Minha vida, nossa vida
O presente, o passado e o futuro
Nesta vida todos nós somos protagonistas de uma história, mas na maioria dessas histórias, eles, os atores são anônimos.
Este trabalho foi possível graças à participação de três gerações: a autora, Shizuyo Nakanishi, com suas lemb...Continuar leitura
Minha vida, nossa vida
O presente, o passado e o futuro
Nesta vida todos nós somos protagonistas de uma história, mas na maioria dessas histórias, eles, os atores são anônimos.
Este trabalho foi possível graças à participação de três gerações: a autora, Shizuyo Nakanishi, com suas lembranças, sua filha Kiyomi que traduziu para o português os sentimentos e fatos acontecidos
e sua neta Karina que cuidou da revisão geral do texto.
Escrever esta história era um sonho de Shizuyo desde 1993, quando comemorou as bodas de ouro de seu casamento com Teruo. Realizá-la em 1997, teve vários significados. Em primeiro lugar é uma homenagem ao seu pai Zenyemon Tanaka, que neste ano, se estivesse vivo, estaria completando 100 anos, é uma forma de registrar os seus 70 anos de vida e também o 60o ano de chegada da família Tanaka ao Brasil.
É a história de duas famílias de imigrantes japoneses, Nakanishi e Tanaka, que chegaram ao Brasil em 1933 e 1936, respectivamente.
Por estar escrita na língua portuguesa, é dedicada principalmente aos jovens descendentes destas duas famílias e de outros que se identifiquem com a história.
Queremos que estes jovens tracem para si um caminho de sucesso baseado no estudo e no trabalho e que levem para as gerações futuras, a tenacidade, a perseverança e o otimismo dos pais, avós, e bisavós que fizeram esta história.
CAPÍTULO I
Porto de Kobe, julho de 1936. Tenho 10 anos. Estamos nos despedindo de parentes e amigos. O Navio "Rio de Janeiro Maru" zarpará dentro de pouco tempo com destino ao Brasil. A nossa família é formada pelos meus pais Zenyemon Tanaka, de 39 anos, minha mãe Tome, de 31 anos e minhas irmãs Massako, de 13 anos, Fumiko, de 7 anos e Emiko, de 5 anos.
Do convés do navio lançamos serpentinas para os primos e tios que
acenam em sinal de despedida para nós. Á medida que o navio se afasta do porto, os laços das serpentinas vão se rompendo e a imagem dos parentes e amigos vão diminuindo cada vez mais até que desaparecem . Dai em diante, durante 45 dias, só enxergamos
o mar, ás vezes tranqüilo, ás vezes enfurecido, mas, sempre com uma coloração azul escura.
Quando chegamos a Hong Kong, Singapura, Colombo, Cape Town entre outras localidades,
o navio atraca e os viajantes podem descer. Após várias paradas chegamos ao Porto de Santos ao entardecer do dia 29 de agosto, depois de passar
pelo litoral do Rio de Janeiro, a "cidade maravilhosa". Pernoitamos no navio já ancorado, mas só desembarcamos no dia seguinte. Depois de tanto tempo vendo mar, eu e minhas irmãs não vemos a hora de continuar a viagem, desta vez em terra.
Somos mais de mil imigrantes, entre adultos, jovens e crianças, trazendo apenas o essencial para começar uma vida nova no Brasil; assim que desembarcamos
passamos
por uma revista geral feita por oficiais brasileiros de Santos, embarcamos em um trem com destino a Jundiaí, de onde passamos para outro com destino a Barretos, desembarcando em Bebedouro. Em seguida, ainda utilizando o trem como meio de transporte chegamos em Monte Azul Paulista. De lá, até a Fazenda Suco, onde fomos contratados para trabalhar nas plantações de café, a viagem é feita em caminhão.
Durante a longa viagem, a locomotiva movida á lenha caminha lentamente, a paisagem que vemos, não é em nada parecida com a até então vista, em viagens no Japão. De tempo em tempo, o trem pára e famílias desembarcam, pois o destino não é igual para todos. Estas, ao tirarem suas bagagens, despedem-se dos que ainda vão continuar a viagem; toda vez que isso acontece, tanto os que partem, como os que ainda permanecem no trem deixam as lágrimas rolarem silenciosamente. Elas refletem a dor da separação e o medo do futuro que é incerto para todos. As crianças menores, na sua ingenuidade permanecem alheias a essas manifestações e passam o tempo observando paisagens, pessoas e animais. Tudo é novidade para elas.
A alimentação servida no trem era muito estranha para mim. Mais tarde fiquei sabendo que era sanduíche de mortadela. Tenho uma vaga lembrança de ver homens trancando os vagões com chaves e colocando cadeados. Hoje, passados muitos anos e relembrando estes fatos, fico em dúvida se estas medidas visavam
maior segurança aos imigrantes ou se eram medidas para evitar a fuga deles.
Desembarcamos na última parada do trem, em Monte Azul Paulista. Somos dez famílias e o nosso destino é a Fazenda Suco, uma das grandes produtoras de café no Estado de São Paulo que é administrada pelo Banco Francês Italiano. Por sorte chegando lá encontramos outras 3 famílias de imigrantes japoneses, que haviam chegado
três meses antes, e uma das pessoas que falava o português e passa a ser o nosso
intérprete. Além dos japoneses, há italianos, espanhóis e alemães, também trabalham na capina do café a um preço combinado em contrato de 400.000 réis anuais por 1000 pés de café.
Moramos em casas de tijolos, com 2 bicos de luz, que são ligadas ao entardecer e desligadas ao amanhecer pela administração da fazenda. A água para uso é obtida da cisterna e de uma caixa coletiva captada de uma mina. As despesas de comida são feitas no armazém da fazenda. A compra é feita a "fiado", em sistema de vale. A dívida será descontada do salário ao termino do contrato anual. Para nós, os hábitos alimentares são muito estranhos, não estamos acostumados a comer arroz, feijão, carne seca e batatinha.
Os japoneses quase não saem da fazenda, o motivo é
a dificuldade em se comunicar com os brasileiros e também a dedicação ao trabalho.Trabalham do amanhecer ao por do sol e o sonho deles é ficar rico e voltar ao Japão ou então ser dono de um pedaço de terra, aqui no Brasil,
para cultivar a terra.
Eu e Massako trabalhamos muito ajudando nosso pai. Não sobra tempo para fazer amizades, nem mesmo
com as pessoas que vieram do Japão no mesmo navio Fumiko e Emiko por ainda serem pequenas não vão para a roça. Em 1939, passam a freqüentar a escola e lá estudam por um ano e meio. A professora vem da cidade de Monte Azul e as aulas são dadas em uma única sala, para alunos do primeiro, segundo e terceiro ano primário. Massako e eu não tivemos nenhum estudo no Brasil. No Japão, tivemos
o correspondente ao quinto e terceiro ano primário, respectivamente.
As famílias que trouxeram sementes do Japão iniciam a formação de hortas perto das casas, enriquecendo a alimentação de verduras como rabanetes, nabos, cenouras e acelgas.
Em 1940, a nossa família passa a plantar algodão. De colonos, passamos a ser arrendatários, mas
terra era ruim, a chuva foi insuficiente e meu pai ficou muito doente de "maleita". A colheita não deu para pagar as dívidas e com isso,
passamos muitas necessidades. Na época eu com 15 anos e minha mãe com 37 anos chorávamos muito e tínhamos muita vontade de voltar para o Japão.
Em 1942, mudamos para a Fazenda Córrego dos Bois, município de Bebedouro. Na condição de meeiros, a família planta algodão. A casa onde moramos é de tijolo, mas o piso é de terra batida.
Ela fica no meio de uma mata onde existem muitos insetos. Não temos luz elétrica ; a água é obtida do poço e é "salobra"; não tem escola para a Fumiko e Emiko. Á noite, após um cansativo dia de trabalho, á luz de lamparina a querosene, nós estudamos por conta própria o japonês e o português. Como toda adolescente de 16 anos tenho muitos sonhos, principalmente de ler romances escritos em japonês e em português.
CAPITULO II
Estamos em 1943. Tenho 17 anos e Teruo 25 anos.
É costume na colônia se fazer os casamentos após a colheita da lavoura. A partir de agora deixo de assinar o sobrenome Tanaka e passo assinar o sobrenome Nakanishi.
É costume entre os japoneses os pais apresentarem os filhos em idade de casamento aos pais das moças pretendidas. Só com o consentimento deles é que os rapazes podem se aproximar das moças e iniciar o namoro.
O casamento com brasileiros não é bem aceito. Quem faz essas apresentações é o "nakodo"e esse tipo de casamento arranjado é conhecido como "miai". Minha sogra conta que só conheceu o noivo no dia do casamento e na hora da cerimônia.
O costume no Japão era de que
o filho, mais velho, o "tionan",
morasse com os pais depois do casamento, tendo figura do pai como autoridade. Este exigia obediência e respeito dos filhos. As mulheres casadas deviam obediência ao marido e aos sogros. Seguindo esta tradição japonesa fui morar na fazenda Santa Irene, município de Bebedouro, com minha sogra e meu cunhado. Meu sogro já era falecido. Enquanto os homens trabalhavam na roça, minha sogra e eu, cuidávamos da horta e da criação de porcos e galinhas.
No tempo da guerra as notícias oficiais não chegavam até nós, pois não tínhamos acesso a
rádio, jornal e
revistas, mas os comentários que chegavam até nós, nos deixavam preocupados. Ficamos sabendo que em 1940, o Japão havia assinado a aliança tríplice com a Alemanha e a Itália e no ano seguinte, em 1941 havia atacado Pearl Harbour. Nessa época os japoneses passam a ser
discriminados e muitos são perseguidos pela polícia acusados de serem espiões.
Lembro que um dia a Polícia de Bebedouro invadiu minha casa á procura de documentos, livros e outras provas . Uma amiga da família foi presa por possuir um aparelho de massagem. O policial alegou que se tratava de um aparelho de rádio comunicação. Outro vizinho, por usar botas do tipo usado pelos militares japoneses tem apelido de "capitão". Ele também foi preso sob suspeita de ter ligação com a policia japonesa.
Os imigrantes devem possuir o Documento Estrangeiro, modelo 18 ou, o Salvo Conduto. As fiscalizações são feitas nas estações de trem, por ser este, o meio de transporte mais utilizado pela população na época; os que estão em situação ilegal não podem viajar.
A Fazenda Santa Irene fica perto da Estação Areia que faz parte da Estrada de Ferro Paulista que liga São Paulo a Barretos. O trem é o meio de transporte mais utilizado pelos colonos quando vão para Bebedouro. Também é possível chegar lá pela estrada de chão, a pé , de carroça ou de carro, pois a distância é de cerca de 10 km.
O dono da fazenda é um grande produtor de café. A fazenda é moderna, com uma casa muito bonita e bem mobiliada onde moram os proprietários, a casa do administrador, o escritório, a escola, o "terreirão" para a secagem do café, as casas dos colonos, o curral com vacas leiteiras, o armazém, o matadouro, o pomar, a horta e outras benfeitorias.
Vivem nela cerca de 100 colonos em casas de madeira ou de material. É nas casas de alvenaria que moram as famílias dos empregados mais especializados como fiscais, carpinteiros, pedreiros, serralheiros e tratoristas.
A familia Nakanishi mora em casa de madeira. Ela fica afastada da sede da fazenda e não faz parte da colônia. A construção é bastante rústica, sem nenhum conforto. A água é obtida de uma cisterna e também de uma mina próxima da casa. É lá que lavamos a roupa . A lenha para cozinhar e para aquecer o "ofurô" vem das matas da vizinhança. O banho de "ofurô" é um costume antigo do Japão. No Brasil ele era improvisado com um tambor usado para aquecer a água. Além da higiene, é bom para relaxar o corpo após um dia de trabalho cansativo. Não havia energia elétrica no inicio. Ela só chegou em 1952, quando então compramos um rádio para acompanhar pelas ondas curtas da Rádio Cultura de São Paulo, a programação da colônia japonesa no Brasil.
Não somos colonos e nem empregados na fazenda. Na condição de meeiros, nossa família planta algodão, arroz e milho. O trabalho é cansativo. Todo o trabalho é feito a mão desde arar a terra com tração animal, plantar as sementes até carpir o mato que cresce no meio da plantação. Do total da colheita 30% é entregue ao dono da fazenda como pagamento pelo uso da terra.
Durante o ano fazemos compras a fiado no armazém da fazenda; quando alguém da família adoece podemos consultar o médico que atende os empregados e colonos; freqüentamos a sede social onde acontecem os bailes e são projetados filmes; os da dupla Gordo & Magro são os mais apreciados. Quando precisamos ir a Bebedouro vamos de trem ou recorremos ao caminhão da fazenda , que faz esta viagem algumas vezes por semana. Quando nossos filhos (Kiyomi e Taqueci) completaram 7 anos passam a freqüentar a escola da fazenda. A professora vem da cidade todos os dias de trem até a estação, onde um empregado fica á sua espera e a conduz até a escola onde são reunidos na mesma sala, alunos do primeiro, segundo e terceiro ano primário.
Em 1954 mudamos para a cidade de Bebedouro, onde permanecemos até 1973, quando então mudamos para Londrina, onde resido atualmente.
Recentemente passando de carro
pela rodovia asfaltada que liga São Paulo a Barretos, peço ao meu filho Taqueci diminuir a velocidade quando nos aproximamos do lugar onde moramos há quase 50 anos passados. Nas minhas lembranças espero ver a casa, a horta, os pés de laranja, manga , banana, a cerca que divide o pomar da horta e a lagoa nos fundos; mas enxergo apenas uma represa em meio a uma plantação de laranjas. As imagens são rápidas de apenas alguns segundos, pois a velocidade do carro logo as deixa para trás. O que me chama a atenção no entanto são os pés de eucaliptos, plantados na entrada da fazenda na época em que meus pais levantaram a casa que não existe mais.
Vejo que eles continuam lá altos e frondosos, formando um grande corredor de sombras para os que entram na propriedade. Eles não foram destruídos, ao contrário estão cada vez mais presentes, desafiando o tempo por mais de 50 anos...
Hoje, relembrando o passado me considero uma pessoa feliz. Tenho todo o conforto necessário. Meus filhos e netos vivem uma outra realidade e nem de longe conseguem imaginar a vida que eu e minhas irmãs levamos. E, para minha grande felicidade estou lendo um livro escrito em português por uma descendente de imigrantes austríacos. Ela relata a vida de seus pais que vieram da Áustria na década de 20 e viveram na região de Avaré. É a primeira vez que leio um livro que não seja escrito em japonês.
Acho que a motivação é a semelhança das nossas histórias e, também por que conheço a autora. Ela é amiga da minha filha.
Londrina, janeiro de 1997.
São nove netos de Teruo e Shizuyo...
São 3 netos e 1 bisneto de Ikuo e Fumiko...
São 12 bisnetos e 1 tataraneto de Togen e Kimi..
Os "sanseis" e os "yonseis" descendentes das familias Nakanishi, Tanaka, Nishi e Yamada são jovens que sonham para si um futuro de sucesso e felicidade. Valorizam o estudo pois sabem que ele constitui uma base importante para a realização dos seus sonhos.
Neste ano, Marina, Karen e William devem definir
em que cursos irão concorrer nos próximos vestibulares; Mônica e Fabiana são universitárias na área de administração de empresas, Erica cursa engenharia elétrica . Kátia e Karina são profissionais formadas na área de direito e comunicação social. O Ivan, a Denise e o Fábio André freqüentam o primeiro grau. O Willian está se preparando para iniciar o prézinho.
Paralelamente aos estudos e
atividades profissionais os jovens convivem com outros jovens. Muitos dos seus amigos foram ou estão no Japão trabalhando como "dekassegues". Eles acompanham os avanços da tecnologia implantada naquele país, mas até hoje não demonstraram interesse de trabalhar, estudar ou morar lá.
Meus avós maternos ao partirem de Kobe em 1936, decidiram que o Brasil, seria a partir daquele dia a pátria deles e dos seus descendentes. Esse espírito patriota, passado ao longo das gerações traz como conseqüência uma vontade muito grande desses jovens em se sentir brasileiros. Só não queremos que esqueçam as suas raízes.
(Kiyomi Nakanishi Yamada enviou o seu depoimento para o Museu da Pessoa em 31 de março de 2002 através do nosso site na Internet)Recolher