Projeto Braskem Um Novo Lembrar Compartilhando a Experiência Entre a Comunidade e a Organização
Depoimento de Luiz Felipe Xavier
Entrevistado por Isla Nakano e Marcelo Batalha
São Paulo, 17 de setembro de 2012
Realização: Museu da Pessoa
Código da Entrevista: BK_HV001
Transcrito por: Claudia Lucena
Revisado por: Nataniel Torres
P/1 – Luiz, primeiro queria te agradecer por você estar aqui, novamente, nos ajudando; para começar, fale o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O meu nome é Luiz Felipe Xavier, sou natural de São Paulo, nasci na Santa Casa de Santo Amaro, sou filho de Santo Amaro, [nascido no dia] 14 de abril de 1972; sou do século passado, completei recentemente os meus 40 anos. Sou arquiteto de formação.
P/1 – E os nomes dos seus pais?
R – O nome do meu pai é Jairo Eduardo Xavier, falecido, e o nome da minha mãe é Lucy Bublis Xavier, também falecida.
P/1 – E dos avós?
R – Dos avós paternos: Bento Xavier, que jogou no gol do Corinthians quando o Corinthians ainda não era time, em 1909, e Olívia Bento Xavier, minha avó. O meu avô, o meu pai fala que ele iria sentir muito orgulho, foi mestre de obras, trabalhou no prédio da Bienal de arquitetura. Por parte da minha mãe, [o meu avô é] Carlos Bublis e a minha avó Adelaide Bublis. A Adelaide é a única viva dos avós, está com 94 anos, é torcedora do Corinthians, lê o jornal todo fim de semana, gosta de caipirinha, feijoada e de falar palavrão, é uma figura muito legal.
P/1 – Fala um pouquinho dos seus avós, a história deles; você falou que o seu avô jogava no gol do Corinthians, conta um pouco mais.
R – Então, não tive muito contato com os meus avós paternos, eles faleceram quando eu tinha um e dois anos, então, conheço muito pouco da história dele. Eu sei que o pai do meu pai, o Bento [Bento Xavier], que foi mestre de obras, tinha uma diferença de 40 anos do meu pai, era uma pessoa muito rígida. Hoje você vê, de uns tempos pra cá, as pessoas têm filhos mais novos. O meu pai é o caçula. Portanto, foi um pouco distante, muito rígido e quando eu nasci ele estava com câncer, então, fiquei com uma memória não tão boa dele. Ele nasceu aqui, é filho de português, morou muitos anos na praia, em Peruíbe, quando não tinha nada ainda, ele era quase caiçara. O meu pai passou a infância dele aqui atrás do Dante Pazzanese e parte da infância lá em Peruíbe. Quando o meu avô ficou doente, eles vieram para São Paulo para fazer o tratamento e moraram um tempo na casa dos meus pais, mas eu não era nascido ainda. Meu pai conta uma coisa legal, ele sempre é uma referência muito boa para mim, porque ele sempre foi uma pessoa muito lutadora. Ele tinha até o primário e foi um cara que correu atrás do trabalho, lia muito e ele falava, desde cedo para todos os filhos: “Olha, vocês têm que ler muito se vocês quiserem fazer alguma coisa positiva na vida”. Aos 16 anos, o que ele ganhava aplicava no curso de piloto; aos 18 anos ele tirou o brevê. Ele gostava de fazer a minha avó feliz dessa maneira: como ela morava lá [em Peruíbe] e ele morava aqui, ele torrava todo o dinheiro dele alugando um aviãozinho pequeno de quatro, seis lugares, dava uma rasante na casa dela e pousava na praia para almoçar e voltava. Então acabava o dinheiro dele. Ele era de família muito humilde e sempre batalhou, correu muito atrás das coisas. Depois ele teve cargos legais, trabalhou na VASP, na Real, na Varig, foi gerente geral de transporte, deu aulas em faculdade de Turismo e deu aulas de Inglês. Ele morou dois anos fora. Não tinha educação [formal], foi educado pela vida.
P/1 – Onde ele morou?
R – Então, ele residiu, quando se casou com a minha mãe, em Campinas, porque trabalhava vinculado ao aeroporto [de Viracopos]. Trabalhou muito tempo na parte de aviação civil. Depois, ele veio morar aqui em São Paulo, ali na região do Dante Pazzanese. A minha mãe morava na região da Bandeirantes, quando ainda se pegava cogumelo grande para comer. Ela conta, e a minha avó também, já misturando os avós maternos e paternos, que ali, naquela área, era um charco, e eles pegavam os cogumelos grandes e fritavam numa panela com alho; se o alho ficasse preto você jogava a panela com o cogumelo, tudo fora, porque não dava para comer. Havia umas histórias assim. A minha mãe teve um pouco mais de formação, ela fez até o ginásio no Alberto Conte; era roqueira, gostava muito de Elvis. O meu pai era mais, não sei se saudosista é a palavra, mas como ele teve contato com outras culturas, ele sempre foi um cara mais antenado com o cinema, gostava de ver cinema antigo e todos os filhos pegaram esse gosto. Ele deve ter visto umas 20 vezes “My Fair Lady”. Aquele filme era um barato, nós gostávamos. Tinha essa coisa de ver cinema junto com ele e a minha mãe, só que o gosto musical dele era aquela coisa mais tradicional, não me lembro dos autores, mas era uma coisa mais tradicional e a minha mãe não, a minha mãe era adepta do rock, ela era uma moça muito linda, muito bonita. Depois eu irei mandar uma foto dela para vocês, na qual que ela está com todos os filhos. Tem uma foto com a gente, com o pai e outra com ela. Ela sempre foi muito vistosa, muito bonitona e dava um trabalho desgraçado para o meu pai. É muito engraçado, ela gostava de Johnny Rivers, então usava uma jaqueta jeans, gostava de rock, dançava Johnny Rivers, Elvis, Platters, toda essa safra do rock internacional; alguma coisa de nacional ela gostava e a nós pegamos muito gosto pela música por causa dela. Cada um dos filhos, depois, foi adquirindo gostos musicais diferentes. Minha avó por parte de pai, a Olívia, viveu um tempo conosco, depois que o meu avô faleceu [Bento Xavier]. Ela nasceu na chegada do cometa Halley em 1900 e faleceu na volta dele, em 1986. Ela morava conosco. Quando ela faleceu, eu deveria estar com 13 para os 14 anos. Eu gostava muito das histórias dela. Ela tinha um papagaio. Depois que ela morreu, o papagaio ficou comigo. Eu atazanava muito esse papagaio, brincava muito com ele. Ele gostava muito quando eu chegava perto - eu não podia chegar perto dele, mas eu não entendia na época - mas eu chegava perto dele e ele começava a balançar a cabeça e regurgitava para dar a comida dele para mim, como se eu fosse filho dele. Era muito legal. Ela morava junto com a gente. O que me lembro de forte dela? Ela adorava cozinhar com banha de porco, então, as comidas dela não eram nada saudáveis, eram pesadas. A minha avó materna teve uma presença muito maior para todos os filhos, porque o meu pai ficou desempregado por bastante tempo, dois anos e meio, e a minha mãe se virava. Ela mexia com pintura, com artesanato, com arte, com desenho, pintava camiseta, mexia com pirógrafo, vendia geleia. Não sei como ela conseguia fazer isso criando quatro filhos e, às vezes, quando ela tinha que levar alguma coisa para fora, as encomendas, ela nos deixava com a minha avó. Então, muito de nossa infância também ficou [marcada por ela]. Nós crescemos no bairro de Veleiros, que fica próximo do autódromo de Interlagos, na casa dela. Então, ela é a nossa referência… Naquele tempo era muito tranquilo, onde eu moro hoje é tranquilo também, mas naquele tempo, crescíamos na rua, não tinha essa coisa que tem hoje, que eu luto enquanto arquiteto urbanista … a criança podia ficar na rua brincando de polícia e ladrão, jogando bola, empinando pipa ... Tem a formação tradicional e tem a formação de rua. O meu pai mesmo falava para gente: “tem coisa que vamos te ensinar e tem coisa, muita coisa, que você vai aprender na rua”, e eu acho que é essa diversidade que faz a gente. A minha avó, naquele tempo, já gostava do Corinthians, de falar palavrão. Ela lia o Estadão, ela é anti-Lula... eu já tive altos paus com ela, é muito engraçado (risos) ... Numa das discussões que eu tive com ela, acho que uns dois anos atrás… ela é muito legal, você olha uma pessoa com 94 anos e ainda está antenada com questão política ... um dia ela falou: “Ah, não sei o quê, como que vai votar num presidente analfabeto?”. Eu falei: “Mas a senhora também, a senhora também tem preconceito consigo mesmo, né, porque a senhora também não teve educação.” Ela ficou pistola da vida, foi muito engraçado. Ela foi eu acho que a mais, aquela coisa da moral cristã, ela teve uma formação católica, dava aula no MOBRAL, de Educação Moral Cristã, eu nem lembro, assim, coisas, exatamente assim um contexto. Mas ela trabalhava numa igreja pra um frei franciscano muito bom, Frei Xavier. Ele é uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci, ele montou uma escola, uma oficina, uma padaria comunitária lá no bairro, ele ajudou em toda a formação do bairro de Santa Rita e Veleiros, todas as pessoas carentes. Ele abriu mão de toda fortuna que tinha na Itália, se desproveu de tudo, pegou a herança que ele recebeu da família e, ao invés de mandar pra Igreja, fez um monte de obra social que funciona até hoje. Quando a minha mãe faleceu, pedimos para ele fazer a missa de sétimo dia dela. Ele é uma pessoa incrível. E a minha... então, não era uma vida provinciana, mas, num bairro de periferia da década de 1970 para a década de 1980, em São Paulo, não era diferente do que em algumas cidades do interior hoje, todo mundo se conhecia. Eu tinha uma fama desgraçada no bairro, se alguma coisa acontecia lá do outro lado: “Ah, é o Felipe, é ele que aprontou”. Se quebrava uma vidraça, se batiam num carro, se batiam num moleque na rua, eu tinha uma fama terrível… A minha avó foi uma pessoa que sempre acreditou muito em mim, desde pequeno que ela falava … Existiam as maracoteiras, as fofoqueiras do bairro que sempre defendiam os filhos que depois acabaram virando marginais, de tanto defender: “Ah, meu filho não fez isso, meu filho não fez isso” e me acusavam. Uma vez, isso foi muito engraçado, a minha avó me defendeu, tudo por um detalhe... eu queria fazer um negócio de moleque, eu sempre fui muito explosivo ... Meu tio, filho dela, irmão da minha mãe, mora na Suíça, foi para lá, fez Arquitetura aqui, prestou para Arquitetura, mas não passou, pegou as coisas dele e saiu atrás da namorada, tomou um pé na bunda lá (risos) e acabou ficando “trampando” de garçom, depois de cozinheiro, perdeu o dinheiro, as bagagens e vive lá [Suíça] hoje, fazer o quê? Trinta e nove anos, mais ou menos, ele deu um presente para a minha avó, um marcador de livro. Eu deveria ter uns cinco anos mais ou menos, em 1977. Ele deu um marcador de livros para a minha avó… eu não sei o que a minha avó não me deixou fazer naquela de: “Óh, não faz isso”, na [intenção] de educar e eu fiquei muito “pê da vida”, fui lá e piquei tudo, só para ir a desencontro à minha avó. A minha avó me disse que por esse detalhe ela viu que eu iria chegar lá, não sei aonde, mas assim que ela fala: “Eu sabia que você ia ser uma pessoa do bem”. Ela disse que eu piquei tudo e ela chegou para mim, eu já esperando a porrada, porque eu acho que eu gostava de apanhar, tomava um cacete e aprontava de novo, tanto com os irmãos, com a mãe, com o pai, com ela... daí ela chegou, olhou para mim: “Olha, eu tenho uma coisa para te dizer, eu estou muito triste com você, fiquei muito triste com essa atitude”... Eu pedindo pelo amor de Deus para ela bater em mim, [mas] ela virou as costas e me deixou ali. Eu fiquei arrasado. Depois teve o dia das mães, e o que eu fiz? Fui lá no lixo, catei todos os papeizinhos, juntei um do lado do outro, colei com durex, cola; colei uma folha por trás para marcar, recortei ... No aniversário, eu peguei e dei: “Ó, meu presente para você, vovó”. Ela desabou, ela falou assim: “Nossa, eu não acredito, era a única coisa que eu não esperava de você”. Ela ficou muito emocionada, ela disse que viu ali que eu precisava de um pouco mais de atenção. Havia uma diferença de idade, uma diferença de três anos entre eu e os meus irmãos. Tenho uma irmã mais velha, que hoje é historiadora, ela dá aula de História em dois colégios, um aqui pertinho, aqui no Butantã, me fugiu o nome da escola... É um colégio bem legal, um colégio que ele cobra muito caro durante o dia, mas à noite trabalha com cursos gratuitos para quem precisa. É bem legal, não sei se é Santa Cruz, é Santa Cruz? Eu acho que é Santa Cruz, fica aqui, é Alto de Pinheiros.
P/1 – Santa Cruz, Vera Cruz, tem a Escola da Vila.
R – É, é muito legal... Ela é a mais velha, tem um casal de gêmeos. Eu sou o tranqueira, o caçula, então, o que acontecia quando eu era pequeno? Os três aqui e eu tentando, chegar de tudo que é jeito e bolacha, então, assim, eu era acolhido pela mãe ou era acolhido pela avó, porque ficava muito, assim... Eu era uma criança muito pentelha. Eu queria participar das mesmas amizades e depois, aos 15 anos, isso se equalizou, mas até os 15 anos, eu era aquele irmão que ninguém queria, que por um lado foi muito legal. Não sei se isso é do signo ou dessa distância, mas acabei sendo muito independente, autodidata em muitas coisas me resolvia e ia fazer ... ia desenhar, ficava lá no meu mundo, mas, assim, tinha muito, tinha bastante amigo, mas quando a coisa pegava em casa eu me virava, não e eles não se colavam um no outro, tal e isso por um lado, isso eu fiz análise um tempo depois, eu falei: “Nossa, no fim das contas, eu acho que foi legal, porque você meio que se vira, você apanha na rua, você não vai pedir ajuda para o seu irmão, para a sua irmã, se estão os dois, os três andando juntos, acontece que a probabilidade dessas coisas acontecerem é muito pequena”. E, enfim, a minha avó, teve um papel crucial na nossa formação, ela era referência até depois de muito tempo. [Certa vez] estava saindo de uma assembleia do orçamento participativo lá em Santo André, na época que eu estava na prefeitura, e você conhece um cara aqui, outro ali … daí estava no estacionamento, e falei assim: “Para onde você vai?”, “Ah, eu vou pra Veleiros.”, eu olhei e falei: “Caramba, 40 quilômetros daqui, como é que pode um cara de lá?”. “Ah, você é de Veleiros?” “Sou” “Pô, você conhece a Dona Adelaide?” “Pô, Dona Adelaide, putz, era muito amiga da minha mãe, eram unha e carne.” Daí eu falei: “É a minha avó”, e ele falou: “Putz, não acredito!”. Eu falei: “Você conhece, você morava aonde?”, “Na Lido, duas ruas para lá.” Olha a coincidência, eu falei assim: “Você conhece a Sílvia, a Vera”, que eram as minhas irmãs, e ele falou : “Pô, conheço”. Ai dele se falasse alguma ali... e falou: “Conheço!”. Ele tinha namorado com uma amiga [delas]. Ele falou: “Poxa, então...”, e eu falei: “São as minhas irmãs, vamos tomar cerveja!”. E fomos tomar cerveja. A minha avó era referência, eu brincava que ela era a contrabandista da Avon, porque havia aquelas vendedoras da Avon que ficavam transitando no bairro e ela era conhecida para tudo quanto que é lado. [Era] mais um motivo para eu andar na linha, para não ser tranqueira, porque não queria envergonhar a minha avó. Mas eu sempre fui uma... Enfim, a minha avó... eu acho que a estrutura da minha família inteira é matriarcal, sempre teve essa coisa de nos encontrar na casa de uma tia que morava na Vila Helena ou na minha avó. Quando ela fazia almoço, juntavam todos os netos, agora os bisnetos. Ainda não tem tataraneto. Sempre tem aquela coisa de unir a família, e minha mãe tinha muito essa característica também. Eu acho legal, acho que o homem é mais descabeçado nestas coisas. Eu acho que é isso... Eu vi na área da favela também: a própria formatação da política pública sendo estruturada no chefe de família mãe, é muito melhor para ela conduzir as coisas. Nós [homens] não estamos com nada (risos). Da parte da minha avó, eu acho que é isso, ela teve um grau de atração muito grande por causa disso, as pessoas que ela conhecia... A minha mãe foi uma referência muito legal para mim, como o meu pai ficava muito fora, ele tem uma presença diferenciada. Ele é um cara bem calado, sempre estava lendo um livro, sempre estava vendo jornal, lendo jornal. Então ficou aquela imagem de o que você quer ser quando crescer. Sempre foi uma pessoa muito correta, uma das várias, algumas lições que a gente aprende, eu tenho vários pais e várias mães, que a gente vai adotando aí do decorrer da vida, ele falava uma coisa muito legal, assim, entre os mestres aí, ele falava: “Ó, não tem nada melhor do que colar a cabeça no travesseiro. O conhecimento é uma coisa que ninguém vai tirar de você. Seja uma pessoa correta. Na área em que você está entrando, como em qualquer área, você vai se deparar com um monte de coisa”, como eu me deparei administrando a Capuava, sempre no caminho do bem, como diz o Tim Maia, no disco Racional. Dessa maneira, ele sempre foi uma pessoa correta. Minha mãe também tem esse lado: o que uma pessoa precisa para ser legal. Ela sempre fez de tudo para acolher os filhos, para agregar a família. Ela, imagino, deveria ser muito difícil, vemos tanta gente reclamando hoje de tão pouco, ela com o marido desempregado, criando quatro filhos, ainda com, eu lembro como se você hoje, como que ela fazia pra pintar: ela fazia as coisas de artesanato dela e deixava os quatro na mesa. Por isso que fui para Arquitetura. Deixava os quatro na mesa desenhando, pintando, dava um monte de folha, deixava um monte de lápis, guache, só faltava nós sujarmos atrás da orelha. Ficava aquela, não era competição, aquela coisa gostosa, familiar. Outra coisa, aquela mesma lição que a Marilena Chauí dá, de falar assim: “Olha, a melhor forma de você aprender a nadar é pular junto na piscina”. Como eu era o mais novo, eu ficava aprendendo todas as técnicas de todos os meus três irmãos, mais o da minha mãe. Então, eu acabei pegando o melhor da minha irmã mais velha, que era de trabalhar com o giz de cera, da minha outra irmã [trabalhar com o] bico de pena, do meu outro irmão [o] desenho artístico, e acabei indo pra Arquitetura. Comecei a desenhar muito cedo: com seis anos eu fazia desenhos que eles com nove, dez anos faziam; comecei a desenvolver essa habilidade muito cedo. Aos 13 anos já fazia desenho de prédio. De curioso, desenhava planta de casa, curtia e gostava muito da parte prática. Se via um terreno baldio, uma obra, entrava e ficava olhando, tentando imaginar como que aquela coisa ficava de pé. Desde bostinha, com o perdão da expressão, desde os meus 13 anos, era muito curioso sobre essas coisas, e a minha mãe sempre ficou muito atenta, ela nunca chegou em mim, nos meus irmãos e falou: “Ó, você vai ser médico, você vai fazer isso, vai fazer [aquilo]” Ela sempre nos deixou muito à vontade. Ela ofertou, e é o que é que eu faço com o meu enteado hoje, oferto um renque de coisas. Mas quem tem que trilhar o caminho são vocês. Nós tivemos a mesma base artística muito legal, porque ela tinha esse viés, que para ela era financeiro, mas também era uma coisa que dava prazer fazer. [Tínhamos a] música. Eu também comecei a tocar piano de ouvido. A minha irmã fazia piano; os meus dois irmãos, a minha irmã mais velha e o meu irmão do meio, que era gêmeo com a outra, faziam violão e eu acabei pegando gosto pela música dos três. Eles pararam e eu fui o que acabei indo mais além com a música. O que eu contei um pouco antes: a lição de outro mestre, o pai do Laércio. O Laércio era um cara que foi músico do Sílvio Brito, até ele começar a ir por essa linha gospel, daí ele pulou fora, mas era um cara que tocava muito, é um cara de muita qualidade de música. O pai dele sempre tocou em bar. Eu me lembro de jogar bola e, às vezes, eu ficava no gol, era gordinho, cheinho quando era moleque, não curtia muito ficar correndo atrás da bola. Então eu ficava mais no gol e decidi colocar o gol exatamente na frente da casa dele, quando o pai dele estava tocando piano eu tomava gol direto, porque a bola vinha e eu ficava fritando o peixe e olhando para o gato, ligado na música. Assim, acabei pegando muito gosto por música, e em um belo dia, eu estava com os meus 16 anos, eu parei do lado dele e falei: “Você toca muito, Luís [pai do Laércio], como é que você toca?”, ele falou: “Não, eu só toco em clave de dó”. Eu: “Como é que é isso?”. “A escala toda que eu trabalho é em dó.” Mas ele floreava o piano inteiro. Eu falei: “Mas...”, ele falou: “Se você quiser fazer uma coisa na vida escolha essa coisa e desenvolva”. Ali, naquela hora eu me decidi pela Arquitetura, porque eu tinha as duas paixões, a Arquitetura e a Música. Eu estava fazendo aula com o filho dele, de MPB, jazz e blues na época, mas tinha uma questão de gosto, gostava das duas coisas, mas tinha a questão financeira também e acabei definindo para Arquitetura. Foi parte da minha mãe também, o que teve... eu acho que uma coisa legal de minha mãe, estou falando como na Bahia de minha mãe, não é da minha mãe, é de minha mãe ... ela não chegou a direcionar, mas quando ela percebeu o talento ou aptidão de cada filho, ela mais ou menos que: “Ó, por que você não vai?”. Então ela se antecipava, via no jornal: “Ó, tem curso disso em tal lugar, em tal lugar, em tal lugar”, então ela ajudou mais ou menos a direcionar o que a gente queria ou tinha como aptidão. E eu tinha duas coisas que eu gostava: gostava muito de mexer com bicho, eu gostava de ver Globo Rural, gostava de coisas da terra, achava que seria veterinário ou agrônomo. Mas não tínhamos recursos na época, passamos um perrengue danado. Eu me lembro de criança, principalmente nessa fase que o meu pai ficou muito tempo desempregado, ele recebia ajuda da minha tia que morava aqui na Vila Helena, perto do Shopping Ibirapuera, ela tinha uma condição muito melhor, então, bancou, pelo menos, refeição durante um tempo. Então, crescemos. Não é que não teve, teve uma época em que teve bastante, até os meus seis anos de idade, nós vivíamos bem, mas depois disso foi suando. Tanto eu quanto os meus irmãos, a gente foi trabalhar muito cedo. Como era muito espevitado, aprontava demais, arrumava encrenca na rua, um cara olhava pra mim, eu ia lá e batia, apanhava, brigava quase todos os dias. Como tinha essa questão financeira também, então eu comecei a trabalhar, ocupar mais a cabeça. Depois que o tempo passou você vê e fala: “Cabeça vazia oficina do diabo”. O meu pai tinha mania de falar isso. Eu fui trabalhar, eu e meus irmãos, eu e a minha irmã mais velha, nós fomos trabalhar com 13 para 14 anos: ela em um berçário e eu fazendo pasta catálogo para arrumar alguns trocadinhos. Com 15 anos eu fui trabalhar, aos 14 fui fazer edificações, que te prepara para a Engenharia ou para a Arquitetura, e com 15 anos, 15 para 16 praticamente, eu comecei a trabalhar na área de desenhista. Essa ida cedo para a profissão também foi um ganho fantástico para mim, para ter um aproveitamento melhor no curso técnico, no colegial, como também na faculdade, até o terceiro ano eu levei com um pé nas costas porque já trabalhava, já sabia mais ou menos como se davam as coisas, já treinava desenho há bastante tempo, então tinha muita facilidade com aquisição. Hoje eu trabalho com educação, além do escritório, e vejo como que isso foi importante, de você aliar o saber com o fazer, de você retroalimentar a experimentação, a prática, você validar o que eu aprendi depois com outros mestres. Dentre eles, o Paulo Freire. Quando eu cheguei para trabalhar com favela, no começo da faculdade tive aula com uma professora de Sociologia e dentre os trabalhos que apareceram lá... eu já tinha essa coisa, me lembro desde muito cedo de ficar muito incomodado com a questão do preconceito, da desigualdade. Eu tinha um monte de amigo “negão” ou afro não sei o quê, porque tem um jeito polido de falar; [mas] era negão mesmo, [era] amigo. Ficava muito revoltado porque as pessoas tratavam de forma diferente por causa da cor, por causa [da maneira] de ser, não ter uma roupa de marca. Como era um bairro de classe média, eu convivia e transitava nos três mundos, mas me sentia muito mais à vontade na classe média baixa, pelo valor que as pessoas davam às coisas simples, não estavam muito preocupados em vestir uma camisa de certa marca para sair na rua, estavam a fim de jogar bola, de brincar, não tinha esse valor do ter. E eu sempre fiquei muito incomodado, não sabia exatamente o que era isso, mas quando apareceu essa disciplina de Ciências Sociais, parece que a cabeça deu um puft: “opa, já tem gente falando disso há muito tempo, só que em termos mais técnicos”. Olha que legal: eu e uma colega minha do grupo escolhemos fazer um trabalho sobre favela e nós viemos conhecer a Peinha e a Monte Azul, que ficava na entrada da Ponte João Dias; não que eu não frequentasse algum cortiço, alguma favela, mas entrar de fato para ver o que é que tinha no meio, foi nesse momento. Estava com 17 anos, 17 não, 18, mais ou menos com 18 anos. Nesta época tinha um trabalho fixo, mas sempre fazia um bico. O meu primeiro projeto é uma história engraçadíssima: estava no ônibus, sempre levando um, dois canudos, régua T, mochila, marmita, marmita vazando quase todos os dias, não tinha um puto, ou pegava dinheiro para pegar o ônibus e não comia, ou comia dois dias da semana, três dias na rua, tomava um refrigerante no máximo, [era] assim, duro de tudo. Teve uma vez em que eu estava com uma régua, régua T, canudo, livro na mão, como eu tinha dois, três empregos e estudava, pegava a apostila, as coisas e ia lendo; enganchava as coisas aqui e ia lendo o negócio no ônibus, e chegava com a vista vermelha, porque imagina você, ler naquele ônibus trepidando e tal. Mas eu falava assim: “Não, eu vou aproveitar o tempo de 50 minutos, uma hora e 20 para estudar, porque é o único [tempo] que tenho, depois tenho que trabalhar e tal”, e numa dessas vezes, o ônibus freou e a minha régua T foi parar lá no motor do carro, eu [fiquei] com aquela vergonha: “Puta!”. Fui pegar a régua, cheguei e voltei com o rabo entre as pernas, sentei,e fiquei com aquele desejo do ônibus chegar rápido. Eu sentei, tinha uma moça do meu lado, a Úrsula, ela falou assim: “Ou, você é arquiteto?”, eu: “Sou”. Estava no primeiro ano (risos). Ela: “você vai fazer o desenho da minha casa”, nem me conhecia, e eu falei: “É”. Falei: “Não, posso fazer”, [ela:] “Ah, passa o seu telefone”, eu dei; 20 dias depois me liga o noivo dela todo desconfiado, como assim essa história de conhecer um cara no ônibus, e tal?! Acabei fazendo mais quatro projetos para essa família, graças à minha régua T que foi parar lá no motor do ônibus. Fiz o desenho, o projeto da casa dela, acompanhei a obra. Então eu comecei a validar toda aquela curiosidade, agora com um filho que era meu, de entrar na obra, de saber como faz. Comecei a ir para obra muito cedo, vendo como é que eu fazia para colocar os meus projetos de pé. Então, comecei a trabalhar em um lugar como orçamentista. A primeira empresa em que trabalhei foi na Concyb, Concyb Engenharia e Empreendimentos Imobiliários, ficava na Praça Osvaldo Cruz. Eu fazia um horário maluco, ia estudar à noite na Osvaldo Cruz e trabalhava de manhã, trabalhava o dia inteiro, fazia uns horários doidos para estudar e fazer bico. Nessa época, o tempo que eu tinha disponível à tarde eu tocava, pegava mais ou menos uma hora e meia, duas horas por dia, ficava tocando e ensaiando. Fim de semana fazia uns trabalhos de desenho para uma banda gospel lá da Igreja, ou estava no clube. Fazia umas coisas assim. Quando entrei na faculdade, já no primeiro ano, estava trabalhando em um escritório de cálculo, foi o meu terceiro emprego, e nesse escritório foi muito legal porque fiquei quatro anos trabalhando com um trabalho voltado muito mais pra Engenharia Civil do que para a Arquitetura. Como queria saber como as coisas ficavam de pé, olha como as coisas foram se encaminhando, fui aprender estruturalmente como conceber uma construção. Cheguei a prestar Engenharia na POLI, mas para a minha felicidade, não entrei, fui para o lado das humanas depois; muito melhor. [Não tenho] nada contra, eu acho tem aquela rixa besta pra caramba entre engenheiro e arquiteto, que são formações complementares. Mas aí eu falei assim: “Não, eu vou trabalhar na área de civil e na parte teórica vou para a parte da Arquitetura”, porque eu gostava de História, de Geografia, de Sociologia, de Filosofia, de Psicologia, eu lia um pouco sobre tudo. Na época, eu namorava uma psicóloga, que depois eu vim a casar, fiquei 11 anos ao todo com ela, me separei em 2003. Eu gostava muito mais de ficar no ambiente das humanas do que falar de HP, computador e quantas voltas uma roda dá por segundo quando o carro está a 80 quilômetros por hora, essas coisas que engenheiros [gostam de conversar] (risos). Eu não queria aquilo e fui trabalhar [com Arquitetura]. Em 1992, fui mandado embora desse trabalho porque o chefe não queria pagar os direitos. Mas o que ele fez? Ele mandou embora e uma semana depois ele quis contratar como autônomo, queria que eu devolvesse o fundo de garantia, essas coisas que eu comecei a ficar mais antenado, entender mais, querer saber mais o que Marx falava. E falava assim: “Não, não é possível que as pessoas são tão mesquinhas por causa de dinheiro”. O que era muito para mim, era muito pouco para eles. Eu fiquei tão desolado nesse tempo, que tranquei a faculdade. Eu falei assim: “Não, não é possível, vou ser caseiro na Bahia, vou mudar de vida”. Dei uma parada [na faculdade], não durou mais do que dois meses, arrumei um trabalho para trabalhar com mutirão, foi quando eu voltei com força total. Era 1993. Eu trabalhei junto ao movimento Sem Teto da Zona Oeste de São Paulo, trabalhava em uma assessoria técnica chamada Ambiente e Trabalho para o Meio Habitado; acho que era a época de maior fervura na prefeitura, que era a época da gestão da Erundina [Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo, 1989-1992]. Então tinha muita gente trabalhando com movimento social, com habitação e comecei a ter contato com essa área, com aquela paixão. Eu me lembro que fomos fazer uma manifestação e os meus pais ficaram morrendo de medo, porque era coisa deles com a nossa criação durante a ditadura [Ditadura Militar, 1964-1985], e tínhamos acabado de passar pela abertura política em 1986, e em 1993 fui em uma manifestação no Palácio das Indústrias, em um acampamento para o Maluf sair e eles ficavam: “Filho, o que é isso? Você está se envolvendo com umas coisas”. Comecei a me politizar de uma forma muito mais rápida, de conhecer a realidade de perto, ficar mais em favela. Depois eu fui ler Chico de Oliveira e ver que tinha um problema na questão do retrabalho e do trabalho de mutirão, de reduzir a política pública, dessas coisas que eu falo no mestrado. Mais, naquele momento, eu achei muito legal conhecer a realidade das pessoas, principalmente migrantes da Zona Oeste, [onde] ajudei a implantar o movimento Garras e Lutas, o mutirão da Vila Brasilândia; trabalhei também na Morada do Sol. Era uma coisa que eu curtia: você ir para dar uma orientação técnica, achava que iria dar uma orientação e aprendia muito mais. Ao mesmo tempo, eu senti uma responsabilidade muito grande, porque eu tinha 21 anos e tinha 160 famílias depositando todas as fichas no meu trabalho. Aquilo pesou demais. Recebi uma intervenção divina, pois sofri um acidente de moto no fim deste ano, no qual tive que ficar de molho; só assim para me parar, porque eu queria ajudar, me colocava em último lugar e queria fazer as coisas acontecerem. Só que a minha saúde foi pro saco. Eu trabalhava de domingo a domingo com mutirão, as pessoas não tinham onde viver, não tinham o que comer e eu chegava em casa, e falava: “Caramba, eu estou trabalhando aqui, mas eu vou chegar em casa, vou para minha casa, vou ter isso e aí?”. Isso pesou, pesou pra caramba. Eu tive um acidente que o homem lá em cima falou: “Não, calma, espera que você irá voltar, mas você precisa fazer algumas coisas antes”. Eu quebrei essa perna em três lugares, fiquei seis meses de cama, não tinha como voltar a trabalhar, ter três empregos. Então, nesse tempo, eu decidi começar a estudar para valer, dava aula particular, montava grupo de estudo, me dedicava bastante, pelo menos no início, pois no fim deste ano [dezembro de 2011] tive o acidente e só tirei o gesso em junho [2012]. Então nesse ano fiquei fazendo muita fisioterapia para voltar a andar, não dava para ficar saindo de casa. Eu falava: “Eu vou só trabalhar”. Daí, comecei com essa parte acadêmica e gostei. Falei assim: “Caramba!”. Depois validei isso [com o] mestrado. [Certa vez] um professor falou o seguinte para mim - o Csaba, esse é um mestre cujo nome tem que ficar registrado, pois é um intelectual full, muito bom, o Csaba Deák [ Csaba Deák é professor de planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo], ele é um dos responsáveis pela cadeira de Planejamento Urbano e Regional da FAU-USP -: “Quando você achar que sabe de alguma coisa vai dar aula, vai dar aula”, falou bem assim: “Vai dar aula!”. E no tempo de estudante ainda, via que para dar uma resposta enquanto monitor, assistente do professor, tinha que estudar demais; uma aula, por exemplo, de Arquitetura Romana que íamos dar, eu tinha que ler três, quatro livros sobre o assunto para ficar com aquilo na cabeça para poder dar uma segurança para o aluno. Gostei muito dessa fase. Entrei para trabalhar em outro escritório para fazer vistoria técnica de terreno. Roubaram o meu carro (risos), depois de uns três, quatro meses eu fiquei na roça de novo e falei: “Caramba, mais um tombo!”. Quando tomei a decisão de ser caseiro e entrar no mutirão, nesse um ano, trabalhando de sol a sol consegui juntar uma grana para comprar uma moto e um carro. Mas tive o acidente e os dois [carro e moto] foram embora, porque o cara que me contratou não tinha feito contrato assinado e fiquei sem um P no bolso; hoje seria em torno de 30 mil reais, isso para um moleque que está lá batalhando já é o começo de um pé de meia e pá: “Vou começar do zero, tá bom!”. Trabalhei, trabalhei, trabalhei de novo, comprei um carrinho, dei PT nele, perda total na estrada com ele, tomei uma fechada, tive que escolher ou o caminhão ou uma ponte, escolhi a ponte e acabei com o carro. Juntei mais uma grana, peguei emprestado da minha mãe, comprei outro carro. [Certa vez] estou na faculdade, quando eu saio, cadê o carro? Levaram embora! Eu dei risada, [porque era] um passatão velho, tinha só carro bom, o ladrão olhou o meu carro e disse: “Não, esse cara deveria ter vergonha de estacionar esse carro aqui, vamos levar esse carro embora”. Eu fiquei desempregado [novamente]. Um dia, cheguei desesperado na faculdade, estava no quarto ano, e falei para a minha professora que tinha muito carinho, muito respeito [por ela]. Foi a professora que mais gostei, a Hortênsia, com ‘s’, Espallargas, com dois ‘l’s, Zuniga, ela é uma das pessoas mais ímpares que conheci. Eu falei desesperado: “Olha, gosto muito de estudar, mas não tenho como, não tenho como bancar. Estava com um trabalho, quebrei a perna, entrei no outro trabalho, precisava de um carro para trabalhar, roubaram o meu carro, tô na roça, não tenho como.” Enquanto tinha gente na minha sala que chegava com motorista, eu não tinha grana para pegar um ônibus, e falei: “Não tenho como viabilizar isso aqui, vir para cá.” Ela: “Espera aí que vou conversar com algumas pessoas”, o que para a minha sorte, o marido dela tava precisando de um escraviário, e fui trabalhar em uma construtora com ele. Fiquei quatro anos, tive uma experiência muito legal, era civil e eu era o único estudante de Arquitetura no meio de sete engenheiros. Com seis meses eles já soltaram um monte de obra para eu fazer e comecei a tocar obra. Estava com 24 anos, e tocava uma média de quatro a sete obras/mês, em um ritmo alucinante, o que me deu muita bagagem comercial, administrativa e técnica. Se até então estava preocupado com a questão da formação mais estética e histórica do urbanismo, comecei a ter, para valer, o viés prático, que foi fundamental para, mais tarde, conseguir tocar a Capuava, com todas as complexidades que teve lá. Neste período, me desenvolvi muito, aprendi como é a estrutura de uma empresa, como é que se faz, como é o processo de compra, de medição, de orçamento de obra, e fui me dedicando mais à essa parte de trabalho [prático], [ao passo que continuava] pesquisando mais a parte linda da Arquitetura. Tive três anos de orientação com a professora Hortênsia e trabalhei por quatro anos com o marido dela. Eles acabaram sendo os meus padrinhos do meu primeiro casamento, tamanho o carinho que nós criamos. Ele é uma pessoa extremamente correta. Na época, tinha mais de 700 obras nas costas, era um cara relativamente jovem, com seus 50 anos; com um volume de obra assim, eles sempre se mantiveram muito simples, não ostentavam, davam todo o conhecimento quando eles sentiam que a pessoa queria, era ávida por conhecimento, eles davam todo e qualquer conhecimento necessário, mas sem dar o peixe, para a pessoa, e isso foi muito legal para mim. Quando eu saí dessa empresa, fui trabalhar em Jequié (cidade da Bahia). Estava trabalhando aqui em São Paulo, quase terminando uma escola lá na zona leste de São Paulo, quando o chefe chegou e falou: “Felipe, quando que você termina a obra?”, eu respondi: “Para quê, para ir para a Bahia?”. E ele: “Como é que você sabe?”, eu falei: “Pô, eu fiquei sabendo, um passarinho me contou.” Era uma terça, e na quinta-feira peguei o avião para ir a Salvador para conhecer. A minha ex-mulher ficou pistola, esse foi um dos motivos, tempos depois, pelo qual me separei. Imagina, quando você trabalha nesta área você está aqui, depois você está lá, você está aqui, você está lá, e relacionamento nenhum segura, não tem como fazer isso. E eu fui, era uma oportunidade ímpar. Era uma terça, na quinta eu fui e na terça [da outra semana] voltei para pegar as minhas malas e já zarpar. Fiquei o ano de 1998 inteiro lá. Fiquei seis meses no interior. Recomendo irem para lá nessa época da micareta, porque é impagável. Fui na época da micareta, conheci umas 40 cidades na Bahia, interior e litoral, porque no lugar em que eu fiquei não tinha nada, era muito quente. É chamado de Cidade Sol. Passei um apuro danado, porque na época eu fumava e isso aqui [a região da garganta] - assim como em Goiás e Brasília - fica totalmente seco, você não consegue respirar. Fiquei seis meses lá. Até brincava com as pessoas: “Ah, como é que é morar lá”, e falava: “Nossa, uma diversidade legal, segunda-feira você come arroz, carne de sol, feijão tropeiro, na terça-feira você como feijão tropeiro, arroz, carne de sol, na quarta-feira a mesma coisa, daí na quinta-feira você toma um suco de cajá porque você já está de saco cheio.” A cidade, apesar de ser uma referência regional... é quando você entende todas aquelas aulas de História, de Geografia que você teve lá atrás e você fala: “Caramba, isso é o Brasil, aqui a gente tem pobreza, lá você tem miséria!”. Estava trabalhando em uma estrutura de uma empresa, mas fiquei muito incomodado com a situação geográfica, as pessoas não tinham trabalho, não tinham o que comer. Eu tinha funcionário que o cara sentava do meu lado com um saco de farinha, uma caneca, pegava água do rio para tomar e comer farinha com a mão. Quando recebeu a primeira cesta básica ele se jogou nos meus pés, me abraçou e agradeceu a Deus. Eu falei: “Para, para com isso, levanta!” Foi uma situação difícil. Esse estado de consciência foi me deixando mais incomodado. É mais ou menos como se Deus estivesse te encontrando, te colocando uma vocação. Tive uma vivência com a classe média, a classe média baixa, em cortiço, em favela. Depois vou mexer com isso no começo da faculdade, vou trabalhar em um local que é uma miséria desgraçada. Logo depois, fui para Salvador e em outras duas favelas. Eu andava muito à vontade e as pessoas falavam: “Você não é paulista”, eu falei: “Por que, o que é que tem um paulista?”. “Não, paulista é besta, paulista é muito arrogante e é isso e aquilo.” Eu falei: “Não, para mim é tudo farinha do mesmo saco.” Eu trabalhava em uma obra, o único paulista que tinha lá era da capital, como um cara lá de Jequié falava: “você é da gema, paulista da gema.” Eu respondia: “É, [da] capital.” Éramos, [de São Paulo], eu e o encarregado de obra, o restante era do nordeste. Então, por conviver com a diversidade, é que eu sou o que sou hoje, tudo em função dessa diversidade. Nunca fiquei na minha zona de conforto, sempre estive trabalhando com pessoas diferentes ou em zonas de conflito. Não precisamos vivenciar uma guerra. Vivenciamos uma guerra não declarada em muitas situações: são violências urbanas com que temos contato, sem ter um fator específico. Não é uma guerra, mas vivenciamos uma forma de violência que é muito pior. É uma hipocrisia da democracia, do discurso de democracia, da igualdade, quando, na prática, temos uma [democracia] para poucos. A vivência disso me deixou incomodado. Quando voltei, fiquei ainda mais revoltado. Fui trabalhar em Campos do Jordão, na empresa de um camarada meu. Fiquei um tempo lá. Ficava chocado: cinco por cento da cidade tinha muito e noventa e cinco por cento da cidade nada, o recurso público não dava conta nem das obras emergenciais e aquela ostentação, aquela coisa da cidade cenário de Campos do Jordão. Tudo isso para mim era uma falácia. Quando voltei, a minha chefe, aliás, uma arquiteta que tinha trabalhado comigo na Ambiente por um acaso ... por um acaso [um dia] encontrei um cara que era líder do movimento de sem teto, o Roberto, e falei: “Pô, e aí, tal, o pessoal, nossa quanto tempo”. Fazia o quê? Fazia oito anos que eu não via o cara [o Roberto]. Desde que eu tinha tido o meu acidente de moto. Pô, me passou o telefone da Valquíria, outra mestra, pernambucana arretada, uma das pessoas cruciais na prefeitura de Santo André, na habitação da prefeitura de Santo André. Para consolidar a política pública, é essa pessoa que se chama Valquíria Maria Pires de Freitas Góes: é uma pernambucana muito arretada que conheci no movimento de moradia, com que trabalhei em mutirão. Ela falou assim: “Que você tá fazendo?”, eu falei: “Tô trabalhando.” “Você não quer vir aqui conversar comigo?”. Eu fui conversar, 15 dias depois ela me ligou e falou: “Vem trabalhar comigo.” E eu fui trabalhar. Foi assim que eu fui parar em Santo André. Apesar de ser um cargo político, sempre tive um pé na esquerda, mas não tinha e não tenho, até hoje, uma vinculação política, porém, sempre tive uma simpatia, principalmente depois que li vários textos, todos eles, acho, de origem marxista. Sempre tive uma afinidade maior com a causa para reverter o problema estrutural que a gente tem. Ela [Valquíria] foi fantástica. Ela tem um comprometimento, é filiada, eu acho, ao PT. Ela antes de qualquer coisa, e todas as pessoas que conheci, tem um comprometimento com a vida e com as pessoas que é anterior a qualquer comprometimento político. Então, quando você vai trabalhar em um órgão público, você tem duas vias: você é indicado, assume como [cargo] comissionado, que eu chamava de “cãomissionado”, no qual nós tínhamos uma vida de cão, ou você é concursado. O comissionado é via de regra uma indicação política ou um cargo técnico. A minha indicação foi técnica. Quando cheguei, sempre me perguntavam: “Mas de onde você veio, de onde você veio?” Até brinquei: “Ah, eu vim do Nabil” [Nabil Georges Bonduki é arquiteto e urbanista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo], tipo “vá te catar!” Depois eu falei: “Não, eu vim aqui porque eu tô a fim de trabalhar, pouco importa se é do painho ‘a’, da mainha ‘a’, eu vim aqui”. E o empenho que eu dava era até engraçado, tanto que eles falavam: “Como que você, você não é filiado?” Eu falava: “Precisa ter? Não é isso que vai me fazer trabalhar mais, isso pra mim é um princípio, seja lá o que for, o cristão, nós estamos aqui, servidor público o que é que é? A função é servir, nós temos que estar aqui para trabalhar para o próximo sem olhar a quem, então é pra isso que eu tô aqui, não é para outra coisa”. Eu comecei em 2001 e ainda não tinha começado o contrato da Capuava. Quando entrei era fevereiro de 2001, e fiquei até dezembro de 2001. Atuei nos outros núcleos, principalmente, Sacadura, Cabral e Tamarutaca, os três juntos mais Quilombo, são os pilotos daquele programa “Santo André Mais Igual”, que depois se replicou para outras cidades e também para os outros núcleos da cidade. Mas até começar isso, eu trabalhava nesses outros núcleos entendendo como que se dava a nossa atuação, sem dar o peixe. E quando comecei a ter contato para valer com essa realidade da favela, voltando a ler mais coisas, agora sobre movimento [social] de cidade, preocupação urbana, entendi o seguinte: que deveria pegar todo o meu conhecimento que tinha e jogar no saco, amarrar e esquecer, porque a Valquíria falava muito isso. Entendi, depois de um tempo, que nós precisamos nos desprover de tudo para ouvir as pessoas. Demorei um pouco para entender isso, fiquei doente pra caramba durante um tempo, porque de novo via que estava baixando a cabeça, como na época do mutirão, e saindo que nem um cavalo doido para trabalhar, pau pra toda obra. Só que tem um tempo que você tem que refletir sobre o seu trabalho. Toda ação demanda uma reação e quando a gente tá mexendo numa área de alta complexidade, muito simples, porém, de alta complexidade, tem que ter muito critério para tomar uma decisão. O que foi muito legal? Voltando para a questão do berço, veio a reforçar para mim aquela coisa que a minha mãe fazia com os filhos juntos, a equipe. Então sempre tive a preocupação com o quê? De formar equipe, de distribuir conhecimento, de formar líderes, de jogar, pegar tudo aquilo que eu tinha, se servia para alguma coisa, jogar isso para frente, trabalhar de forma transparente. E aquele programa era isso em si. Tinha muito isso de trabalhar transversalmente, horizontalmente. Eu acho que isso foi fundamental dentro de todo o processo. Estou trabalhando hoje numa equipe muito bacana também, na docência, com a parte acadêmica. Mas aquele momento, ver um time todo voltado em função de uma meta, para viabilizar um mundo melhor, para mim, foi uma coisa espetacular. Basicamente, é isso. Eu acho que na minha profissão, enxergo isso nela e falo para todos os meus alunos, nós temos uma possibilidade de realizar uma ação transformadora. Tive várias dificuldades, como muita gente tem, muitas dificuldades para conseguir estudar, e se consegui fazer isso, e depois ir atrás do mestrado, tenho o dever de passar isso para frente, porque tem muita gente que não tem nem o que comer dentro de casa, então, assim, acredito muito no poder da educação e no poder entre aspas. Vou te falar o que é que significa poder para mim, só para remontar a ideia de poder. Quando trabalhamos com formação de cidadania das pessoas, conseguimos fazer um mundo melhor. Sempre tive essa questão que passava na frente de qualquer coisa. Mexendo com muito [dinheiro] na obra, que hoje passaria de R$ 20 milhões, não tirei um real para o meu bolso. Fui ameaçado não uma, mas várias vezes, por lembrar daquilo que o meu pai me falou: “você precisa colar a cabeça no travesseiro e isso não tem ninguém que te tire”. Então, quando vinham falar: “Vamos fazer”, falava: “Olha...”. Ou seja, do pessoal que gerenciava ou de morador que falavam assim: “Ah, não, me dá um cimento que eu te faço isso”, aquela coisa que o Florestan falava da política do favor. Eu falava assim: “Não, o que é de todos, o que é público é de todos, se é de todos não é de ninguém, é de todos”, então eu acho que não temos que fazer uma apropriação indevida de um bem que é público. Sempre tive muito claro essa meta de atuação para coordenar toda aquela ação, coordenar entre aspas, porque era uma equipe multidisciplinar, cada um com a sua experiência, cada um com a sua experiência de vida, com a sua experimentação, com a sua contribuição, com a sua doação para fazer a coisa virar. E todo mundo que entrava para trabalhar nessa equipe da Capuava era impressionante, eu ficava sabendo depois que: “Vamos lá, vamos”, as pessoas, todos estagiários, queriam muito trabalhar nessa equipe porque eles viam as pessoas trabalharem com tesão e eu tenho muito disso, acho que imprimo isso até por onde eu passo, assim, de que se a gente vai fazer uma coisa na vida tem que fazer bem feito, não é para fazer meia coisa, dar retrabalho, a gente tem que fazer as coisas com amor. Eu tenho muito amor pela minha profissão, pela possibilidade que a gente tem de criar, criar espaços, de plantar uma pulga atrás da orelha da pessoa para que ela só dependa dela, da ação transformadora que vem depois. Se ela estiver numa condição adversa, é lógico que ela pode aprender até mais e melhor, ou [pode ser] mais sofrido para consolidar o conhecimento dela, mas se ela tiver um ambiente que possibilite que ela viva em convívio, que propicie uma condição de bem estar, ela vai começar a se preocupar com outras coisas que não só sobreviver.
P/1 – Eu queria, já pensando mesmo na Capuava, que você falasse um pouquinho da função de cada um da equipe e como que foi esse trabalho em equipe. Fale um pouquinho do perfil de cada um de vocês.
R – Ah, perfeito! Assim, eu vejo que nada é ao acaso, cada um lá tinha uma função específica. Um mais louco que o outro. Se não tivesse isso talvez a equipe não teria equilíbrio e a gente não conseguiria chegar no resultado que conseguimos. Você deve ter ouvido falar: “Ah, Felipe, Felipe”, não é o Felipe, é a equipe, isso para mim é muito claro, porque enquanto eu corria atrás de uma coisa, minha função era coordenação geral, era planejamento, auditoria, coordenação geral da ação na Capuava, mas por outro lado eu estava pautado no quê? No trabalho da Valquíria, que ela tinha, com a experiência que eu tive antes de começar na Capuava - na Sacadura e na Tamarutaca - para aprender as lições do que não devia fazer, para fazer a coisa virar. Para viabilizar a urbanização, a nossa equipe era basicamente eu, com formação de arquiteto urbanista, a Mônica Carneiro, que era engenheira, mas é uma engenheira extremamente sensível, é um barato, é um amor de pessoa. Ela fala assim: “ela tinha no caderninho” [falando baixinho]. Ela é uns quatro anos mais velha que eu, e tinha, eu achava um barato, uma agenda de florzinha com o adesivo das meninas Super Poderosas e falando toda assim, eu falei: “Nossa senhora”... Não é infantil, mas sabe, você vê aquela pureza. [No entanto] ela era muito séria; ela é arrimo de família na casa dela, mas você olha para ela e parece uma menininha. Ela deve estar com os seus 45 anos, mas falando com ela parece que tem uns 17, 18. [Contudo] ela é muito séria, muito ponderada. Ela é uma das pessoas da equipe que me fez ver... muito legal o quanto a pessoa tem desejo, por exemplo, de ser servidor público, ela tinha muito orgulho disso: “Sou servidora”. Via-se que ela queria a coisa da estabilidade. Mais, a fiz penar, ela foi cair na minha equipe e eu a lasquei, porque, se num determinado momento ela pensava: “Ah, não preciso aprender, se não vou ter que trabalhar [com isso] depois”. Eu dei total subsídio para ela, na minha ausência, poder tomar [qualquer] decisão. Porque estava muito claro para mim que estaria lá por um tempo curto e tinha que formar todo mundo, e para termos credibilidade, todos nós deveríamos falar a mesma língua. Eu tive uma experiência muito legal em construtora e sabia como era a cabeça do lado de lá, então eu procurei formá-la todo tempo nessa questão de orçamento, como que faz medição, como faz auditoria, como que é o processo técnico da obra, como poderia tomar essa decisão. Mas, embora, coubesse a eu tomar essa decisão, eu sempre fazia isso de forma colegiada, sempre discutia muito, tanto com ela quanto com a Roseli, a assistente social. Ela tinha um jeitão, as duas, de mãezona. A Roseli mais ainda. Ela tem uma cara de braba, mas ela é muito amorosa para lidar com as pessoas, para conversar com as pessoas. Nós brincávamos que ela nos tornou assistentes sociais assim como ela quase virou uma arquiteta. A equipe física, que a gente fala assim, tinha até uma advogada, me fugiu o nome dela, que trabalhava em São Vicente. Numa reunião da Caixa, ela falou assim: “Caramba, se os sociólogos e assistentes sociais são da parte social e os arquitetos e engenheiros são da parte física, a gente que é advogado é o que? Não tem função no movimento, na ação de urbanização?”. Mas essa assistente social era fantástica porque ela não passava, ela era muito amorosa até para dar porrada, até quando chegava algum morador, alguma família querendo dar uma de coitadinho, ela era muito enérgica: “Coitadinho não, vamos lá, vamos fazer as coisas, vamos lutar, vamos batalhar”. Ela era de concurso também [concursada], tanto ela como a Mônica, elas não tinham vinculação política, nem eu. Mas eu tinha mais o pé na esquerda e elas não, elas são mais centro, elas tinham essa coisa de trabalhar pelo próximo. Eu sou de escola católica, cheguei a estudar num seminário da Opus Dei e hoje sou espírita; já era espírita nessa época, e, por exemplo, a engenheira Mônica era da Seicho-no-ie, a Roseli era protestante e tinha um fiscal de saneamento que era católico (risos) ... então falavámos: “Pô, a gente consegue”. Isso que era legal, ninguém interferia nem falávamos de religião. Era muito legal porque havia a diversidade no grupo: quando a gente ia atender as pessoas, por afinidade você via que, às vezes, o morador se sentia mais à vontade de falar com um do que com outro. A gente não tem uma explicação pra esse universo paralelo, mas é legal que a gente conseguia abarcar todo mundo. Passamos vários maus bocados lá, às vezes de mexer. Tem coisa que você sabe que você vai mexer e que vai feder, se você quiser quebrar... Muitas vezes a gente entrava na sala da nossa chefe, dávamos as mãos, fazíamos uma oração ecumênica: “Vamos porque a gente tem que limpar o caminho hoje”, e parecia, até comentei isso da outra vez com o Sílvio, que a gente, eu me sentia como Moisés, ia abrindo assim ... a gente tinha um - todos estavam se sentindo mal
- que a gente sentido que um de nós iria tomar uma bala e, de repente, aquele caminho ia se abrindo de uma forma muito tranquila. Eu acho que muito em função da fé, não tanto dessa questão da religião, mas da fé da gente. Nós sempre tratamos as pessoas com muito respeito, sempre fomos muito enérgicos em não privilegiar ninguém e isso foi a receita, eu acho, do sucesso do trabalho, porque tem muito dessa política do favor quando você lida com órgão público. É o que eu falei do poder entre aspas, quando você: “Ah, conheço tal pessoa, não dá pra dar um jeitinho, não dá?”. Isso é que estraga a nossa sociedade. Noutro dia eu tive uma discussão com um cliente particular, em que ele falou: “Não, deixa eu pegar o processo, passa o número do processo pra eu passar lá pro vereador”, e eu falei: “O quê?”. Eu soltei os cachorros, minha mulher olhava assim pra mim: “Calma, calma, já tá bom, já tá bom”. Eu falei assim: “É isso que estraga o nosso país!”. Eu descarreguei no cara, porque eu acho que não precisa, não precisamos viver numa sociedade que tenha alguns lugares que criam dificuldade para vender facilidade. Então, se você faz o seu trabalho bem feito não é mais do que obrigação nossa, não é porque a gente é legal, não, é obrigação nossa, então a gente tem que fazer e quando alguém pedia algum privilégio, já vieram pedir privilégio para mim armado, eu olhava no fundo do olho do cara, e falava: “Olha, se você está pensando em fazer alguma coisa, infelizmente, você não entendeu até agora o que que eu estou fazendo aqui, mas se você acha que é esse o caminho vai em frente”. Daí eu dei as costas para ele. Depois de dois anos, ele me pediu desculpa, mas pela boca de outro, ele falou: “Ó, peguei pesado lá com o Felipe, pede pra...”. Mais, por quê? Porque a gente deixava claro que estávamos lá pra atender o coletivo. Esse fiscal de saneamento era o mais engraçado, ele era um cavalo doido para trabalhar, ele não pensava muito, ele era um bom tarefeiro, você falava: “Faz isso, depois você faz aquilo, faz aquilo”. Nós trabalhávamos, eu fazia, tentava puxá-lo para ele raciocinar, para ele tomar uma decisão, que ele era meio doido. Num belo dia lá teve uma chuva e deu retorno de um esgoto lá na casa dos moradores no setor um, daí eu cheguei e ele falou: “Felipe, tá acontecendo isso aí, vem cá”. Eu falei: “Tá bom”, fui lá e tinham três casas, as três primeiras casas da rua de baixo, para nossa sorte, eram da mesma família, então estava o clã, retornou o esgoto e estavam limpando tudo lá porque desceu uma quantidade de areia, de pedra dentro da rede, entupiu a rede de drenagem e voltou para o esgoto que é um. Fizeram uma ligação lá, não lembro, mas, assim, aconteceu uma sacanagem lá e voltou o esgoto para onde não deveria e os moradores estavam “P da vida”, tinha dois meses que tinham mudado de casa, voltou bosta para dentro de casa. Na hora que eu cheguei, os moradores me cercaram, e ele assim, o morador foi perto dele para falar: “Pô, como é que vocês deixam fazer isso?”, daí ele vira para o cara e fala assim: “É, mas também vocês comem prego e concreto e vai cagar sofá!” e virou as costas. Catei ele assim: “Saia daqui!”. Os caras já foram para linchar ele, e eu falei assim: “Oh, você some da minha frente, depois eu me entendo contigo.”. Daí eu falei para a turma deixar disso. [Quando] ele falou para o pessoal que comer prego e concreto e vai cagar sofá, falei: “Meu Deus do céu!”. [Mas logo] o pessoal baixou a bola e tal. Então, ele era uma pessoa muito engraçada. Eu dava, tinha que dar corda, sabe o cachorro, sacanagem, era mais ou menos assim: você dá ao cachorro, mas você tem que segurar porque se deixasse ele fazia as coisas, ele tinha um coração muito bom, mas às vezes ele não tem a dimensão de poder pôr abaixo todo um trabalho da equipe, por uma resposta mal dada ou qualquer resposta. Se entrássemos para abrir um buraco, para abrir uma rede de esgoto e não fechava, se não fechasse no mesmo dia, nós poderíamos nem aparecer no dia seguinte. Então, era um trabalho intenso, mas ao mesmo tempo, tranquilo. Nós passávamos, eu gostava de andar [por lá]. Até o tema da pesquisa de mestrado é mais ou menos isso: o canteiro é o banheiro, o banheiro é a obra, o desenho é o canteiro e o canteiro é a obra porque na nossa profissão a gente tem essa coisa do arquiteto iluminado. Quando entramos na faculdade escutamos falar muito disso, e, assim, quem tem capacidade de entender a abstração de um desenho? O Sérgio Ferro era um cara que dizia assim: o desenho é nada mais do que um instrumento de dominação política porque são poucos os que têm a sua compreensão. Então é uma forma de você reproduzir aquelas questões da senzala no canteiro de obra. Eu tinha muito claro isso, eu tinha domínio do desenho, mas fazia o possível para fazer essas coisas não acontecerem in loco na obra. Eu só ia pro canteiro para quê? Para ir ao banheiro, então ficava o tempo todo na obra. A equipe foi formada mais ou menos assim: tinha que ter uma pessoa com perfil técnico, administrativo e comercial, e quem fazia essa função que era eu, a engenheira Mônica, que ela tinha que saber também a parte técnica e mais a parte de gestão, o planejamento, a auditoria eu fazia, então ela criava muitas coisas junto com a Roseli. Nós sempre tomávamos o cuidado de ir conversar com moradores sempre em duas pessoas, com duas experiências diferentes. Por exemplo, era eu e uma assistente social, ou era uma engenheira e uma assistente social, eu e um fiscal de saneamento, ou um fiscal de saneamento e uma assistente social, sempre para procurar dar uma resposta social e técnica. Fechando essas coisas. Se a gente não sabia de alguma informação anotávamos a dúvida, ou nos encontros de plantão, trazia a dúvida e discutia entre a equipe, [depois] voltava com a resposta para o morador. Então, nunca deixamos o morador na mão, nesse sentido, e nunca prometemos uma coisa que não podíamos cumprir, o que é muito comum nessa área. É a questão do favor: “Faz isso, faz isso”, daí você se compromete e poderia colocar todo um programa por água abaixo. Nós éramos pautados, então... Tinha a Márcia Gercina, que era a responsável pelo departamento social, ela tinha o todo da cidade e era ela quem dava as diretrizes para a Roseli atuar na nossa equipe. E tinha uma estagiária, passaram alguns estagiários com a gente, mas a estagiária mais ímpar que a gente teve foi a Kátia, era uma loira, a gente chamava ela de Kátia doida, que ela era uma loira de um metro e 80 quase de altura, bem magra e cheia de piercing, ela entrava na área, os moradores, no começo, ficavam, assim, assustados com ela. Ela era uma pessoa, sabe aquele típico punk? É uma moça, assim, é uma moça no sentido de assustar com a aparência, mas quando você vai conversando, você vê que é um amor de pessoa, sabe ... ela tinha esse perfil, então você olhava, você falava: “Não vou passar nem perto dessa daí, que essa daí joga coquetel molotov na gente”. E ela era um amor de pessoa. Ela me ajudava muito com as plantas, eu fazia muito rascunho, não tinha tempo de fazer os projetos todos, então fazia muito rascunho na mão e jogava na mão dela, ela passava para o CAD (AutoCAD), e às vezes tinha que medir uma casa ou outra, ela ia junto com a engenheira Mônica. Como eram três mulheres na equipe, eu tomava o cuidado de não deixar nenhuma delas (risos) andando sozinha, porque, assim, se pegassem uma a outra podia correr, porque tinham algumas vielas lá que a gente andava … [mas] nunca aconteceu nada, o pessoal sempre respeitou a nossa equipe. Mas aquela coisa de você fazer a ocasião para o ladrão, nunca deixamos elas expostas. E os moradores sempre nos respeitaram muito, a exceção de alguns que queriam o direito privado acima do coletivo, aí eu não abria mão.
P/1 – Luiz Felipe, como é que é essa coisa de identificar a necessidade do morador e o que não é mais necessidade, o que vem com o pedido de favor deles, essa linha que é meio tênue? Fala um pouquinho disso.
R – Ouvir. Se tem um segredo é ouvir. A gente vai com uma premissa de atender, tínhamos uma ideia de diretriz, uma diretriz global do que tínhamos que fazer como meta para fazer um atendimento técnico social, mas quando íamos falar com a família, víamos a demanda dessa família, quantas pessoas, qual a situação de renda, qual risco social, o filho tá estudando, não está, tem marido, trabalha, não trabalha. Via, fazia uma análise da família. Isso a Roseli sempre fez muito bem junto com a Márcia. Mas dava pitaco também. Assim, deixava muito dessa leitura do social para quem estudou isso, quem tinha muito feeling. E eu e a Mônica fazíamos uma leitura física da moradia, do estado de conservação, se cabia ou não fazer um projeto de reforma, se aquela casa estava passível de remoção ou de demolição total ou parcial, se por baixo daquela casa tinha alguma intervenção física a ser feita em função da melhoria como um todo no sistema viário ou para passar uma rede de infraestrutura. Então cruzávamos todas essas informações e ouvia muito o cliente, se ele não tinha renda, por exemplo. Acho que chegamos num consenso legal, desdobramos a política pública: enquanto num núcleo a opção era remover a família e mandar pra um apartamento, uma casa e no outro é demolir e construir, lá a gente teve a oportunidade de chegar: “Olha, o que você vai querer pra você?”, “Ah, eu tenho um comércio, uso cadeira de roda e tenho cinco pessoas no meu grupo familiar”. Como que eu vou remover essa família para um apartamento? Não há como, então, às vezes, não incitava, incitar não é a palavra mais adequada, mas, assim, fazia o possível para as famílias conversarem entre si para tentar promover a troca entre eles. Porque, às vezes, uma família que não iria sair, queria ir para uma casa que a gente construísse ou para um apartamento, e a outra não, queria ficar na área, talvez por não ter uma renda para arcar com uma parcela da casa,
apesar dos valores, para a gente, serem ínfimos. Na época, em 2004/2005, quando foram feitos os contratos, para você ter uma ideia do valor de uma parcela da casa: eram 48 reais e uma parcela do apartamento 84 reais, mas, ainda assim, comprometia já uma parte do salário da família. Então, assim, a gente tinha opção de ou a família continuava na casa, a gente fazia uma remoção, fazia uma demolição parcial, uma melhoria habitacional, [dependendo] do estado. Se a casa era de madeira essa família recebia uma cesta de material para ela reconstruir, que dentro do programa não podia. Tínhamos 236 cestas para trabalhar, então essa foi a parte mais difícil, porque, assim, como que a gente vai passar para as famílias que nós não estávamos privilegiando ninguém? Esses critérios de distribuição de cesta de material tinham que estar muito claros não só para a equipe, mas como também para todos os moradores para não parecer que estávamos fazendo a política do favor ou algum posicionamento político: “Ah, você vai votar aqui no cara, então tá isso aqui”. E não é, qual era o critério? Se a casa fosse de madeira, se a casa estava em risco geotécnico, em área de risco, se a casa precisava de um reforço estrutural, se a casa estava passível de demolição parcial ou total, eram esses cinco critérios que a gente estabelecia. A forma de atendimento cruzando com a parte social, então a Roseli ouvia a parte social, a gente a técnica, cruzávamos tudo. Então tivemos situações… [e] o que foi favorável assim? Entre o cadastro de 1998 e início da obra de 2001 a coisa não ficou congelada, a situação cadastral das famílias não estava congelada, o núcleo evoluiu naturalmente em torno de quase sete, oito por cento mais ou menos. O que fazer com essas famílias? Um caso que eu cito lá é o do Seu Benedito, que no momento do cadastro era ele, a mulher e dois filhos, isso em 1998. Ele catava papel para sobreviver, só que ele jogava - morando numa encosta - e guardava o papelão, o lixo, tudo em cima da casa dele; deu uma chuva, veio o lixo no barranco, nós corremos para lá para tirar a família dos escombros. Nós ajudamos no processo, tiraram a terra
que veio toda para cima do barraco e quando aconteceu isso, tinham 11 pessoas na casa dele. Então como que eu iria levar para uma casa como a gente vê: “Ah, bota em aluguel social”. Hoje de manhã queimou mais uma favela, curioso isso, não? Sessenta, mas deixa para lá, isso é outra história. Mas enfim, é curioso: caía uma família como é que a gente vai fazer? Como tinham várias áreas de risco, só para vocês terem uma ideia eram quase 90 contenções de encostas ao todo no núcleo, então é uma área que não estava consolidada, ela era instável, mas tinham vários bolsões ali, esses bolsões propiciaram o quê? Que a gente criasse um novo arranjo urbano para criar lotes onde não existiam em vários pontos do núcleo e poder atender quem estaria na roça. No caso do Seu Benedito, por exemplo, tinham 11 pessoas, eu não poderia levá-lo para aquelas casas onde mora a Jildete, então eu abri um lote no meio da área ocupada, fizemos um projeto para ele, em regime de autocondução, com três casas superpostas num terreno de 45 m², é como se fossem três apartamentos, ele iria morar aqui com a mulher e as famílias ou coabitações, que a gente ficou até naquele termo, sabe quando fala: “Ah, é cadeirante ou portador de necessidade especial”, não tem aquela: “Não pode falar isso, não pode fazer aquilo” e a gente não falava: “É não cadastrado”, nem no ambiente, porque você imagina a pessoa tá na roça, tá na rua, eu venho falar com você: “Ah, você não é cadastrado”, então a pessoa já sabe que não tem escritura, já tá lascado de qualquer jeito, não vai ser atendido, então a gente, se ele tinha um familiar na área a gente chamava o familiar e perguntava pra ele se ele queria um projeto de reforma e ampliação pra que aquele grupo familiar se consolidasse ali pra tentar não colocar na rua, então dessa forma a gente conseguiu absorver esse aumento de demanda. Basicamente, então, tivemos que ouvir muito, conversar muito, ouvir muito as pessoas para construir com eles a política pública, a felicidade, o resultado do programa. Eu tenho uma série de críticas, mas a felicidade do programa, que eu vejo, é essa possibilidade de desdobrar a política pública, porque trabalhamos com vários indivíduos, cada um com uma demanda, uma relação com a cidade, entre as pessoas, o grupo familiar completamente diferente. Não dá para chegar e falar assim: “Ah, não, eu vou fazer Singapura”, não dá para ser assim. Não dá para chegar e impor que: “Olha, o melhor para sua vida quem define sou eu, então você vai sair daí, que você morou em casa, veio da roça, plantou a vida inteira, com o perdão da expressão, cagou no mato. Já conto porque, aconteceu aqui na Peinha: fizeram um banheiro para uma senhora, e o que que ela fez? Plantou um xaxim dentro do vaso e ela fazia as coisas do lado de fora da casa. Daí você vê o que é que é bom: é bom pra gente ou é bom para o outro? Então tem que ter muita avaliação. Eu acho que essa construção, como diz o Paulo Freire,
sendo de baixo para cima, você está construindo conhecimentos, você não está impondo, você está dando à pessoa a oportunidade de decidir sobre um momento que é crítico na vida da pessoa. Eu tinha a atribuição de bater na porta da pessoa junto com a Ro [Roseli – assistente social] e com a Mônica e falar o seguinte: “Ó, sua casa vai sair”. Você imagina como que era para a gente fazer isso. Estou brincando até porque é terrível, muito cômodo para mim ir para a minha casa, ir dormir e deixar a pessoa sem dormir aquela noite, as outras noites. Então, o que que me incomodava? Era como que fazer essa transição ser menos sofrida e fazer com que a pessoa participasse também, porque, infelizmente, [é fácil] jogar a responsabilidade sobre ele, falar assim: “Ele é o causador, então eu lavo as mãos”. Não, ele foi morar lá porque não tinha oportunidade, não foi porque ele queria. No ABC isso é muito nítido por causa do processo de desconcentração industrial que tem lá, então, você vê que todas as favelas remontam de meados da década de 1980, o grosso delas. É a mesma coisa hoje que você imaginar assim ... você olha para o município de São Caetano, 50 por cento da mão de obra vem da GM, se a GM fechar as portas lá e sair, o município quebra. E daí? O município que se gaba de não ter favela vai virar o quê? Então não sei, não sei se eu respondi, é que eu vou falando, falando.
P/1 – Luiz Felipe, eu também queria te perguntar a questão da hierarquia dentro da Capuava, como que foi entender como as coisas funcionavam, as próprias dinâmicas de poder lá dentro quando vocês chegaram?
R – No momento em que eu entrei lá era meio barbárie. O cadastro, que é uma escritura, sem valor venal, mas é uma escritura, é um documento que a prefeitura dá o poder para a família saber que vai ser atendida. Então, quem chega depois, não é detentor do cadastro, a rigor não é responsabilidade da prefeitura. Ainda conseguimos atender com a tal da coabitação, que é o inchaço da família que veio do puxadinho, que chegou depois, que invadiu. Se invadia, tínhamos que tirar, fazíamos o possível para não deixar consolidar e instruíamos a família assim: “Se você deixar uma pessoa numa área que é tua, é sua responsabilidade aquela família, você ganha um filho pro resto da sua vida”. Essa era uma das formas que tínhamos de segurar. Tinha um poder paralelo lá complicado, porque toda a área onde o Estado não entra… e quem é o Estado, é a polícia? É a educação, é a saúde, é o correio, é a água, a luz, tudo. Onde você tem a ausência do Estado por omissão, você tem um problema generalizado, elevado a décima potência, de toda sorte de risco social, risco geotécnico, violência, segurança. Por outro lado, você tem uma estrutura de uma cidade medieval, fechada para fora, e lá você tem os senhores disputando o espaço político. Quando eu entrei, as pessoas achavam que eu era meio louco porque eu andava sem crachá, perguntando e conversando com as pessoas na rua. Como transitava, então sabia até como, [através das] formas de linguagem, para descer, não ficar com aquela coisa pomposa, aquela fala mansa. Mais, o que acontecia lá? O poder paralelo pegava, por exemplo, as pessoas solteiras que moravam lá e faziam elas assinarem um termo de venda do cadastro, ou compra do cadastro, e pá, matava, assim, à luz do dia e arrastava até a Avenida do Estado para jogar o corpo no rio. Era barbárie. Você imaginar a sacada: se tinha algum lugar que tinha alguma vista, como lá é um morro tem alguns pontos que são estratégicos para você ver a movimentação de tudo. Então tinha essa coisa, mas, nunca demos muita trela para isso, nunca tivemos que pedir licença para entrar na área. Eu sou cem por cento contra isso daí, porque quando você entra enquanto governo, para fazer barba, cabelo e bigode, você, assim, entra com um número de técnicos e deixa claro o seu papel, a que você veio. Lógico que num primeiro momento não foi, tivemos resistência sim, tivemos embates de cara até se firmar. Então sabe aquela coisa do filho rebelde que vai, bate para ver a reação? Não foi diferente, tivemos umas reações complicadas, até, como eu falei, de ameaça, principalmente à minha pessoa, [pois] que a prefeitura lá era o Felipe, por eu ser, estar na frente do movimento. Mas eu fazia o possível para falar: “É o governo, estamos aqui para… [mas] não é o Felipe, vocês não vão fazer isso porque eu estou querendo, temos um programa e vamos fazer esse programa virar da melhor maneira possível”. Tivemos bastante resistência, mas quebramos essa coisa da hierarquia de poder, porque o nosso pacto tem que ser com a população como um todo e não com o chefe do tráfico A ou B ou C ou D, porque se não vai parecer que você está comprando a segurança e não é por aí, eu acho que não é por aí. É um pacto coletivo, o tempo todo você tem que negociar coletivamente, deixar isso claro em assembleia, seja com um grupo de 50, 100, 300 pessoas. Dependendo do âmbito das coisas que você vai mexer, tem que ter um trabalho social diário e técnico, todo dia estar na área para conversar com as pessoas, ver a real necessidade para você tentar conciliar isso da melhor forma possível. Dentro da história da Arquitetura, eu digo que um trabalho de urbanização, está situado no período maneirista, que é a época que situa Michelangelo. É alta a tensão em um produto inacabado, não vai ter um trabalho fechado, porque você vai construir isso coletivamente.
P/1 – Luiz Felipe, você contou pra gente alguns casos da outra vez do Chico de Pedro, da Janete e aí eu queria te perguntar do caso da casa da Luzia, que tinha uma declividade maior.
R – Da Luzia? Deixa eu ver, da Luzia, da Jildete, não é da Jildete?
P/1 – Bom, a gente pegou isso acho que do seu mestrado.
R – Da Luzia?
P/1 – Mas da Jildete também teve que, né?
R – Eu acho que o mais emblemático para mim é a Jildete, porque ela tinha sido, eu acho, abandonada pelo marido, três filhas, uma [das filhas] portadora de necessidades especiais. Ela morava num barranco numa área que dava metade dessa sala praticamente, tinha dois metros por, eu acho que uns sete metros ... a filha dela tinha uma, eu não sei qual deficiência exatamente, mas ela não andava, não se locomovia, ficava toda travada e ela morava numa encosta, numa escadaria de 45 graus para ela chegar, ter acesso a cidade, ela andava mais ou menos 50 metros para chegar. Então, ela não podia trabalhar porque não tinha como deixar as filhas em casa, sendo que uma era totalmente dependente dela. Ela tinha que fazer alguns bicos, mas não tinha como se viabilizar, se reproduzir economicamente. Um dia, fomos chamados às pressas, porque estava chovendo e ela morava numa região lá do setor cinco que estava uma encosta. [A chuva estava] muito pesada e a casa dela estava indo, então eu parei o culto numa igreja, tinha uma igreja na frente da casa dela, eu parei o culto para ajudarmos a fazer um escravos de Jó para fazer a mudança dela rapidamente para cima. Primeiro da família, depois das coisas para ela não perder, ela já tinha pouco. Ela foi para a moradia provisória durante um tempo até a casa dela ficar pronta, então entregamos um embrião. Ela se inscreveu, na época, no Renda Mínima, conseguindo então atrelar, colocar o filho na escola, se inscreveu no programa ... Com a pequena renda, ela voltou a estudar, voltou a trabalhar, fazer curso, conseguiu, estando morando no loteamento, naquela casa. A van já poderia chegar para pegar a filha e levar, com transporte especial, com outro serviço cruzado da prefeitura. Então ela conseguiu voltar a trabalhar, melhorou de renda, conseguiu criar melhor os filhos. Hoje você chega lá, vocês irão falar com ela, você vai ver que a filha dela é a coisa mais linda, ela era toda atrofiada, subnutrida, quando era pequena, e hoje está uma moça linda, já consegue falar, se expressar. É um processo que para mim é um dos mais impagáveis que tem. O Chico de Pedro foi aquela coisa de chegar lá na área e o pessoal falar: “Você é louco!”, o cara foi justiceiro. “Vai falar com ele e tal, não sei o quê”, eu falei: “Não tem [essa], o cara não é melhor do que ninguém lá, tá com problema lá para resolver, eu não quero nem saber, eu vou lá”. Daí cheguei na área, ele me olhou de cima a baixo, demoradamente, deu aquela mirada, e eu falei: “Escuta, o que que tá pegando aí?” e olhei para ele assim ... Ele: “E quem é você?”. Eu falei: “Eu trabalho na prefeitura, eu recebi uma informação que tem um problema no esgoto, tal”. Ele todo sério, desconfiado: “Esse cara deve ser mais louco que eu”. Deu uns 15 dias e ele: “Felipão”, já todo assim ... Era um daqueles mitos, era um dos mitos que tinha lá e foi um dos melhores parceiros. A Jildete batia muito em mim também, xingava pra caramba, era boca suja. Ela ficava revoltada, ficava nos policiando, tinha uma busca que era dela, de lutar pelos seus direitos, mas tinha muito do coletivo. E ele também [o Chico de Pedro]. Então aprendi a utilizar essa energia a nosso favor. Um dia enchi o saco e cheguei tanto para ele quanto para ela, e disse: “Você quer brigar? Então vamos brigar pelo que vale a pena, vamos gastar essa energia aí e vamos lutar pela coisa certa. Você fica batendo, batendo, você não entende que eu tô aqui pra fazer esse negócio acontecer?”. E hoje é uma amigona, eu passo uma vez ou outra tanto para visitá-lo, quanto para visitá-la. A Dona Toinha, que tem um comércio lá na Rua Seis, também. Tem cada causo que você vê de pessoas com vida muito sofrida, que nos tornamos impagáveis poder ter contribuído para que essas pessoas tenham uma vida melhor. O Chico de Pedro me chamou muita atenção um dia, ele morava num barracão de quatro por quatro mais ou menos e me chamou para ir comer uma linguiça na casa dele. Ele já não tinha nada... ele falava: “Hey mulher, faz uma linguiça aí!”. Fritou uma linguiça lá pra gente. Ele trabalhava no lixo. Daí que você vai ver a sabedoria das pessoas. Ele foi outro mestre também, ele falou assim [quando perguntei]: “O que você faz?” - “Eu cato lixo das pessoas”. Até a forma que ele falou, tudo que não serve para sociedade, que ela descarta, ele tava o quê, estava fazendo a limpeza da cidade, a limpeza da rua. Ele trabalhava de manhã, chegava à tarde, tomava umas cachaças, ficava lá todo alterado e o pessoal tinha muito medo por causa disso. Num desses dias, ele me chamou para irmos conversar lá [na casa dele], e foi me mostrar a parede dele, que era mais ou menos do tamanho dessa daqui, só de livro que ele lia: livros de História, Português, Geografia. Ele tinha um sonho de poder fazer faculdade. Ele tinha aquela fama de carniça, mas luta até hoje para botar os filhos... um filho dele acabou de entrar na universidade, o filho do Geneci também, que é vizinho de costas, são-paulino, gente porreta pra caramba, . Ele tem um bar ali... eu vi os filhos dele com o nariz escorrendo, andando no meio do esgoto e hoje estão grandes, entrando na faculdade. Isso para mim, é que é legal. Vou fazer casa em Alphaville para quê, se a gente pode fazer isso também? Hoje eu passo para os alunos essa [experiência], que é legal olhar o que é que está acontecendo na cidade para ver como podemos contribuir para fazer um mundo melhor, para quem precisa.
P/2 – E teve reconhecimento internacional esse projeto, não teve?
R – Teve, teve sim.
P/2 – Qual a sua avaliação?
R – Então, eu acho que lá fora eles têm uma visão muito romântica, não sei se por culpa, por ter durante tantos anos, aqui, hoje, talvez mais na África... é o canteiro de laboratórios, como em o Jardineiro Fiel [filme], onde, acho, mostra muito bem isso. Então, não sei se por culpa, mas, assim... E outra coisa que é legítima, nós temos um contrato com a União Européia de fazer a parte que é analisar esse processo histórico, ver assim: “Pô, se a gente contribuiu para o nosso desenvolvimento, criar essa desigualdade, criar essa pobreza, então como que a gente pode reverter isso?”. Acho só as políticas dos bancos, como o BIRD [Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento] e Banco Mundial, poderiam ter uma taxa de juros menor para favorecer o endividamento público, porque você cria uma situação de dependência que favorece ao ócio externo. Eu vejo isso como um aspecto muito negativo, o estado ou o município não tem condição de endividar e ele é praticamente forçado a ter endividamento externo, só que com esse endividamento externo à taxas de juros altas, você cria financeirização de um lado e a dependência de outro. Veio um cara da ONU falar com a gente, não me lembro do nome dele, e ficou maravilhado por essa condição adversa da Capuava: ela se assemelha muito a uma cidade grega, uma Santorini, uma cidade italiana medieval, uma Ilha de San Michel, na França, com todas aquelas casinhas, aquelas vielas, tudo com uma lógica, com vida acontecendo lá. Não é aquela coisa racional. Acho que tudo que não se processa pelo cérebro de forma racional, atinge o nosso apelo estético, então, acho que eles ficaram muito felizes de ver o que conseguimos fazer com muito pouco. Era muito pouco recurso, se você pensar naquela época: o que é 12 mil reais por família para você fazer um processo de urbanização que melhora, que dá condições de habitabilidade, que dá água, dá esgoto? E urbanização não é só água, esgoto. É o que vocês até tinham perguntado: “O que daria pra fazer?”. Eu acho que a Braskem pode fazer um plano de revestimento e pintura de todas aquelas casas, uma coisa que a gente tentou fazer lá atrás. Eu não lembro, mas posso tentar resgatar porque isso não foi para frente, mas se fizesse isso, acho que isso ia dar outra cara. As casas que foram pintadas … tentamos até elencar, mas caímos naquele dilema: que casa que iremos revestir e pintar, vai ser a sua porque você sorriu ou vai ser a dele porque estamos com medo dele? Você entendeu,
quem iremos privilegiar: essa, a outra é que vem depois. Eu acho que seria uma coisa muito legal, consolidaria todo o processo deles, mexeria muito com a autoestima, acho que isso é fundamental. O fato de ter um endereço, [por exemplo]: a gente vê até as propagandas hipócritas políticas passando aí, sem dar nome aos bois; vi um cabra falando hoje - tenho que chamar de cabra um cidadão desse - mas, enfim, ele estava falando assim: “Ah, vamos dar endereço, pra camelódromo”. Eu falei: “Poxa vida, será que ele sabe realmente o que é isso, ele vivenciou, ele viu antes e viu depois, será que ele sabe sobre o que ele está falando, para tornar isso um jargão político?”. Não sabe, mas de fato essa cidadania que dá um endereço é uma coisa bacana. Então, quando o pessoal de fora vinha, eles viam uma oportunidade de troca fantástica de cidadania. Eu levei alguns alunos da, hoje eu dou aula na UNIP e na Belas Artes, eu fui dar uma aula sobre redução de resíduos na construção civil, levei os alunos da pós da Belas Artes lá e fiquei muito feliz com um comentário, isso depois de quatro anos, cinco anos que o processo praticamente finalizou. Um comentário deles que foi geral, andando com eles lá na área: “Nossa, como é limpo aqui.” Pô, ganhei o dia, ganhei todos os anos de trabalho. É mais ou menos a relação que temos com o metrô: se você faz um, entrega um patrimônio que está legal e as pessoas cuidam. Eu olhei para o lado e, realmente, as pessoas cuidam da área até hoje. Então, não temos que reduzir. Por que que acho que eles valorizaram esse aspecto? Porque não reduzimos a política pública por estar trabalhando para pessoas de baixa renda ou favelados, seja lá qual o nome que eles iam dar, cada um dava um nome na época, não me lembro como eles, acho que eles não têm essa palavra, eles têm uma palavra mais próxima que eles chamam, falavam chabola, eu acho que é chabola, se eu não me engano, chabola eu acho que é em espanhol, mas tem um outro, é slum, no inglês, eu acho que é slum. Eles têm um universo com essa diversidade e ao mesmo tempo com essa riqueza cultural. Acho que o que chama a atenção é a iniciativa de você preservar essa riqueza cultural e você adequar, você dar mais condições de habitabilidade para o que está lá e isso é uma coisa que respeito. Eu acho que tem uma coisa que pesa, que é o dever histórico e, ao mesmo tempo, a coisa de falar assim: “Nossa, que legal, a gente não arrasou e construiu coisa habitacional”, que é o que eles pautavam lá no movimento moderno, onde eles fizeram conjuntos habitacionais tratando as pessoas como números e quebraram a cara, porque criaram guetos muito grandes.
P/1 – Bom, Luiz Felipe, agora só pra gente encerrar um pouquinho, falar um pouquinho do seu dia a dia hoje, você dá aula na Belas Artes, na UNIP, falar um pouquinho da sua família.
R – Ok, minha família, por onde eu começo? Começar pelo lado acadêmico. Então, eu tomei a decisão de sair de lá em 2007, porque estava cansado pra caramba, eu senti que como todo tempo eu trabalhei para formar, eu senti que estava na hora de sair, porque a coisa iria continuar, como continuou, muito bem, com as pessoas da minha equipe, de nossa equipe, que estava lá. Eu tomei a decisão de alçar outros vôos, ampliar um pouco mais. Já em 2006, incomodado com o processo e querendo reavaliar, eu fui
fazer o mestrado, finalizei em 2009, abri um pouco mais a cabeça no sentido de ter um olhar mais crítico com a formatação da política pública e eu voltei para essa questão. Eu sempre quis trabalhar com educação também, todo mundo falou: “Pô, você tem que dar aula, você tem que fazer isso, você tem que...”, “Caramba, mas da meia noite às cinco, quando que eu vou fazer isso?”. Mas eu sempre vi como um aspecto positivo essa coisa do saber como fazer. Então, em 2008 apareceu a oportunidade para voltar a dar aula na São Marcos. Voltei a dar aula, parei uns seis meses só, por causa do meu trabalho. Hoje eu estou com o escritório, trabalho durante o dia e dou aula dois dias por semana de manhã, o restante à noite. Estou dando aula em três UNIP's, estou como coordenador auxiliar de duas delas, lá no campus Chácara Santo Antônio e o da Anchieta. É muito legal, porque todo aquele aprendizado no tempo de estudante ainda e me vejo como estudante… eu acho que no dia em que eu não me ver mais [como estudante] estará na hora de subir. Eu brinco com os alunos: “Pô, você é muito exigente” e eu sou mesmo. Acho que por ter conhecido muito essa questão da miséria de muito perto, eu sempre falo para os alunos: “Vocês não sabem a oportunidade que vocês têm de estar num curso, então eu acho que vocês não podem fazer de qualquer jeito, têm que dar o melhor”. Incentivo muito eles dizendo que a formação não se dá só na faculdade, se dá fora. Eu bolo lá umas atividades extracurriculares e complementares; por exemplo, no primeiro semestre de uma delas que eu estava pistola na Anchieta, fiz lá 13 atividades para os alunos, só extras assim, palestra, visita, visita a núcleo habitacional, fomos lá no São Francisco, eu peguei alunos de cinco instituições levei lá no núcleo São Francisco, fomos no centro de São Paulo para mostrar, juntamos com o curso de Direito para eles darem o olhar, defenderem o peixe deles dizendo que a cidade foi formada sob o olhar do Direito e eu do Urbanismo. Foi muito engraçado a gente brincando uns com os outros, foram alunos do Direito e alunos da Arquitetura para fazermos o circuito do triângulo: São Bento, Boa Vista e Direita, para contar o nascimento de São Paulo. Os alunos foram esse fim de semana, eu não pude ir porque fui dar aula, foram na Pinacoteca. Levei 250 alunos junto com os outros três professores para Paranapiacaba para falar sobre a importância da questão do patrimônio. Fiquei muito feliz de ver o espaço aqui de vocês, saber sobre a importância da construção, a importância da história para vocês, da memória, para você pautar, corrigir os erros, ou prevenir os erros futuros. Para mim, hoje, estar trabalhando na docência, tanto na graduação como na pós, está sendo muito gratificante, porque tenho paixão por essa área da Arquitetura, muito amor mesmo, pela oportunidade do que ela propicia à gente. E procuro passar isso para os alunos, da melhor forma possível. Os nossos alunos são fantásticos. Acho que é porque sou muito pentelho também. Eu sempre coloco a seguinte atribuição que estava brincando contigo, assim, com cada professor que a gente vai conversar eu falo: “Olha, eu quero que você deixe os alunos em crise, bota muito conteúdo na cabeça e dá para ele a decisão do que ele vai ser depois.” Eu procuro sempre trazer essa experiência do lado, dar esse viés social. Estou lá praticamente começando o escritório modelo, em duas delas já como viés para iniciação científica, só que aí eu acho que é um problema da academia ficar lendo muito e você vai lá e escreve. Isso é um saco, eu acho. Sinto-me muito mais à vontade em pegar um problema real, prático e trazer para uma questão de conhecimento, fazer o inverso. Foi assim que fiz no mestrado, é assim que as outras ações do escritório modelo se tornaram práticas e é o que estou querendo fazer agora: parcerias com o Sebrae, com movimentos de moradia e com favelas também. Tem uma ação que a gente vai fazer um centro cultural numa favela, já conversei com uma arquiteta da Sehab [Secretaria de Habitação], desenvolver um trabalho envolvendo alunos, moradores e nós, vamos moldar um projeto de acordo com o que eles quiserem. Então, estar hoje trabalhando com a área acadêmica não tem preço, hoje eu estou conseguindo conciliar, por mais difícil que os horários pareçam, com o meu escritório, que vocês conheceram. Gostaria de passar mais tempo nele, mas estou com tanto gosto pela área acadêmica que estou, a cabeça minha pelo menos está, muito voltado para essa parte da educação, para a pesquisa. Isso que é legal, de poder fazer aquela máxima lá que o Csaba [Csaba Deák, professor de planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP] falou pra mim: “Vai dar aula, se você achar que aprende alguma coisa”. Eu vejo que a cada dia a gente aprende uma coisa diferente com o aluno. Eu brinco com os alunos, logo na primeira aula, falando assim: “Sempre tem aquele aluno sacana, que faz aquela pergunta que o professor faz assim: ‘e agora?’”, eu falo: “Então, por favor, eu já vou falar pra vocês: sejam esses alunos, porque são nessas perguntas que a gente vai fazer, estabelecer uma troca aqui”. Sábado estava dando aula para uma turma da Belas Artes, eu gosto muito de fazer uma roda, para não ter aquela coisa de transmissão de conhecimento, e as pessoas, é engraçado nessa hora como as pessoas se colocam, quebra aquela coisa [da hierarquia]: “Ah, você fala, que você tem conhecimento, você está mais alto, você é o professor”. Não, não tem essa, vamos estabelecer aqui um diálogo, eu acredito muito nessa forma de trabalho, de construção coletiva de conhecimento. Minha família: eu tenho a família que pedi a Deus. Tenho um filho lindo, ele é meu enteado. Não tive filho do primeiro casamento, fiquei 11 anos entre namoro e casado, mas era praticamente casado com a minha ex-mulher, mas não queria ter filhos com ela e me separei. Dois meses depois,eu conheci a minha mulher, olhei para cima e falei: “Poxa, acabei de separar, você coloca esse trem aí pra mim”. Eu falei: “Meu Deus do céu!”. Que separa, quem já se separou fala: “Você nunca mais vai...”. Mas eu cuspi e caiu na testa, porque falei assim: “Não!”. O legal é que a gente está aí até hoje. Egly é minha mulher, é uma pessoa fantástica, designer de formação, fez a pós dela em educação ambiental, é muito antenada na questão da sustentabilidade, com movimento social, ela é muito politizada, a gente se conheceu num ... foi uma das coisas mais improváveis, nos conhecemos dançando, eu não estava a fim de nada, ela também não, e, por acaso, a gente se conheceu dançando. Temos uma cabeça que milita pela mesma coisa, temos os mesmos ideais, de estética, de música, de dança, a gente gosta das mesmas coisas. Quando eu a conheci, ela falou assim: “Ó, eu tenho um filho”, e eu falei: “Pô, legal”. Quando eu o conheci, a primeira vez, ele veio correndo e pulou no meu braço e
estou criando ele há nove anos. Faz nove anos que estamos juntos. É a família que eu pedi a Deus. Eu gosto de contar historinha para ele dormir, gosto de ver as coisas engraçadas com ele na internet, damos risadas de besteiras. Tenho duas cachorras lindas, vira-latas, bem vagabundas assim, uma parece caída do trem e a outra é muito amorosa, ela é. Meus irmãos, a gente se vê, como eu moro mais longe, eles moram aqui em São Paulo, eu estou falando como se fosse do ABC: “Eu vou para São Paulo”. Eu dava risada, quando eu morava aqui e falava: “Como ‘vou para São Paulo’, parece que você vai pra outro lugar. Mas é tudo a mesma coisa. Eles moram aqui, eu moro lá. Semana passada nos encontramos, aliás, como eu tive um acidente de moto, eles foram lá me visitar. É um evento, é um barato. Nos encontrávamos mais vezes quando a minha mãe era viva. Ela faleceu em janeiro do ano passado. Mas agora quando a gente se encontra também é muito legal, porque temos muito carinho uns pelos outros, cada um constituiu a sua família, todos estão com filho, é muito legal. Se eu fosse fazer alguma coisa na minha vida, faria tudo de novo, da mesma forma, cometeria os mesmos erros, gostaria de ter novamente todos os benefícios das dúvidas que eu tive, não ter acesso ao conhecimento, pois a gente sempre pensa: “Caramba, eu queria voltar atrás e ter a cabeça que eu tenho hoje lá atrás para fazer isso, pegar aquela menina”. Não tem essa coisa de falar assim: “Eu queria ter mais cabeça para fazer isso, fazer aquilo”, eu não. Gostaria de poder vivenciar todas as minhas dificuldades que fizeram eu ser o que sou hoje, entendeu? Para saber, estar com a cabeça aberta para poder aprender e viver. Eu acho que estamos aqui para isso, quando esgotar o que temos que aprender, está na hora de subir.
P/1 – Luiz Felipe, eu queria agora que você falasse para gente os maiores aprendizados dessa tua experiência em Capuava e o que fica com você.
R – O maior aprendizado, eu acho, é essa coisa que eu falei de a gente nunca deve subestimar ninguém e o nosso conhecimento nunca deve se sobrepor ao conhecimento de outra pessoa. Nós, as pessoas hoje, de forma geral, elas são muito reticentes, se você, minha mulher, por exemplo, na semana passada, viu um senhor subindo a rua, estava subindo com muita dificuldade querendo ir para o hospital que ficava lá em cima e ela estava indo mais ou menos pelo mesmo caminho. Ela ofereceu carona, ele ficou assim e ela acabou ficando meio... Depois, ele: “Nossa, muito obrigado”. Acho que falta isso. Acho que para mim era muito claro essa coisa do mito de que as pessoas se trancam, cada vez mais, de ficar cada um dentro da sua casa. Acho que, assim, a gente tem que... a lição que eu tenho é assim: quanto mais eu puder viver para quebrar o paradigma de olhar para o próprio umbigo ,melhor. Porque a nossa sociedade está muito voltada para o umbigo, e se esquece do que está ao alcance da sua mão. Se você consegue ser uma pessoa melhor em sociedade, começando pela família, e com o outro, eu acho que a gente teria uma cidade muito mais tranquila, uma sociedade mais tranquila. A lição que eu tiro é de não subestimar o conhecimento das pessoas, assim como tem o benefício da dúvida, tem o livre arbítrio para poder fazer o que quiser. Então, eu acho que a gente tem que pular junto na piscina, não passar a mão na cabeça de ninguém, não favorecer, privilegiar. Você, todos somos farinhas do mesmo saco. Acho que é essa a lição que eu tiro. Aprendi a ser muito mais tolerante. A Capuava me ensinou a ser mais tolerante, ser mais amoroso, paciente e indulgente com todos. Até com a minha própria família. Eu me separei porque eu chegava [tarde], entre outras coisas. Mas eu tinha tanto amor, e tenho pelo que eu fazia, que eu chegava feliz em casa e minha ex-mulher falava que eu tinha que trabalhar somente para gente rica. Com o conhecimento que eu tinha, tinha que trabalhar só em Alphaville, em Aldeia da Serra, fazendo casa para essa gente, e não é por aí, a gente tem que levar a Arquitetura para onde é preciso, não é?
P/1 – E agora para encerrarmos, eu já te perguntei da outra vez, mas vou te perguntar de novo, como que é para você contar a tua história, o que significa fazer esse projeto de resgatar a memória das pessoas?
R – Para mim é novo. Estava até brincando com o microfone, porque é a primeira vez que eu participo de uma entrevista assim. Eu acho muito legal a iniciativa, quando vocês me procuraram e falaram do projeto, no começo, eu confesso, falei assim: “Putz, agora, nesse momento político?”. Eu falei: “Caramba, o que que será que vem aí?”, e já pensei: “Será que tem algum candidato?”. Falei, mas não, vocês vieram, conversamos um pouco, eu vi que vocês eram do bem e gostei muito. Gostei do espaço da casa, acho uma pena que ele não seja tão divulgado, porque eu acredito muito na história, temos que aprender com a história, a roda já foi inventada, temos que fazê-la girar e nada melhor do que você ter um local. Para mim, é ímpar você: “Ah, vem aí conversar com a gente”. Eu vou e se não tivesse funcionado a gravação, voltaria de novo, porque eu acho muito legal contar, a gente saber da história dos lugares pela boca das pessoas, isso talvez seja até mais rico, mais fácil, a história oral seja mais fácil de ser contada do que a escrita. Então, você ter um espaço que tem essa preocupação em preservar a memória, acho fantástico. Acho que vocês dão um passo bem legal.
P/1 – Muito obrigada, Luiz Felipe, em nome do Museu da Pessoa, e da Braskem também, a gente agradece por você ter vindo até aqui.