68. O filme é final de 67. O filme ia ser distribuído pela UNE. Aí o filme virou maldito, acabou o filme. Eu não podia falar do filme. Porque estava lá no Exército, depois da invasão. E eram anos barra pesada, 68, quando foi apreendido. Mas enquanto estava apreendido, o Joris Ivens, que era nosso grande ídolo, documentarista, veio ao Brasil meio na surdina e tinha um contato, que era o Farkas. Aí foi para a casa do Farkas e falou que queria ver o que estava acontecendo no cinema. Aí o Farkas falou do “Liberdade de Imprensa” e alguns outros filmes e ele viu os filmes e ficou apaixonado pelo filme. Ficou ligadíssimo no filme e foi embora e falou para o Farkas que ele tinha gostado muito do “Liberdade de Imprensa” e que ele ia ver o que podia fazer. Aí logo veio o convite do pessoal de Leipzig, para competir lá no festival, que era o maior festival documentário do mundo. Era o grande festival. Saio levando o filme clandestinamente e vou para Leipzig com o filme. Chega em Leipzig, o Joris Ivens estava lá, o filme está lá programado e não estava no programa final. “Não, está programado, vai passar”. E nada. Ia passando os dias e nada. Aí, uma hora, o próprio latino-americano que estava lá fala: “Pô, João, esse negócio está errado. Vamos marcar uma reunião com o [Wolfgang] Harkenthal, que era o diretor do festival. O Harkenthal usou uma técnica bem de ditadura: ele marcou acho que às cinco horas da tarde no escritório dele lá em Leipzig e a secretária dele distribuía vodca para nós. Então, todo mundo tomando vodca. Ele chegou só lá pelas seis e meia. O pessoal meio bêbado, já. E ele falou – mas eu não bebo, então bebi, experimentei, não sou de bebida: “Houve muita discussão, o filme estava programado, desprogramado, entra, não entra, mas a decisão do partido é que o filme não pode exibir, porque fala de uma questão que não é resolvida entre nós”. Eu fiquei desmontado. Aí já soube, em seguida, que o Joris Ivens mandou dizer que estava puto da vida, que ia embora. E ele era o grande nome do festival. E foi embora. Pegou, fez a mala dele e foi embora. Não ficou nem um dia a mais. E mandou dizer o seguinte: para eu ir para a França e, se eu pudesse, deixar a cópia do filme lá, que ele ia passar o filme num programa de esquerda, que é “Des États Généraux”, na França. Aí eu fui para a França e marquei um encontro lá com a Marceline, que o Joris dizia que estava doente lá, ele não estava bem, estava bem doente. Aí a Marceline foi me encontrar num bar lá no Quartier Latin. 68, isso. Final de 68. Estamos lá no bar tomando um café e conversando e uma hora a Marceline falou assim: “Fala mais baixo”. Aí eu falei: “Pô, mas por que falar mais baixo?” Ela fez assim, olhou, tinha um cara em volta da gente, um policial em volta da gente, tentando escutar o que a gente conversava e a rua, aí eu prestei mais atenção, cheia de militares ali, uma das ruas lá do Quartier Latin, que eu não me lembro mais qual é. Até acho que eu sei, mas eu não sei o nome da rua, mais.
P/1 – A Marceline era companheira do Joris?
R – Não, eu estava com a mulher dele.
P/1 – A mulher dele.
R – A mulher do Joris Ivens, a Marceline Ivens. Aí ela ficou com a cópia e eu tinha outra cópia, uma segunda cópia, e fui para Londres para encontrar o Vlado e o Fernando. A gente tinha continuado a comunicação, mas não tinha carta, essas coisas, não tinha essa facilidade.
P/1 – Esse encontro em Londres o que resultou? Você levou uma cópia do filme para ele?
R – Levei uma cópia e eles disseram que ia passar o filme no programa deles, que era um programa ligado a América Latina. E eu vou te dizer uma coisa: eu não tenho certeza se passaram, mas era a ideia. Mas eles viram o filme. E eles ficaram muito entusiasmados com o filme e que se encaixava na ideia deles, de fazer o telejornal no Brasil. Eles viram, ali, a possibilidade nova de fazer uma coisa. Aí conversaram comigo, para eu fazer aquilo no telejornal, que seria uma coisa nova, para filmar e fazer especiais no telejornal que eles queriam fazer na volta ao Brasil. Então, eu entrei para a história junto com o Fernando e o Vlado, lá em Londres. Aí vim embora para o Brasil e o Vlado, na época, perto do AI-5, e com aquelas notícias péssimas. Precisa dizer que até lá em Paris era um sofrimento, porque encontrava vários amigos que estavam exilados e era uma boataria terrível no final do ano, em dezembro. Boataria incrível sobre o novo golpe no Brasil, aquela coisa toda, a crise e muitos deles fazendo autocrítica e outros fazendo mais crítica ainda. O Partidão era o que apanhava mais. Era a tábua do batedor. Só porrada em cima. Mas muitos deles já fazendo autocrítica e achavam que a gente tinha razão, porque é preciso lutar pela democracia e não pela revolução socialista – aquela discussão tradicional. Mas, em geral, o pessoal muito desesperado. E aquilo me marcou demais. Aí eu voltei para o Brasil, o Vlado foi para a Itália, quando houve o AI-5. Aí eu também não sabia se vinha para o Brasil ou não. Mas, nessa altura, a gente já era mais amigo, mais próximo, mesmo. Tanto do Fernando, quanto do Vlado. Aí o Vlado demorou um pouco, mas chegou e a gente começou a ter contato. Eles não conseguiram fazer o programa, por razões políticas, quando vieram. Aí o Vlado foi trabalhar em outra coisa, em publicidade. Ele odiava publicidade, tinha horror a publicidade, mas isso já foi em 69, acho. Quando é que entrou o Paulo Egydio? Não, 74.
P/2 – O Vlado fica acho que 69 e 70 em publicidade e em 1970 ele entra na revista “Visão”.
R – É, aí ele foi para a revista “Visão”, tanto que eu colaborei com ele na “Visão”. Eu escrevi alguma coisa, inclusive uma coisa que ficou famosa na revista “Visão”: quando passou aqui o filme “A Classe Operária vai ao Paraíso”, o Vlado me chamou e pediu para eu escrever sobre o filme. Aí eu sugeri a ele que eu ia conversar com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que era um cara sindicalista, meio pelego, o Paulo Vidal. Aí o Vlado gostou. Eu fui lá, conversei com o Paulo Vidal, fiz a entrevista com ele e não anotei nada. Eu falei: “Paulo, eu vou sugerir uma coisa para você. Eu entendi tudo” – ele gostou da conversa comigo – “e eu sou capaz de resumir um artigo com o que você me falou. Se você topar eu faço isso e mando pra você. Se você gostar, põe seu nome e a gente publica. Se você quiser alterar alguma coisa, você me fala que eu altero e vou mexendo”. Aí eu fui para casa, escrevi o artigo politizando bastante, porque falava que a classe operária vai ao paraíso, das mudanças nas relações de trabalho e falando coisa parecida com arrocho salarial. Eu fui chamando para o Brasil a questão da conversa com ele e ele entrou. Aí eu escrevi, ele gostou, assinou e saiu publicado feito um box grande na revista e esse box fez o maior sucesso, porque o pessoal xerocava aquilo, era novidade absoluta. E na universidade era muito comum ter professores e os alunos terem cópia. Fez o maior sucesso. Porque falava no arrocho salarial, das dificuldades de relação de classe, papel do sindicato, aquelas coisas.
P/1 – João, como era a relação com o editor Vladimir Herzog? O editor.
R – O Vlado era de uma exigência... eu vou falar uma coisa que eu falo como amigo dele: o Vlado era um chato de galocha, entendeu? Porque era superexigente, assim nos detalhes, na forma de falar. E de uma exigência ética profunda. Não era fácil. Ele tinha muita crítica, sempre, aos textos. Eu até que me saía bem com ele, mas ele era muito exigente. Mas a exigência maior dele era a ética. Eu tive passagens com ele, já na televisão, que mostravam isso. Por exemplo: no programa “A Hora da Notícia”, que foi finalmente criado, o Fernando era o diretor, o Vlado era editor e eu era o diretor de especiais, repórter especial. Aí entrou o Fernando Morais, o Georges Bourdoukan, o Marquito [Marco Antonio Rocha], uma porção de gente boa lá dentro. Eu era totalmente independente, que era a minha condição também, mas aí eu saía com a minha equipe, sem nem saber o que ia fazer. Às vezes alguém me sugeria, o próprio Fernando, o próprio Vlado, ou alguém lá da redação sugeria alguma coisa. Se eu gostasse, ia fazer. Mas, em geral, era da minha cabeça mesmo. Aí tinha um problema de despejo num conjunto habitacional perto de Jundiaí e era um despejo com centenas de famílias, porque a acusação é de que não pagavam. E eles dizendo que pagavam. E aquele quiproquó. Então, estava uma crise lá, ameaças e tal. Aí eu achei – não tinha outro assunto – interessante, fui para lá e filmei. Mas era uma confusão total, tanto dos moradores, quanto da prefeitura, da polícia, da Caixa [Econômica Federal]. Era uma confusão louca. Eu não conseguia desvendar exatamente o que estava acontecendo. Aí eu filmei coisas bem interessantes. Eu estava lá [na redação] e num momento raro eu cheguei para o Vlado e falei: “Pô, Vlado, eu filmei e tem coisa boa. Olha, eu não consegui entender”. E aí ele falou: “Você não pode transmitir um problema com dificuldade de entender, sei lá, de cem, duzentas famílias, para milhões de pessoas; transmitir uma confusão”. Nunca vou esquecer isso. Aí eu falei: “Porra, legal, vou começar, então, o seguinte: ‘Veja que uma confusão ameaça quase duzentas ou trezentas famílias’”, eu não lembro mais. A montagem já começa com isso: a confusão ameaça as pessoas, entendeu? Mas você vê a preocupação dele na lata. Não pode pegar uma situação e transmitir uma confusão para milhões de pessoas. Ele tinha um sentido ético, profissional, muito apurado. Não era brincadeira, porque eu e ele brigávamos muito, a gente brigava muito.
P/1 – Por que motivos?
R – Sempre éticos ou estéticos. E eventualmente políticos; menos, mas também. Então, quando não entrava em acordo, na “Visão”, e quando a análise de um filme qualquer entrava em desacordo, aí a discussão era brava, porque ele era terrível. Ele era desses que não largava a palha de jeito nenhum. E a gente brigava bastante. Eu, depois do “Liberdade de Imprensa”, dei um salto ali, [mas] teve uma época em que eu fiquei muito mal, depois de 68, depois da volta minha da Europa. Fiquei muito mal e fiz dois filmes completamente desesperados. E uns filmes completamente diferentes da minha formação, que era um filme de três histórias, em que a minha história chama “O Filho da Televisão”. Que, aliás, é muito engraçada. E depois eu fiz um outro filme completamente delirante, que chama “Gamal”. Mas o filme não é ruim. Ganhei o prêmio de diretor revelação, que era o prêmio nacional da crítica, que era o [Prêmio] Air France, que me deu uma viagem para a Europa, para a França. Não é que o filme é ruim, mas era completamente delirante, uma subjetividade assim incontrolável, personagens estranhos, malucos. O cara que chamava Gamal, que andava pela rua quase nu, tinha uns discursos. Um filme bastante louco. Mas o contexto do filme era o jornalista, que era o [Paulo Cesar] Pereio, casado com a Joana Fomm no filme, e três demônios – inclusive o Fernando Peixoto era um deles – que eram os três demônios de uma peça de teatro do Zé Celso [Martinez Corrêa], que era, acho, “A Grande Cidade”. Não era “A Grande Cidade”, era uma peça... o que era a peça? Agora eu não me lembro mais, mas tinha esses três personagens meio demoníacos. E eu coloquei esses três personagens, inclusive, da peça, lá no filme. E esses personagens perseguiam o jornalista e o obrigavam a escrever, enfiavam o jornalista numa máquina de escrever, enfiavam os braços por baixo e eles mesmos escreviam. E esse jornalista, o Pereio, completamente perturbado e perseguido por esses três, tentando fugir deles. Então, o contexto não era ruim nada, mas eu estava completamente perdido, mas as imagens são fortes, o filme é forte. E o Vlado era completamente contra esse filme. Aí, de vez em quando, vinha esse filme à pauta e a gente brigava muito. Porque eu também não queria ficar com esse filme na minha história, mas eu defendia o direito de ter feito. E a gente brigava tanto que eu lembro da Clarice descer a escada da casa deles e perguntar se a gente estava brigando. Falava: “Nossa, estava achando que vocês estavam brigando de tapa aqui embaixo”. Mas aquilo não alterava nada, a gente continuava superamigo, o Vlado tinha uma confiança enorme em mim, porque quase todos os dias tinha um especial meu e era uma marca do programa. O que tinha de novo no programa era essa marca: um cineasta fazendo um documentário por dia. E era o cinema intervenção. Eu posso contar mil exemplos, mas vou pegar um: quando o [general-presidente Emílio Garrastazu] Médici indicou o [Ernesto] Geisel para sucedê-lo, veio o Fernando Morais e falou: “Olha, Batistério, olha a trolha”, na linguagem dele – ele me chamava de Batistério. E eu fui ver lá o telegrama dizendo assim: “Presidente Garrastazu Médici indicou para seu sucessor o general Ernesto Geisel, quatro estrelas, cinco estrelas, não sei o que e tal”. Quatro estrelas. Aí tinha uma história. Eu falei: “Me dá esse telegrama aqui”. Tirei da mão dele, peguei minha equipe e fui para ali perto e falei: “Eu vou no lugar mais perto que tenha movimento”. Aí fui até a Lapa. E eu não gosto de câmera no tripé em documentário. Mas ali eu falei: “Põe um tripé, põe a câmera ali e me dá o telegrama. Pode ligar”. Aí ligou a câmera, passou uma mulher, eu falei: “Senhora, estamos fazendo um documentário, a senhora pode ler para mim isso aqui?”. Ela pegou e falou: “Presidente Garrastazu Médici...”, já olhou, assim, pra lá, embicou e falou assim: “Não, olha, eu estou com pressa, meu filho está me esperando”. Era o que eu queria. Aí passava um operário, passou um cara de macacão, dei para ver, leu a metade, olhou assim e falou: “Não, acho que eu não estou entendendo”. Chegou à noite, o programa é o seguinte: “Hoje o presidente Garrastazu Médici indicou para seu sucessor o general Ernesto Geisel, falou sobre ele e tal. Nossa equipe foi para a rua para ouvir a população”. Aí entrou uns três minutos de um atrás do outro se recusando a ler quando percebeu o que era. Era um retrato do medo das pessoas, sabe? E entrava no programa como se fosse uma coisa normal. Nossa equipe foi ouvir ali as pessoas. Era o cinema de intervenção. Quer dizer: tinha uma ideia, já, de que eles iam ter medo de ler. Eu queria pegar a reação deles lendo aquilo. E era batata. Todo mundo, as pessoas se recusavam a ler, davam desculpas. Quando percebiam o que era, davam desculpas.
P/1 – Isso não criava algum tipo de animosidade contra vocês? Afinal de contas, estamos falando de uma TV pública.
R – Pois é, mas era todo dia. Eu era ameaçado de ir embora todo dia. Não só nesse, mas o tempo todo eu era ameaçado de ir embora. Porque eu inventava o tempo todo isso aí. Eu não tinha assunto, e um dia peguei uma placa e mandei escrever assim: “Queixas e reclamações”. Fui para Avenida Ipiranga com a [praça da] República, peguei a placa e coloquei na árvore, e mandei também pôr no tripé a câmera. Eu acho que é a origem do programa da TV “Roda Viva”. Não, não é esse, é outro. A câmera fixa e eu peguei o microfone e ficava assim, parado. Aí começou a juntar gente, olhando, curioso, vai virando uma roda, até que um falou o que eu esperava: “Está filmando?” Falei: “É, está, para a TV.” “Para onde que é?” “É para a TV Cultura.” “Mas eu posso falar aí?” “Pode.” Aí o cara: “Eu queria falar do nosso bairro lá, que é um conjunto habitacional, eles prometeram uma escola, asfaltar a rua e criar um ponto de ônibus e não fizeram nem ponto de ônibus, não tem escola nenhuma, as casas estão rachando”. Aí o outro falou: “Eu posso falar também?” Era só pauleira. O que era a minha visão? Que a população não tinha meio, não tinha acesso aos meios. Não tinha como fazer essas coisas. O que eu, sem dizer nada, ofereci para eles, só ficando com o microfone assim, como oferta, oferecendo para eles para falar. Isso criou quase um programa, porque de vez em quando eu estava sem assunto, ia lá e fazia o “Queixas e Reclamações”. Posso contar centenas de histórias desse tipo. Algumas bem graves. Tem uma, por exemplo, que eu acho importante lembrar, que chama Operação Tira da Cama. Logo que eu comecei lá, um dos primeiros programas meus, lá em 1972. O menino lá do rádio-escuta falou assim: “Vocês conhecem? Alguém já viu aí essa Operação Tira da Cama?”. Aí eu já tinha visto na TV, um horror. “Eu conheço, o que houve?” Ele falou: “Vai ter uma outra. Não pode falar nada. Eu recebi de um amigo meu, que fica sabendo as coisas”. Aí eu me interessei na hora: “Onde é?” Ele falou: “Eu vou passar para você tudo”. E era uma ação individual minha. Chamei minha equipe e falei: “Cadê o cinegrafista? Queria conversar com o cinegrafista”. Aí tinha uns três, perguntei: “Quem de vocês já filmou Operação Tira da Cama?” Um deles falou: “Eu já filmei”. Eu falei: “Você entra com a polícia, não é?” Ele falou: “É, eu entrava com a polícia”. Falei: “Tá bom, então você vai filmar hoje. Pega sua câmera, seu assistente e vai lá, se relaciona... você sabe como fazer?” Ele falou: “Eu sei, já participei”. Falei: “Então tá bom, vai lá e filma junto com a polícia tudo que você puder filmar”. “Você não vai?” Eu falei: “Não vou. Então vai”. À noite, ele foi. Qual que era o meu projeto? Ele ia filmar lá do jeito que eles costumam fazer, só com os cinegrafistas, entra junto com a polícia, aquela loucura de cachorro entrando nas casas, refletores e eles marcando – parece coisa de nazismo – com um X as casinhas visitadas, crianças tampando o olho, um terror. Eles arrombando porta, gritando, cachorro, refletores, armas, tudo. Acabou, eu cheguei de manhã, fui ver o material, falei: “Tá bom, agora eu vou com a minha equipe lá”. Fui com minha equipe lá na favela, entrei e fiquei lá. O Jean-Claude é que fala que o meu cinema é “de roda”. Fiquei lá fazendo aquela roda. “Você vai filmar?” “Pois é. Ontem teve essa operação aqui.” Aí eu pedia para eles contarem o que tinha acontecido. Então, o que eles contavam? “Eu estava deitado, de repente a porta arrebentou.” Criança falou: “Eu estava dormindo, tinha um cachorro com a pata na minha cama”. Era a informação do invadido, não a visão do invasor. E aí esses depoimentos todos, foi fazendo aquela roda, no final eles começaram a mostrar carteira de trabalho, para mostrar que eles trabalham, explicando por que moravam na favela. Eu peguei, montei no dia seguinte os depoimentos, ilustrados pelas cenas que eles contavam. Aquilo parecia uma revolução. Por que o que eu estava dizendo ali? Que, numa invasão de favela, a autoridade na informação é o favelado. E não o Corpo de Bombeiros, como a imprensa fazia, o secretário de Habitação...
P/1 – A fonte oficial.
R – É. Eles confundiam a autoridade de informação com a autoridade institucional. Isso não é liberdade de imprensa, isso é ditadura. Então, logo de cara, os primeiros dias, o “Hora da Notícia” já era um rompimento.
P/2 – Como era essa relação editorial, depois, para pôr no ar, entre você, o Vlado e o Fernando?
R – Eu não me metia muito, não. Minha preocupação era fazer. Mas eu vou falar para você, eu confesso: era a parte brilhante do programa. Então, o Vlado, que era editor, achava um lugar de encaixar, porque geralmente eram três, quatro, cinco, até sete minutos de especial.
P/1 – Você tinha que negociar essa minutagem com eles, no processo da produção?
R – Tinha. Mas eu nunca tive nenhuma restrição, nada. Geralmente tinha um espaço grande dentro do jornal. Porque era uma coisa viva. Acabou de passar agora na TV Cultura, no programa “Opinião Nacional”. Quando eles passaram um pedaço de algumas coisas que eu fiz, de migrantes e tal, porque a população os chamava de marginais, debaixo do viaduto. Aí eu falei: “Vamos lá ver quem são esses marginais”. E meu feeling era esse: que não era marginal porra nenhuma. Fui para lá, eram migrantes recém-chegados. Aí eu tenho entrevistas com eles e tinha um cara de pastinha, engravatado, isso em 1973, eu olhei e falei: “Esse cara pensa igual o [José Carlos de] Figueiredo Ferraz [prefeito de São Paulo entre 1971 e 1973]”, que falava que a cidade precisava parar, que [tinha] muita migração para cá e tal. “Ele vai falar igualzinho o Figueiredo Ferraz.” Ele era um executivo. Peguei o microfone e passei para ele. Aí ele começou a falar: “Porque eu estou vendo você filmar aqui e eles vieram para São Paulo, mas eu acho que eles não deveriam vir para São Paulo, porque, afinal de contas, São Paulo já está muito saturado”. Aí o chefe da família, eu o tinha chamado, peguei o microfone e passei para o chefe da família: “Ele está dizendo que eu não devia vir porque não sabe como é que é lá, que não arranja trabalho e, quando trabalha, ganha uma miséria. Trabalhar só leva doença, mordida de cobra e não tem nada, depois fica sem trabalho também”. Aí passava para cá: “Não, mas aqui...” E eram sete minutos! E era a mesma coisa: coisa de intervenção. Depois eu montei um filme, chamado “Migrantes” e, com esse filme, eu ganhei o principal festival de documentário do Brasil, que é na Bahia, a Jornada de Documentários da Bahia. Que era o grande festival de documentários do Brasil. E eu ganhei o prêmio de melhor filme. Mas eu partia da notícia do jornal, de que os moradores da região reclamavam da presença dos marginais debaixo do viaduto. Eu falei: “Ah, é? Vamos ver quem são esses marginais”. E aí revelava toda a questão social.
P/2 – E aí, nessa época, nesses projetos paralelos, por exemplo, a participação do Vlado no “Doramundo”, que você tinha a produtora Raiz e trabalhava no “Hora da Notícia”...
R – Mas aí precisa determinar o seguinte: a gente vivia em crise. Eu era mandado embora quase todo dia. E o Fernando Jordão que ia lá segurar. Então, essa crise vai se aprofundando. E o espaço da gente foi ficando menor. Eu, por exemplo, tive uma época que era proibido de filmar, tinha que só ficar dando assistência para os repórteres. Então, chega uma hora que estourou. Aí houve uma intervenção no “Hora da Notícia”, todo mundo foi demitido, eu mesmo fui demitido, fui para uma cidade, na casa de um amigo no litoral, fiquei lá uma semana, o Georges Bourdoukan, que era chefe de reportagem nessa época, foi preso. Como ele foi preso e no dia seguinte eu fui demitido, resolvi não ir para casa. Porque o Bourdoukan foi demitido, foi para casa e foi preso. Aí eu briguei com o interventor na sala, foi feio, uma briga mesmo, eu o mandei à puta que o pariu e falei para ele: “Vocês não vão me achar”, porque aí já estava combinado. Eu fui embora. Aí, o que acontece? Ficamos desempregados: Fernando, eu, Vlado, desempregados. O Fernando foi convidado para ir fazer o “Jornal Nacional” na Globo, em São Paulo. E me indicou – porque eles queriam fazer especiais – para fazer os especiais. Eu fui e então criei o setor de especiais da Globo em São Paulo. E eu, principalmente, fazia o “Globo Repórter”, desde o começo. Então era um cineasta, porque o “Globo Repórter” era de cineasta, tinha o [Eduardo] Coutinho, o Walter Lima, no Rio, e aqui em São Paulo eu na Globo e mais o grupo do Guga [de Oliveira], irmão do Boni. Aí o [Maurice] Capovilla fez filme lá, o Hermano [Penna], acho que o [Jorge] Bodanzky também fez, algumas pessoas fizeram. Mas aí eu e o Fernando estamos na Globo, muito bem, porque eu vinha com a fama boa, de repercussão do “Hora da Notícia”, e eu comecei a fazer o “Globo Repórter” e o Fernando [na realidade, Vlado], então, não tinha outra coisa. Ele [Vlado] começou a fazer publicidade, voltou para a publicidade, mas ele estava louco por cinema. Aí eu tinha a produtora Raiz. Ele queria entrar na Raiz, ficar sócio da Raiz. Eu não quis. Eu achava o seguinte: era uma produtora independente, sem recursos, sem nada, ele ia pôr dinheiro dele, de fundo de garantia, na produtora, e eu não aceitei. Falei: “Se for fazer alguma coisa, faz pela Raiz, faz pela produtora da Raiz, mas não precisa entrar de sócio, acho que não tem sentido”. Aí ele resolveu ir lá para a Bahia fazer uma pesquisa sobre Canudos.
P/1 – O Vlado?
R – É, o Vlado. Ele foi lá, ele estava fazendo a pesquisa sobre Canudos para duas pessoas, que era eu mesmo e o Vladimir de Carvalho. Mas a coisa encaminhava para mim mesmo. Eram dois documentaristas que ele gostava e então ele foi, fez uma pesquisa boa e voltou. Estava sem trabalho. E eu tinha lido o “Doramundo” [de Geraldo Ferraz] quando eu fui para a Bahia com o “Migrantes”, para o festival da Jornada de Documentários. O filme ganhou o prêmio de melhor filme e eu, no aeroporto, comprei o livro “Doramundo”. Achei interessante e era, naquela época, do marido da mãe do Rudá, da... como que é o nome?
P/2 – Patrícia Galvão.
R – Pagu. Patrícia Galvão. Era do marido dela, um jornalista e crítico de arte. Eu gostei muito do livro, falei com o Rudá, consegui uma autorização para roteirizar, e me deu a ideia de chamar o Vlado, porque o Vlado estava louco pelo cinema. Aí chamei o Vlado para fazer. Ele gostou demais, pegou e começou. Leu o livro e comentou que o livro era muito abstrato, que precisava trabalhar muito e encontrar “a terra” do livro, da história, e começou a ir lá para Paranapiacaba, onde a história se passava. E era baseado em histórias reais. Mas o livro, realmente, tem uma linguagem mais poética e tem menos interesse na realidade ali. Aí o Vlado foi para lá e uma vez eu fui com ele, que foi, inclusive, uma vez com um momento importante, porque, no caminho, ele falou: “Eu estava querendo falar uma coisa com você, mas não sei.” Eu falei: “O que é que foi?” “Não sei.” Eu falei: “Desembucha, fala logo”. Aí ele falou assim: “Eu conheço um pessoal aí do partido”. Eu falei: “Que partido?” “Do PCB, do Partidão. E eu queria saber se você não quer entrar no Partidão”. Porque ele estava lá em Londres e eu militante, ele não sabia que eu era do partido.
P/1 – Há muito tempo.
R – Muito tempo. Aí eu falei: “Porra, Vlado, eu sou do partido desde 62, sei lá, 63.” “Você está brincando?”. Mas eu também não sabia que ele estava com essa ligação com o partido, porque ele mantinha reservado e eu, também, reservado. Mas aí, de repente, essa conversa resolveu dois idiotas, porque um não sabia que o outro era do partido. Foi engraçado, mas não teve nenhuma consequência, nada. Eu não queria entrar na chamada “base de jornalistas” porque eu não era jornalista, eu era cineasta. Não me considero jornalista. E não entrei, fiquei bem independente, ligado ao partido. O partido mantinha relação comigo com um assistente: mandava alguém do Comitê Central ou estadual, de vez em quando, me procurar, levar material, conversar e tal.
P/1 – Mas, nesse ínterim, você e Vlado mantinham conversas, análises de conjuntura, tinham discussão política?
R – Tinha muito, mas não ligação política. Não tinha ligação com o partido. E a gente era muito de acordo com tudo aquilo: com a opção pela luta democrática; os dois tínhamos uma visão crítica sobre o projeto da luta armada. A gente estava superafinado com relação à política. Mas não sabíamos desse fato, de tanto ele quanto eu já éramos militantes há algum tempo. E chamar de militância... é ligado. O Audálio [Dantas] me entrevistou muito, em geral, sobre o Vlado, e eu contei para ele esse episódio. Aí ele escreve no livro que eu perguntei: “Pô, mas você está no partido?” Aí ele fala assim: “Eu sou filiado ao partido, sim”. O Vlado nunca falou isso, essa coisa, assim, formal: “Eu sou filiado ao Partido Comunista”. Nunca falou isso. Eu resolvi não colocar nenhum problema no livro e deixei pra lá, mas eu acho que é pesado demais para ele, muito, porque filiado é quando você está lá e assina, é membro, você está meio aliançado com o partido. Nada. Era uma ligação com o partido, quase de uma militância na clandestinidade. Tem uma ligação, assim, como todos nós. Eu também era assim naquela época. Eu tinha acabado a fase em que eu era militante mesmo e, se tivesse que assinar filiação, eu teria assinado e tudo, falado em nome do partido. Não era o caso do Vlado. E nem era o meu caso, nessa época. Mas era ligação fluida, mais de concordância, de apoio, do que de militância, de falar que a gente era filiado. E o Vlado não usaria, jamais, isso. Aliás, foi a mesma reação que eu tive quando saiu o bilhete que o Vlado rasgou na prisão, que eu li, e ele fala assim: “Fui aliciado”. Pode parar. O Vlado jamais escreveria isso, jamais. Eu conheço muito o Vlado, ele jamais escreveria uma coisa dessas. Ele podia falar: “Fui convidado, conversou comigo sobre isso”, mas “fui aliciado”? Essa é uma palavra policial, ele jamais faria isso. Então, aquele texto alguém escreveu ou alguém ditou para ele escrever, que foi o que aconteceu. Ele não conseguiu escrever, não conseguiu se liberar para escrever o que eles queriam, aí ele falou: “Então dita”. Os caras ditaram e ele escreveu. Porque o texto ele não escreveria jamais, que o Rodolfo aliciou ele para o partido.
P/1 – É farsa em cima de farsa. Mas, como é que você soube dessa notícia?
R – Eu estava em casa. Eu tinha estado com o Vlado acho que, talvez, dois dias antes, porque já tinha muito boato, já estavam presas algumas pessoas, jornalistas, porque a repressão resolveu atacar a área de imprensa e as pessoas ligadas ao partido. Então, o [Paulo] Markun, o [Rodolfo] Konder, aquele pessoal todo. Eu com o Vlado e o Vlado falava: “Eu não vou falar nada. Eu não sei de nada, não vou falar nada” – na conversa que eu tive com ele um dia antes, lá na casa dele. No dia seguinte, estou em casa, não tinha nada para fazer, aí me ligou a Fátima [Pacheco Jordão]: tinha acabado de saber, porque o pessoal da TV Cultura foi lá com a Clarice – a Fátima estava com a Clarice – comunicar que o Vlado estava morto e que eles diziam que ele tinha se suicidado. Foi logo em seguida. Eu saí e fui para a casa e, na porta, o Fernando Jordão conta isso, a gente se encontrou, se abraçou, chorou muito e começamos a falar: “Tem que levar o corpo para o sindicato”. O Fernando era diretor do sindicato. Ali na porta, ali naquele corredor da entrada [da casa de Clarice e Vlado]. O Fernando, inclusive, fala desse episódio do nosso encontro. E aí a gente passou a falar que precisava levar e a Clarice topou na hora, de levar o corpo para o sindicato. Mas foi decidido ali, foi uma coisa que saiu na hora, ali, quando a gente chegou lá na casa do Vlado. Aí a Clarice me pediu para ir até o sítio deles... como é que chama a cidade lá?
P/2 – Bragança.
R – É, o sítio de Bragança. Que eu conheci também. Os meus filhos tinham a mesma idade dos filhos do Vlado. E estudavam na mesma escola. Eram muito amigos. Os meus filhos viajavam com o Vlado e a Clarice, os filhos dele viajavam comigo, iam para essas aventuras aí, eram muito amigos. Eu sabia onde era o sítio. Aí eu fui para lá. Para descrever mais friamente, era impressionante: eu entrei no carro e fui, chorando, desabado, até lá, eu não conseguia parar. Até Bragança. Eu não conseguia me segurar. Quando eu cheguei lá, eles foram me atender, a mãe da Clarice olhou para mim e falou: “Mataram o Vlado, não é? O que aconteceu com o Vlado?” Aí, pronto, avisei e voltei para São Paulo. Então, é isso: uma perda. Eu vou dizer que os amigos do Vlado ficaram muito tempo com dificuldade em falar do Vlado. Eu mesmo. Passados os anos, a gente falava: “E o Vlado?” Travava. Os amigos. Eu até cheguei a analisar um pouco isso: a gente ficou com muita culpa da morte do Vlado, porque todos nós estávamos fazendo uma coisa que o sistema não conseguia brecar, porque a gente fazia de um jeito que era difícil censurar. Por exemplo: essa história que eu contei do Geisel, a reportagem não está falando nada, não está criticando, não está nada. Tinha uma habilidade muito grande. Se eu for contar quantas vezes eu fiz esse tipo de coisa, cada uma inventando um jeito, a gente parece que estava brincando com o perigo. Nós não estávamos brincando. Nós estávamos em um trabalho com muita consciência. Estava dentro do limite, ali, do que a gente podia fazer. A gente era muito sério, muito rigoroso. E o Vlado em primeiro lugar: uma preocupação em não fazer nenhuma loucura no jornal. Porque uma coisa é fazer o que eu fiz sobre a nomeação do Geisel, outra é o repórter ir lá: “O que você acha de nomear outro general, mais um general?” Aí não era nada, não tinha significado e virava uma provocação. Essa criatividade era fundamental. A gente tinha um cuidado enorme. Principalmente o pessoal fora da gente, fora do grupo principal. E o Vlado, principalmente. Muito rigoroso para saber o que a gente estava fazendo, como a gente estava conseguindo passar as coisas sem que a gente virasse um pregador revolucionário.
P/1 - Não cabia porra-louquice?
R – Não, não cabia. A gente era grilado com a porra-louquice. Até eu lembro que alguém, um dia, foi pego com maconha lá, estava com maconha, e a gente falou: “Puta que pariu, só faltava agora a gente trazer polícia aqui porque algum cara está com maconha aqui dentro”. Então, eram os caretas, os chatos, para muita gente. Mas tinha razão: o mais importante era o trabalho político que a gente estava fazendo. E vou dizer, é importante dizer: nós não estávamos fazendo nada por ordem do partido. O pessoal também tem essa mania: ordem do partido. Não tinha ordem do partido nenhuma, era ideia original do Fernando, do Vlado e, depois, minha. E o jeito de fazer as coisas que a gente encontrou. Então, por exemplo, tinha movimento grevista que não podia falar da greve, aí o Fernando e o Vlado punham uma greve lá no Chile, uma greve não sei onde, entendeu? Era um trabalho inteligente de lidar com a informação sem que a gente fosse totalmente exposto, porque senão não durava nem um dia. E depois não adianta: também era visão nossa que, sem essa criatividade, não adianta. Você ficar só bruto, apresentando coisas, sem levar as pessoas a pensarem diferente, não adiantava também.
P/1 – Isso tem um pouco a visão do Vlado sobre o jornalismo, de fazer as pessoas pensarem?
R – Exatamente. Era isso. Na verdade, um casamento enorme meu com ele, por causa disso: ele achava que o jornalismo era para as pessoas, exatamente, conseguirem pensar, refletir sobre as coisas, ter uma visão. Mas batia com a visão minha, quando eu falava que a realidade, como tal, é um fetiche e tem uma fumaça. Você precisa encontrar um jeito de furar aquilo. E fazer as pessoas aprenderem a ler o que está por trás da notícia, de tudo. Por exemplo: eu e o Vlado ficamos entusiasmados com o jornalista... qual que era? Bandeirantes? Ele falava: “Vamos embora, vamos embora, está na hora”.
P/2 – Goulart de Andrade?
R – O Goulart de Andrade, não. Não era o Goulart. Era o Marrom. Ele, teve uma história de um crime que houve aí, que eu não me lembro mais o que era, eu sei que um delegado, nitidamente desses que gostam muito de aparecer, falou o seguinte: “Tem um cara que é ligado a ele que está preso a isso e que já confessou e quem matou foi o fulano, foi um outro cara”. Aí deu no jornal. Era uma coisa importante, eu não sei o detalhe mais. Tinha dado no jornal: “Fulano confessa que a morte foi premeditada, que quem atirou foi fulano de tal, tal, tal,tal, tal, segundo o delegado não sei o que e tal”. Aí, eu li aquilo e, no mesmo dia, a Jovem Pan fez um programa e o Marrom, o primeiro nome dele esqueci, foi lá entrevistar o cara. Aí o cara falou: “O delegado está louco, eu não falei nada disso. Ele está inventando coisa que eu falei. Eu não tenho nada a ver com isso, não sei dessa história, não sei quem é que foi que matou e tal, tal, tal”. Então, no dia seguinte, saiu a matéria e o jornal foi obrigado a publicar. Então, qual era a interpretação nossa? A minha e do Vlado, tanto que nós bolamos até um programa sobre esse tipo de coisa, que não foi feito. É que o Marrom fez uma coisa que é a seguinte: em vez de ouvir a autoridade informando sobre um fato, você ir ao fato, você vai à fonte. Então vai lá. A autoridade da informação é quem tem a informação, quem passou a intervenção para a polícia. E a entrevista do Marrom era grande, com o cara. E depois ficou desmentido mesmo, que não tinha nada a ver. O delegado inventou aquilo para se promover. Isso batia com a visão que a gente tinha, que era o que eu fiz na favela logo no começo do programa, que era quase, vamos dizer, um programa, uma... como é que chama?... visão do papel da imprensa. O que você precisa é ir à fonte. Não copiar o release, nem a opinião das pessoas. Você precisa ir à fonte. Então, quem é a autoridade? Precisa procurar a autoridade na informação. Quando queimam a favela, quem é a autoridade? É o favelado, não é o chefe do Corpo de Bombeiros. A operação Tira da Cama, qual que é a autoridade da informação? É o cara que sofre a invasão. Ele que diz como é que ele foi invadido. Então, a gente pegava e virava a imprensa de ponta-cabeça, porque a imprensa era toda assim. Eu falei outro dia nesse programa da Cultura, o “Opinião Nacional”: “O problema é que, até hoje, quando queima a favela, os jornais vão lá para o secretário de Habitação e para o chefe do Corpo de Bombeiros, e eu ia para a favela. A diferença era essa”.
P/1 – Como você enxerga, João – quer dizer: tem toda uma concepção de jornalismo muito precisa, muito vinculada à ética e à qualidade da informação – a existência de uma entidade como o Instituto Vladimir Herzog, no sentido de preservar e perpetuar esse legado? Como é que você vê? Para que serve o Instituto Vladimir Herzog?
R – Pois é. Há muito tempo os amigos do Vlado, praticamente, formam uma comunidade: o Sergio [Gomes], eu, [Luiz] Weis, Markun, a gente sempre está dialogando, conversando, principalmente quando chega a época do dia 25, da morte dele, de outubro. A gente sempre dialoga, troca informações, fala sobre isso, tenta fazer alguma coisa. Quando dos 30 anos da morte dele, aí a gente queria fazer uma coisa mais pesada para lembrar a morte do Vlado. Eu tinha tentado fazer um filme de ficção, em 1990. Era um projeto que chamava “Vlado, o Caso Herzog”. Eu estava tentando alguma coprodução internacional, consegui uma coprodução com a TV espanhola, com Portugal, com o Channel Four de Londres, e um produtor iugoslavo que produziria a parte da infância dele na antiga Iugoslávia. E eu estava conversando com o Klaus Maria Brandauer. Então, a minha biografia, inclusive a que existe aí, tem um fac-símile da carta dele, falando que ele se interessou muito, que ele gostaria de receber a nova versão do roteiro e tal. Aí veio o Plano Collor e bloqueou tudo. Já tínhamos recebido dinheiro, tinha a Embrafilme na história, tinha captado algum dinheiro, e bloqueou tudo. Perdi tudo. Com isso eu fiquei muito desesperado, coloquei algumas coisas no carro, inclusive os livros, a minha máquina de escrever, Stendhal, Graciliano, Dostoievski, Tolstoi e fui embora. Dei um tchau para a família, meus dois filhos, minha ex-mulher, e fui lá para Goiás, onde meu irmão tinha uma fazenda. Aí vendi um sítio aqui, ganhei uma ação contra a “Veja”. Eles fizeram uma reportagem de que nós estávamos lá em Cannes, tentando levantar dinheiro, e que ninguém ia dar bola para nós. Que ninguém dava a menor bola para nós, nós não éramos reconhecidos e eu estava entre eles também. Foto e tudo. E eu estava no Brasil. Eu não tinha ido. Entrei com uma ação contra a “Veja” e ganhei 80 mil dólares. Quanto daria hoje, não é? Dá um bom dinheiro, mas com esses 80 mil dólares eu fui para lá e comprei uma fazendinha em Goiás. E fiquei lá. Eu não queria saber mais de nada. Era tal o desespero que eu queria encontrar outra coisa. Como eu gosto muito de terra e do cerrado, lá é cerrado, eu falei: “Eu vou pedir socorro para o cerrado, para a terra, e não quero ouvir falar de cinema mais”. Porque foi um baque grande: já tinha o local para filmar, tinha o local que seria o DOI-Codi, já estava montando elenco, conversando com o Klaus Maria Brandauer. Então, foi um baque, no auge da minha carreira, porque tinha ganhado muitos prêmios internacionais com “O Homem que Virou Suco”, com “Doramundo”, com “O País dos Tenentes”, o filme “Céu Aberto”, sobre a morte do Tancredo. Todos esses filmes circularam muito no mundo. Eu, cada vez, estava mais conhecido. Principalmente depois de “O Homem que Virou Suco”, que fez sucesso, aqui e fora. Aquilo me derrubou no alto, no auge da minha carreira. Aí eu fui para Goiás.
P/1 – Você teve um projeto frustrado que já estava andando...
R – Aí eu voltei ao cinema, fiz em Goiás e Brasília “O Cego que Gritava Luz”, depois fiz “O Tronco”, é um épico, um projeto antigo, com o Bernardo Elis. Aliás, Bernardo Elis era ligado ao partido também e era muito meu amigo, um escritor maravilhoso. E recomecei a minha carreira. Quando ia chegando 2005, nós resolvemos fazer uma coisa. Falei: “Bom, eu não consegui fazer a ficção, mas eu vou fazer o documentário”. Porque eu sou documentarista. Eu sou tanto ficcionista, quanto documentarista. Fiz muito filme de ficção e muito filme documentário, tenho prêmio pra caramba como documentarista, assim como tenho também como ficcionista. E parece que o meu prazer maior é documentário, em termos pessoais. Falei: “Vou fazer um filme, então”. Aí eu fiz o filme visando o seguinte: eu posso dizer que eu sou uma autoridade sobre o Vlado. Eu conheci muito o Vlado, ficamos muito amigos, meus filhos eram amigos dos filhos dele, a gente conviveu no trabalho, fora, tudo, e discutimos, sempre, muita coisa entre nós, convergências, divergências, e acompanhei essa história toda. Era amigo da Clarice, amigo dos pais da Clarice. Eu posso dizer que eu sou uma autoridade para falar de Vlado. Aí eu falei: “Então eu vou contar essa história de um amigo”. Porque isso também viabiliza o filme. Não tinha dinheiro. Eu consegui um aporte que acho que eram cem mil reais, de uma distribuidora, que eu falei: “O meu projeto é lançar o filme e, logo, uma semana depois, já estar distribuindo em DVD, porque as pessoas vão querer ter o DVD com um assunto desses”. Eu me propus a fazer, ficou acertado que eu faria o filme e o pessoal ia fazer outras coisas: o Markun, o Sergio, o Weis, o pessoal todo. E eu fiz e deu certo: o filme relatado por mim, a partir da minha vivência daquele episódio, aquela história toda. E aconteceu uma coisa louca: saiu na imprensa que eu ia fazer o filme. Aí, um dia, eu estava chegando no prédio onde eu morava, do lado da Câmara Municipal, acho que é Rua Santo Antônio. “Tem uma pessoa que está te procurando aqui.” Falei: “Quem é?” “Um rapaz.” Aí eu cheguei e falei: “Bom, o que foi?” Ele pegou um pacote e falou: “É para entregar para o senhor”. E foi embora. Eu falei: “Espera aí, psiu”. Sumiu, foi embora. Peguei aquele pacote, subi com aquele pacote sem entender, abri e eram latas de filme. Eram filmes 16 milímetros, levei para a Cinemateca para ver o que era, e era o culto ecumênico. Quem filmou, eu não sei.
P/1 – Isso está na Cinemateca ou ficou com você?
R – Está na Cinemateca. Eu usei trechos do filme no “Vlado 30 Anos Depois”. E esqueci o assunto, porque eu também não quero saber quem foi, nada. Porque a pessoa resolveu não contar, para mim tudo bem, eu ganhei o filme e vou usar, mas você vê que o filme já passou em tudo quanto é TV. Já passou na Globo, na TV Cultura, já passou programa de documentário na Globo, Canal Brasil, já passou em tudo quanto é lugar; nessas redes aí, já passou o filme, não para de passar. Teve distribuição internacional, distribuidora em Los Angeles, o filme circulou pra caramba e nada, não aparece ninguém. E as pessoas me pedem trechos do filme, trechos desse aí, e eu dou com uma condição: de que foi cedido gratuitamente, pronto. Eu não cobro. Faço questão de constar que eu não estou cobrando nada. Esse material, eu sou depositário dele, eu não sei de quem é o material. E eu cedo, mesmo, para quem quiser.
P/2 – Alguém guardou isso por 30 anos.
R – Guardou por 30 anos. Não sabe. Pode ser algum fotógrafo da polícia, eu não sei. Para mim, o mais provável, é isso. Para o cara me entregar clandestinamente, dessa forma, pode ser.
P/1 – É uma hipótese.
P/2 – João, além do documentário e do cinema de ficção, você entra na política, mesmo, em cargos públicos. Você é convidado? Como? Porque aí sua vida vai mudando.
R – O problema é o seguinte: eu tive bastante liderança, desde o começo. Principalmente depois de 1964, que aí eu entrei, mesmo, no cinema, optei pelo cinema, fiquei mesmo no cinema, e continuava no partido. Então, eu tinha atuação grande. E tinha uma certa liderança, pela dedicação e eu acho também porque eu nunca entrava em projeto que a gente chamava de porra-louquice, não entrava nessas. Filmei as passeatas... você sabe que a gente filmava as passeatas, principalmente eu, o [Francisco] Ramalho e o Batatais, que era um outro do grupo nosso, os Kuatro, e dava o negativo para o Sérgio Muniz, porque a gente tinha medo de entregar isso no laboratório. Dava para ele porque ele tinha um canal para mandar para Cuba. E esse material foi para Cuba, a gente nunca viu esse material. Várias latinhas de filme, filmados com nossa câmera simples, e muita gente usou esse material. Às vezes eu vejo uns filmes que têm cenas do Brasil e eu falo: “Pô, parece que eu que filmei isso aí”. Mas eu não sei mais o que era, a gente não via o material. Então, eu tinha essa presença lá, eu mantive essa presença, porque eu fui diretor da União Estadual dos Estudantes, junto com o [José] Serra. O Serra era presidente e eu era um dos diretores. O Sérgio Motta era diretor, o [Walter] Barelli era diretor e eu também, era do partido: eram AP [Ação Popular] e Partido. Tinha mais duas pessoas do partido, também. Então, eu tinha essa ligação meio de liderança. Mas eu, no cinema, acabei liderando bastante também o movimento cinematográfico. Aí eu ganhei o Prêmio Air France com o “Gamal”. Eu tinha o maior problema com o filme, mas me deu o Air France, que era um prêmio da crítica nacional, não era brincadeira. Ganhei um prêmio especial também por um filme que eu e o Jean-Claude fizemos, um longa metragem que chama “Paulicéia Fantástica”. Então eu comecei bem, estava com “Liberdade de Imprensa” proibido e reconhecido, apesar da proibição e, quando chegou no começo dos anos 70, eu fiquei muito ligado ao pessoal do Cinema Novo. Quer dizer: a minha formação era o Cinema Novo, mas tinha um grupo de pessoas, um movimento e esse grupo tinha o Joaquim Pedro [de Andrade], o Leon Hirszman, o Cacá [Diegues], o Glauber [Rocha], o Nelson [Pereira dos Santos], o Zelito [Viana], Gustavo Dahl. Eu me liguei muito a esse pessoal, que tinha uma certa visão de que eu era o novo aqui em São Paulo. Era amigo do [Luís Sérgio] Person, não era muito amigo do Roberto [Santos], era amigo mas tinha algumas dificuldades, nada que deponha contra o Roberto, nada, mas eram coisas de comportamento, de jeito, a gente não se acertava muito. Com o Person eu acertava mais. O [Maurice] Capovilla era uma pessoa que eu admirava muito, mas a gente não dava muito certo também, no modo de agir. Continuamos amigos, mas não dava muito certo, não. Eu tenho admiração grande pelo Capovilla. Lá em 1966 ele chegou a pôr no “Jornal da Tarde” uma matéria sobre os meninos do cinema aqui. E uma matéria boa do “Jornal da Tarde” e tal. Nós ficamos bravos com aquela matéria: “Mas que ‘meninos’, pô?” O Ramalho já tinha filho e eu já estava, em 63, com 23 anos. Uma bobagem nossa, não é? Aí ele ficou todo chateado. Então, por incrível que pareça, tem uns desencontros aí que a gente não ficou muito próximo. Amizade, mas não tem proximidade. Mas aí começou: tinha uma disputa muito grande entre os jovens formados na ECA, o Cinema Novo e o Cinema da Boca. E também tinha diferença do Cinema Novo com a Boca lá do Rio. Então, tinha uma divisão ali e eu fui professor da ECA, fui professor de vários desses cineastas que estão aí hoje, da geração nova. E eu, muito politizado. Achava que o cinema, o alvo principal – daquele momento lá que eu fui pra lá, que era 68, 69 – o alvo principal para a gente era a ditadura. Que não existia outro problema na vida da gente, maior, do que a questão da ditadura. Que era obrigação da gente ajudar a acabar com a ditadura. E o pessoal novo não entrava de jeito nenhum, porque eles tinham paixão pelo cinema, queriam ser cineastas... Não dava muito certo. E tinha um grupinho de alunos que ficavam ligados a mim, que acabaram formando, comigo, um movimento chamado Cinema de Rua, que eram filmes muito baseados na minha experiência de TV. Porque aqueles filmezinhos, aqueles especiais que eu fazia, era muito comum ir gente lá na Cultura pedir cópia. Porque eram temas que eles queriam discutir. Tema de transporte urbano, de favela, de criança, de conjunto habitacional, tinha uma quantidade muito grande de temas que eles iam buscar cópia lá. E cada vez mais. Aí a distribuidora do cineclube, a Dina Filmes, pediu para passar esses filmes para eles. Eu tirei cópia dos filmes e passei para eles. Eles faziam um contratipo e ficavam tirando cópias dos filmes – e era o maior sucesso. E eles pediam para fazer relatório e as pessoas nunca diziam onde era. Mas falavam, davam comentário de que reuniram as pessoas, e depois a discussão foi sensacional sobre esses temas. Tinha esquecido de falar. Com esse pessoal, isso acabou gerando um movimento chamado Cinema de Rua, baseado na minha experiência, mais esses outros cineastas: Reinaldo, Adilson, o Valter, esqueci o nome dele também. Mas, enfim, tinha lá uns cinco cineastas jovens, que foram meus alunos e que participaram do movimento, fizeram filmezinhos, produzidos pela Raiz. Quando entrou, depois de 68, anos 70, 70 e poucos, eu queria deslanchar minha carreira, mesmo estando no “Hora da Notícia”. Quando eu saí do “Hora da Notícia”, em 74, mais ainda. Aí eu comecei a fazer força. E eu já era muito ligado ao pessoal do Rio. A gente começou a criar um movimento aqui [em São Paulo] para ter cinema, para ter produção de cinema; existia a Embrafilme, mas não vinha um tostão para cá. Aí o pessoal, o Cacá, esse pessoal todo, me convidou para o Rio, para um encontro lá, para criar uma entidade. Eu fui para lá e a entidade era a Abraci, a Associação Brasileira de Cineastas, do cinema. Eu falei: “Bom, então vamos ver como é que vamos fazer, eu quero fazer uma assembleia lá em São Paulo, então, para colocar a questão”. “Não, assembleia, não, porque aí entra qualquer um.” Aí já houve uma divisão grande, porque eu queria que os cineastas da Boca fizessem parte. Porque aqui, vários cineastas fizeram filmes apoiados pela Boca do Lixo. Eu fiz, o [Ozualdo] Candeias era um belo cineasta e fazia filme lá, o Rogério [Sganzerla] fez, o Carlão [Reichenbach] fez, o cineasta lá do Paraná, o Sylvio Back, fez filme também ali. Tinha outro cara do Rio também, cineasta ligado ao Cinema Novo, que também fez filme. Eu falei: “Não tem sentido, os caras são cineastas”. “Não, de jeito nenhum.” Eu falei: “Não, eu vou levar esse problema lá para São Paulo”. Cheguei aqui, reuni uns amigos aí e falei: “Vamos convocar uma assembleia”. Convocamos uma assembleia e a assembleia toda disse: “Não. Nós vamos criar uma entidade em São Paulo”. E foi um racha. Que tinha razão, porque eles não queriam que a gente se organizasse aqui, o que repercutiu na decisão nossa. Porque, entre os projetos, era criar um polo de cinema em São Paulo. E aí, no Rio, começou a aparecer na imprensa que nós estávamos querendo tirar dinheiro do Rio. Aí eu também joguei pesado, jogamos pesado e eu fui para o governador, para o secretário de Cultura, que esqueci também quem era, mas eu falei para ele o seguinte: “É um absurdo. O estado [de São Paulo] é o estado que mais paga. A maior parte do dinheiro da Embrafilme sai de São Paulo, porque sai dos impostos, e como é que no Rio, agora, vai dizer que nós estamos querendo tirar dinheiro do Rio? Eles é que estão usando o dinheiro que sai aqui de São Paulo”. Joguei pesado. Aí o governador se queixou com relação a isso e isso facilitou a gente criar um polo de cinema. Posso dizer que eu criei o polo de cinema com um grande amigo meu que fazia parceria comigo, que era ligado ao partido também, o Denoy de Oliveira. Ele veio do Rio para São Paulo no começo dos anos 70, a gente ficou muito amigo e depois descobrimos que os dois éramos do partido, mas não era do partido porque tinha uma organização que a gente estava, nada. Nós éramos ligados ao partido.
P/1 – Denoy de Oliveira?
R – Denoy de Oliveira. Que era um bom cineasta, fez um filme muito interessante. Nós dois formulamos um polo de cinema e já tinha criado a Associação Paulista de Cineastas, com protesto do Rio. E eu ganhei muita liderança do cinema, mas era uma liderança de uma sociedade. Quando houve, por exemplo, a campanha do Tancredo [Neves], eu participei, trouxemos o Tancredo para cá, eu fui na casa da Ruth Escobar, estava uma porrada de gente lá do cinema, mas na hora de falar com o Tancredo, o pessoal pediu que eu falasse. Então eu falei em nome de todo mundo com o Tancredo, dizendo que nós o apoiávamos e que não tínhamos solicitação nenhuma: “O que nós queremos é que se eleja e que acabe a ditadura. Esse é o projeto nosso. Você não está aqui numa reunião que a gente vai reivindicar coisa, nada, não tem reivindicação nenhuma, a não ser isso: a superação da ditadura e a volta da democracia. Então, nós apoiamos o senhor, porque tem capacidade para isso, para fazer um governo democrático”. Foi excelente, mas eu estava num nível de liderança bastante grande. Tanto que o Zé Aparecido [de Oliveira], que era ligado à campanha do Tancredo, queria que eu fosse para lá. E quando foi instalado o governo, era o [José] Sarney já, queria que eu fosse para o ministério. Mas eu não queria porque ele dizia que eu sabia fazer política, mas não gostava. E é exatamente isso. Eu tenho jeito para fazer política, mas aquilo me afeta demais. Eu consigo as coisas, e consigo abrandar, criar um consenso, mas aquilo é um desgaste profundo. E a minha capacidade maior é a de criar consenso. Acabei de fazer agora, porque eu soube que os militares estavam entrando na Cinemateca, aí eu postei uma mensagem grande no Facebook dizendo: “Eles chegaram à Cinemateca, a gente tem que reagir”. E aquilo provocou uma reação e outras pessoas, jovens, começaram a atuar, e eu, realmente, não participei mais, só dava força, comentava, mas deixei. E eles acabaram criando um movimento, fizeram um documento grande agora, vão divulgar o documento.
P/2 – Isso é coisa da semana passada.
R – Semana passada, é. Então, quando eu fui para o ministério, eu fui para lá para ajudar o Roberto [Freire]. Eu ia ficar quietinho lá na secretaria executiva, que é o coração do Ministério [da Cultura]. E com uma combinação de que, na área de cultura, mesmo, eu teria a palavra final. Então, que eu ia ajudar a manter e fazer funcionar o ministério, [como] o segundo nome do ministério. Então, tudo ia para mim e o Roberto fazia política, recebendo parlamentares, indo nas inaugurações, aquelas coisas.
P/1 – Você faz um bom balanço dessa sua experiência?
R – Depois do que aconteceu, o Roberto saiu e eu acabei assumindo o ministério. No fundo, depois eu me arrependi. E disse que me arrependi. Eu acho que foi errado, um erro. Mas eu não posso deixar de dizer que foi uma experiência muito rica e mostrava o tanto que vale a pena uma pessoa boa com aquele instrumento na mão. A capacidade que a gente tem, de decisão, de fazer coisas, é enorme. A Ana estava comigo lá em Brasília, ela via. O mundo da cultura falava comigo o tempo todo, mas é uma quantidade de problemas enorme e eu tentava resolver, jogava para frente ou conseguia resolver. Problemas graves. Eu tinha uma capacidade grande de ação, mas muito pouco tempo. Entrei lá em janeiro, quando chega em maio, abril, o Roberto saiu, aí eu fiquei junho e julho como ministro. E pesou pra caramba. Eu aguentei a mão. Brigava muito com o governo, porque os ministros especiais em volta do [Michel] Temer bloqueavam tudo, e viviam me pedindo para contratar gente, a pedido de deputados, e eu engavetava, não contratava. Então, eu era, praticamente, uma oposição lá dentro do ministério. Mas foi rico. Por exemplo: eu praticamente salvei a Cinemateca, porque a Cinemateca estava... aquilo ia acabar. A Cinemateca, quando foi criada, era uma entidade do grupo de São Paulo, a Fundação Cinemateca Brasileira. Eu fui, nos anos 80, do conselho. E aí resolveu-se passar para o governo. Eu me tornei presidente para ajudar nessa passagem. Fiquei presidente um período, até passar para o governo e o governo só aprontou com a Cinemateca. A Cinemateca foi indo para o bagaço, mesmo. Quase que acaba a Cinemateca. Aí, eu consegui, ainda, no limite, arrumar um dinheiro através da Ancine para Cinemateca, aí também acertar contratação de uma entidade para gerir a Cinemateca. Meu plano era fazer a Cinemateca voltar a ser uma fundação, uma fundação de direito público, com o governo. Mas não deu tempo, fiquei muito pouco tempo. Então, o que eu passo de experiência? Primeiro, eu acho que vale a pena você, não num governo desses, mas num governo amorfo como era o Temer, quem está lá ocupa e faz as coisas. Valia a pena. Porque muita coisa que dá para fazer num governo desse tipo. Não dá para fazer num governo como esse agora. Agora não é amorfo. Agora você pode chamar de tudo: incompetente... eu também tenho muita dúvida se isso é incompetência ou não, ou se é uma forma de tentar acabar com o Estado social. Então, chamar de incompetente, você precisa pensar muito. Eu acho um governo que a gente não gosta. É um governo antipopular, impopular, antissocial, de extrema direita. Esse não tem jeito. Ali, ou você faz aquelas coisas ou está fora. Ali não tem jeito. Mas no caso do governo da era Temer, você podia não gostar do Temer, ser contra o Temer, mas ali dentro eu tinha uma autonomia enorme para fazer as coisas. Então, é ambíguo. Uma análise mostra as vantagens e desvantagens. Agora, sob o ponto de vista pessoal, pesado, porque sempre tinha caras radicais que postaram vômitos quando eu fui, teve gente que disse que não ia falar mais comigo, aquelas coisas.
P/1 – Faz parte do jogo.
R – Faz parte do jogo. É um radicalismo idiota, porque eu não tenho a ilusão que essas pessoas têm. A ilusão, por exemplo, de que nós temos a nossa tática e a nossa estratégia é uma coisa só. Nós queremos socialismo, então a luta é pelo socialismo. Eu não tenho essa ilusão de jeito nenhum. E, depois, o socialismo é uma coisa abstrata. Tem muita gente pensando, pensando e tem que continuar pensando sobre ele, inclusive incorporando a democracia nele. Você tem que ter uma visão estratégica na prática: onde é que você trabalha? Como é que você trabalha com o adversário? Qual espaço que tem para você trabalhar? O que você acha que vale a pena propor como tema? O que acha que é bom, mas não vale a pena? Por exemplo: o “Hora da Notícia” era um programa nosso, com uma repercussão grande, e lembro que a “Veja” postou uma publicação que a capa era “o rato que ruge”. O rato que ruge éramos nós. Pequeninho, mas fazia um trabalho grande. Eu acho que a gente não tem essa ilusão de que a gente está com força e que vai virar. Porque até é ruim. Pela visão minha, é ruim você achar que está com força e ganhar, você vai fazer outra ditadura. Então, a mudança da sociedade mais gradativa é mais importante do que essa virada, a tomada do Estado.
P/1 – Alguma coisa que você queira acrescentar? Eu queria voltar um pouco para o lado pessoal. Hoje você está casado de novo?
R – É, estou. Estava separado há muito tempo. Oficialmente, em 2004, mas eu estava lá em Goiás, sozinho, desde 1990. E criei o movimento lá, fizemos um programa de cinema, instalei lá uma ideia que eles tinham de um festival internacional, que fez um sucesso danado, ajudou a Cidade de Goiás a ser reconhecida como patrimônio histórico. Tanto que eu sou cidadão vilaboense, por causa da gratidão deles. Então, me separei, eu tinha criado a produtora em 1974, a Raiz, mas eu não tinha muito interesse pela empresa como empresa. Eu não tenho vocação para ser empresário. Eu tenho vocação para criar coisas. Eu sou escritor, gosto de escrever, de filmar do jeito que eu quero.
P/1 – A sua rotina, hoje, como é?
R – É o seguinte: como eu vendi tudo, lá em Goiás, cheguei a ter a fazendinha, aí vendi tudo, hoje eu resolvi que eu sou escritor, que eu sou cineasta e que eu não quero perder a minha ligação com a natureza. Então, a gente tem uma casa lá em Gonçalves [MG], um sítio, e tem aqui os projetos de cinema como independente, não tem empresa. Eu tinha criado a empresa independente, que chama Oeste Filmes, para não fazer na Raiz. Fiz vários filmes com ela, mas fechei. Não queria empresa, mais. Então hoje eu não tenho empresa, sou completamente independente. E eu e a Ana, a gente fica um pouco lá em Gonçalves, fica um pouco em São Paulo. A minha tendência é ficar mais lá do que aqui e minha tendência atual, na verdade, é ser mais escritor do que cineasta. Porque fazer cinema virou uma chatice. Com tanta burocracia e tanta dificuldade, com tanto poder com essas empresas todas, Netflix, essas coisas. Aliás, eu, quando saí do ministério, tinha feito uma reunião do conselho que eu tinha composto, pela primeira vez com a presença forte dos cineastas, inclusive o Cacá Diegues e o André Klotzel faziam parte. E nós, então, decidimos que íamos regular o “streaming”, o cinema sob oferta, e foi decidido um prazo para a Ancine entregar uma pesquisa para a gente, e numa reunião, depois do conselho, para aprovar uma proposta de regulação. Eu saí do ministério, o Sérgio Sá Leitão assumiu e tirou isso da pauta da reunião. O pessoal estava lá para discutir e ele tirou da pauta. Então, não foi regulado. O que é um perigo danado. Você vê que os países aí estão cobrando pesado, taxando pesado. Inclusive dizendo o seguinte, como há muito tempo eles fazem: não pode ter política cultural que sufoque a produção nacional. Foi o que eu falei em todas as reuniões que eu tive com esse pessoal lá no ministério. Eu falava: “Se vocês vêm explorar o mercado do cinema no Brasil, isso tem que ter um significado para a produção local. Isso tem que ajudar a produção local. Então, isso significa regular”. Que é o que a França, por exemplo, fez, e vários países europeus. E regulam forte. Têm taxas forte. Aqui, não. Aqui diz que não pode, porque senão eles vão embora. Numa reunião, a última que eu tive, eu falei assim: “O pessoal fala que vocês vão embora. Agora eu vou olhar bem para vocês: vocês vão largar esse mercado?” É um dos maiores mercados de streaming no mundo é esse aqui. “Vocês vão embora porque não gostam da regulação? Vão embora coisa nenhuma.” Eles deram risada. Pois agora o governo resolve que não, que não vai taxar, não vai nada. Esses são os retrocessos.
P/1 – João, encaminhando aqui para o final, como você se sentiu dando esse depoimento para nós?
R – Eu senti o seguinte: eu sempre acho que é uma oportunidade de falar coisas. Até porque eu acho que tem pouca compreensão do que é, realmente, que a gente fazia. E qual era a visão da gente. Por exemplo, contar esses detalhes todos é muito importante para as pessoas perceberem: o pessoal chama o Vlado de herói. Eu não gosto dessa expressão de herói para o Vlado. O Vlado é vítima. Ele não é herói. O Vlado fez parte de um grupo de que eu fiz parte e que a gente procurava formas de fazer as coisas. A gente não pegou em armas, não teve vida clandestina. Para vocês terem uma ideia, a gente se recusava a qualquer clandestinidade. A UNE, por causa do programa, resolveu fazer uma entrevista comigo na clandestinidade, dizendo que não ia colocar meu nome e eu falei: “Não, se vocês quiserem me entrevistar, vocês dizem que me procuraram para fazer uma entrevista e que eu, como para qualquer jornal, topei dar a entrevista. Como clandestino, de jeito nenhum”. A gente era rigoroso, mesmo. Então, é preciso entender o Vlado dessa maneira. O Vlado, como o grupo nosso todo, é a tentativa de fazer um trabalho legal. E a democracia: fazer um trabalho no sentido de avançar a democracia e acabar com os retrocessos. Não tem nada de revolucionário. Você pode chamar de revolucionário, porque quer mudar a sociedade, mas não tem o sentido tradicional e a gente recusava a clandestinidade. Eu quero dizer a vocês que eu dei muita entrevista, sim, muita gente que vem e pega depoimento, porque eu virei uma espécie de historiador vivo. Pessoa que viveu a história e tem capacidade... viveu pessoalmente, com ideias próprias também, com as minhas próprias ideias e na convivência com o Vlado, o Fernando. Então, tem muito depoimento. E eles são, todos, muito diferentes. Hoje, por exemplo, foi bastante diferente, eu acho que até com mais precisão das coisas. Mas eu vou dizer uma coisa: eu tenho muita coisa para falar ainda. Muita coisa. Porque foi um período muito rico e muito sofrido. Tanto que – isso que eu falei – os amigos do Vlado carregam um peso muito grande, como [se dissessem] assim: nós fizemos uma coisa junta e cataram o Vlado para matar. Então, por que o Vlado? Por que não eu ou outro? E, ao mesmo tempo, uma coisa que é um elogio ao Vlado, que eu acho que não é muito correto, mas a gente fala: “Cataram o melhor de nós”. Eu não sei quem era o melhor de nós. Sei que o Vlado era muito bom. Nós todos éramos, estava todo mundo envolvido. O Vlado e o Fernando tinham ideias mais precisas sobre o jornalismo do que quase todos nós. Mas a morte dele foi uma coisa muito dolorosa. Até pela delicadeza dele. Ele era uma pessoa muito delicada e, para mim, por exemplo, era o pai dos melhores amigos dos meus filhos; uma convivência. E ele muito culto, muito informado, muito mais do que nós, isso não tem dúvida. E apaixonado pelo cinema, mas fazia televisão, porque achava que a televisão tinha repercussão maior. Tinha tudo para que a gente ficasse muito machucado com essa história. Eu custei muito a falar do Vlado sem me emocionar, sem me bloquear. Muitas vezes eu tentava e não conseguia falar. Já parei entrevista no meio, porque eu não conseguia concluir. E era uma coisa dos amigos: começava a falar e logo já estava na convulsão, não conseguia continuar. Era muito comum. E a gente custou muito a fazer isso. Talvez, na época dos 30 anos, a gente tenha se libertado um pouco disso, mas eu vou dizer uma coisa que você me perguntou e eu acho que eu não completei: a realização do filme foi fundamental para criar o Instituto. Inclusive, eu levantei a questão seguinte: para pegar fotografias do Vlado e da Clarice, eu tinha que ir lá no armário da Clarice, dentro da casa dela. E eu falei: “Isso é um absurdo. Todo mundo tem interesse e é um absurdo, a gente precisa pensar nisso”. Aí foi pensado. O Ivo [Herzog], inclusive, veio um dia falar comigo que tinha falado com a Clarice, que eles topavam que eu fosse presidente do Instituto. Aí eu não quis ser presidente do Instituto, achava que a Clarice tinha que ser presidente. Eu não queria porque envolve muito família do Vlado. Então, eu achava que não era legal. E que era importante que ninguém mais do que a família queria preservar o nome e a dignidade do Vlado. Nós todos queríamos. Ficamos muito chocados e aquilo continuava a doer muito, com a indignidade com que expuseram a morte do Vlado. Todos nós queremos, mas ninguém mais do que a família. Aí foi acertado isso, a Clarice é presidente e o Ivo, então, seria uma espécie de articulador. Então, o filme teve um papel muito grande. Só um episódio: quando o filme ficou pronto houve uma pré-estreia em Brasília, num salão do “Correio Braziliense”. E estava lá a Clarice, o Markun e eu. Aí, houve a primeira projeção. Quando acabou, ficou aquele silêncio. Eu era do tamanho de uma pulga, assim. Quando, de repente, as pessoas começaram a levantar, começaram a aplaudir, gritar, a Clarice levantou: “Esse filme tem que passar em todo lugar, em todas as escolas do Brasil”, porque era o filme sobre o Vlado. Está tudo lá, no filme. Inclusive sobre a mentira [sobre o suicídio] do Vlado, mas também sobre a trajetória do Vlado, sobre o que era o programa e tudo. A Clarice não parava de falar: “Precisa passar esse filme em todo lugar”. Passando por cima até de um erro meu, que eu falo, no começo, que o Vlado nasceu em Banja Luka, porque eu tinha isso na memória, que era Banja Luka, e eu conhecia tanto que não chequei. E não é Banja Luka, tinha na história dele, mas ele não nasceu em Banja Luka. E ela passou por cima disso, no maior entusiasmo com o filme e depois ela me falou que não era Banja Luka. Aí eu ainda pus, no final, uma correção. Porque não dava para mexer mais na gravação, e aí eu pus uma correção no final. Aí o filme foi distribuído internacionalmente por uma distribuidora em Los Angeles e então o filme circulou muito na Europa, Estados Unidos. É isso. Eu não consegui fazer a ficção, mas eu fiz o documentário do meu querido amigo.
P/1 – Por mais doloroso que todo esse processo tenha sido, na verdade, o que sobrou, ou o que restou, foi uma celebração à vida, não é? A vida do Vlado faz um sentido, hoje, que a morte não fez.
R – Exatamente. Era o que nós queríamos. Então, eu, pessoalmente, não sou muito adepto a essa coisa que hoje o Instituto fez, o Vlado vitorioso. Eu não sou muito adepto, não, porque para mim é um pouco doloroso falar que o Vlado foi vitorioso. Eu acho que a ideia da liberdade, contra a ditadura, foi vitoriosa no caso do Vlado, mas o Vlado é uma vítima, entendeu? E é uma perda para a sociedade, para a gente, para a família, para os amigos, para a imprensa, é uma perda. Mas é uma vítima.
P/1 – João, para fechar a nossa história, quais são os seus sonhos?
R – É um momento difícil de falar disso, porque há um desânimo muito grande. Parece que, finalmente, o sonho acabou. Mas o meu sonho... eu tenho filhos e tenho netos, e eu sempre penso qual o futuro que espera... para os filhos, não, porque já estão aqui, na ativa, no Brasil. Mas, e os netos? Que país é esse que a gente vai entregar para os netos? Eu ainda tenho um sonho socialista na cabeça. Só que eu não tenho essa bobagem de achar que nós vamos lutar para impor o socialismo. Eu estou mais com aquele sentido de utopia que vários escreveram sobre isso, que é você olhar o horizonte e caminhar para chegar lá; e você nunca vai chegar, porque a terra é curva, você tanto anda, o horizonte está sempre à mesma distância. Aí fala: “Para que serve o horizonte?” Ele serve para caminhar. Então, você vai caminhando. A utopia está muito assim. Utopia não é uma coisa que você tem pronta e fala: “Eu quero implantar aqui”. Não existe a coisa de implantar uma utopia. Acabei com essa teoria. Eu conheci o socialismo real, tanto em Cuba, quanto na Alemanha, por causa do pessoal do cinema, de Leipzig: proibiram o filme. E eu vi: aquelas pessoas tinham medo de conversar. Em Cuba eu era amigo do pessoal, dos cineastas, eu estive uma vez com o Fidel [Castro], tinha admiração por ele, mas eu não concordava com essa coisa, tudo aquilo. Falava que era legal, porque tudo era resolvido em assembleia, aí eu dizia: “Numa assembleia, quem é que tem coragem de levantar a mão contra?” Aí tem os grupos de defesa da revolução. Está certo, os Estados Unidos vinham tentando intervir, mas aquilo é uma aberração que às vezes você tem que ter num certo momento, mas num clube desses todo mundo se sente vigiado. Por melhor intenção que tenha. Então, eu nunca vesti essa camisa. Eu fui pra Alemanha Oriental em 1968, para sofrer aquela censura do filme, que estava proibido aqui pelos militares, com a ditadura. Então, eu acho que é preciso caminhar muito. O problema é que vai se tornando cada vez mais complexo, porque hoje os setores empresariais, os mais antissociais, descobriram que não precisa golpe de Estado, que eles podem chegar ao Estado via democracia, usando os vetores da democracia. Foi o que aconteceu no Brasil agora e está acontecendo em vários lugares. E, no poder, eles podem ir desmontando o Estado social, porque a meta deles é desmontar o Estado social: as pessoas trabalharem mais, aposentar mais tarde, diminuir os salários e aumentar o ganho do capital. Então, vai ficando mais complicado, porque agora eles entraram. Quem vê agora a minha mensagem no Facebook de alguns dias atrás: “Eles chegaram à Cinemateca”. Porque é isso, eles vão fazendo, eles vão entrando nas instâncias...
P/1 – Como chegaram ao Ministério da Educação, como chegaram ao Ibama...
R – Agora chegaram à Cinemateca. Aí tem militares lá dentro, participando de reunião. O cara militar diz que vai fazer uma mostra do cinema militar na Cinemateca. Quer dizer: é uma coisa absurda. É uma invasão. O seu espaço vai sendo ocupado. E, quando você vê, você está cercado, tudo quanto é lugar está dominado. Porque não tem inteligência nenhuma aí. Não tem nada. Só tem um pensamento antissocial. E é o fim do Estado social, que interessa ao grande capital. Então, é só isso. Vai desmontando. Aí cada um cuida da sua vida. O Estado vai ficar dando dinheiro para as grandes empresas, salvando, perdoando débitos, bilhões de débitos. Tira um bilhão da população e dá um bilhão, perdoa quatro bilhões da agroindústria. A quantidade de perdões é impressionante. Não é esse o problema. Mas é acabar com o Estado social e com a legislação trabalhista. Acabar com ela. Essa é que é a luta. Na verdade, é essa: aumentar o ganho do capital.
P/1 – É isso, João. Eu quero que você saiba que foi um depoimento, para o meu gosto, muito rico. Você tem uma capacidade de contextualizar as coisas e costurar esses nexos, que certamente vai ser muito útil para nós. Pode ter certeza disso. Só tenho que te agradecer. Nós te agradecemos. Muito obrigado! Valeu, mesmo.
R – Eu que agradeço a vocês pela oportunidade! E espero realmente que o esclarecimento das coisas ajude as pessoas a pensarem. E a gostarem mais do Vlado ainda, do que gostam.Recolher