Memória da Convenção da Diversidade Biológica e Protocolo de Cartagena e da Convenção sobre Mudança de Clima e Protocolo de Kyoto
Depoimento de Luiz Alberto Figueiredo Machado
Entrevistado por Stela Tredice e Carolina Ruy
São Paulo, 20/06/2006
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista núme...Continuar leitura
Memória da Convenção da Diversidade Biológica e Protocolo de Cartagena e da Convenção sobre Mudança de Clima e Protocolo de Kyoto
Depoimento de Luiz Alberto Figueiredo Machado
Entrevistado por Stela Tredice e Carolina Ruy
São Paulo, 20/06/2006
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número HVBIO_032
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – A gente vai começar pela sua identificação. Qual o seu nome completo?
R – Meu nome é Luiz Alberto Figueiredo Machado.
P/1 – Qual é a sua data de nascimento e o local?
R – Eu nasci no dia dezessete de julho de 1955, no Rio de Janeiro.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Meus pais, Renato Machado e Zilda Figueiredo Machado. Quer dizer, ela, quando se casou, tirou o nome de Figueiredo e ficou Zilda Machado.
P/1 – O senhor lembra dos seus avós?
R – Meus avós sim, os de parte de mãe. Meu avô Oscar, minha avó Ernestina, com quem eu tive grande contato durante muito tempo. Eles já morreram e minha avó era portuguesa, que veio para o Brasil muito cedo. Meu avô [era] filho de portugueses, então por parte de minha mãe a família é toda portuguesa, e por parte de meu pai a família é toda espanhola. Os meus avós eram da Espanha e se radicaram em Santa Catarina. Foi onde nasceu o meu pai, mas os meus avós paternos eu não conheci. Quando nasci eles já eram mortos, infelizmente.
P/1 – Qual era a atividade, ou é, dos seus pais, dos seus avós. A atividade profissional deles, o que eles faziam?
R – O meu avô era empresário - meu avô por parte de mãe, portanto. Tinha uma empresa de tacos, revestimento de piso, chamada Parque Paulista que foi, até os anos 70, uma grande empresa nessa área. E minha avó não... A minha avó ficava em casa, normalmente como acontecia naquela época.
Meus pais... A minha mãe também era… Embora tenha se formado professora, ela ficava em casa, como também era normal. E meu pai era empresário também. Enfim, já é morto. Eu só tenho, hoje em dia, a minha mãe. Fará este ano 82 anos.
P/1 – E o senhor tem mais irmãos?
R - Tenho, tenho. A mais velha é onze anos mais velha que eu e meu irmão, que é o do meio, é sete anos mais velho que eu. Eu sou o caçula, portanto.
P/1 – O que eles fazem? Qual é a atividade?
R – A minha irmã também se formou como professora, deu aula durante muito tempo, hoje em dia não dá mais. O meu irmão é também pequeno empresário. Enfim, é isso.
P/1 – Qual é a origem do nome da sua família? Esse nome Figueiredo. Você falou que era uma origem curiosa.
R – Não, o que eu disse [que] era curioso [é] porque me chamam de Figueiredo, embora o meu último nome seja Machado. É porque quando eu estava me preparando para o exame de admissão ao instituto Rio Branco, era exatamente a época em que o general Figueiredo tinha sido escolhido para ser o próximo presidente, então o nome estava muito em voga e começaram a me chamar de Figueiredo. Aí pegou e até hoje ficou por causa disso.
P/1 – Tá. Mas a origem do nome...
R - O nome é de Portugal. Ele vem de uma região de Portugal específica. Eu conheço a família em Portugal, nós somos próximos, temos primos lá ainda.
P/1 - Vamos falar um pouco da sua infância. Como era o bairro que você morava, as brincadeiras, fale um pouco...
R – Eu nasci em Ipanema, onde eu morei os primeiros oito anos da minha vida. Depois nós nos mudamos para o Leme. Eu sempre fui muito próximo à praia, gostei muito de praia; passei a minha infância inteira como frequentador da praia, jogando bola na praia. Esse era o grande esporte da minha época de pequeno. É claro que também, antes disso, em frente ao nosso prédio tinha uma praça, então tinha aquela vida de praça em que as crianças iam brincar de tudo que se possa imaginar: amarelinha, bicicleta, figurinha, bola de gude... Enfim, aquelas brincadeiras que garoto brinca.
Foi uma infância típica daquela época, mas que eu acho que hoje seria menos típica, porque hoje há menos praças talvez ou menos espaço para brincar nas praças. As crianças hoje tem outros interesses que não necessariamente são os mesmos. Foi uma infância muito normal, de vida da zona sul do Rio de Janeiro.
P/1 – E como o senhor começou seus estudos?
R – Na época, o segundo grau era dividido entre científico e clássico. Eu fiz o ginásio e clássico no colégio de aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que fica na Lagoa, no Rio. É uma escola muito boa, era e ainda é uma escola muito boa. Fui muito feliz estudando lá. Conheci bons amigos e gente com uma visão boa. Era uma escola em que, naquela época, era quase um núcleo de resistência à ditadura.
Havia todo um clima político, de uma visão de busca de um outro caminho, busca de liberdade, enfim, de uma outra via que não se sabia bem qual era, mas que seguramente aquela não era, aquela que estava lá. Eu escrevia para o jornal da escola, me envolvi bastante em atividades na escola. Como eu disse, era um clima muito estimulante, pessoas interessantes, inteligentes, ideias fervilhando. Enfim, fui muito feliz, tanto no ginásio quanto no clássico, depois.
Fiz vestibular para Direito, me formei em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ, que é uma extraordinária universidade. Eu também fui muito feliz lá. Não tenho o que dizer, exceto como foi bom, como o curso era muito bom. Os professores extraordinariamente capazes.
Todo o meu período de estudos foi muito feliz, intelectualmente e pessoalmente. Logo que eu me formei, eu já tinha ideia de me tornar diplomata há muitos anos, desde pequeno - o que não é tão normal assim, né? Eu entendo isso, porque as crianças, normalmente, têm outros interesses quando se pergunta o que você quer ser quando crescer. Mas eu, a partir de uma idade razoavelmente baixa, eu já queria ser diplomata, então cursei Direito já com o objetivo de ser diplomata. Mas na época em que eu fiz concurso não precisava ter o curso superior completo; eu preferi ter o curso superior completo.
Logo quando me formei, eu fiz o vestibular para o Rio Branco. Passei e tive que me mudar para Brasília, o que era um pouco... Foi uma mudança radical na minha vida mudar de cidade, deixar família, amigos, a minha noiva e partir para um futuro que era o que eu queria, mas não menos desconhecido por causa disso.
P/1 – E além de ter esse interesse já para ser diplomata, teve alguma coisa que despertou o interesse pelo meio ambiente nessa época escolar?
R – Sim, embora... Eu sempre fui muito ligado às questões da natureza, de conservação, de preocupação com a perda de biodiversidade, com a perda de florestas. Eu acho que tudo isso faz parte de uma infância sadia, você ter uma preocupação com a natureza, e eu tive. Mas na época em que eu cresci, digamos, adolescência, os temas ambientais estavam apenas começando a ganhar certa coerência, embora todos fossem a favor de... [Embora] todos fossem contra cortar árvores, todos fossem contra queimadas, todos fossem a favor de conservar as águas limpas, não havia - pelo menos na consciência geral - um ordenamento dessas ideias. De fato - eu acho que em termos de Brasil, mas eu acho que em termos de mundo também - só na década de 70 essas ideias começam a se estruturar com mais clareza e serem discutidas.
P/1 – Continuando dentro desta trajetória a gente cai em 1992. Eu queria saber se o senhor chegou a ter alguma participação na Rio-92...
R – Tive. Eu tive sim.
P/1 – E quais foram as suas impressões?
R – Eu estava voltando do meu segundo posto no exterior. O meu primeiro tinha sido Nova York, na nossa missão junto à ONU, que foi quando eu servi junto com Everton Vargas. Nós fomos colegas de posto. Ele cuidava da área ambiental e eu cuidava da área de segurança internacional, desarmamento, conselho de segurança, enfim... E o meu segundo posto, quando saí de Nova York, fui para Santiago.
Ao completar o meu tempo em Santiago, eu estava retornando ao Brasil e fui convidado para integrar a equipe que cuidava da organização da Rio-92. No meu caso, como eu tinha experiência de ONU, fui encarregado de ser o contato com o secretariado da ONU que estaria na conferência. Por conta disso, eu vivi muito de perto vários aspectos interessantíssimos da conferência e eu posso dizer, sem sombra de dúvida, que foi o evento mais extraordinário de que eu participei, a melhor conferência de que eu participei, mais bem organizada. É um evento que não se reproduzirá facilmente. A quantidade de chefes de estado, o peso das ideias que foram discutidas lá, tudo isso se agregou de modo a criar um momento quase único da diplomacia internacional. E eu tive o privilégio de fazer parte disso. Eu aprendi, na conferência, muitíssimo porque várias coisas estavam em gestação ali, várias coisas foram feitas, não só em termos substantivos, em termos de ideias, mas em termos de como fazer uma reunião internacional. Várias aulas foram dadas ali.
Até hoje, a conferência do Rio é mencionada internacionalmente como um grande exemplo de como se fazer uma conferência. Por exemplo, agora quando nós organizamos, o Brasil organizou a COP8 de Biodiversidade em Curitiba, que foi um enorme sucesso... Curitiba, o Paraná, enfim, todos estão de parabéns porque foi extraordinariamente bem-feito. E uma das coisas que me marcou… O secretário da convenção de Biodiversidade, Ahmed Djoghlaf, uma das coisas que ele me disse foi: "Olha, o Brasil, um país que fez a Rio-92… Eu tenho absoluta certeza, de olhos fechados, que Curitiba será um grande êxito." Como foi. Então, de fato, nós temos um know-how, digamos, uma tradição de sermos um país que organiza eventos desse tipo de maneira exemplar.
P/1 – E tem algum fato ou evento que tenha especialmente marcado o senhor, que o senhor tenha participado durante a conferência?
R – Tem, tem vários fatos substantivos. Quer dizer, ter - ainda que não participando diretamente, porque eu estava na parte de organização - mas eu presenciei muitas coisas. Então, como eu disse, a riqueza da troca de ideias, o profissionalismo extraordinário da delegação brasileira, que foi também impecável. O Brasil pôs em sua delegação negociadora grandes embaixadores, responsáveis cada um por um tema específico, então nós tivemos uma condução dos nossos interesses feita de maneira única, porque eram profissionais de extraordinário gabarito e isso foi uma das coisas que me marcou, ver estas pessoas atuando. Embaixador Rubens Ricupero, Embaixador Pericás, Luiz Felipe Macedo Soares... Embaixador Amorim, eram tantos os grandes embaixadores que estavam lá e que, de fato, deram uma contribuição enorme em defesa do nosso interesse e das nossas ideias.
P/1 – E o senhor sente que antes dessa convenção, como era essa questão tratada no âmbito internacional e no Brasil, a questão ambiental? Teve um antes e teve um um pós-convenção?
R – Ah, sim. Seguramente. Teve um antes-Rio e um pós-Rio. O êxito do Rio, conceitualmente, foi tão importante. Ele marcou o lançamento, a cristalização da ideia do desenvolvimento sustentável, a ideia de que o tema ambiental não pode mais ser visto isoladamente. Existe um tripé: o desenvolvimento econômico junto ao desenvolvimento social, junto à proteção ambiental. Esse tripé, conceitualmente, se cristaliza no Rio e é o que informa todas as nossas discussões nessa área até hoje. Então sim, existe um antes do Rio e um pós-Rio.
Além disso, o Rio marcou uma introdução definitiva da preocupação ambiental e da discussão ambiental na vida de todos nós. Eu acho não só de todos nós brasileiros, mas de todos nós como cidadãos do mundo. Eu acho que o Rio trouxe esta marca muito clara de trazer a questão ambiental à discussão diária, imediata, a preocupação de todos nós em tudo que fazemos.
P/1 – E o papel assumido pelo Brasil nas negociações internacionais, em matéria de meio ambiente, como o senhor vê? O senhor acha que o Brasil tem assumido a liderança, como o Brasil é reconhecido pelos demais países?
R – Bom, é complicado falar em liderança. O uso do termo liderança, internacionalmente, é algo que não me agrada porque eu acho que não há liderança, há papéis que são desempenhados por razões várias, obviamente ligadas ao interesse nacional. Mas o Brasil teve um papel claramente líder, se a gente pode usar o termo, na Rio-92. Nós, de fato, como eu disse, tínhamos uma estrutura claramente pronta, hábil e competente e nós conduzimos os temas.
No pós-Rio, eu devo dizer que o Brasil não diminuiu a sua intensidade de atuação. Nós temos uma atuação historicamente extremamente presente, extremamente ativa em toda a questão ambiental. Isso é uma tradição que se manteve e eu espero conseguir manter até hoje.
P/1 – E na sua opinião, qual a importância das convenções que saíram da convenção do Rio, as duas, no caso do nosso projeto?
R – Tanto a Convenção de Biodiversidade quanto a Convenção de Climas são convenções seminais, elas são marcos na discussão da questão ambiental. Nós temos que entender que o fato de nós conseguirmos, no Rio, assinar três convenções - porque foram a do clima, da biodiversidade e da desertificação, são as três filhas da conferência do Rio - já é por si um êxito extraordinário, que não se reproduziu depois.
São três convenções básicas. Eu vou me ater mais claramente à de Biodiversidade e de Clima; claro que são ligadas ao projeto, mas são um marco muito claro que ordenou as tratativas internacionais, tanto na área de Biodiversidade quanto na área de mudança do clima. Falando de mudança do clima, por exemplo, havia uma tomada de consciência de que o clima estava mudando ou que poderia vir a mudar por ação humana. É claro que o clima mudou ao longo da história por razões perfeitamente naturais, ciclos naturais da terra. Mas viu-se, e a cada dia a evidência ficou mais forte, que o clima estava mudando ou ia mudar muito rapidamente por ação humana. Então cristalizou-se o que fazer com isso, como podemos atuar para evitar isso. Isso cristalizou-se em uma convenção, em uma forma de envolver todos os países do mundo em uma ação conjunta, porque claramente o clima não tem fronteiras, então tem que haver uma ação conjunta e foi possível, portanto, com a convenção, arregimentar a vontade da comunidade internacional em torno de um consenso. Um consenso de que havia um problema, o problema era criado pelo homem e que havia, portanto, de se fazer algo a respeito dentro de parâmetros estabelecidos com muita felicidade, muito bem estabelecidos nessa época.
A [Convenção] de Biodiversidade também, mas aí já havia um passado um pouco mais longo em termos de uma consciência de que espécies se extinguiam, espécies estavam ameaçadas. Não era uma consciência nova, era uma consciência antiga já, e que, portanto, [pensou-se] o que fazer internacionalmente para tentar combater este mal, mudar, atuar conjuntamente em termos cooperativos internacionalmente. Muito embora a questão da biodiversidade seja completamente diferente da questão de clima, porque biodiversidade você está lidando com recursos naturais - no direito internacional, os estados são soberanos com relação aos seus recursos naturais. Então você estava lidando, internacionalmente, como um bem que tinha dono. Um bem cujo dono era um país, enfim, cada país com o seu conjunto de espécies, com a sua biodiversidade.
Houve uma resistência inicial ao tratamento deste tema internacionalmente exatamente por causa disso, porque você iria estar lidando internacionalmente com questões de esfera interna. Claro que isso evoluiu muito, o pensamento em torno disso, hoje em dia, não é exatamente o mesmo daquela época. Claro que, ainda hoje, nós reafirmamos que os estados têm direito de soberania sobre os recursos, mas entendemos que isso não se choca com o tratamento internacional e a cooperação internacional em torno destes bens que são internos.
P/1 – Como o senhor diz então, é reconhecido que a biodiversidade é um bem soberano de cada país. Os países já reconhecem que o clima não é um bem soberano? Reconhecem que é um bem mundial?
R – Sim, com relação ao clima, por isso é que eu disse que são questões bastante diferentes e são convenções muito diferentes, inclusive por conta disso. O clima não é um bem soberano, o clima é, por natureza, global. E a resposta terá que ser, naturalmente, global. Entrando um pouco mais na questão da Convenção do Clima, a questão é: a mudança do clima está acontecendo por práticas adotadas por alguns países há muitos anos. O que você tem hoje de impacto no clima é fruto de uma concentração de gases emitidos por países há 150 anos. O que a Convenção do Clima estabelece é que no combate à mudança do clima existem responsabilidades comuns de todos, mas elas são diferenciadas por várias razões. Uma delas é porque alguns apenas são responsáveis pela mudança do clima e não toda a comunidade internacional. Daí porque apenas alguns, aqueles industrializados, são chamados a reduzirem as suas emissões de gases de efeito estufa.
P/1 – Mas, em relação ao Protocolo de Kyoto, o fato dos EUA não terem ratificado o protocolo… Como o senhor avalia essa ação, o impacto dessa ação?
R – Olha, eu nunca comento países individualmente, mas eu sempre digo que é importante um engajamento global, especialmente daqueles que são os maiores responsáveis pela mudança do clima. Claramente, é preciso que haja um esforço conjunto. Como eu disse, especificamente, e mais de perto daqueles que são os responsáveis pelo processo de mudança de clima que nós vivemos hoje em dia.
P/1 – E como o senhor vê? O senhor vê avanços alcançados com a entrada? Como é que o Brasil tem assumido o protocolo, o que o Brasil tem feito em relação a isso?
R – Bom, eu acho o Protocolo de Kyoto um dos casos de... Um dos bons casos internacionais. E eu acho, especificamente, o papel do Brasil muito importante. Nós, como se sabe, fomos os criadores de um conceito que veio a se transformar no mecanismo de desenvolvimento limpo, que é aquele que permite a países industrializados abaterem parte da sua cota de reduções por meio de projetos levados a cabo em países em desenvolvimento que, portanto, não têm obrigação quantitativa de redução. Essa idéia foi nossa e o Brasil é hoje um dos grandes, - vamos usar de novo o termo “líderes” - na implementação do mecanismo de desenvolvimento limpo. Nós temos mais de cem projetos hoje em dia no que se chama pipeline, no duto, em diferentes níveis de aprovação e de execução.
O Brasil, hoje em dia, é o segundo país em termos de números de projetos, então nós temos uma atuação muito grande. O Brasil, claramente, entendeu que é bom reduzir as emissões, as empresas nossas estão muito engajadas, o mercado é um fator importantíssimo nessa questão e o Brasil está muito engajado nisso. Nós estamos aqui na bolsa de valores, bolsa de mercadorias e futuros e a própria BM&F está muito engajada em facilitar o projeto MDL, de mecanismos de desenvolvimento limpo. Há um engajamento muito forte, não apenas do governo, mas do empresariado, que entende claramente que fazer a coisa certa do modo certo também traz vantagens muito claras - seguramente do ponto de vista ambiental, mas também do ponto de vista econômico faz sentido.
P/1 – O senhor disse anteriormente que um êxito, como aconteceu na convenção do Rio, o fato de saírem três convenções, a Agenda 21, um êxito como esse não se reproduziu. Você acredita que, em face à ascensão do terrorismo pós-onze de setembro, a agenda mundial está muito mais concentrada em resolver esse problema do terrorismo, em detrimento ao problema do meio ambiente?
R – Olha, eu digo que isso não se reproduziu, até porque chega uma hora em que a elaboração conceitual tem que parar e você tem que partir para a implementação. Eu acho que nós estamos nessa fase. A elaboração foi feita no Rio, claro que ela foi aperfeiçoada ao longo desses anos no âmbito das três convenções, mas sentiu-se claramente que já não era mais necessário um novo grande exercício conceitual. As convenções estão aí, elas são adequadas, são importantes conceitualmente, adequadas ao fim a que elas se propõem e, portanto, nos cabe implementar. E é nessa fase que nós estamos. Por isso que eu digo: não haverá, possivelmente, um outro Rio com essa riqueza de produção, com essa riqueza de elaboração conceitual, porque acho que hoje em dia estão todos conscientes que a implementação é o fundamental.
P/1 – E em relação às propostas da Agenda 21, o senhor acredita que elas estão sendo colocadas em prática no país?
R – Eu acho que sim. Acho que, claro, houve um esforço muito grande de internalização dos preceitos da Agenda 21. Houve todo um esforço de criar uma Agenda 21 interna. Isso foi feito com muito êxito. Mas a internalização dela não é só do ponto de vista de governo, mas claramente do ponto de vista da sociedade. Hoje em dia nós temos um engajamento social muito maior do que nós tínhamos em 92, por exemplo.
Daí, um pouco, voltamos àquela nossa conversa do pré-92 e do pós-92. Uma das características do pós-92 é exatamente o engajamento da sociedade. Claro que em 92 nós tínhamos já atuantes movimentos sociais, mas o espaço desses movimentos, o espaço dessas ONGs era necessariamente menor do que é hoje. E o Rio ajudou, de maneira muito clara, que este espaço das ONGs crescesse, que a sociedade compreendesse o valor e o peso da participação direta na luta pelos seus interesses, como uma forma de levar aos seus governos uma voz da comunidade. E isso é uma evolução muito clara, pós-92.
P/1 - Certo. O senhor falou do sucesso da COP8 ter sido realizada no Brasil. Do seu ponto de vista, quais são os avanços que se tem obtido a partir dessa conferência?
R – Bom, a COP8 foi uma COP, como eu disse, de implementação. Nós já não estamos mais em uma fase de criar conceitos novos. Os conceitos estão aí, a convenção está aí; o que ela tem e que se avaliava antes da COP [é que] ela passava por um certo déficit de implementação. E isso foi uma preocupação nossa, durante a COP, de buscar alterar isso, buscar modificar esse modo de ver as coisas e alterar, tentar mudar esse déficit para nós termos uma implementação mais profunda da convenção - não apenas com uma visão de que “existe uma perda séria de biodiversidade, então vamos atuar, vamos criar reservas naturais”... É claro que sim, que isso é importante, mas [temos] uma ideia de que só a cooperação internacional muito clara, muito forte, permitirá ir avante em termos de ações internas, de ações regionais, ações internacionais. Essa foi a nossa busca durante a COP.
Eu fiquei particularmente contente com o que nós obtivemos. Em termos palpáveis, se você me perguntar: "Mas o que, exatamente?” No âmbito internacional nem sempre é muito simples quantificar as coisas, mas algo que foi possível na COP8 foi encaminhar a solução de temas que estavam pendentes. Por exemplo, um deles, acesso e repartição de benefícios sobre o uso da biodiversidade, de benefícios sobre o uso da biodiversidade. Isso é um tema difícil, complexo, é um tema de tratamento lento internacionalmente porque muitos países têm muitas dúvidas sobre a pertinência de cuidar do tema. Nós achamos que sim, não há como controlar a questão da repartição de benefícios sem um esforço internacional e sem regras claras internacionais. Claro que o acesso internamente pode ser regulamentado, eu dou ou não dou acesso a você sobre um bem meu, então isso eu posso internamente regulamentar. Mas quanto à repartição do benefício que você vai ter por ter tido acesso ao meu bem, isso é algo que só internacionalmente pode ser visto e pode ser regulamentado. E nós fomos para Curitiba com isso muito claro, como uma das nossas prioridades básicas e tivemos a possibilidade de sair de Curitiba com um encaminhamento dado à questão. Nós temos agora, claramente, um mandato negociador para esse tema que vai ser levado a cabo nos próximos anos.
P/1 – E quando o senhor fala “nós temos”, seria...
R – Nós, eu digo a comunidade internacional. Temos, nós como um todo, um mandato negociador para ser implementado nos próximos anos.
P/1 – Uma das questões, uma das dúvidas recorrentes do público: a gente está pretendendo levar este projeto para um alcance bastante grande, um público bastante heterodoxo. E uma das dúvidas que sempre surge, uma das questões é: "Nossa, mas esses processos são sempre tão demorados e o problema, essa questão da mudança de clima é tão urgente...”
R – Por que são processos demorados? Porque você está lidando com países soberanos, países que fazem ou não fazem o que quiserem. Porque eles só respondem, em princípio, às suas populações. É claro que eles, internacionalmente, tem uma responsabilidade internacional, como membros da comunidade internacional, mas eles são membros soberanos dessa comunidade. Eles se juntam a uma convenção, assinam uma convenção se quiserem. É diferente de uma lei interna que obriga a todos os membros da comunidade. Internacionalmente, não; as leis internacionais obrigam apenas os países que quiserem se obrigar por essas leis, daí porque nem sempre é fácil elaborar essas leis internacionais.
O direito internacional, por lidar com soberanias, é muito mais difícil de ser estabelecido. E a praxe de todas as convenções, de todas as negociações que nós temos no âmbito dessas convenções é que tudo funciona por consenso. E o que é o consenso? Quer dizer que ninguém se opõe. Não quer dizer que estejam todos de acordo, todos estejam gostando daquilo. É que nenhum país se opõe que aquela medida seja adotada. Para que você consiga chegar a um processo em que nenhum país, com todos os seus interesses internacionais diversos, em que nenhum país se oponha àquela medida, isso leva tempo.
P/1 – São as tais vírgulas, discussão...
R – Isso leva tempo. Embora leve tempo, você tem uma segurança maior ou uma expectativa maior de que aquilo vai ser cumprido porque se o país não quisesse, não teria aceito. Se aceitou, se se engajou, fez por sua vontade soberana e, portanto, é porque quer fazer.
Sim, é talvez mais lento, mas muitas vezes é lento por conta disso. Mesmo internamente - veja bem, eu estudei Direito e sou um amante desta área - há várias leis importantes que levaram muitos anos para serem aprovadas, com muitas discussões porque certas matérias são, de fato, muito complexas e requerem um debate mais aprofundado. De fato há uma impressão de que: "Ah, mas toma tanto tempo...” por causa disso. Porque é a soma de vontades soberanas.
P/1 – Pensando um pouquinho em prognósticos: como é que o senhor enxerga o encaminhamento das relações futuras entre os países nessa questão, sobre a discussão do meio ambiente? Quais são as perspectivas?
R – Bom, há uma consciência clara, pós-Rio, muito clara de que nós temos que partir para um esforço coletivo. Não é possível se imaginar que esforços isolados irão resolver qualquer que seja o problema. Os esforços naturalmente serão coletivos. A cooperação internacional é a grande chave de tudo isso. A cooperação toma várias formas, ela assume várias formas: pode ser cooperação por meio de fundos; por meio de capacitação, treinamento de pessoal; criação de instituições; medidas na área comercial - enfim, existem várias maneiras de ajudar, colaborar, para que se atinja um resultado que seja importante para a comunidade internacional, como um todo.
A grande chave é essa: como chegar a isso. Muitas vezes é o que toma mais tempo. É como chegar, como conseguir fundos para financiar medidas. Enfim, tudo isso é complexo e toma tempo.
P/1 – E para o senhor em particular, qual é relação entre política e meio ambiente?
R – Não há como ver as duas coisas isoladamente. Eu acho que o meio ambiente faz parte da vida e a política é a vida, é a organização da sociedade. E toda a sociedade tem que mirar para o seu desenvolvimento sustentável. E aí eu volto ao desenvolvimento econômico, ao desenvolvimento social com a proteção ambiental porque, caso contrário, não há sustentabilidade. Há progresso, mas não necessariamente... Poderá haver um progresso temporário, mas não um desenvolvimento em planos sustentáveis.
Internacionalmente - pensando em política externa - o meio ambiente hoje, como parte do desenvolvimento sustentável, é um dos temas de maior importância na agenda internacional. O número de reuniões, o número de atores envolvidos - quando eu digo atores, eu digo não apenas os estados e seus representantes, mas os representantes da sociedade, empresários, trabalhadores, ONGs que estão engajados diretamente no debate internacional, na política internacional, na área ambiental que é, como eu disse, hoje em dia, uma área fundamental.
P/1 – Voltando um pouquinho para a sua situação pessoal, o senhor é casado, tem filhos...
R – Sim, sim. Casado, a minha mulher se chama Vânia, estamos casados há 25 anos. Tenho dois filhos: o Paulo, que tem 21, e Fernanda que tem 15. Os dois moram conosco.
P/1 – E o que eles fazem?
R – O meu filho estuda Direito e a minha filha está no segundo grau.
P/1 – E eles já se interessam pelo seu trabalho, pelas questões que o senhor vem trabalhando?
R – Sim, os dois se interessam muito. Eu não creio que nenhum dos dois irá querer seguir os meus passos, mas sim, eles se interessam bastante.
P/1 – A gente gostaria que o senhor especificasse ou dissesse uma lição, ou as lições, que o senhor vem tirando da sua carreira que sejam relevantes.
R – Bom, muitas. Uma delas que eu acho importantíssima, é algo que hoje em dia, felizmente, está em voga, que é a questão da autoestima do brasileiro. Logo que eu entrei, que eu comecei a trabalhar internacionalmente, eu vi imediatamente a importância do Brasil no plano externo, que é o que o brasileiro nem sempre compreende bem. Mas quem lida com a questão internacional, especialmente na área multilateral, que foi parte da minha carreira quase inteira… Multilateral é a área das grandes conferências, enfim, de ONU. Imediatamente você, ao chegar em um foro internacional, percebe o peso do Brasil. O Brasil é ouvido, o Brasil é respeitado, o Brasil é consultado para soluções, porque nós temos uma credibilidade internacional conquistada ao longo de muitos anos que é reconhecida. O Brasil é visto como aquele país que é confiável e que é sempre, ou frequentemente, uma fonte de boas ideias, de ideias de conciliação. Nós temos um papel muito claro de conciliador, de busca de pontes entre extremos. E isso é uma lição de vida, uma lição de carreira muito importante que eu tive.
Eu costumo dizer que logo que eu cheguei à ONU - e o meu primeiro posto foi na ONU… Não que eu tivesse uma mentalidade colonizada, porque nunca tive, mas tem gente que chega um pouco receoso: "Ah, o delegado do país X deve ser ótimo, porque aquele país tem uma tradição..." e a minha experiência foi bastante diferente disso. Logo que eu cheguei à ONU, você percebe claramente
- se você não sabia antes, você passa a saber - que os delegados de países industrializados não são particularmente superiores, seja intelectualmente, seja em termos de preparo, do que o seus colegas de países em desenvolvimento. Eu tive, eu vi grandes diplomatas, extraordinários diplomatas, e se eu tivesse que contar, eu me recordaria de um número maior de diplomatas vindos de países em desenvolvimento. E isso é algo que muito rapidamente, se a pessoa não sabia, percebe.
Por isso eu volto à carreira e demonstrei, ao longo dela sempre, que o Brasil é um ator maior no plano internacional. Isso é um trabalho consolidado ao longo de muitos anos, que continua muito forte e cada vez mais forte. E a minha satisfação profissional é ver que isso está cada vez mais forte. Nós cada vez temos um papel mais claro, mais decisivo e cada vez somos mais ouvidos internacionalmente.
P/1 – Puxa, é muito bom ouvir isso. E para encerrar então, eu gostaria de saber o que o senhor acha de ter participado desse projeto de memória?
R – Eu acho, para mim, um pouco surpreendente porque acho que eu tenho uma história de vida muito normal, comum, talvez até desinteressante. Mas eu entendo que o projeto queira um pouco isso, não é? As várias experiências são um somatório de várias experiências e quanto mais diversas, melhor. Quer dizer, eu entendo que seja um projeto que celebre a diversidade e por conta disso eu fico muito feliz participando dele. Embora eu ache que a minha própria história possa ser desinteressante, ela, de uma certa forma, colabora para a diversidade no projeto.
P/1 – É isso. Muito obrigada pela participação.
R – Muito obrigado a vocês.Recolher