Projeto: Escola Playpen - Educação para o Mundo: 30 anos
da escola Cidade Jardim (MECJ)
Depoimento de Marcos Philip Machado Perrenoud
Entrevistado por Fernanda Prado e Camila Prado
Local: São Paulo - SP
Data: 11 de novembro de 2010
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: MECJ_HV012...Continuar leitura
Projeto: Escola Playpen - Educação para o Mundo: 30 anos
da escola Cidade Jardim (MECJ)
Depoimento de Marcos Philip Machado Perrenoud
Entrevistado por Fernanda Prado e Camila Prado
Local: São Paulo - SP
Data: 11 de novembro de 2010
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: MECJ_HV012
Revisado por Grazielle Pellicel
P/1 - Fernanda Prado
P/2 - Camila Prado
R - Marcos Philip Machado Perrenoud
P/1 – Marcos, bom dia. Primeiro a gente gostaria de agradecer sua presença aqui no Museu e, pra começar, você precisa repetir pra a gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Marcos Philip Machado Perrenoud. [Nasci no dia] 5 de novembro de 1971, [em] São Paulo.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – Margarida Maria Machado e Donald Karton Perrenoud.
P/1 – Qual que era a atividade profissional deles?
R – Bom, a minha mãe foi a fundadora da escola e no começo ela exercia algumas atividades, mas eu acho que vale a pena falar que antes da escola ela já foi professora também. Ela dava aula de Português pra estrangeiros e, se não me engano, também deu aula de Português como reforço escolar, aula particular. E meu pai é e sempre foi professor de Inglês, o meu pai é 100% educador.
P/1 – E você sabe um pouquinho da origem deles? Onde eles nasceram? Como que eles se encontram?
R – Minha mãe nasceu no interior de Minas Gerais, em Teófilo Otoni, e algum tempo depois a família dela se mudou pra Governador Valadares. Meu avô era fazendeiro. Eu sei que quando ela era criança, em algum momento, talvez, durante as férias escolares dela, ela manifestou pro meu avô a vontade de ter um grupo de alunos na fazenda. Então, eu sei que ela deu aula pros filhos dos fazendeiros, foi a primeira experiência dela com o ensino e eu sei que foi uma experiência muito gratificante, porque toda vez que ela fala disso dá pra ver que foi uma coisa importante. Meu pai logo depois de se formar na universidade em Miami, ele foi professor de Inglês pra estrangeiros. Ele é da primeira geração que lecionou, sistematicamente, Inglês para estrangeiros e, nos inícios dos anos 60, ele teve contato com muitas pessoas do Brasil e de toda a América Latina.
P/1 – E como que é um pouquinho da história do seu pai... Como é que ele veio pra cá, pro Brasil? Pra onde ele vai?
R – Uma das alunas dele na universidade de Miami foi uma das minhas tias. Ele teve contato com muita gente do Brasil e ele se encantou muito pela personalidade dos alunos brasileiros. De maneira geral, a personalidade dos alunos latinos, mais especificamente do Brasil. E ele era recém separado, recém divorciado, e com a minha irmã, a filha do primeiro casamento dele que, na época, tinha três anos de idade. Enfim, ele se encantou com a presença latina e resolveu vir morar no Brasil.
P/1 – E pra onde ele foi?
R – Primeiro, ele foi pro Rio. As pessoas que ele tinha conhecido nos Estados Unidos moravam no Rio e ele teve o privilégio de morar no Rio de Janeiro nos anos 60 - ele chegou ao Brasil em 66. Ele sempre diz que era o paraíso, porque não tinha nem uma criminalidade na cidade. Enfim, e o lugar era um paraíso, completamente lindo. Ele sempre foi um apreciador da vida boêmia.
P/1 – E como que então o seu pai e a sua mãe se conheceram? Você sabe um pouquinho dessa história?
R – Sim, eles se conheceram porque uma das minhas tias tinha sido aluna dele em Miami, então através dela, ele conheceu minha mãe.
P/1 – E foi no Rio?
R – Foi no Rio, porque, se não me engano, ela também morava no Rio na época. Ela saiu de Minas durante a adolescência e foi morar no Rio.
P/1 – Então eles se encontraram?
R – Eles se encontraram e iniciaram um romance nada aprovado pelo meu avô.
P/1 – Por quê?
R – Porque, de repente, vinha esse americano super conquistador e começa a namorar com a filha do coronel, entendeu? Então isso causou um mal estar muito grande. Meu pai sempre disse que o início foi um estresse muito grande, era uma situação muito delicada. É claro que um tempo depois ficou tudo bem, eles casaram e tiveram dois filhos juntos - eu e meu irmão -, aí houve uma reconciliação e ficou tudo bem. Mas não foi um processo fácil, isso demorou um pouquinho.
P/2 – O seu avô, pai da tua mãe, foi junto com ela para o Rio de Janeiro quando saíram de Minas?
R – Não, eles tinham... Eles tiveram muitos filhos, a minha mãe tem dez irmãos, enfim, ao todo são onze. Então, alguns filhos iam morar no Rio, outros parece que foram morar em Juiz de Fora. Enfim, os filhos foram espalhados e a minha mãe foi pro Rio.
P/1 – Você contou pra a gente que nasceu aqui em São Paulo. Onde foi que você nasceu? Que bairro vocês moravam?
R – Bom, eu sei que nasci no Hospital Matarazzo que não existe mais. E, se eu não me engano, nessa época, eles moravam lá na Capote Valente, no Sumaré. Enfim, pouco tempo depois nós fomos pra Rua Afonso Bovero e depois pro Brooklin.
P/2 – Vocês mudaram? Seus pais casaram no Rio?
R – Não, na verdade, eles vieram pra São Paulo. Eles se conheceram no Rio e começaram um romance no Rio, mas pouco tempo depois eles vieram pra São Paulo.
P/2 – Você sabe por quê?
R – Não. Eu sei que meu pai chegou a ser professor da Escola Graduada um tempo, mas eu não sei exatamente porque eles vieram pra São Paulo.
P/1 – E como é que foi a sua infância com um pai americano e mãe brasileira? Como vocês conversavam?
R – Era uma situação muito diferente, porque, na minha casa, o meu pai só falava inglês com a minha irmã que nasceu lá. E quando ele tentava falar Inglês comigo ou com meu irmão nós não gostávamos. Então eu me lembro de falar assim: “Fala em Português!” e aí ele não insistia, entendeu? Ele falava em Português e com a minha mãe, geralmente, falava em Inglês. Então, na verdade... Enfim, eram as duas línguas. Ele trabalhava muito, ele dava aula no ABC às seis horas da manhã e chegava em casa tarde, porque ele também tinha aulas após o expediente, nas empresas. Então, acho que ele trabalhava, provavelmente, das seis da manhã até às dez da noite ou talvez mais até. Isso é uma coisa que me marca muito, porque a carga horária de trabalho do meu pai sempre foi e até hoje, apesar dele estar com quase 80 anos, é mais ou menos assim, uma coisa brutal, maciça, entendeu? Muita disposição pro trabalho, um humor muito bom com os alunos. Eu já tive a oportunidade de conhecer alguns alunos dele acidentalmente, até de estar andando na rua com ele. Agora ele mora em Curitiba. Eu estou andando na rua com ele e aparece um aluno e eu vejo que todos têm um carinho muito grande, uma apreciação muito grande por ele.
P/1 – Na casa de vocês, como é que era assim os momentos que vocês estavam juntos? Talvez um momento que todos sentassem à mesa pra conversar? Se era mesmo bilíngue?
R – Era bilíngue, porque quase sempre meus pais entre si só conversavam em Inglês. É difícil conseguir lembrar de algum momento que eles tenham falado em Português um com o outro e com a minha irmã também. No entanto, eu e o Daniel, meu irmão, só falávamos em Português.
P/1 – E como vocês se comunicavam com a irmã? Vocês se comunicavam com ela?
R – Sim, porque ela veio pro Brasil com três anos de idade, então, na verdade, ela em pouco tempo estava falando... Engraçado, porque a minha irmã quando ela fala Português, é uma brasileira, e daí quando ela fala Inglês, é uma americana. Ela é, assim, completamente bilíngue, são duas...
P/1 – E do que vocês brincavam? Você brincava com sua irmã mais velha ou só com seu irmão?
R – Não, ela é bem mais velha do que eu. Então, na verdade, eu brincava sempre com meu irmão, porque eu sou só dois anos mais velho que ele. Tinha muito mais troca nesse sentido, o conflito também, a gente brigava muito, mas era uma convivência muito mais intensa com ele. Com ela, eu tenho muito a memória, assim, de perceber o quanto ela foi importante como cuidadora também, porque ela é uma personalidade extremamente afetiva, é uma excelente mãe, tem três filhos [e] é uma mãe que participa ativamente na educação dos filhos. E comigo ela sempre teve um cuidado muito grande, e com meu irmão ela exerceu esse papel também.
P/2 – Marcus, você lembra quando começou a entender inglês? A se desarmar um pouco, talvez, a resistir um pouco menos?
R – Lembro e aconteceu por causa de música, porque eu comecei a ouvir muito rock, ali na pré-adolescência. Com 11 anos, eu fiz uma viagem pra Flórida com minha mãe e com meu irmão, e eu percebi que já entendia muita coisa. Tem estudo até que fala disso, você cresce ouvindo outra língua mesmo que não fale, quando você tem uma oportunidade, já é praticamente fluente. É verdade isso. Daí, depois, quando meus pais se separaram quando eu tinha 12 ou 13, eu fui com meu irmão pra Califórnia pra ficar com meu pai durante as férias e numa dessas vezes a gente foi pra uma escola lá, escola de Ensino Fundamental. Aí eu tive a chance de ver como é que é o cotidiano escolar nos Estados Unidos. Eu acho que tinha 13 anos quando isso aconteceu e eu era totalmente fluente já, graças ao “rock’n’roll”.
P/2 – O que você ouvia de “rock’n’roll”?
R – Metal... Eu ouço até hoje, isso nunca morre. Kiss. Enfim, essas coisas são pra sempre.
P/2 – O teu irmão também seguia esse caminho do rock?
R – Não, ele teve um interesse mais por hip hop. Enfim, as coisas que atraíam ele dos Estados Unidos era mais por outro lado. Eu lembro que, por exemplo, quando saiu o primeiro filme Wall Street, o meu irmão sempre teve fascínio por mercado financeiro e eu lembro que ele adolescente, ele viu o primeiro Wall Street e ele ficou fascinado! O personagem do Gekko com Michael Douglas e ele falava daquilo, enfim... Então, sempre foi muito mais pra esse outro lado.
P/1 – Voltando um pouquinho pra quando vocês eram menorzinhos. Assim, você se lembra da sua escola? Da sua primeira escola?
R – Sim, o Pueri Domus. Eu estudei no Pueri Domus, uma escola maravilhosa. As memórias que eu tenho de lá são algumas das melhores memórias da minha vida.
P/1 – E quais são essas memórias? Você se lembra de alguma?
R – Sim. Por exemplo, quando eu estava no pré, no final dos anos 70, eu tive uma professora que... Naquela época, os alunos chamavam de tia, a tia Tiko, uma japonesa nascida no Japão. E até hoje, ela é uma das pessoas que mais marcam a minha vida, minha professora do pré que me ensinou as primeiras palavras. Eu lembro que uma vez ela pegou um livro que tinha cada página, era a imagem de alguma bandeira de vários países, e ela foi virando as páginas e foi mostrando o livro... Enfim, ela chegou numa página e era bandeira americana e ela virou pra sala, falou assim: “Essa é a bandeira do país do pai do Marcos!”, é claro que todo mundo olhou pra mim e na época... Enfim... Isso adquiriu um significado muito importante, porque depois você vai crescendo e vai repensando nas coisas. Ela era japonesa e, com certeza, nasceu durante a guerra. Fazendo as contas assim, a gente vê que ela era criança no Japão da guerra ou do pós-guerra imediato. Ela falava Português com um leve sotaque japonês e a memória que eu tenho dela, ela com certeza foi uma das pessoas mais doces que eu já conheci. Com certeza, um dos profissionais da educação mais maravilhosos que eu vou conhecer a vida inteira. Talvez um dos seres humanos mais impressionantes que eu vá conhecer. Enfim, a impressão que me fica dela é de uma pessoa de completa luz.
P/2 – Você se lembra de uma situação assim que te marcou com ela? Um episódio?
R – Eu tenho pensado muito nisso, porque tem esse episódio do livro e eu tenho uma cena de um dia que meus pais foram me buscar na escola e eles conversando brevemente com ela, não sei, um “Oi, tudo bem? Como vai?”. Eles falando com ela... Eu não tenho muitas memórias disso, mas essas breves memórias que eu tenho, elas vêm com um sentimento muito forte e eu me lembro dela escrever algumas palavras na lousa. A coisa da grafia, da alfabetização em si, as primeiras palavras, eu lembro disso.
P/2 – Você misturava um pouco ou não tinha isso? Você não soltava coisa em inglês sem querer? Você tinha aquela coisa da resistência? Ou estava mostrando um pouco?
R – Não, dizem que a primeira coisa que eu falei foi: “Olha a ‘moon’”, mas eu não lembro disso. É possível que eu tenha falado isso.
P/1 – E que outras lembranças marcantes você tem da escola?
R – Do Pueri Domus eu tenho várias, aquela escola era fantástica. Eu tenho várias memórias, sabe? Festa junina, sala de aula. O Pueri Domus da Verbo Divino, os professores lá... Realmente, a imagem que eu tenho deles lá é muito positiva. O professor Sérgio de Educação Física, personagem importante na história daquela escola. A comemoração dos 15 anos e depois dos 18 anos da escola, eu participei das duas, paiol grande. Enfim, a personalidade daquela escola realmente era fantástica.
P/2 – Como eram as aulas desse professor Sérgio?
R – Ele era um cara de bom astral, entendeu? Então, assim conseguia a atenção dos alunos e sempre estava de bom humor, boa disposição e era fácil, era muito fácil embarcar nas propostas dele durante as aulas. Por exemplo, eu não gostava de futebol nem um pouco, quando tinha futebol na aula de Educação Física, eu nunca queria jogar, então era só ele falar: “Os meninos, futebol e as meninas, queimada!”. E é claro que depois que isso acontecia, toda vez, eu chegava pra ele e falava assim: “Professor, posso jogar queimada com as meninas?”. E ele sempre deixava e, enfim, eu ficava totalmente realizado, e hoje em dia eu faria a mesma coisa.
P/1 – E como era o espaço da sala de aula, você lembra?
R – Olha, a primeira coisa que vem é que toda sala de aula tinha uma janela que geralmente ficava atrás dos alunos. Um lado oposto à lousa e a área... O espaço externo da escola era muito grande, então dava pra correr muito. Eu lembro que no chão tinha umas pedrinhas, enfim, era um pátio enorme. Então, a questão do espaço físico lá era muito boa também.
P/2 – E as outras aulas? Matemática, Português?
R – Matemática sempre foi um trauma, eu espero que meus filhos não passem por isso. É, infelizmente, por falta de aptidão própria. Enfim, eu não tenho certeza que a questão tenha sido muito bem administrada, mas eu me lembro de ter muita dificuldade com Matemática e, depois, nas exatas de forma geral e daí ir totalmente pra área das línguas: História e Português. Eu tinha facilidade nas Humanas e isso vinha com muita facilidade, mas se eu pudesse mudar alguma coisa, eu gostaria de... Enfim, de ter tido uma aptidão pra área de exatas, [ter ido] melhor, um pouco.
P/2 – Você se lembra de algum professor de Português legal? Um professor de História?
R – Eu tenho mais memórias assim em outra faixa etária. No antigo Ginásio, por exemplo, sim, aí eu me lembro de vários professores, vários. Por exemplo, no Ginásio, eu tive um professor de Ciências chamado Paulo Cezar que se eu não me engano teve um episódio... Um acidente em que ele perdeu todas as provas dos alunos e ele deu 10 pra todo mundo, porque ele chegou e falou: “Como isso foi da minha responsabilidade, então vou dar 10 pra todo mundo”. Isso me marcou muito também. Ele também é uma presença muito íntegra. É incrível porque essas coisas com poucos episódios você percebe uma postura completamente entregue à profissão e o contato com os alunos.
P/1 – E foi um pouquinho antes da época do Ginásio que você teve a experiência com a escola lá nos Estados Unidos, você se lembra de ter sentido alguma diferença entre as escolas? O que te marcou?
R – A primeira coisa que marca é que o período, as horas na escola são muito diferentes. Então, aqui no Brasil era aquele esquema de manhã ou tarde, então das sete da manhã até meio dia ou o período da tarde, enfim... E lá eu ia pra aula às nove da manhã, não oito, e ficava até mais ou menos umas três - isso já muda muita coisa. Fora isso, o deslocamento no espaço físico. Você tem uma aula de uma matéria numa sala e depois sai pra ter aula de outra matéria em outra sala. Eu achei muito diferente isso, muito legal. Também tinha o espaço externo, a coisa do esporte. Eu me lembro, por exemplo, de jogar basquete com um professor e outros alunos na quadra, o professor de sala de aula! Uma vezes ele ia pra quadra e começava a jogar basquete com a gente, e eu achei muito legal isso. Outra coisa diferente é a coisa do refeitório, porque no Brasil eu nunca tinha almoçado num refeitório da escola com os colegas e isso foi muito diferente.
P/1 – E o que você achou do refeitório? Da comida?
R – Ah, eu gostei. Na verdade, eu sempre me adaptei bem em outras culturas e gostei, foi muito boa essa experiência. Inclusive, eu continuei me correspondendo com os alunos por um certo período. Eu lembro que depois que eu voltei pro Brasil, todos os alunos da sala, cada um escreveu uma carta. Eles colocaram a carta no envelope e eu recebi uma carta de cada um. Enfim, uma iniciativa assim...
P/2 – Quanto tempo você ficou lá?
R – Um mês.
P/2 – E você tinha 13 anos, né?
R – Foi durante as férias da escola aqui no Brasil.
P/1 – E aí vocês iam pra escola naqueles ônibus amarelinhos?
R – É, ônibus amarelo, tudo.
P/1 – E como é que aqui no Brasil você ia pra escola, você ia de manhã ou de tarde?
R – No Primário, eu estudei à tarde e, depois, no Ginásio, eu fui estudar de manhã. Enfim, aqui no Brasil geralmente [em] ônibus de escola também, a condução, enfim...
P/1 – E como é que era o seu cotidiano nessa época da escola aqui no Brasil? Porque você estudava um período só, né? O que você fazia no outro período?
R – Bom, meu interesse por música, então eu chegava em casa e ia tocar guitarra, ia colocar o som no último volume pra incomodar os vizinhos, ouvir rock. Ou então, teve uma época que a gente foi morar no Portal do Morumbi, então eu chegava mais tarde no Ginásio. Quando eu comecei a ler, eu lembro que eu chegava da escola, eu estudava de manhã, descia, ficava e na beirada da piscina lendo e passava a tarde lendo.
P/1 – O que você lia? Você lembra?
R – Eu lembro... Alguns livros marcaram muito, o “Retrato de Dorian Gray” foi um deles. Quando eu fiz 13 anos, o meu pai me deu oito livros que tiveram um impacto assim. Eu acho até que ele errou um pouco a mão, porque ele deu livros que não são pra um cara de 13 anos. E eu ficava meio com insônia, eu não conseguia dormir, porque era Kafka, Herman Hesse, Strindberg, era uma coisa totalmente difícil de digerir pra 13 anos. Admirável Mundo Novo. Enfim, pouco tempo depois... Ah, um dos livros que ele me deu foi Rei Lear do Shakespeare, a peça - foi meu primeiro contato com Shakespeare.
P/1 – E você fazia alguma outra atividade fora da escola?
R – Não, nessa época não. Aos 16, eu comecei a fazer Teatro, quando eu era aluno do Logus. O Logus da Avenida Rebouças. No Ensino Médio, eu comecei a fazer teatro, mas era lá dentro. Mas ali começou outra coisa também, o teatro foi, enfim, uma porta.
P/2 – Você saiu do Pueri, o Pueri ainda não tinha Ensino Médio... Eu achei que você tivesse estudado no Pueri a vida inteira...
R – Não, eu fiquei algum tempo lá e muito tempo depois, eu fui pro Logus. Enfim...
P/2 – Por que você resolveu mudar ou os seus pais resolveram mudar?
R – Enfim, a vida escolar pra mim não foi muito fácil. Quando eu penso assim em retrospecto, eu vejo que fui um aluno muito irregular, porque um ano eu ia bem, as notas eram muito boas, aí o ano seguinte eu repetia de ano! Eu tive algumas vezes essa experiência, eu sei o que é passar por isso. Enfim, perdia o interesse pela escola conversando com as pessoas, lendo, ouvindo aqui e ali. É claro que as coisas estão juntas, um aspecto está ligado a outro. Enfim, a minha adolescência não foi fácil, não foi muito agradável. Uma certa parte dela foi na verdade muito ruim. A separação dos meus pais, separação de pais não é fácil e é importante que os pais consigam admitir isso, é muito importante que os pais tenham coragem de admitir o quanto é difícil pros filhos, porque só admitindo isso eles vão de fato olhar para as crianças que passam por isso. Enfim, e admitir, inclusive, que isso com certeza não é uma maravilha no item escolar de um aluno. Então eu penei ali. Enfim, a vida [na] escola não foi fácil não.
P/2 – E você estava no Pueri? Você estava em que ano quando eles se separaram?
R – Eu tinha nove anos. Eu estava no Pueri, sim.
P/2 – Nove anos é o quê? Terceira série, né?
R – É, terceira série.
P/2 – E aí você continuou no Pueri até a oitava?
R – Não, eu fui estudar em outra escola. Enfim, eu estudei em outra escola e depois dessa outra escola, eu fui pro Logus. E tanto na outra escola quanto no Logus houve anos que eu tive problemas com nota. Eu não acho que eu era muito bagunceiro, não. De vez em quando, eu fazia um pouco de bagunça, mas eu não fui aluno que aprontava, assim de fazer alguma coisa não. Era baguncinha “light”, entendeu? Geralmente, inofensiva. E, enfim, era mais um desinteresse pela atividade acadêmica, pelo estudo em si. Eu tinha dificuldade em Matemática e nem queria pensar, eu não queria nem ouvir o que estava sendo dito, porque aquilo era desagradável, era penoso.
P/2 – Aí tem um lado seu que tem lembranças maravilhosas do Pueri e tem um lado que tem lembranças difíceis dessa coisa do estudo, né?
R – É porque o lado humano quase sempre foi maravilhoso lá, e as dificuldades escolares começaram assim quando eu já tinha uns nove, nove, dez. Enfim, aí fica difícil.
P/1 – E como foi pra você a mudança da escola? Foi natural ou foi escolhida?
R – Enfim, eu tive um desempenho muito ruim no Pueri Domus nesse ano. Dos nove anos. E, enfim, fiquei no Pueri na terceira também, na quarta, na quinta e a quinta série eu repeti, ali já tinha uma situação de dificuldade. E aí veio a sugestão... A minha mãe tinha ouvido falar de outra escola e aí eu falei: “Ah, tá!”, “É uma escola aqui perto!”. E aí eu fui estudar nessa outra escola durante o Ginásio inteiro. E o Ginásio foi uma montanha russa, porque é incrível como [em] um ano o desempenho era muito bom, sabe? As notas eram altas, talvez até em Matemática não tenha sido tão ruim, mas daí o ano seguinte era aquela queda total.
P/1 – Qual era essa escola?
R – O Colégio Pentágono.
P/2 – Você lembra... A gente falou um pouco do Pueri, estamos falando do Pentágono, falamos do Logus, mas só voltando um pouco pro Pueri essa coisa que você falou humana. Como era a questão... Como era a relação com os amigos, a turma que você estudou?
R – A minha primeira turma de amigos no Pueri Domus, eu me lembro deles com muito carinho até hoje. Eu tinha quatro amigos e sempre andava junto com eles: Alexandre, Guilherme, Fernando e André. Então, eu sinto que o vínculo nas amizades nessa fase era muito bom - infância e pré-adolescência.
P/2 – E você se lembra do que vocês brincavam? Como que era o recreio?
R – Ah, sempre era uma coisa muito física como o espaço físico era muito grande a ideia era apostar corrida ou correr e saltar por cima de uma escada e ver quem conseguia chegar mais... Salto em distância, eu era o único que não gostava de futebol, os quatro eram fanáticos... Gostavam de jogar bola e tal. Então, às vezes, eu até, sei lá, me voluntariava pra jogar no time de alguém pra, sei lá, por bagunça. Teve uma vez até que eu consegui fazer um gol, um gol acidental, totalmente sem querer. Mas era sempre uma coisa muito do físico, de correr e querer se impor, assim, se impor amigavelmente diante do grupo através da expressão física.
P/1 – E quando você estudava no Pueri onde vocês moravam?
R – O último lugar que a gente morou foi... Bom, a gente morava no Brooklin, que foi onde meus pais se separaram, e logo em seguida veio a PlayPen, Escola Cidade Jardim. Na época, era só PlayPen. E nós moramos lá na escola, na casa da escola. Durante dois anos eu fui aluno do Pueri Domus no outro endereço, eu saí da Verbo Divino e fui pro endereço da Jacurici, a nova unidade que eles abriram. Então, eu voltava a pé, lembro que estudava na Jacurici e eu caminhava pela ponte Cidade Jardim até a PlayPen, onde a gente morava.
[Pausa]
P/1 – Então Marcos, a gente [tava] falando e você acabou de comentar com a gente que você chegou [a] morar na escola, morar na casa onde era a escola. E como foi essa experiência?
R – Foi difícil, foi bem difícil, porque eu tinha nove anos, então eu nunca fui aluno da PlayPen, porque no primeiro ano a PlayPen tinha alunos até seis anos. Eu e o Daniel, meu irmão, nós morávamos numa edícula atrás da casa. Então, na verdade, a gente tinha o nosso próprio espaço ali, mas era difícil porque a casa era uma escola durante o dia e nos fins de semana aquela região era uma área muito isolada. Enfim, é difícil imaginar Cidade Jardim, Morumbi, em 1980, e nos anos 80 - era uma coisa muito afastada. Então, eu lembro que, por exemplo, às vezes a noite a gente ia pro “playground” que ficava atrás da escola, no terreno... Aí a gente ficava naquele terreno enorme, enorme pra uma criança, né? Enfim, no meio do nada, ou pelo menos a sensação que dá é essa; como se você tivesse no meio do mato a noite, entendeu? Enfim, Morumbi, Cidade Jardim nos anos 80. E eu lembro que a gente tinha muita vontade de morar em outro lugar. Habitar um lar que fosse só lar, que não fosse também outra coisa.
P/1 – E vocês tinham contato... Porque vocês estavam lá na casa enquanto tinha também atividades. Então, como é que era isso? Vocês ficavam meio de olho ou tinham que ficar mais longe?
R – Não, a gente tinha contato, porque, por exemplo, logo que a escola começou, eu lembro que na época gostava muito de bicicross [BMX] e aí eu ficava andando de bicicleta ali na frente. Então, às vezes, os alunos estavam chegando na escola e estava eu lá andando de bicicleta, então eu conhecia os alunos, os familiares. E é claro que festa junina também tinha contato e eu estava ali. Teve uma ocasião que me marcou muito, porque como eu e meu irmão morávamos nesse quarto nos fundos da escola, teve uma vez que minha mãe recebeu uma visita durante uma semana. Aí obviamente que o nosso quarto foi cedido a essa pessoa e eu e meu irmão ficamos hospedados numa sala de aula, só que a aula começava às oito da manhã e depois da sete a gente tinha que sair do quarto. Só que, na época, a gente estudava à tarde. Então, era assim, alguém vinha e falava: “Vocês tem que acordar!”. Eu acho que era minha mãe: “Agora está na hora de vocês acordarem”. Enfim, tinha que sair da sala e aí as nossas camas improvisadas eram tiradas daquela sala e a gente passava o período da manhã durante a semana fazendo alguma coisa, mas não podia ficar na sala. Aí ficava acho que no “playground” da escola. Essa semana me marcou muito porque é muito estranho você pensar que tem uma casa na qual você mora, entendeu? Então, na verdade, você tem uma casa só que, momentaneamente, nessa casa, você não tem um quarto. Tem um lugar que você pode dormir a noite, só que às sete horas da manhã você tem que sair desse espaço e não pode voltar até às sete da noite ou, sei lá, depois das seis da tarde. Então é uma situação assim que a realidade vai se reconfigurando. É como se você vivesse num mundo que é, assim, as circunstâncias vão mudando rapidamente, entendeu?
P/1 – E você tinha algum sentimento em relação à escola?
R – É engraçado, porque eu acho que, eu acho não! Na época, com certeza eu não realizava... Minha mãe resolveu abrir uma escola: “Tá!”. Só que essa era... Naquele momento, era a única realidade que eu conhecia [e] não percebi a importância disso. Enfim, eu ia tentando me adaptar.
P/2 – Mas você lembra quando eles começaram a conversar de abrir uma escola? Como foi essa história?
R – Bom, quem abriu a escola foi a minha mãe, a escola é fruto da minha mãe. É óbvio que o contato da minha mãe com o Inglês e com a cultura americana foi graças ao meu pai. Então, na verdade, a contribuição dele foi indireta e cultural. É inegável, mas a escola é um fruto da minha mãe. Eu não lembro...
P/2 – Vocês moravam no Brooklin?
R – Sim, quando eles se separaram.
P/2 – Aí que ela resolveu montar a escola?
R – Sim, do Brooklin. Ela foi comigo e com meu irmão pra casa e abriu a escola, tudo ao mesmo tempo. Então, foi separação, casa nova e escola. Vida nova, tudo junto.
P/2 – Mas ela já tinha mencionado alguma vez quando você era mais novo a vontade de ter uma escola? Tinha esse sonho? Você se lembra disso?
R – Não, é difícil lembrar ou pensar. Enfim, talvez muito de passagem eu tenha ouvido alguma coisa assim, mas talvez não, entendeu? Eu não tenho nenhuma memória clara disso.
P/1 – E aí, depois de dois anos nessa casa, vocês mudaram?
R – É, depois de... Eu acho que depois de dois anos, talvez dois e meio, mas é mais ou menos isso aí. A gente mudou e foi morar no Portal do Morumbi.
P/1 – E aí sentiu falta do agito? Como é que foi o impacto?
R – Morar lá foi muito bom, porque morar num apartamento que era só minha casa, isso era um privilégio inimaginável. Foi muito bom a coisa do espaço físico. E daí eu tive, enfim, um quarto, eu tinha meu próprio quarto, meu irmão tinha o quarto dele, a coisa da privacidade. E isso, com certeza, quando aconteceu, eu tinha noção do quanto era especial.
P/2 – Voltando um pouquinho, quando vocês moraram na escola, quem trabalhava na escola? Quem estava...
R – A Marinalva, que é a segunda parte da alma daquela escola. A alma daquela escola, além da minha mãe, a Guida, fundadora, é a Marinalva. Ela está lá desde o início. Quem mais trabalhava lá? Teve uma outra professora americana chamada Victória, a Vicky que tinha sido professora da Escola Graduada - uma profissional fantástica! Enfim, toda vez que eu ouço uma referência ao nome dela é sempre... Ela foi uma pessoa muito importante pra escola também, porque a escola contou, então, com uma, pelo menos, eu acho que mais do que só ela, mas pelo menos ela era uma super professora.
P/2 – Por quê? Conta um pouco.
R - Porque além dela ter todo currículo profissional e de ter obviamente toda uma formação, ela tinha uma presença. Era uma mulher muito bonita. Era, enfim, uma presença. E ela também tinha um lado artístico. Na casa da minha mãe, até hoje, tem um quadro dela. E também era uma pessoa que tinha um humor muito bom, alto astral. Enfim...
P/2 – Vocês conversavam com ela, você e seu irmão?
R – Não, porque tinha pouco contato. Eu via ela ali na... Tinha uma salinha que as professoras tomavam café e como eu e meu irmão almoçávamos lá, então, na verdade, a gente sempre estava convivendo com as professoras. E enfim, das primeiras professoras da escola, eu me lembro dela. Eu sei que ela foi “A” profissional crucial no início da escola e eu também lembro, isso é importante dizer, que a minha mãe sempre deixou claro que ela fez um grande esforço pra manter essa profissional lá. Fez um esforço pessoal, um sacrifício pessoal pra poder contar com essa profissional. Enfim, eu acho que posso dizer isso. Ela até brincava que, por exemplo, a Vicky ganhava melhor do que ela - eu não duvido nem um pouco disso. Então, eu acho que as pessoas que abrem o próprio negócio têm que pensar nisso também. Várias vezes eu ouvi ela dizer: “Olha, o salário da Vick é melhor do que o meu!”, e eu acho que isso provavelmente aconteceu durante um ano ou dois.
P/2 – E a Marinalva, o que fazia? Você se lembra dela na escola?
R – Eu lembro. A Marinalva, realmente, é a vida da escola e, enfim, ela é o cerne indispensável da escola, daquela instituição. Ela estava sempre ali fazendo alguma coisa na cozinha ou fora, ou conversando com outro pessoal que trabalhava ali também ou vendo alguma coisa, entrando em sala de aula pra levar alguma coisa, levar o lanche das crianças. Enfim, ela sempre... A Marinalva é uma pessoa que tem uma personalidade que deixa muito claro pra todo mundo que está em volta quais são os limites que tem que ser respeitados, entendeu? Então, assim, quando alguma coisa é possível de fazer, ela faz; se alguma coisa não dá pra ser feita naquele momento, ela deixa claro. Sempre deixou claro. Enfim, se alguém da escola vinha pedir um favor numa hora que ela estava... Ela deixava claro que daqui a pouco [faria], entendeu? Ou... Enfim, ela sempre se fez respeitar muito bem. Então eu vejo que a Marinalva foi muito importante e é muito importante pra escola. Tem sido sempre importante pra escola, porque é uma pessoa que vê o que é possível e se coloca para os outros com muita clareza, assim, de... Enfim, todo mundo respeita.
P/2 – Você se lembra de alguma situação dela, dando limite assim?
R – Lembro, por exemplo, teve uma época... Isso bem mais tarde, eu morava nos Estados Unidos e precisei substituir uma auxiliar de professor em alguma turma, aí a professora titular virou pra mim e falou assim: “Ah, vai lá na cozinha e pede tal coisa pra Marinalva!”, ela estava naquela afobação e precisava de alguma coisa. Aí eu cheguei, a Marinalva estava na cozinha e eu falei: “Marinalva, a professora tal precisa de sei lá o que!”. Ela falou: “Fala pra ela que agora eu estou ocupada, agora eu não tenho tempo pra ver isso”. E ela falou com tanta clareza que na hora eu cheguei pra professora e falei: “Olha, agora não dá, ela está ocupada”. Mas, 15 minutos depois a Marinalva entrou na sala de aula com aquilo que a professora tinha pedido. Então, não é só o lado de pôr limite, é o lado, assim, de na hora ir e falar: “Agora não dá, agora não!”, mas logo depois ela vai. Também tem a boa vontade, a generosidade, enfim, o amor. E [o] vai e faz.
P/2 – Só pra curiosidade, você lembra o que era essa coisa que a professora pediu?
R – Era um copinho cheio de feijão pra contar ou, enfim, separar uma atividade do Infantil. Só que a Marinalva estava mexendo com uma panela que estava no forno e não dava pra ela deixar o que ela estava fazendo na hora.
P/1 – Então, continuando a fase sua escolar, só pra ficar bem clara as suas passagens e tal. Então, do Pueri veio o Pentágono...
R – O Pentágono, e depois eu fiz o, então, Ginásio inteiro no Pentágono, quinta a oitava. Depois eu fui pro Logus, no Primeiro Colegial.
P/1 – E como foi a mudança do Pentágono pro Logus? Do Pentágono você contou um pouquinho da montanha russa que foi um período instável. E, depois, como foi a mudança pro Logus?
R – O Logus foi muito bom, apesar de eu ter repetido de ano lá! Eu só fiquei no Logus um ano, mas no geral foi bom, porque os professores eram muito bons e foi lá que eu comecei a fazer teatro, e eu adorava a turma. Então, no Logus, o pessoal, os alunos do Logus eram muito legais. E, enfim...
P/1 – E como surgiu assim a possibilidade de começar a fazer teatro?
R – Surgiu porque toda aula de História eu queria ler. Naquela época, tinha uma coisa do aluno pegar e: “Abre o livro e começa a ler o capítulo tal”, e o aluno lia em voz alta. Eu acho até que hoje em dia isso talvez não aconteça mais. Mas, enfim, eu adorava isso. Como eu gostava de História, gostava muito de ler em voz alta, e gostava de literatura, eu sempre me voluntariava pra ler e ia meio que encenando. Não sabia o que tinha lido depois, mas queria encenar aquilo. Então, História e Português sempre eram recebidos... Eram matérias muito bem-vindas; Francês também. Eu adorava estudar Francês, que, na verdade, eu estudei no Pentágono. Então, as línguas em geral e as Humanas, e daí... Na verdade, foram os meus amigos no Pentágono que começaram a falar: “Você devia fazer Teatro!”, porque tinha um grupo de Teatro e o professor de Teatro era o mesmo que dava aula de Inglês. Aí, enfim, as pessoas começavam a falar: “Você devia fazer teatro e tal”. Eu pensava assim: “Quem sabe?”, e aí eu resolvi uma hora fazer.
P/2 – No Pentágono você não fez?
R – Não, no Pentágono eu não fiz Teatro. Mas eu comecei a fazer porque eu fui pro Logus logo depois de eu ter passado um mês na Inglaterra, uma experiência muito... Extremamente positiva. Ficar na Inglaterra foi maravilhoso assim, foi um despertar. Eu tinha 16 anos e fiquei em Oxford durante um mês com uma família que tinha seis filhos, e aprendi a entender um inglês impossível de entender: o inglês britânico mais popular, que eles chamam de “cockney”. O inglês bem popular da Inglaterra é uma outra língua, e eu aprendi a entender. E eu fiquei completamente louco por cultura anglofônica. Eu sempre tive uma afinidade... Claro, eu sou também um americano. Não é que eu sou apenas filho de americano, eu sou brasileiro e americano e sempre tive muita clareza disso, cada vez tenho mais clareza disso. Na Inglaterra, eu senti uma afinidade enorme por aquela cultura também. E literatura, eu já gostava de ler Shakespeare, Oscar Wilde, e eu fiquei numa cidade que tem uma das melhores universidades do mundo. Então, quando eu voltei pro Brasil e fui pro Logus, o professor de Teatro era o professor de Inglês João Antônio Teles, um excelente professor [e] diretor de teatro. Eu fiquei sabendo depois que parece que ele virou pesquisador da PUC. Então, a personalidade dele e a combinação disso tudo, tudo isso se juntou e aí eu entrei no teatro e falei: “Cara, isso é legal!”. Era muito legal.
P/1 – E o que fazia ser legal? As atividades, o grupo? Pôr em prática o texto e a encenação? Ou um pouco de cada?
R – Era legal, porque assim, os colegas eram demais, era um grupo composto quase que exclusivamente por meninas. Tinha eu e mais um cara que depois saiu. Enfim, aí no final do ano quando a gente apresentou o espetáculo, só tinha eu e elas, [que] eram 13. E essa convivência, isso foi maravilhoso estar num grupo de teatro. Enfim, a gente apresentou ionesco, “A Cantora Careca” do ionesco, e aquilo foi completamente maravilhoso, sem falar da boemia extrema que acontecia nos fins de semana, porque ali foi o início da vida boêmia. Como eu tinha 16 anos, já dá pra você... Enfim, você já começa a ter uma vida social fora da escola também e aquilo foi quase uma salvação.
P/1 – E o que vocês faziam de vida boêmia? Pra onde vocês iam? Iam a teatro?
R – Na verdade, volta e meia tinha festa na casa de alguém e, de vez em quando, a gente saía fora... Enfim, eu lembro que uma vez foi todo mundo pro karaokê na Liberdade, todo mundo com 16 ou 17 anos de idade. Nos anos 80, esse tipo de coisa acontecia e, enfim, aí estava todo mundo no karaokê, e aquilo realmente foi muito legal.
P/1 – E aí, você ficou um ano no Logus, nesse grupo de teatro?
R – Eu repeti de ano no Logus e assumo total responsabilidade por isso, porque a escola fez de tudo pra me ajudar. O Logus me ajudou muito. Eles realmente fizeram a parte deles, eu tenho consciência; eu sei que teve professor ali que fez caridade comigo na nota [no] final do ano. Essa informação chegou até mim. Eu fiquei sabendo que teve uma professora ali que, literalmente, me deu uma nota que eu não merecia porque os outros fizeram pressão sobre ela pra que eu ficasse apenas de recuperação no limite ali, que era permitido de duas ou três matérias - se não me engano, três. Então, essa quarta professora foi pressionada pelos outros professores pra me dar uma nota de presente, uma professora de Biologia; eu sei disso, entendeu? Eu entendo que isso deve ter sido uma situação terrível pra ela. Enfim, os professores e a escola fizeram tudo que eles poderiam ter feito pra me ajudar. [E] a minha mãe também, porque ela contratou professores particulares. Eu tinha aula de Matemática [e] de Física com dois professores que também eram maravilhosos. Por incrível que pareça, eu adorava ter aula com aqueles dois, e durante um mês eu tive aula particular quase todos os dias. Eu não quero nem imaginar qual foi o custo disso, o custo energético e financeiro, mas eu repeti de ano. Enfim, totalmente uma postura pessoal. Aí eu saí do Logus e fui pro colégio Objetivo da Paulista.
P/2 – Vamos só voltar um pouquinho, porque eu estou curiosa de saber nessas mudanças de colégio. O que você sentia de diferença na metodologia da escola, sair de um Pentágono e ir pro Logus que tinha uma proposta... O que você sentia de diferença nas aulas?
R – Olha, o Logus era uma escola de professores pensantes. Eu nunca tinha usado esse título antes, mas me veio agora - enfim, eu espero que ninguém se sinta ofendido. Mas é isso: os professores que tinha no Logus eram quase todos muito bons, escolhidos a dedo. Um exemplo: até hoje eu me lembro do professor de Química, eu não me lembro do nome dele, mas ele... Um dia ele perguntou assim pra a gente: “Olha, às vezes eu ouço falarem que tal coisa foi cientificamente provada...”, o professor de Química. E aí eu fico pensando: “Olha...”. Aí ele perguntou pra a gente assim: “Quando vocês ouvem dizer que alguma coisa é cientificamente provada, vocês aceitam isso imediatamente?”, aí a maioria dos alunos falou que sim. Eu não respondi, mas grande parte dos alunos falou sim. Ele falou assim: “Não aceitem com tanta facilidade!”. Um professor de Química que coloca em dúvida a argumentação inquestionável através de ciência, enfim, pra conseguir observar qualquer coisa. Esse é um... Eu não acho que seja tão fácil encontrar alguém assim. Ou, por exemplo, eu lembro também que o professor de História uma vez perguntou pra a gente: “Vocês acham que existe neutralidade? Que existe um jornal ou que possa existir um livro de história neutro? Ou que alguém possa apresentar um fato histórico como se fosse uma verdade neutra?”. Aí os alunos pensaram um pouco, cada um reagiu da sua forma e ele na hora falou assim: “Olha, não acreditem nisso. Não existe neutralidade, não existe neutro, não existe só apresentar um fato, sempre existe uma interpretação”. E isso é uma coisa eu carrego até hoje.
P/2 – E isso em relação ao Pentágono, o Pentágono era como?
R – Talvez um pouco mais tradicional, mas também tiveram bons professores. Eu citei um professor de Ciências, o professor Paulo Cesar, que deu 10 pra todo mundo, foi lá no Pentágono, e foi um excelente professor. Então, lá também eu tive contatos com professores muito bons e também tive algumas amizades importantes ali.
P/1 – E o Objetivo?
R – Caos. Infelizmente, é difícil achar... Enfim...
P/1 – E nessa época do Objetivo, desse período final de escolarização, você tinha ideia do que você queria fazer quando crescesse?
R – Não. Na verdade, eu me interessava por Teatro, mas eu não comecei a pensar em trabalhar com teatro logo que eu comecei a fazer. Enfim, eu sentia muita afinidade por algumas coisas, mas eu não pensava com muita clareza: “Quero fazer tal coisa!”, por exemplo. Eu acho que eu era aluno do Objetivo do Colegial quando eu comecei a dar aula de Inglês. Se não me engano, eu comecei a dar aula de Inglês com 17 anos. Eu não sei se alguém sugeriu. Tinha uma escola de Inglês ali do lado da Paulista, o diretor era um inglês e aí eu fui dar aula na escola dele. Uma época, enfim, garoto total, 17 anos de idade. Todos os alunos eram bem mais velhos que eu, mas eu achava legal também. Eu gostava de dar aula. Mas foi nessa fase de Ensino Médio.
P/1 – E como foi essa experiência de dar aula, de entrar numa sala com gente mais velha? Você usou algumas das suas habilidades do teatro pra começar?
R – Com certeza, eu usei. O primeiro grupo que eu dei aula foi um grupo de três mulheres; se não me engano, as três eram secretárias. Uma trabalhava na Japan Airlines e as outras duas, cada uma numa empresa diferente. Enfim, as três eram secretárias e era legal, porque eu usava muito a coisa teatral e eu nunca fui muito de planejar aula. Eu herdei isso do meu pai. Meu pai, pouco tempo atrás, veio me falar que essa história de planejar, isso é bobagem; o professor tem que chegar lá e dar aula: olhar pro aluno e entender o que é necessário, entender o que o outro precisa na hora, captar aquilo, e dar aula. E é claro que pra ele sempre foi muito fácil, porque ele tem essa coisa de percepção e de troca imediata. E eu também fui dar aula, uma coisa, assim, meio hereditária e também não queria ficar preparando aula. De vez em quando, eu folheava o livro cinco minutos rapidamente pra ver qual era o capítulo que eu ia dar porque era uma escola que adotava um livro e tinha que ser dado aquele livro e eu respeitava isso. Mas o diretor, esse inglês, um dia percebeu que eu fazia isso cinco minutos antes de entrar em sala e aí um dia ele quis me pegar. Ele chegou e estava eu lá no corredor olhando rápido o que ia ser naquele dia; ele chegou e falou assim: “Marcos, eu queria falar um minutinho com você...”. Enfim, ele começou a perguntar uma coisa totalmente irrelevante, sei lá, e começou a puxar papo, não me deixava sair, e eu preocupado até com o horário da aula, porque as alunas já tinham entrado em sala e eu preocupado porque eu não tinha lido o capítulo que eu ia dar naquele dia. Ele não deixou e falou: “Ah, sua aula já começou. ‘Thanks, bye’”. Aí eu entrei e fui dar aula sem ter lido tudo e é claro que foi um estresse porque tinha que ler e dar aula tudo junto. E aí depois ele veio falar comigo: “Eu fiz isso porque eu vi que você não prepara muito as suas aulas. Eu queria ver como você se saía numa situação de improviso, quase total improviso”. E depois eu fiquei sabendo que parece que ele ficou escutando atrás da porta, eu acho que ele falou isso depois. Mas, também, isso foi divertido.
P/1 – E como é que se deu depois que terminou a escola, você continuou dando mais tempo aula de inglês?
R – Na verdade, eu fui para os Estados Unidos, pra morar, quando eu estava no meio do Segundo Colegial. Então, eu abandonei a Avenida Paulista, o Objetivo, naquele cenário de caos total, e fui para os Estados Unidos.
P/1 – Pra onde você foi?
R - Pra Califórnia. Então, eu cheguei lá e eu nem tinha completado o Ensino Médio. Aí eu comecei a fazer dois tipos de estudo ao mesmo tempo. Eu fiz aula numa escola de ensino médio que eles chamam de “Adult Start Program”, que era, assim, uma High School, mas como eu já tinha 18 anos, eu não fui matriculado em aulas normais na High School. E eu fazia um programa de estudo em casa e, uma vez por semana, eu ia até essa escola presencialmente e fazia uma prova. Estudava a semana inteira sozinho em casa. Eu lembro que eu estudei História Americana e Inglês, Inglês para nativos, como currículo escolar, Literatura e tal. E, ao mesmo tempo em que eu fazia isso, eu virei aluno de um “College”, um tipo de escola que não existe no Brasil. Porque, na verdade, é uma escola intermediária entre... Na verdade, é como se fosse uma pré-faculdade.
P/2 – É um técnico?
R – Não é, porque não é uma universidade, mas dá acesso à universidade e se você completa uma determinada carga horária, você recebe um certificado, um diploma que eles chamam de AA, que é como se fosse algo anterior a um bacharelado. Na verdade, tem uma equivalência aos dois primeiros anos de uma universidade - isso é uma particularidade dos Estados Unidos, que eu saiba. É uma coisa que deveria ser considerada de se fazer em outros lugares também, porque isso facilita muito pro aluno. Isso, na verdade, abre muitas possibilidades pra quem não foi bom aluno no Ensino Médio. É uma solução, porque mesmo que você tenha sido um aluno ruim no Ensino Médio, se você se matricula no “College”, que só pede que o aluno tenha 18 anos. Não tem nenhuma exigência acadêmica, basta ter 18 anos que você pode ir lá e se matricular. E se você tem um desempenho bom nesse “College”, consegue entrar pra uma universidade.
P/2 – E você escolhia o que ia estudar no “College”? Tinham eletivas?
R – Sim, tinham eletivas e você pode fazer um programa específico. Você pode se declarar como fazendo o programa tal e aí vai fazer aquelas matérias que são escolhidas, mais as eletivas. Pouco tempo depois de eu estar no “College”, eu tinha escolhido que ia fazer Artes Cênicas, Teatro e aí eu segui, enfim, as matérias pra dar acesso a universidade a esse curso na universidade.
[Pausa]
P/1 – E como foi a experiência de morar na Califórnia?
R – Foi a experiência da vida.
P/1 – Em que lugar da Califórnia?
R – Ao sul da Califórnia. Primeiro, eu fui pra uma região ao sul de Los Angeles, a uma hora de Los Angeles, ali onde meus avós moravam - pro mesmo lugar que eu tinha ido quando eu tinha 3, 4 anos de idade pra visitar meus avós.
P/2 – E teu pai estava morando nos Estados Unidos?
R – Não. Nessa época, ele estava no Brasil. Ele tentou uma volta para os Estados Unidos nos anos 80 e voltou pro Brasil, enfim... Ele morava no Brasil e eu fui. E primeiro, fiquei na casa de uma prima da minha mãe. Todo mundo fala do pessoal de Valadares que vai morar nos Estados Unidos, então, essa prima da minha mãe é um deles. Eu fiquei com ela pouco tempo e depois eu fui morar numa casa de uma senhora americana que eu alugava um quarto na casa dela, eu fiquei acho que uns dois anos morando com ela - foi uma pessoa muito importante também.
P/2 – Que cidade que era?
R – É que, na verdade, são várias cidades, uma do lado da outra. A cidade mais conhecida, turística, perto ali era Humboldt. Tem Laguna Beach... Enfim, fui ali colado. Eu morava perto de Laguna Beach, num lugar chamado Mission Viejo.
P/1 – E aí, lá que você fez o “College” e foi pra universidade?
R – É, fiz o “College” nessa área ao sul de Los Angeles. No “College”, eu fiz muito teatro: fazia aula de interpretação, fazíamos espetáculos, do que eles chamam de teatro de comunidade, “community theater”. O teatro de comunidade são peças que acontecem num “College” ou em alguma escola ou em um teatro que é frequentado pelas pessoas que moram ali na área. Enfim, é um teatro semiprofissional, porque americano sempre faz as coisas com muita seriedade. Eles fazem bem as coisas... Então, na verdade, não dá pra falar que é teatro amador, porque tem uma seriedade ali; é um teatro semiprofissional. E era muito legal porque, por exemplo, algumas dessas peças que eu fiz, tinha gente de todas as faixas etárias, assim, um elenco que tinha alguém de 8 anos de idade e alguém de quase 80, muita gente no meio, assim, jovem e tal, e sempre com vivência muito boa profissional. Ninguém ali, quase ninguém eu acho era ator profissional. Era um pessoal que gostava de fazer teatro, mas tinha uma postura muito ética, muito profissional.
P/1 – E desse “College” que veio a ideia de continuar os estudos, fazer uma universidade?
R – É, eu sabia que queria ir pra alguma universidade e eu tive um professor de interpretação e diretor de teatro que sempre falava da escola que ele tinha estudado, da universidade que ele tinha estudado, a universidade do sul da Califórnia, a IUEC. E eu via que ele falava com um orgulho dessa escola. Eu lembro que ele falava dela e ele contava uma história e tal. Eu nunca tinha ouvido falar dessa universidade e eu lembro que nessa época eu virei bom aluno, essa época do “Community College” eu virei bom aluno. Não tinha que fazer nenhuma matéria das exatas, porque o programa de Artes Cênicas não tinha esse pré-requisito. Então,] eu fazia as matérias que eram pedidas das Humanas, algumas eletivas e muito teatro. E aí eu virei bom aluno. Comecei... Eu tinha uma média de nota muito alta e eu lembro que uma vez eu já tinha ouvido falar da IUEC, porque meu professor ficava buzinando o nome dessa escola -, americano tem um baita orgulho da universidade que estuda. Porque isso, naquela sociedade, é um indicador muito forte de alguma coisa, enfim, o “pedigree” do americano é a universidade que ele estuda. E depois de ouvir ele falar tantas vezes dessa escola, um dia eu fui pegar as minhas notas na secretaria do “College”, aí eu fiquei tão orgulhoso, porque a moça que me entregou as notas... Eu olhei pras minhas médias e falei assim pra ela: “Que legal, eu acho que vou ser aceito na escola tal!”, falei o nome de outra universidade que eu pensava estudar na época. E ela virou pra mim e falou assim: “Hum, hum! IUEC!”. Eu lembro que quando ela falou isso, sabe aquela coisa de a pessoa... O toque de ouro, a pessoa da secretaria que me entregou lá vira e fala... E ela fez esse comentário com uma convicção que na hora eu parei e eu olhei pra ela, fiquei pensando em silêncio. Pouco tempo depois disso, eu vi um cartaz no muro do “College” que a IUEC estava aceitando inscrições. Enfim, alguém ia estar ali pra conversar com os alunos, com os interessados e quando eu vi aquele cartaz eu tinha certeza que ia estudar lá. E eu fui e fiquei cinco anos lá... E penei.
P/1 – E como é que eram as aulas lá, o esquema? Você foi morar mais perto da faculdade?
R – Aí eu me mudei pra Los Angeles. Essa universidade fica numa área pesada de L.A. Não é uma área boa, é uma área ali perto do centro sul, que é a área perigosa, é a área das “gangs”. É a área que assim... A universidade começou em 1880, então quando eles fundaram a escola ali era uma fazenda e a área foi cedida pra essa universidade, só que coisas foram acontecendo, aquela coisa de transformação urbana e nos anos 70 essa região de Los Angeles se tornou uma das áreas mais perigosas dos Estados Unidos. Então, você tem ali... Enfim, é a área dos “rappers”. Muito do “rap” que ficou conhecido vem diretamente daquela área. Os caras estão sempre ali falando, fazendo referências àquelas ruas. Então eu me mudei pra esse lugar e, assim, com medo, assustado, porque eu morava num lugar que era todo bonitinho e, de repente, eu estava ali.
P/2 – E é um bairro mais negro ou misturado?
R – Sim, é um bairro negro. Na verdade, Los Angeles, a parte centro-sul, é uma região predominante negra e a parte leste é a parte “chicana”, mais hispânica e tal. Eu morava ali e, enfim, logo que eu me mudei pra lá, eu fiquei com medo porque eu sabia que tinha... O negócio pegava ali, não era só filme e música. Era de verdade, porque você ouvia helicóptero da polícia a noite, eu via polícia e, na verdade, em Los Angeles, a polícia é muito mais perigosa do que qualquer pessoal ali da comunidade. A polícia é muito mais perigosa e eu percebi isso rapidinho. Eu tinha um amigo negro ali na época, eu comentei com ele: “Olha, cara, eu estou morando ali e tal, e fico meio assustado assim”. Aí eu lembro que ele virou e falou: “Cara, não tem nada pra ter medo, não tem perigo nenhum”. Aí eu acreditei, apesar de eu morar num prédio ali na Rua 27 com a Figueroa, que não é um endereço muito bacana - não é Bervely Hills, entendeu? Eu saía pra balada e chegava às três da manhã. O primeiro ano, eu não tive... O sorteio lá das vagas da garagem, eu não ganhei o sorteio, então significava que eu estacionava na rua. Chegava às três da manhã, estacionava ali na Rua 27 e fui feliz. Já aconteceu de eu ficar perdido voltando, assim, de outras regiões voltando pra Los Angeles de madrugada, [de] eles interditarem o Freeway e eu ter que sair da estrada principal e ter que pegar atalho dentro no coração centro-sul - ali onde a coisa é realmente inimaginável. E, enfim, tudo bem.
P/2 – O que você viu nessas ruas? No centro-sul, no coração do centro-sul?
R – Situação, todo tipo de situação, polícia abusando do poder, polícia sendo... Exercendo ali o músculo. Isso foi pouco tempo depois do episódio com (Rony Kenion?), aqueles policiais de Los Angeles, que teve toda aquela história, aquela manifestação toda, mas eu vi ali os caras exercendo o poder. Você parava no... Tinha carro que quando parava no farol, o carro inteiro tremia. Os caras ali ouvindo “rap” no último e ali balançando, o carro inteiro tremia, enfim... Mas eu nunca tive nenhum tipo de episódio desagradável com ninguém ali da comunidade, eu tinha até um amigo que morava ali na área. Nenhum problema. Mas a polícia abusa sim do poder, isso ficou claro pra mim e, enfim, qualquer ocasião que eles te param porque você não esperou três segundos pra fazer uma curva à direita, eles pedem documento e tal e você sente rapidinho que você tem que ter muita serenidade, entendeu? Pra administrar aquilo, pra ficar tudo bem.
P/2 – O que você estudou?
R – Teatro.
P/2 – Mas você focou em alguma coisa na tua formação? Direção?
R – Não, eu não tive um foco específico, o meu diploma é Bacharel de Artes em Teatro. Lá existe isso e vem escrito “Theater” e, na verdade, a maior parte das aulas de teatro são de interpretação. Então, assim, eu cheguei a fazer matéria de Direção, fiz também. Tem todo um currículo de História de Teatro, mas a maior parte da experiência foi com interpretação.
P/2 – E quando você escolheu esse caminho, qual foi a reação dos seus pais? Eles acharam legal, já imaginavam isso? Ou não?
R – Na verdade, desde que eu comecei a fazer teatro, a minha mãe sempre apoiou muito e o meu pai também. Quando eu falei pra ele: “Estou fazendo teatro!”, ele achou legal, talvez, pela afinidade com literatura. Porque como ele vem de uma formação das Humanas e é um literato, então tem essa afinidade também. E foi muito legal, porque na minha formatura estavam os dois presentes. Enfim, isso foi muito legal.
P/1 – E como foi seguindo, então, sua vida a partir daí? Você formou em teatro lá nos Estados Unidos e aí, como foram os próximos passos?
R – Aí eu já tinha morrido de saudade do Brasil. Não dava mais porque é difícil ser estrangeiro, é difícil morar muito tempo fora. Então, na verdade no finalzinho da minha vida lá eu já tinha decidido que eu ia voltar pro Brasil. Mas eu fiz uma força pra conseguir me formar e, de certa forma, o meu melhor ano lá foi o último ano. Eu já tinha relaxado porque eu ia me formar e ia voltar pro Brasil, então eu pude aproveitar tudo que tinha lá. Eu me formei e, pouco tempo depois, liguei pro meu agente de viagem, que era um brasileiro em Los Angeles, e falei: “Olha, eu quero fazer uma reserva aí, só que dessa vez é só de ida!”, aí ele ficou inconformado. Porque tem muito brasileiro que mora fora que, às vezes, não tem um pensamento muito legal, muito positivo com o Brasil. E aí eu lembro que quando eu falei que queria passagem só de ida, ele ficou chocado, ele tentou me convencer - eu nunca o vi pessoalmente, só por telefone -, falou: “Não, passa umas férias lá. Compra a passagem de volta, você vai ver... Fica aqui”. E é incrível porque eu encontrei muito essa reação em muita gente lá, brasileiros e não brasileiros também, americanos ou gente de outros países, mas essa reação foi mais forte dos brasileiros e de algumas pessoas aqui também: “Ah, você vai voltar pra esse país?”. Eu lembro que tem um pai, ele é pai até hoje da Escola Cidade Jardim, quando eu falei que tinha voltado pro Brasil, ele falou assim: “O que, Marcão? Você vai voltar pra...”. Enfim, deixou muito clara a opinião dele sobre o Brasil, mas é que é difícil imaginar como é ser estrangeiro, entendeu? Porque eu estava cansado.
P/2 – O que era ser estrangeiro? Quais são as dificuldades?
R – Valores culturais. Então, de repente, você tem valores que é difícil mudar, é difícil até perceber que tem tais valores antes de estar numa situação em outro lugar, com uma cultura diferente; você nem percebe os próprios valores, nem sabe o que acredita. Eu vejo que muitas vezes você não percebe nem o que realmente acha que é importante. Daí quando você está num meio que as importâncias são outras... A cultura e tal, o valor é outro. Aí você vê que: “Ah, eu penso diferente!”. Isso ficou claro na segunda metade da minha vida nos Estados Unidos, eu fiquei oito anos lá.
P/2 – Que valor você achava mais conflitante? Ou diferente?
R – Ah, é difícil apontar as coisas. É difícil apontar, porque não é tão simples assim. Às vezes, até é um sentimento é um jeito que expressa alguma coisa, entendeu?
P/1 – Você se lembra de alguma situação que viveu lá que você falou: “Nossa, eu preciso voltar pro Brasil”?
R – Por exemplo, uma coisa aparentemente inofensiva ou sem muita importância, eu lembro que uma vez eu conheci um cara, por sinal, dono de uma casa, e daí eu aluguei um quarto também, porque lá acontece isso: você aluga o quarto na casa de uma pessoa. E aí, um dos lugares que eu morei, eu fui me encontrar com o dono dessa casa pra ver se gostava do lugar e se dava pra eu morar lá e aí quando eu fui me despedir dele, eu falei: “Legal, então a gente se fala”. Aí ele vira e fala assim: “Sexta eu vou dar uma festa de aniversário e, se você quiser, vem, está convidado. Vai ter comida grátis”. Ele usou esse termo “free food” e talvez tenha sido a primeira vez que eu tenha ouvido essa expressão e na hora eu fiquei pensando: “Mas e daí?”. Enfim, depois eu ouvi essa expressão em muitas outras situações e eu percebi que isso é normal. Eu percebi que isso não é uma ofensa, que isso não é dito com nenhuma conotação perversa. Enfim, isso não é... Isso é uma coisa totalmente normal, porque eles são pragmáticos assim nas situações. Então, você chegar e falar que tal coisa é de graça, lá não é um insulto pro outro, é uma informação só. Só que a primeira vez que eu ouvi isso, eu não gostei, porque aquilo para um brasileiro era muito estranho. Então, assim, o jeito deles... O jeito que as coisas são colocadas, às vezes, não é legal, entendeu? É o lugar, é a situação. E também uma coisa que fez uma diferença, que me afetou muito no meio da minha estadia nos Estados Unidos, eu fui pra lá em 90, e 94 foi um ano crucial pro Brasil, porque aconteceram duas coisas importantes: o Ayrton Senna morreu e depois o Brasil ganhou a copa. Esses dois eventos tiveram uma marca, porque eu vinha de férias. Aí eu cheguei de férias e quando cheguei estava acontecendo a procissão do Ayrton. Lembro que eu cheguei ao apartamento ali do lado da Rebouças e vi aquele cortejo fúnebre, que é uma imagem que não dá pra esquecer. Enfim, o carro de bombeiros e ali, todo mundo na rua, um monte de helicópteros. Enfim, estava acontecendo aquele cortejo que era uma coisa cinematográfica. E a coisa de Brasil, de brasileiro ficou muito forte ali. Logo depois disso, o Brasil é tetra - e eu morava nos Estados Unidos quando o tetra aconteceu. 4 de julho de 1994 o Brasil ganhou o jogo dos Estados Unidos, gol de Bebeto e passe do Romário - eu nunca vou esquecer isso. Aquele dia pra mim realmente foi glorioso.
P/2 – Era feriado lá, né?
R – Era feriado e os Estados Unidos inteiro assistindo, e eu aqui no Brasil. Porque eu vi a copa aqui do Brasil, era férias, mas você está conectado com o lugar porque você mora lá e conhece todo mundo e aí o Brasil ganha aquele jogo suado. Impossível! E logo depois ganha a copa e o Brasil sai daquela fase difícil que foram os anos 80. Aquela música do Ultraje [a Rigor] “Inútil”, pra mim aquilo é o hino da época. Infeliz a autoestima do Brasil... Ali era muito ruim, foi muito ruim ser adolescente... Pra mim, na minha experiência, a identidade de ser brasileiro nos anos 80 foi terrível. Enfim, isso é pessoal, mas o caso é que o Brasil ganhou a copa em 94 e aí estourou essa fase, entendeu? Acabou e veio uma outra fase. O Senna e o tetra levantou moral, levantou a bola e aí eu voltei pros “States” por cima, entendeu? E sabendo que... Eu já tinha sentido, mas, enfim, queria voltar a morar no Brasil. Aí eu fiquei [nos Estados Unidos] até me formar.
P/1 – E como é que foi voltar depois de toda essa experiência dos Estados Unidos? E esse novo jeito de encarar até o próprio Brasil? Como foi chegar aqui de volta na sua casa, na sua terra?
R – Foi legal. Engraçado, porque é difícil... Foi legal, foi uma readaptação. Eu lembro que sentia total... Quando as pessoas vinham falar comigo: “Nossa, você tem certeza que você quer voltar pra cá?”. O sentimento era de: “Não tenho dúvida nenhuma”.
P/1 – E você já tinha algum projeto ou plano do que ia fazer aqui depois de formado?
R – Sim. Nessa época, eu alimentava totalmente a ideia de trabalhar profissionalmente como ator. Porque eu morei cinco anos em Los Angeles, então eu já tinha feito muito teatro, um mundo de peças, o mundo de teatro era uma coisa, mas aí morando em L.A tem a coisa do... Essa coisa de aspirante a ator, de tela, entendeu? Cinema, aqui no Brasil, TV... E aí eu cheguei pensando em Rede Globo, em trabalhar como ator profissional, porém, eu me deparei com um baita de um paredão que, assim... Aquela coisa legal do teatro, de força no palco e... Enfim, é um clima se você vai pra outra experiência... Televisão ou, enfim, trabalho com câmera, não é aquilo, é uma coisa bem diferente e isso pra mim foi uma transição que não rolou, sabe? Eu cheguei até a fazer vários testes pra filmes publicitários, muitas vezes contra a minha vontade. E eu relutei muito até em me dispor a fazer teste mesmo porque eu lembro que todo mundo falava: “Você tem que fazer filme publicitário porque tem a questão financeira, que é verdade, e aqui tem publicidade”. Aí tudo bem, chegou uma hora que eu falei: “Tá bom, eu vou fazer teste!”. Encontrei uma agência, mas não rolou. Eu fiz vários testes, sabe? Vários. Primeiro que muitas situações eu nem me sentia bem, não era divertido como fazer uma peça assim, como, estar no palco. Enfim, era outro ambiente. Eu cheguei até a fazer uma foto pra uma companhia, um filme fora de São Paulo pra outro estado, mas era uma transposição que pra mim foi... Enfim, não rolou, eu não consegui sentir ou fazer uma ponte entre fazer teatro. E daí trabalhar em filme publicitário em situações de... Enfim, não aconteceu. Nessa época, mais ou menos, ou talvez um pouco antes disso, eu fui dar aula numa escola de teatro, no Teatro Escola Macunaíma. Trabalhei cinco anos lá e foi bem legal - essa experiência foi muito bacana.
P/1 – E como foi o seu contato de volta com a PlayPen? Que você falou que teve um período de substituição, até contou o caso que teve com a Marinalva.
R – Na verdade, assim, contato com a PlayPen começou a acontecer de verdade quando eu morava nos Estados Unidos e aí eu vinha nas férias. Então, por exemplo, tal auxiliar... Uma das auxiliares precisava sair de repente e aí eu substituía por um mês essa pessoa ou, enfim, se eventualmente um dia alguma professora não pudesse aparecer, eu ia e substituía. Então, isso aconteceu algumas vezes durante a minha vida nos Estados Unidos, aí vinha de férias. E aí quando eu voltei dos Estados Unidos...
P/2 – Você voltou em 96?
R – 98. Quando eu voltei tinha uma turma que a professora tinha acabado de sair, a professora de Inglês. A principal professora de Inglês tinha saído e eu assumi a turma no período da tarde. Ali foi muito divertido. Foi difícil, porque era uma turma de... Eu estou tentando lembrar a idade deles, eu acho que eles eram... Talvez, na época, era primeira série, eu acho que era então primeira série e era uma turma divertida, eles eram bagunceiros, mas eram muito divertidos. Eu tive uma experiência muito importante nessa turma, tinha uma aluna americana que tinha um pai bravo, um pai muito exigente, estava sempre na escola e queria saber tudo que a escola fazia, queria saber o que cada professora estava dando em cada aula. Enfim, ele realmente acompanhava a coisa ali... Era pressão. Aí a coordenação chegou pra mim e falou: “Olha, o pai da aluna tal falou que quer vir assistir a sua aula”. E as coordenadoras vieram falar: “Ele é bravo...”.
P/2 – Quem era a coordenadora nessa época?
R – Era a Márcia. E, enfim, tinham outras pessoas ali no time. Tinha a Renata Oliveira também que trabalhava na escola nessa época. Se eu não me engano, outra pessoa da coordenação era a professora Maria Laura, que agora é professora de Português - durante uma época ela ocupou uma cadeira na coordenação. Aí elas vieram falar comigo que o pai da aluna tal era bravo: “Olha, dia tal ele vem!”, eu fiquei nervoso até. E não é que chega o dia, entra um nova-iorquino. Os nova-iorquinos, enfim, eles são... É uma cultura muito crítica e eles são muito assim... Eles chegam, querem saber o que acontece nas situações. E ele chegou, sentou, eu cumprimentei e, enfim, comecei a dar aula e ele ali na dele em silêncio. Depois de, sei lá, uns vinte minutos, uma eternidade, meia hora talvez, eu não sei quanto tempo porque eu nunca gastei tanta energia numa aula. Depois de um tempo, ele deu uma risada - eu fiz alguma brincadeira com os alunos que ele riu. Aí parecia que eu ia cair no chão, entendeu? Porque eu estava tão nervoso e me concentrando tanto pra dar aquela aula que quando ele riu e começou a brincar também, eu vi que nossa! Tudo bem... Aí ele continuou sorrindo pelo resto da aula e aí ficou o período inteiro. Aí, depois, se despediu de mim e saiu todo feliz da escola - essa experiência foi marcante. E no ano seguinte, quando a Márcia era coordenadora, eu comecei a dar aula de Teatro. Era a partir... Até a quarta série, porque eu acho que a escola ia até a quarta série naquele ano. Eu comecei a dar aula de Teatro sob a supervisão da Márcia; lembro que eu tinha até que preencher... Ela olhava toda a programação e aquilo foi muito legal, porque eu trabalhava com os alunos juntamente com as professoras. A professora titular de cada turma ficava durante a aula e participava, e era uma troca muito boa assim com as professoras.
P/2 – Eu fiquei curiosa com uma coisa: por que o nova-iorquino quis ver a sua aula? O que será que a filha dele levou pra casa?
R – Eu não acho que foi uma coisa pessoal, porque ficou muito claro na época que pelo jeito que a escola veio me (participar?), o interesse dele era por absolutamente tudo.
P/1 – Ah tá, não era sua só?
R – Não, enfim, ele queria ver tudo, queria entender tudo e saber tudo. E ele tinha uma coisa de querer saber o nível do Inglês que era ensinado ali, entendeu? O produto chefe da escola Cidade Jardim é a coisa do inglês.
P/1 – E falando da escola, foi nesse período que começou também o projeto da quinta dimensão, que veio também dos Estados Unidos, como foi? O que era esse projeto?
R – A quinta dimensão foi uma das melhores coisas que já aconteceu na Escola Cidade Jardim. Quem trouxe esse projeto foi uma professora universitária dos Estados Unidos. Na época, por acaso, ela também era minha namorada! Então, na verdade, havia um vínculo pessoal comigo antes de haver... Mas, enfim, por acaso ela foi apresentada à escola e a escola imediatamente se interessou pelo projeto, porque ela já trabalhava com esse projeto nos Estados Unidos através da Universidade de Berkeley (UC Berkeley), uma outra grande escola. E assim que a escola ficou sabendo desse projeto, na hora falou: “Sim!”, porque tinha a ver com Vygotsky.
P/2 – O que era? Conta um pouco pra a gente ter uma ideia.
R – A ideia do sociointeracionismo. Essa foi a fase vygotskiana da escola, a troca de um aluno com outro aluno, a troca de aluno de uma faixa etária com outra faixa etária. Então, aluno do quarto ano ajuda o aluno do segundo ano num projeto. Enfim, me parece que isso talvez poderia ser reintroduzido na escola. A ideia de que um aluno mais velho atua como ajudante do aluno mais novo mediado pelos professores, isso foi realmente enriquecedor pra escola.
P/2 – Em termos de conteúdo, o que a Quinta Dimensão propunha?
R – Bom, propunha a troca entre os alunos através do computador, através da informática. Então, a tecnologia na Quinta Dimensão realmente era uma ferramenta. Não era aula de informática, o computador era apenas uma ferramenta. Então, assim, os alunos escreviam, digitavam cartas para um personagem chamado Golfinho e esse personagem... Eles falavam das vivências deles, o que eles tinham feito, enfim o que eles estavam estudando, eles redigiam as próprias experiências. Aí o Golfinho respondia - a voz do golfinho era composta pelos professores, então os professores redigiam as cartas do golfinho para os alunos.
[Pausa]
P/1 – Então, a gente estava falando do projeto Quinta Dimensão e que as crianças escreviam para este ente, o Golfinho.
R – É, os alunos escreviam pro golfinho e o golfinho respondia, mas tinha outro personagem que era o inimigo do golfinho que era, enfim, eles chamavam Agramon. O Agramon escrevia cartas também para os alunos. Então, assim, na verdade, os alunos participavam ou observavam pelo menos a disputa entre o Golfinho e o Agramon, os dois pólos. E eles torciam, claro, pelo Golfinho, mas eles também tinham certo fascínio pelo outro.
P/1 – Bom, esse período do projeto Quinta Dimensão [é] de 98 até 2000, mais ou menos, que coincide...
R – 99. A quinta dimensão foi 99, 2000, eu acho que foi até... Ah não, continuou até 2002 ou 2001. Enfim...
P/1 – Que coincide, mais ou menos, com o processo de mudança da escola, de crescimento... Como foi sua participação nesse processo, você estava presente na escola? Estava dando aula?
R – Não, eu não estava completamente... Eu não estava presente o tempo todo porque eu dei aula de teatro lá em 99. Cheguei em 98, aí, em 99, eu dei aula de teatro lá, e 2000 também. Em 2001, eu saí da Escola Cidade Jardim e fui dar aula no Macunaíma. Então, eu praticamente me desliguei da Escola Cidade Jardim por um tempo, por cinco anos na verdade.
P/1 – E o que você sabe desse período? Pela convivência com a sua mãe?
R – Foi um período complicado, porque teve a reforma. A escola nova estava sendo construída, então a escola se mudou pra uma casa alugada ali do lado, poucos alunos, o espaço físico era limitado. Enfim, a sala de aula era... Foi uma situação muito improvisada e que exigiu ali uma flexibilidade muito grande da escola, dos professores e dos pais da escola. Todo mundo ali teve que... Com certeza, todas as partes tiveram que fazer concessões durante esse período porque a nova escola estava sendo construída.
P/1 – E como se deu a sua volta pra escola depois do trabalho com o grupo Macunaíma?
R – Bom, eu já estava no Teatro-Escola Macunaíma há cinco anos e aí eu senti que aquele ciclo já tinha se completado também. Quando eu dei aula no Macunaíma, fui exclusivamente professor lá, assim, professor daquela escola - não dava aula em nenhum outro lugar. Eu lembro que várias vezes, vários semestres, eu tive uma carga horária que era puxada. Eu lembro que, pelo menos, um semestre eu cheguei a dar aula sete dias por semana, porque tem aula sábado e domingo também. Então, eu lembro que, talvez, durante um ano inteiro, eu tenha dado aula sete dias por semana. Domingo de manhã até, acho que às duas da tarde. Então, eu vivi intensamente aquele período também.
P/2 – Mas quando você foi sentindo que esse ciclo estava acabando, como é que foi essa volta, essa transição? Por que é que foi pra lá?
R – Na verdade, tem muito a ver com a questão familiar porque eu tinha me casado. Eu estou casado há oito anos e o meu filho nasceu. Eu tenho dois filhos, um filho e uma filha. O meu primeiro filho nasceu em 2005 e eu percebi que com o filho era complicado, porque eu dava aula de teatro numa carga horária pesada. E, nessa época, eu também fazia espetáculo, estava fazendo um espetáculo na época como ator. Então, era muito difícil dar aula quase todo dia, fim de semana também, pelo menos sábado, ensaiar e fazer um espetáculo, apresentar sexta, sábado e domingo, às vezes, quinta à noite. Enfim, quando meu filho era pequeno, assim, eu vi que não estava dando. Aquele esquema começou a rachar, não estava dando. A minha mulher em casa com o bebê e domingo, o dia inteiro, eu estava fora fazendo... Não dava, aquilo rachou. Então, foi nesse momento que eu voltei pra Escola Cidade Jardim, em parte por questões de estrutura de horário, assim, buscando horários mais convencionais. Isso foi um fator.
P/1 – Aí você voltou pra fazer que atividades? Assumir uma turma, alguma aula de teatro?
R – Eu dei aula de teatro e também assumi uma turma temporariamente. Eu precisei fazer uma substituição, mas foi uma coisa momentânea. Mas eu voltei e dei aula de teatro curricularmente.
P/1 – Pra que série?
R – Eram mais velhos do que no outro período, então, seria, talvez, quarta, quinta, sexta ou sétimo ano.
P/2 – Mas eram as únicas séries que tinham teatro ou as outras tinham outros professores?
R – Não, não. Sim, eram as únicas séries que tinham teatro naquela época. Nessa época, eram mais velhos, entendeu? Se não me engano, eram os mais velhos da escola na época.
P/2 – Não era a turma para qual você tinha dado aulas antes?
R – Não, aquela primeira turma já tinha saído - eu acho que eles já tinham saído da escola.
P/1 – E hoje, ainda é... Que você falou de profissão e atividade de contador de histórias, como é que funciona isso? Você conta histórias também na escola ou essa é uma atividade externa?
R – Não, hoje a minha atividade principal na escola é trabalhar com contação de história pra todas as turmas do Infantil e do Fundamental 1 até o quinto ano. Enfim, tem um lado muito teatral. Além de contação de história, eu também, eventualmente, dou aulas de Inglês como professor particular para alguns adultos da escola, pessoas que são ligadas ao currículo de Português. Eu tenho, inclusive, uma turma de mães da escola que têm aulas de inglês comigo, mas a minha atividade principal lá é como contador de história do Infantil e do Fundamental 1.
P/2 – Mas continua tendo Teatro na grade?
R – Não, a escola atualmente não tem Teatro.
P/1 – E como funciona esse momento de contação de história? As crianças participam ou ficam sentadinhas ouvindo?
R – Na verdade... Muitas vezes é engraçado, porque eu chego nas turmas, principalmente os mais novos, do Infantil, e eu vejo que as professoras, às vezes, têm mais expectativa que eles fiquem sentadinhos ali ouvindo... Eu vejo que as professoras têm mais expectativas do que eu. Se isso não acontece, pra mim não é um problema, de maneira nenhuma. Ou se, de repente, um aluno se levanta e sai ali da rodinha e vai fazer alguma coisa, isso não é um problema pra mim. E não significa que ele não está prestando atenção, não significa que ele não está participando, que ele pode estar fazendo isso e estar participando também. De vez em quando, eu deliberadamente trago uma... Eu faço de algum jeito pra quebrar essa estrutura. Às vezes, eu acho que eles não têm que ficar ali sentados prestando atenção tudo bonitinho, enfim, essa coisa tão estruturada, então eu posso buscar... Vamos pular, entendeu?
P/2 – Você propõe atividades?
R – Eu faço de um jeito. Vejo que eles estão cansados, o dia está quente ou então, eles podem estar no final do período deles e estão cansados ou talvez a contação esteja chata. Isso acontece, a contação pode estar chata, eu vou lá e bagunço. Então, eu levanto subo em cima da cadeira, viro pra eles e falo assim: “Vocês também podem pular agora, vamos bagunçar! Quem quer bagunçar?”, de preferência em inglês. E aí faço de um jeito pra eles começarem a pular pela sala. Aí, de vez em quando, uma professora vira pra mim e fala assim: “Você vai ter que controlar eles agora, eu quero ver você conseguir baixar essa energia”. E isso também nunca é um problema! É incrível porque quando eu trabalho com uma faixa etária de um ano e meio até o quinto ano, que são adolescentes, a postura deles durante esses momentos, eu não espero a mesma coisa sempre, nem a mesma coisa de todos. E fica muito claro assim quando o aluno se movimenta porque ele precisa se movimentar e não tem problema nenhum, ele não está atrapalhando. De vez em quando, o aluno faz, vamos dizer assim, a baguncinha dele, do jeito dele, mas não está atrapalhando. Pode ser que não esteja me atrapalhando e tem vezes que eu sinto que nem está atrapalhando os colegas. Ele simplesmente se retira dali e vai pra outro espaço, e muitas vezes ele não precisa ser trazido de volta se ele não quiser. Se ele quiser, ele vem. É claro que daí com os mais velhos é outra coisa. É diferente porque o adolescente, você está ali... Recentemente, eu trabalhei um poema pedido por parte da escola, de que eu lesse um tal poema num inglês difícil de entender, uma situação difícil. Eu cheguei lá e comecei a fazer a leitura desse poema com eles. É claro que a linguagem ali era difícil, enfim, pra um pré-adolescente; não dá pra esperar sempre que eles vão se comportar.
P/2 – Você leu o poema com eles?
R – É, e eu percebi que aquilo não era comum pra eles. Aí tem que lidar com a coisa da pessoa naquela faixa etária e não aceitar facilmente que aquilo não está interessante, eles querem manifestar. Uma sintonia total na contação de história comigo e os alunos, isso acontece, mas não todas as vezes, eu nem espero que aconteça sempre. É claro que quando acontece é legal.
P/1 – Como é essa sintonia total?
R – Acontece quando a escolha do material é boa, o material tem a ver com aquela turma e por algum motivo acontece, é igual... No teatro também é assim, tem algumas apresentações que tem uma sintonia ali do... Enfim, que as partes se entendem é igual teatro.
P/1 – E quais são suas expectativas em relação à escola? Ao seu trabalho com a escola?
R – Pergunta difícil, essa não é uma pergunta fácil. Eu espero que possa continuar contribuindo da maneira que for possível.
P/1 – E você conversa... Você chegou a conversar com sua mãe do seu trabalho na escola? Vocês conversam sobre a escola?
R – Sim, de vez em quando. Esse assunto não surge sempre, não é um assunto que sempre seja falado, mas, enfim, o que é mais importante é que eu espero que sempre aconteça o que for melhor pra escola.
P/1 – E como você vê a PlayPen daqui a uns cinco anos?
R – Como uma escola cada vez mais consolidada com cada vez mais horizontes, novas perspectivas sendo abertas pela escola para os alunos. Uma escola que possibilite cada vez mais, mais perspectivas pros alunos.
P/1 – E a sua atuação nesse contexto?
R – Olha, como eu acredito que... Eu sinto que até agora a minha atuação nesse contexto foi assim de proporcionar algo que tenha sido o melhor pro... Enfim, pra coletividade. E eu espero que continue sendo isso, entendeu? Independente da maneira como isso aconteça. É difícil falar assim do futuro porque tem vários fatores envolvidos, assim, questões. As questões numa escola envolvem vários fatores e eu só espero que sempre o que aconteça seja o que for melhor pra escola. A escola sendo os alunos.
P/1 – Antes da gente... Você sabe como foi implantado o intercâmbio?
R – Qual deles?
P/1- O dos mais velhos?
R - O do Canadá?
P/1 – O da Suíça? Porque o do Canadá foi na época da entrada do Mr. French... Em 2004?
R – Sim. Olha, eu não sei muito sobre o intercâmbio da Suíça. Na verdade, assim, eu sei que existe uma viagem pra Suíça, mas eu realmente não tenho muita informação sobre como isso surgiu. Enfim, eu não sei muito sobre isso.
P/1 – Não tem problema. Então, vamos passar pra parte dos familiares, você chegou a falar que é casado e que tem dois filhos. Seus filhos estão na PlayPen?
R – Estão e eles adoram.
P/1 – Você chegou a contar histórias pra ele?
R – Uma vez por semana pra cada um. Segunda de manhã eu estou lá na turminha dela, ela tem dois anos. Enfim, eu entro na turma dela e ela vem toda feliz, é muito legal. E também eu vou na turma dele uma vez por semana, que já é outra faixa etária, cinco anos de idade. Então tem que pensar rápido, porque já é uma idade que eles começam a ser críticos. É incrível, porque eu entro na turma dele e tem meio que ser impecável, entendeu? Tem que ser impecável porque eles já têm muita crítica - está o pai do Ian ali, então tem que ser legal a contação de história.
P/1 – E na sua casa, como você se comunica com seus filhos?
R – Eu uso quase sempre português [e], às vezes, eu falo inglês - não tem uma regra. Eu até já ouvi uma sugestão alguém falou assim: “Você devia estabelecer que todo dia das cinco às seis você vai falar em português e das seis às sete você vai falar Inglês”. Não existe isso, não existe. Isso é uma fantasia. A relação de pai e filho não tem que ser assim, eu, pelo menos, acho. Então, assim, eu falo a língua que eu sinto, geralmente é português e, de vez em quando, eu falo inglês. Tem a coisa do passado também porque eu tive um pai, tenho um pai americano, e, às vezes, quando ele ficava um pouco... Ele queria falar alguma coisa de uma maneira mais direta, vinha em Inglês e, às vezes, eu faço isso também. Inglês é uma língua muito forte, tem uma expressão muito forte, então, de vez em quando, eu falo Inglês com meus filhos.
P/1 – E como você avalia o impacto da sua passagem pela PlayPen na sua vida assim?
R – A Márcia Plessmann uma vez disse que a experiência do professor é única, porque é a única profissão que quem exerce necessariamente já esteve do outro lado - o professor precisa ter sido aluno daquilo que ele ensina. Então, eu vejo muito por aí, no nível profissional, educacional, teatral e também no nível pessoal. Porque no nível pessoal é muito forte também, me possibilita entrar em contato de novo com momentos que eu já vivi: como é estar ali na frente de um monte de gente de tal faixa etária e daí lembrar como aquilo era pra mim ou, enfim...
P/1 – O que você acha da PlayPen comemorar os 30 anos com um projeto desses de histórias de vida? Da gente contar a história da PlayPen através das pessoas que...
R – Eu acho que tem que ser uma grande festa. E esse projeto é essencial, porque não existiria PlayPen se não existisse uma Marinalva, enfim, não existiria a PlayPen se a fundadora não tivesse tido um contato pessoal tão importante com a cultura do Inglês. Não existiria a PlayPen se, de repente, alguém não tivesse tido uma ideia tão revolucionária até de se separar e se mudar com dois filhos para uma casa e, naquela casa, fazer uma escola. Eu chamo isso de uma atitude radical, uma transição não suave em busca de grandes transformações.
P/1 – E o que você achou de ter dado essa entrevista?
R – Eu gostei.
P/1 – Tem mais alguma coisa que você gostaria de deixar registrado?
R – Gratidão. Na verdade, gratidão a muitas pessoas que foram citadas aqui, muita gente. Em primeiro lugar, eu sinto gratidão aos meus pais. Minha mãe teve muita coragem de fazer coisas que não agradaram todo mundo o tempo todo, poucas famílias tiveram essa coragem. Eu sinto muita gratidão ao meu pai, porque ele é um verdadeiro professor - eu percebo isso cada vez que eu encontro um aluno dele. Ele ama a atividade de professor. Eu o considero como alguém que entrega a alma pra uma atividade, entendeu, pra dar aula com muito cuidado, discernimento, energia e também pelo fato, eu sinto gratidão por ele pelo contato com literatura, enfim, o amor à literatura [e] à imaginação, imaginação está ligado à coragem, o exercício da imaginação está ligado ao exercício da coragem. O covarde não tem imaginação. Então, em primeiro lugar aos meus pais e, depois, eu sinto gratidão às professoras da escola e a coordenação da escola. Eu sei que a minha personalidade nem sempre foi a mais fácil de lidar, entendeu? Eu entendo que a coordenação... Enfim, chega esse cara aí pra dar aula e ele é filho da dona da escola! E aí ele nem me apresenta o planejamento das aulas dele, e eu entendo que pessoas da coordenação, com certeza, inevitavelmente, já pensaram isso. Então, eu sinto gratidão a eles porque eles pensaram isso, enfim... No entanto, eles também têm aberto portas pra mim de maneira muito sincera. Sinto gratidão também às professoras, por exemplo, eu citei a coisa de aula de teatro com a presença das professoras. Tem que lembrar, por exemplo, que as aulas de teatro que eu dei em parceira com a professora Sandra, que era, então, professora da terceira série - sem ela as aulas não teriam sido tão legais quanto foram. E eu sinto também gratidão aos alunos, porque o aluno não é obrigado a manifestar satisfação com nada. O aluno, criança, nem pensa que tem que ficar sentado na linha ou mesmo que saiba que a professora fala muitas vezes: “Não faz isso”. Eu já tive aluno ali no Infantil, atualmente, como contador de história, que de repente vai e bagunça e tal; e eu sinto gratidão, porque talvez esse cara esteja certo. E se tiver realmente sendo chato? Eu gostaria que as professoras pensassem nisso também, quando elas [estiverem] em outras situações... De repente, eu vejo assim, em alguma situação, um determinado aluno, enfim, busca alguma atividade diferente, eu acho que a professora tem que ter humildade. É claro que elas são responsáveis pelo andamento geral, sempre, mas eu acho que, discretamente, elas precisam considerar isso. Eu posso falar isso porque eu trabalho lá no Infantil. Tem que pensar um pouco também nisso. Eu sinto muita gratidão também aos pais da escola e aos funcionários. A todos os funcionários, enfim, que tem uma paciência, tem uma disponibilidade. O que eu sinto em relação à Escola Cidade Jardim é gratidão.
P/1 – Então, Marcos a gente agradece a sua presença em nome do Museu e da Escola Cidade Jardim PlayPen.
R – Eu que agradeço.
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