PSCH_HV763
Entrevistada com Pere Waura
Entrevistada por Jonas Samaúma e Marcelo Fortaleza Flores
Traduzido por Tukupé Waura
PSCH_HV 763
Programa Conte sua História – Memórias Indígenas
25 de julho
Transcrito por Selma Paiva
Duração: 204:14 minutos – 3352 segundos ou 55,86 minutos = 148,...Continuar leitura
PSCH_HV763
Entrevistada com Pere Waura
Entrevistada por Jonas Samaúma e Marcelo Fortaleza Flores
Traduzido por Tukupé Waura
PSCH_HV 763
Programa Conte sua História – Memórias Indígenas
25 de julho
Transcrito por Selma Paiva
Duração: 204:14 minutos – 3352 segundos ou 55,86 minutos = 148,28 minutos
P/1 – Queria, primeiro, começar agradecendo profundamente, mesmo, a você, por estar traduzindo e a ela, por estar contando e é uma grande honra pra gente estar escutando e queria perguntar, assim, bem simples, pra ela falar o nome dela, o lugar que ela nasceu e o que ela sabe sobre o nascimento.
R – Bom dia!
1:10 a 2:32 = 1:22
R – Ela disse assim: “Eu nasci lá na aldeia _________ [02:41], lagoa sagrada da nossa região, onde cresci, fui morar numa outra aldeia, que chama ___________ [02:55], de lá que a gente veio pra cá e a gente veio pra fazer o tratamento do meu marido, fazer investigação. Não foi fácil. Quase eu perdi meu marido, na verdade. Aí a gente resolveu vir pra cá e por isso eu fico agradecida, por vocês intermediarem esse percurso, pra poder chegar aqui. Pra vir pra cá não é fácil, é difícil. Quando eu fiquei doente, eu vim na mão da pessoa de saúde, há uns anos. Agora estou aqui a segunda vez. É por isso que estamos aqui. A gente não está aqui de pouca coisa e, na oportunidade, estamos apresentando aqui, vamos contar o que a gente tem que compartilhar aqui com vocês. Eu também estou bem agradecida por vocês”.
P/1 – Ela sabe contar alguma coisa sobre o parto dela, como ela nasceu, que ela é parteira. Ela sabe sobre o próprio nascimento dela? Tem alguma história?
04:46 a 5:28 = 42 segundos
R – Eu nasci não na aldeia. Eu nasci no posto, na época, indígena Leonardo. É lá que eu nasci, próximo da aldeia, nosso vizinho. É claro que o parteiro tem que saber todo seu histórico. E Nhampi, Kamanxakaru
E Maunessas três parteiras, Maun
que me carregou a primeira vez no colo. Deu banho em mim, deu remédio e a gente não tem, igual vocês têm, aquele cobertorzinho pra colocar. Vai só dar uma lavada e deixa na rede e, do lado, acendeu fogo pra aquecer meu corpo. Eu nasci, eles explicaram pra mim, aproximadamente sete, oito horas, de manhã. E eu tomei conhecimento depois que eu cresci, antes de estudar sobre parto também.
P/1 – O que ela lembra dos avós dela?
07:07 a 07:40 = 33 segundos
R – Minha avó biológica eu não tive oportunidade de conhecer. Quando eu nasci, passei uns dois, três meses, seis meses, estava começando a ficar fortinha e grandinha e acaba falecendo minha avó. Por isso que ela não me viu direito. Eu também não a vi. A irmã dela, que me ensinou pra ser parteira, não legítima, mas a própria irmã dela.
P/1 – E da mãe dela, tem história? Ela sabe poder contar um pouquinho da história da mãe? Resumindo.
08:34 a 09:20 = 46 segundos
R – Eu conheci muito bem a minha mãe, mais ou menos ela não ficou grande, alta, ficou da minha estatura e ela não é pura waura, ela é mestiça, camaiurá com waura. Eu vi que ela falava bem fluentemente a língua camaiurá. Eu quase aprendi com ela, por isso que eu entendo a língua camaiurá. Eu não falo, mas eu entendo. E, por isso, minha mãe e meu pai, minha avó não viu também. Os dois morreram antes. Minha mãe ficou sem mãe e pai. Por isso que eu não vi a parte dos meus avós, não conheci nenhum deles. Eu só vi a minha mãe.
P/2 – Que idade ela tinha quando a mãe dela faleceu?
10:27 a 10:44 = 17 segundos
R – Eu tinha, aproximadamente, cinco ou seis anos. Seis, sete anos. Por isso que a gente não conseguia... uma ajudava o outro. Eu tinha um irmãozinho mais novo. Nossa, a gente sofreu muito!
P/1 – Qual é a primeira memória da vida dela?
11:16 a 12:05 = 49 segundos
R – Eu lembro que, quando minha mãe faleceu, eu estava chorando um pouquinho, o pessoal me levou pra onde estava sendo velado pelo povo e o povo estava despedindo dela e fui participar disso e depois nunca mais vi, foram sepultados sem eu estar lá e à noite, ficou até tarde, me colocaram no lugar dela, onde ela ficava, no quarto dela e, quando chegava a noite, eu vivia a procurando, chorando e o pessoal dizia pra mim que já não existia mais e que tinha falecido. Isso que eu lembro muito bem.
P/2 – Você podia pedir pra ela repetir essa parte na língua, porque deu uma parada aqui e eu estava distraído? Só a primeira parte, essa que você falou agora.
13:16 a 14:12 = 56 segundos
R – Ela disse assim: “Quando minha mãe faleceu, me puxaram no meu braço pra ficar em cima dela, pra despedir dela. Depois daquilo ali, eu não sei como foi sepultada, não participei da sepultura, à noite eu fiquei sozinha no quarto dela, a procurando, só tinha meu pai e comecei a chorar muito. Por isso que em pouco tempo eu vi alguém que tinha fotografado minha mãe quanto tinha falecido. Na nossa cultura, quando a gente falece, alguém tem que fechar o olho. Minha mãe não fechou o olho. Nossa, isso doeu pra mim até hoje. Alguém não cuidou da minha mãe. Ela morreu sozinha, onde o olho dela ficou aberto. Ela foi enterrada olho aberto. Isso eu recordo muito bem”.
P/1 – Ela falou que ela passou uma infância, depois, muito sofrida. Por quê? O que foi tão sofrido assim?
15:37 a 16:30 = 53 segundos
R – Sofrimento que eu recordo muito bem também, eu digo que eu sofri, quando minha mãe faleceu, meu pai não tem irmã pra ajudar meu pai a nos cuidar. Tínhamos a tia avó, só que ela também tinha bastante família, onde ela não teve conta de dividir pra nos ajudar a cuidar. E ela me obrigava a trabalhar desde cedo. O que ficou mais pesado, na época, pra mim e o sofrimento que eu digo: ela me dava uma panelona de uns 15 litros e, na época, também, água, o rio ficava longe da aldeia. Não tinha poço artesiano, como atualmente tem. Onde a gente ia lá longe, mais ou menos dois quilômetros e pega água e panelona desse tamanho, de 15 litros, é pesada pra mim. Eu era bem pequena. E a gente mergulhava e carregava, enchia a água, colocava na cabeça e tentava carregar e começava a balançar. E derramava tudo. Até ficar metade a água, a gente chegava em casa pra poder compartilhar com o pessoal de casa e assim a gente receberia em troca alguma coisa de alimento.
P/1 – Além disso, tinha algum tempo que ela tinha pra brincar também? Se tinha alguma brincadeira que ela fazia criança, que ela gostava, que ela lembra.
18:29 a 19:19 = 50 segundos
R – Pra nós, homem não sabe cuidar da família, porque meu pai, não é que não sabe cuidar, meu pai era cacique, não pode ficar todo tempo com a gente, tem que sempre ficar lá no centro da casa do homem e fica reunindo, promovendo a festa, então não vai ter tempo de estar com a gente. Não vai ter alguém que vai nos ajudar. Nessa hora a gente sempre inventava, a gente ia pra floresta e brincava com os próprios meus irmãos, mesmo. Meu irmão, outro, outro, nós éramos quatro. Nós que nos reuníamos ali. Quando a gente tentava brincar com o outro, a turma da família, eles começavam a brigar com a gente. E assim a gente nunca confrontou a briga, a gente sempre se retirou, pra tentar evitar, pra que a gente não seja mal falado e mal visto na comunidade. E assim a gente se retirava. Lá na casa do meu pai, atrás tinha uma cozinha, lá que a gente buscava algumas coisas que a gente sabe fazer como, por exemplo, a batata que você tira e a lava, cozinha. É fácil de comer. Aquilo ali que a gente ia pra roça, tirava e trazia na cozinha do meu pai e a gente cozinhava, a gente se virava lá. A gente fazia como feito de brincadeira, só que ao mesmo tempo a gente comia.
P/1 – Quais eram os alimentos que ela comia quando criança, o que ela lembra de comer todo dia? E se ela tem alguma história que ela lembra de alguma refeição importante na infância dela, alguma vez que a comida foi alguma coisa importante.
21:29 a 22:00 = 31 segundos
R – O que eu estou lembrando aqui também: a gente consumia mais milho. Também é fácil a gente fazer. A gente ia buscar na roça, trazia e a gente fazia cada tipo de porção de qualquer coisa, a gente inventava. Inclusive a gente aprendeu algumas receitas e, depois que a gente inventava cada coisa, nossa vó ia lá e orientava: “Não, faz isso” e assim começava a mostrar como fazer culinária e a gente acaba aprendendo. A gente fazia pamonha, biju, a gente fazia fubá e assim a gente vai aprendendo. E também, quando a gente ganhava, algumas vezes, peixe dos parentes da outra casa, pra render muito, a gente fazia um misturado de pirão com milho. Fica bem gostoso também.
P/2 – Ela chegou a passar fome quando criança?
23:31 a 24:06 = 35 segundos
R – Teve, em uma época, crise de falta de alimentos. Não sei o que eles fizeram com a roça na época, não sei o que aconteceu com as roças de todo mundo, ficaram sem roça e a gente acabou ficando comendo somente milho. Como a gente consumia só milho e não durava nada também, todo mundo virou como uma disputa daquele alguém que comesse muito mais. Ninguém dava um, todo mundo cuidava muito bem do milho, até que chegou o momento que ninguém queria compartilhar com a gente, onde nós passamos fome, até que o pessoal não queria arrumar, compartilhar com a gente. Eu tive que ir lá no buraco onde eles jogam resto do que foi feito pra fazer pamonha, essas coisas e tive que pegar tudo daquilo ali, lavar e transformar como pamonha pra gente comer, pra gente não ficar passando fome. Tive que usar a inteligência e assim deu certo, só que durou muito tempo. O maior sofrimento que a gente passou nesse tempo. Aí, no outro ano, que começaram a ter a roça e as coisas melhoraram.
P/1 – Ela falou que criança ela já trabalhava. Qual era o trabalho dela, o que ela fazia no dia a dia, com quatro, cinco anos?
26:24 a 27:06 = 42 segundos
R – Minha avó sempre dizia pra mim: “Vamos com a gente”. Sempre a gente ia no brejão, nos pântanos ali, que tem uma concha que você pega, junta e queima, transforma a cinza, peneira, pega o barro do fundo da água e mistura com aquilo ali e deixa secar. Uns dez dias depois você vai raspando, vai formando uma panelinha, do jeito que você precisa e minha tia avó falava pra mim: “Vamos comigo, não fica com preguiça, senão você não acaba aprendendo. É ruim você não saber fazer isso, porque na cultura da gente, a gente é independente, você que tem que construir seu utensílio. Se você depender dos outros, nunca ninguém vai fazer pra você e, pra você começar mais cedo, melhor ainda pra você”. Tudo que ela falava pra mim, por isso que eu sempre ia com ela na floresta, nos rios, nos pântanos. No pântano era tudo molhado e você tem que atravessar na lameira, lameira, lameira, até chegar no local e extrair essa matéria prima. E assim eu sofria, cansada. Só que, por outro lado, foi muito bom também, por ter aprendido mais cedo.
P/2 – Eu queria perguntar pra ela quando ela percebeu que ela teria que se ocupar das outras crianças: irmãos e primos dela, que também tinham ficado órfãos, como ela. Acredito que por causa de doença, provavelmente. Quando ela percebeu e que idade, mais ou menos, ela começou a fazer isso. E como ela cuidava dessas crianças.
29:40 a 31:14 = 1:34
R – Desde mais ou menos oito anos, nove anos, comecei a perceber que nós éramos órfãos e daí eu acabei tomando iniciativa e através da iniciativa da minha tia avó também, desde que eu aprendi, ela falava pra mim: “Vamos com a gente na roça?” Eu fui lá uma vez, a segunda vez ela falava: “Agora você tem que se separar da gente e você vai ter a sua própria... vai buscar a própria mandioca, vai carregar até aqui e você vai ralá-la e você vai coá-la e você vai ter próprio polvilho e assim vocês vão comer biju à vontade. E assim eu fui lá, fazia durante o dia, trabalhando e até dez horas da noite terminava, fazia um caldo de mandioca, só no outro dia a gente tomava, porque era cansativo. E assim que eu vivia quase todo dia. Só que não era bem assim. Deveria elas compartilharem: uma descascando a mandioca, outro lavando, depois que está tudo pronto, ralado, aí entrega pra você, você que tem que assumir até a tarde. Era mais ou menos, só que eles não fizeram isso comigo. Me deixaram simplesmente sozinha e assim eu fui fazendo. Depois de um ano eu já sabia fazer. E quando eu sabia fazer, ela colocou também pra mim pra aprender a fiar algodão. Coletar, primeiro, o algodão, trazer na casa, secá-la, cuidar dela, guardar e começar a mexer e transformar como barbante. Diz ela: “Assim que você conseguir transformar, a gente faz a rede de vocês. Vocês não estão vendo que vocês não têm em rede boa aí? Vamos fazer”. E assim eu consegui fazer naquela época, transformei o algodão como barbante e a gente acabou construindo a própria rede, a gente conseguiu e, como nós éramos quatro, demorou, levou uns seis meses, eu consegui fazer a rede de todo mundo. Até eu fiz pro meu pai também.
P/1 – Virou feitora de rede, então? Aí ela começou a fazer trabalhos manuais, após esse trabalho da rede também?
R – Sim. A partir daquilo ali começou a fazer os outros. Fica mais fácil fazer qualquer coisa, já.
P/1 – Ela chegou a ir em escola? Claro que isso é uma escola muito maior do que qualquer escola daqui, mas tinha alguma escola?
34:45 a 35:30 = 45 segundos
R - Na minha época não existiu escola. Nossa escola é nossa avó e nosso avô. Essas pessoas, ou pai, são os educadores. Por isso que que eu não cheguei a conhecer escola. Só hoje em dia que tem escola.
P/2 – E qual foi o primeiro contato que ela teve com os brancos?
35:57 a 37:10 = 1:13
R – Eu tinha irmão do meu pai um pouquinho maior do que eu, na época. Ele era meu parceirão também. Considerado como meu irmão, na época. Só que um pouquinho mais velho do que eu e com ele que a gente ia pra roça, sempre ia pra roça, nunca largava dele. E até certo tempo ele estava roçando e capinando embaixo do mandiocal dele e ele falou pra mim: “Pode ir um pouquinho longe”. Só que como eu era criança, esquecia e ia lá perto dele. Daqui a pouco: “Cuidado aí, senão vou acertar você de facão” E eu me afastava, quando saí ficava com saudade dele e ia lá, próximo dele, esqueci e ele acaba me acertando bem aqui de facão, cortou e assim ele me carregou no colo, eu lembro muito bem. Na nossa aldeia tinha um branco que falava a nossa língua, chamava . Ele falava nossa língua. Ele foi lá, me levou direto pra ele, ele que deu uma sutura no meu pé e ali que eu vi que era homem branco diferente.
P/1 – E ela teve contato só com esse branco ou tinha contato com outros?
38:53 a 39:24 = 31 segundos
R – Depois que estava quase melhorando, não cicatrizou bem e meu pai resolveu nos levar até no posto da Funai, que chama posto Leonardo e ali que eu vi, mais uma vez, outro branco. Era Orlando e Cláudio. Eu via isso porque o meu pai era cacique e eles também eram chefes. Toda vez que a gente ia lá eles faziam carinho na gente, a gente ficava no colo deles e assim eu conheci, eu não esqueço tão fácil os dois irmãos. Depois eu fui conhecendo vários homens brancos, só que os que foram marcantes na minha vida foram os três: ___________ [40:20] é antropólogo e o outro, Orlando Villas-Bôas, indigenista e seu irmão também, Cláudio Villas-Bôas.
P/2 – Ela lembra da época das epidemias e como o povo recebeu aquela coisa das epidemias e o que eles fizeram? Teve muita confusão na época? O que aconteceu, exatamente, por conta das epidemias, porque era algo novo, como eles interpretaram?
41:09 a 42:18 = 1:09
R – O sarampo eu não cheguei nesse tempo. Quem presenciou isso foi meu pai. Meu pai era jovem na época que teve um massacre de sarampo. Mas pouco tempo veio catapora que contraiu todo mundo e onde foi vítima meu pai. Ela que matou meu pai. Aí pegou todo mundo, foi triste. A aldeia ficava parada e, quando você ia pra cada casa, a pele das pessoas ficava toda estourada, como se tivesse queimado. Disse que era o vírus da catapora. E meu pai, mesmo, o rosto dele ficou inchado. A gente não sabia que existia remédio pra isso. E meu pai acabou morrendo. Então, depois que a gente sabe que existe o remédio, foi onde eu falei: “Poxa, então quer dizer que meu pai morreu de graça”. E os outros e eu peguei um pouquinho, na época, não foi muito. Só apareceu um pouco, pouca coisa. E meu marido não pegou. Disse que já havia pegado sarampo na época, por isso que o corpo dele já estava resistente da catapora. Não apareceu. Ele que nos ajudou a cuidar dos outros também. E que deu remédio pra eles, pra nós.
P/1 – Quando aconteceu isso, como ficou o povo, depois que morreu um tanto de gente? O que ela lembra? O que mudou na vida de todo mundo?
44:21 a 44:40 = 19 segundos
R – Foi triste porque, apesar que não massacrou todos, todo mundo recuperou. Como todo mundo sentiu a dor na pele, todo mundo ficou de luto dois anos e depois fizeram a homenagem pro meu pai, assim a aldeia voltou ao normal.
P/1 – Como é o luto de vocês? Como é ficar em luto, pra vocês?
45:15 a 45:54 = 39 segundos
R – Nós, no caso do meu pai, não todo mundo ficou de luto com ele. Só nós que ficamos. Porque era isso: meu pai, como foi chefe cacique, por isso que a gente resolveu liberar logo luto pra todo mundo e nós continuamos dois anos. E o pessoal tem que fazer festa pra ele, comemorar até um ano, encerra a festa. No outro ano encerra a última festa dele e assim terminou.
P/1 – O que ela fazia de diferente quando ela não estava com o luto e quando ela estava em luto o que mudava na prática da vida?
46:50 a 47:30 = 40 segundos
R – Só nós que ficamos de luto, eu e meu irmão. O resto já tirou o luto, pra poder participar da festa. Durante um ano, sempre que meu irmão vai pra pescaria coletiva e trazia quantidade de peixe maior, uma, duas, três, quatro, cinco cestas de peixe, nessa hora sempre acontece a festa e, quando acontece a festa, questão de respeito, eles iam buscar a gente dentro de casa. Enquanto eu assumi a parte de coordenação da gerência dos alimentos, pra alimentar o povo. Cuidava da culinária. Às vezes ajudava, também. E, devido a isso, eu não participava da festa. Quando chegava o momento da gente, a gente era convidado. Enquanto isso, a gente não cortava o cabelo. A franja descia até aqui. E, quando descia até aqui, tinha uma festa, preparação e eles convidavam a gente. O pessoal que fez a sepultura que foi responsável da festa. Eles que vão buscar a gente da casa e levar lá no centro, dar um banho na gente e eles começam a passar urucum no corpo da gente, começam a pintar a gente, colocar todos esses enfeites na gente e assim a gente retorna pra casa. Só pra demonstrar que a gente está ativo, participando da festa junto com eles. Terminou a festa, a gente vai pra casa, lava o corpo e volta normal, sem pintar. Continua até chegar no outro mês que acontece essa festa. Eles se pintam, participam um pouco e depois vão embora pra casa. E assim a gente vivia.
P/2 – Quando a gente chegou lá na terra deles, ela estava no meio do rio tomando banho e ela recebeu a gente com choro cerimonial. É um negócio de louco! É bem forte! Pere, você teve uma juventude muito difícil. Qual foi sua primeira alegria? Qual foi a memória da primeira vez que você viu que a alegria existia também? Porque você viu tanto sofrimento.
51:08 a 53:26 = 2:18
R – O que me deixou não esquecer totalmente e o que me aliviou é, primeiro, que eu convoquei mutirão pra colheita de mandioca. Eu sei que eu sofri, eu trabalhei sozinha, tudo, eu superei isso nesse tempo. O que aconteceu? Eu organizei uma festa
Yamaricumã
e a gente acabou de cantar e, cantando e trabalhando, nós cantando, alguma mulheres e já ralando mandioca. Eu fui como responsável de organização de tudo e eu cuidava da parte da regra da Yamaricumã: como começar, que hora que canta, como tem que se apresentar e tudo o mais. E assim a gente conseguiu fazer, dentro de sete dias, terminamos nossa atividade e a gente secou várias roças cheias de polvilho e a gente entregou pro cara que cuidava de nós também. A gente deixou na casa dele um túnel bem grosso e encheu de polvilho. E aquilo ali ficou pra nós, pra qualquer uma das mulheres que, chegando o tempo da chuva, precisando desse polvilho, só pegar lá na casa do fulano. Ele sabe que o cara tem seu estoque também. A gente fez o simbólico, ficou pra comunidade, dentro de casa. Alguém precisa só chegar lá: “Faça o favor pra mim, arruma polvilho”. Só fala assim. Leva seu caldeirão maior que tiver, enche daquilo ali e vai embora. Sem pagar nada. Sem esperar horas, sem esperar o tempo abrir pra você buscar a mandioca. Isso me aliviou um pouco nesse tempo. Além da gente fazer tudo isso, tinha esse regramento também, que você está ali no meio das autoridades maiores da nossa aldeia. Você fazendo parte, debatendo ali, discutindo com elas, nossa, era uma vida nova pra mim. Melhorou minha vida nesse tempo. Isso foi marcante na minha vida, quando acabei de sair da reclusão.
P/1 – Antes de perguntar da reclusão, queria perguntar que ela falou que vocês falaram que ela é uma grande conhecedora das plantas. Se ela lembra, na infância dela e na adolescência, alguma história com alguma planta específica a ter ajudado. O que essa conexão com as plantas marcou?
57:12 a 59:19 = 2:07
R - Eu comecei quando eu vi, na época, algum jovem que estava com problema, ele gritava, de repente, do nada, pirava, de repente, do nada. Passava um tempo, ele sofria com esse tipo de problema. Os meninos estavam bem e, de repente, começavam a desmaiar. Quando acordam, não estão bem, mais. Eles vivem só olhando alguns espíritos, começam a se aproximar dele, começa a correr pra lá e pra cá, virar no chão e tudo o mais. E assim meu primo tinha me orientado, disse assim: “Faz o seguinte: vai lá no nosso pai” - disse pai dele – “pergunta esse remédio. Você está vendo? Todos os meninos estão correndo pra lá e pra cá, estão pirados e tem remédio, as mães que não sabem. Se não tratar isso, capaz dele perder a memória e ficar igual memória de criança, vai ser esquecido. Ele vai perder toda a inteligência”. Aí eu fiquei interrogado: “Por que será?” E assim eu resolvi ir lá no velho, pai dele e perguntei pra ele qual remédio bom pra esse tipo de jovem que corre, corre, desmaia, dá um trabalho, se perde, fica só pensando as coisas besteiras, quer suicidar, quer morrer, já está cansado e tudo o mais, onde ele me respondeu: “Poxa, demorou que você veio me perguntar. Seja bem vindo, estou aqui à disposição de compartilhar esse conhecimento com você. Por que eu digo isso? Você tem os filhos, as filhas, quando crescerem você vai ter mais ainda, os netos e você vai ser responsável por cuidar de todos eles. Essas coisas aí que você está vendo, jovens estão passando mal, é provocado pelo feiticeiro, que tem feitiço pra manipular o desejo, sentimento do jovem. Até mesmo o jovem feiticeiro rejeitado pela moça, tem que usar a sua magia pra estimular, manipular o sentimento dela pra mudar a ideia de uma hora pra outra e ficar com ele. Só que passa outro mês, começa a dar efeito. Não é bom. Quem não sabe disso, sofre com consequência. Leva dois, três anos, até, pra morrer”.
P/2 – O feiticeiro?
R – Não.
P/2 – A pessoa?
R – A pessoa que não conhece feitiço. Manipula sentimento e depois, por um tempo, ele acaba adoecendo, por isso. Porque ele acaba quebrando o protocolo da pessoa. E depois você vai saber disso, é ruim, porque o feiticeiro faz isso propositalmente. Pra você ficar com a pessoa . Vocês são bonitos, ele vai ficar com inveja, ele queima sua imagem. Depois que você vai saber, você não vai se sentir bem, você não vai conseguir sair dessa. E você começa a passar mal. Os pajés vão demorar pra descobrir. Então, aquele que é experiente, rapidinho, só de olhar as características, você vai saber como é e acaba mostrando o remédio. É um velho e um cantor, raizeiro, conhecedor da história também. E acaba me passando também. Ele, que presenciou o massacre do sarampo, acaba aproveitando e me mostrando o remédio que salvou a família dele numa época que ninguém sabia desse remédio. Por isso que eles morreram de sarampo, metade da aldeia. Aquela família que sabia, pegou esse remédio e conseguiu conter esses problemas e resistiriam, por isso não morreram todos. “Qual que é?” Ele pegou essa planta e apresentou pra mim. “E assim, quando eu vi seu pai falecendo na minha frente, você nem veio me procurar, se você me procurasse numa época, eu daria esse remédio pra você e você não perderia seu pai. Por isso que você perdeu se pai. Esse também é muito bom pra catapora. Ele é uma árvore pequena, você a arranca, tem raiz bem grossa, cheia de casca, você a raspa, deixa na água, faz a água morna e você banha ou bebe um pouquinho de chá e assim o vírus vai embora. E assim também serve pro câncer, pra qualquer câncer, esse remédio é muito bom, poderoso”. Poxa, minha mãe até chorou quando ouviu isso. Isso a fez marcar: “Como já tem remédio? Ele sabia o que vai acontecer pra frente?” Ela já preveniu e quis aprender mais. Quando chegou numa época e minha filha adoeceu realmente...
1:06:21 a 1:06:55 mudo = 36 segundos
R - ... depois que aprendeu, ficou preparada. Passou de uns dez anos a filha cresceu e nós crescemos todos e uma filha cresceu, seu jeitinho de ser bem bonita demais e passou remédio nela, começou a manipular o sentimento dela e acabou ficando com quase todo mundo, passou no outro mês e começou a passar mal. Uns três meses depois ela já tinha percebido e foi pegar remédio e passou nela, deu um banho, deu chá, fez vapor, no final de tudo arranhou, melhorou. Ela falou: “Pensei que nunca ia aprender isso” e guardou pra ela. E assim os jovens vão crescendo e entre uma, duas, três, quatro, vai surgindo, às vezes pela curiosidade também, os meninos usam, trocam com seu amigo. Tem pessoa que não conhece, começa a manipular: “Passa isso que você vai ser atraente de tão fácil” “Beleza, me arruma, então”. Arruma, passa, só que ele próprio se envenena com isso daí. E depois consequência vem. Hoje eles podem estar bonitões, no outro mês eles podem estar doentes. E não saber como lidar com isso, como pegar remédio. Aí ele vai precisar outro, então. E assim que aconteceu.
P/1 – Como ela aprendeu a curar feitiço, limpar feitiço?
1:09:03 a 1:09:56 = 53 segundos
R – E assim eu aprendi com meu irmão, primo irmão. Ele me ensinou muito bem, detalhou tudinho pra mim. E quando eu vejo esse tipo de rapaz, jovem, moças, mulheres, só de você olhar no olho dela, já tem alguma coisa diferente. E você passa aquele remédio, 24 horas melhora. Remove todas as coisas ruins que ficaram no corpo dela. Geralmente pega bem aqui no canal do olho, ela diz assim, onde lágrima sai. Fica tudo infeccionado, só que vai atingir todinho o corpo e vai deixa-la bem iludida. Começa a manipular olho dela. Vai duplicar olho. Alguém vai vir. Certo tempo ela começa a ouvir a fala diferente também. Ela vai falar sozinha. Acaba mexendo na psicologia da pessoa. E acabei pegando esse remédio que foi explicado, ensinado direitinho pra mim, eu acabei pegando tudo que eu aprendi e colocando isso na prática e sempre funcionou. Assim foi curando uma, duas, três, quatro, até 20 eu acredito que já aprendi e o resto, só chegar ali, olha e sabe o que está acontecendo com ele. Quando ele fica um pouco triste, você sabe que ele está doente. Ele acaba tomando através de chá ou só esfrega no corpo e assim, aquele que está começando, já é fácil de remover. E aquele que está demorando um pouco, um pouco mais é difícil. Mas a gente consegue também.
P/1 – Esse ensinamento era passado pra você, a própria planta chegava a te ensinar ou eram os mais velhos que ensinavam certinho?
R – O irmão dela, que ela citou.
P/1 – Mas já teve algum caso onde a própria planta te ensinou?
1:12:49 a 1:13:29 = 40 segundos
R – Desde que aprendi eu sei lidar com a erva e de vez em quando eu preciso da ajuda do pajé. Ele tem que identificar pra mim, pra pegar exatamente aquele remédio, eu faço uma purificação e rapidinho melhora.
P/1 – Nessa questão ainda do feitiço eu ia perguntar como foi o trabalho mais difícil de tirar de alguém.
1:14:00 a 1:14:35 = 35 segundos
R – Minha filha do meio que foi passado esse remédio, o feitiço nela e passou uns três anos sofrendo. Ela ia pra Sinop, pra fazer investigação, não tem nada. Ia pra Canarana, Água Boa, cidades próximas ali. Sorriso, Cuiabá. Nunca descobriram. Até que o que o remédio faz na gente também, quando você começa a praticar, você não consegue encontrar o remédio, o próprio dono do remédio vem no seu sonho e vai ensinar direitinho detalhe por detalhe, pra você seguir aquela receita e assim você vai curar as pessoas. E assim eu fiz em minha filha. E depois, algumas pessoas que não consegui tratar, no meu sonho alguém vem, explica pra mim, porque às vezes o seu próprio professor te ensinou, só que você tenta colocar direitinho, do jeito que te ensinou e às vezes o professor começa a esquecer um pouco também, desviar do caminho e não vai dar jeito. Aí, o que acontece? O próprio dono da raiz vem explicar pra você: “Você está fazendo isso, por isso que não está funcionando. Você tem que fazer assim, começar a fazer uma receita”. É muito bom isso também, dá mais confiança em você, de você curar a pessoa. E, quando você acorda, diferente, todos sonham, porque o sonho da gente é passageiro e você sonha, quando você está gostando e alguma coisa passa para o outro, passa e quando é uma visão pra curar a pessoa, é diferente. Você sonha como se estivesse acordado. Você vai sonhar inteiro assim. Você acorda e vai relembrar tudinho o que você viu lá. Não vai ter aquele sonho passageiro, o sonho manipulado, ela falou. Você vai sonhar como se estivesse mergulhando, porque você está preocupado com a pessoa. A partir daquilo ali, você acorda feliz e vai buscar sua erva, você começa a fazer procedimento direitinho e você pega a planta, em vez de pegar daquele fraco, você vai pegar mais outro e você vai manipulá-la e assim, rapidinho, dá resultado.
P/1 – Ia falar pra ela falar um pouco da reclusão, contar como é que foi o processo, o que ela viveu.
1:17:44 a 1:19:56 = 2:12
R – Primeira vez que eu entrei na reclusão, quando eu estava no tempo de menstruação, minha tia, mãe do meu primo mais velho me levou algodão e entregou pro meu pai, pra eu poder fazer daquilo ali, transformar como barbante. E ela disse assim: “Eu trouxe isso pra ela aprender, está na hora dela aprender. Eu não estou pedindo pra ela fazer isso pra mim, pra ela aprender pra vocês. Você, pai, ela e o dia que ela tiver marido, também vai cuidar, pra ela saber, pra ver se ela tem dom de ser, que vai ser a pessoa”, falou pro meu pai. Beleza, meu pai aceitou e deixou pra mim e meu pai falou pra mim: “Faz isso e depois você entrega pra mim”. E assim eu comecei a fazer isso. Foi a primeira tarefa da reclusão. E assim é a cultura da gente. É um desafio pra você, pra eles te testarem, se você é bom. E assim eu fiz, dentro de quatro dias, ficou pronto, eu peguei algodão e transformei como barbante, ficou desse tamanho assim, entreguei pro meu pai e meu pai o chamou, ele veio pra casa pra receber, onde ele: “Nossa, já terminou?” E, na nossa língua Kamaíri é uma forma de expressar uma senhora pro senhor também, chamando querido: “Querido, você está de parabéns aí”. Quando a pessoa é assim, é algo diferente. Ela tem um talento, vai ser bem habilidosa e você já ganhou rede nova. Nunca vai sujar sua rede. Significa que toda vez que eu sujar a rede, eu já vou trocando. Isso que ela estava querendo dizer. Nossa, meu pai ficou feliz e assim eu também fiquei. Depois disso eu recebi um talo de buriti pra fazer esteira. Proposital também, deixar todo material pra poder fazer. Eu terminei dentro de um dia e meio. Então, foi muito bom. Também pela primeira vez. E até ficava a minha menstruação assim, continuei fazendo esse tipo de coisa. E, junto, vem a história de como fazer, quem fez isso, como provocou, por que isso, se você não fizer isso e assim vai indo as atividades das mulheres pra cada dia que passa, era uma história.
1:23:19 a 1:23:53 = 34 segundos
R – Assim meu pai não confiava na fala de uma senhora que foi logo de cara, no inicial da minha menstruação e falava que eu ia ser habilidosa em qualquer área e quando eu cheguei na idade dos 25 anos, meu pai, de repente, começou a me abraçar e me elogiou: “Poxa, eu não acreditei em sua tia, mas eu sei que ela é muito experiente, tudo que ela falou, você está fazendo. Você sabe fazer comida, a comida não está faltando na nossa casa e eu tenho todos os utensílios e você faz também, qualquer coisa de comida você está transformando em comida boa. E a gente acabou não passando mais fome. Parabéns pra você”, assim meu pai elogiou.
P/1 – Qual foi o sonho mais forte que ela teve no período de reclusão?
1:25:02 a 1:25:54 = 52 segundos
R – A primeira noite que eu tive meu sonho eu andei no campo. No cerrado tem um campo, um capinzal bem pequeno. Lá é limpo. Em cima tem teia de aranha bem bonita. Pela curiosidade eu fui lá, subi nela e acabei andando na teia, até descer. Ficou marcado na minha cabeça. Daí, quando acordei, no outro dia meu pai me perguntou: “Qual foi seu sonho?” Eu contei isso: “Eu passeei, fui no campo. Vi lá uma teia de aranha e, pela curiosidade, eu passei por cima, pra ver se quebrava, não quebrou, passei certinho, até descer. “Você pegou?” “Não. Eu, só, apenas, pisei em cima” “Você devia ter pegado isso. Você ia produzir as coisas dentro da metade do dia. Mesmo assim, você vai ter inteligência. Vai demorar, vai aparecer”. Assim meu pai falou pra mim.
P/1 – Ela falou dessa questão das histórias. Quem ela lembra que era uma grande contadora de histórias, que ela aprendeu?
1:27:43 a 1:28:15 = 32 segundos
R – Na minha época teve três historiadores considerados dos melhores de todos os tempos, desde juventude, até chegar na idade de senhora: minha tia, minha avó e a outra minha tia. Três. Sempre foram lá passar esse conhecimento pra mim, na casa. Intercalava outro dia, a outra vai e, no outro dia, a outra vai lá uma semana, conforme a história, elas iam lá pra contar a história até terminar. Porque tem história curta, tem história longa, tudo isso.
P/2 – Isso foi no __________ [1:29:06]?
R - ____________ [1:29:07] .
P/1 – Essas histórias que eram passadas tinham algum propósito? Elas contavam aleatoriamente ou tinha alguma conexão com o que ela estava aprendendo na reclusão?
1:29:25 a 1:30:00 = 35 segundos
R – Sim. A primeira menstruação é o momento mais precioso pra nós. Sete dias que vai ter vários testes pra você. Assim, logo de cara, eu passei em todos os desafios, por isso que eles apostaram. No momento que você passou a primeira menstruação, que você já demonstrou seu talento, aí os outros que vão apostar em você que vão ter a obrigação de ensinar com paciência redobrada, porque você não é qualquer um. Logo de cara, alguém que não vai querer aprender na vida, vai ser memória fraca. Não vai querer saber a vida, a cultura, porque não são todos que têm esse talento, o dom de ser alguma coisa de historiador.
P/1 – Como vocês estavam falando, tem história pra tudo, desde a planta, o fogo, o sol, o rio. Na escolha, como elas escolhiam? Se elas escolhiam pra ela aprender alguma coisa, como escolhia qual história que ia passar?
1:31:23 a 1:32:00 = 37 segundos
R – É verdade. Elas foram, três de uma vez, me ensinando, depois que eu passei nessa passagem, eu passei, mais ou menos, na avaliação delas, elas acabaram de chegar lá e contaram a história por sequência. Porque tem a história de juventude, até o período de adulto. Porque tem gente que aprende fácil, bem cedo aprende tudo. Tem gente que não aprende, chega o tempo certo pra ele aprender. Tem pessoa que aprende depois que ele fica velho. Então, como eu fui preparada, aprendi mais cedo. Eles me passaram até chegar no limite, elas falavam: “Você quer que a gente adiante alguma coisa pra você?” Pela curiosidade, como eu já tinha terminado mais cedo. Ainda quando eu pedia pra eles contarem mais, elas falaram: “Você tem razão. Somos velhas, a gente não sabe até quando vai viver”. Bem que eles falaram, adiantaram pra mim. Depois que aprendi tudo elas acabaram de morrer, todos, também. Agora não existe nenhum deles.
P/2 – Tem alguma história que ela ouviu que se relaciona com a experiência de vida dela em algum momento? Uma história, como aquela do seu pai, ontem.
1:34:23 a 1:36:55 = 2:32
R – Ela diz assim: tem relacionado a história, sim. Quando o nosso Criador nos criou, numa época, nessa questão história porque tem um grupo dos meus irmãos, meus primos de terceiro grau lá não têm esse conhecimento que a gente tem, estão sofrendo. Estão, até, brigando entre eles. Falta de conhecimento. Porque uma história que me fez marcar na minha vida é questão de respeito. Na época tinha a pessoa que era bem famosa, só que não tinha a ética. Ele falava qualquer coisa no meio do público. Até que chegou certo tempo e nosso Criador ofereceu comida pra ele. Onde ele acaba criando asa. Criou asa, voou pra Terra e atualmente é conhecido como... fica na lagoa, um pássaro grande, não tem valor igual aos outros têm: tucano, arara. Ele não tem a pluma aproveitada. Ele não fica cobiçado.. Assim a história contaram pra mim. Então quer dizer que pode ser que você, jovem... geralmente são os jovens que são todos bonitos, inteligentes, só que chega certo tempo que você é descartado, porque você começa a plantar, plantar, plantar, plantar e chega um momento que você vai colher o que você plantou, tanto disse bobagem e você vai ficar sem ninguém. Você não vai saber pra cá, você vai ser desrespeitado. Desde juventude, até adulto, você foi respeitado, quando você chega em uma idade certa, era pra você ser respeitado e você acaba se tornando como qualquer. Isso me fez refletir muito e acabei me comportando como manda nossa tradição. Isso que ela disse.
P/2 – Eu queria saber como ela se tornou uma especialista do Yamaricumã. Como foi essa trajetória?
1:40:32 a 1:41:49 = 1:17
R – Onde eu aprendi, desde mais ou menos oito anos, meu pai acaba me passando de tudo, antes de eu entrar na reclusão. Antes de entrar na reclusão eu começava a cantar, a gente imitava os mais velhos cantar. E a gente arrumava a nossa turma, enturmava e fazia umas brincadeirinhas. Eu sempre gostei de ir na frente e cantar, me apresentar. E assim vai passando e, quando meu pai viu que eu estava interessada em aprender, começava a colocar mais histórias. E contar direito todas as histórias, como começar, como chegar ao centro e tem todas as razões diferentes, uma da outra. Canção de Yamaricumã tem um tempo, questão de período. De manhã tem canção diferente, até meio dia. De tarde tem canção diferente. Na sequência, até de tarde. De noite, até meia noite. Meia noite, até amanhecer. E assim encerra a festa. Então, tudo isso que eu aprendi primeiro e depois, quando a gente completou mais ou menos 12 anos, antes da gente entrar na reclusão, estávamos eu, minha prima e amiga, éramos três e a gente passou na provinha delas e a gente acaba convocando todas, nós que comandamos a festa e promovemos a festa. Primeiro a gente foi como aluna, assessora dos cantores oficiais. No outro ano nós fomos autorizados a fazer, pra ver se a gente tem domínio de fazer a festa até no final. Pela curiosidade eu fui e tudo que eles pediam pra mim, eu fazia, sem saber que eu ia chegar nessa altura, onde eu cheguei. Só que do meio que eu percebi que eu já estava indo, adiantei um caminho, já e então eu fiquei feliz, pura alegria de emoção, acabei me esforçando mais em querer aprender mais. Assim chegou ao final, teve uma primeira festa oficial com as outras etnias. Onde meu avô, junto com meu pai, me convidaram pra cantar sozinha ao público. Tinha aproximadamente 1000 pessoas em volta, no plenário, na plateia. Eu lá cantando sozinha e nós três passamos na prova: eu, minha prima e outra minha amiga. Nós éramos três. Assim, na outra vez, no outro ano, a gente foi pra uma aldeia do vizinho, lá teve uma festa bem grande também. Tinha até presença do homem branco. Acho que em algum lugar deve estar registrada essa imagem, pequenininha disputando com gente velha. E assim as outras etnias não acreditavam que a gente tinha condições de cantar ao público. Só que a gente foi treinada, já, há tempo, um, dois, três anos, desde criança e então a gente conseguiu vencer, onde eu venci em primeiro lugar e eu ganhei um monte de presentes. Geralmente, quando a gente vai apresentar ao público, esse colar aqui é uma joia pra nós. Esse daqui, esse daqui. Na época não tinha muita missanga e acabei ganhando missanga também. Quando a gente voltou, você é convidada e a gente vai pruma aldeia, na outra aldeia é um círculo e, em vez da gente entrar direto no terreiro da aldeia, a gente ficou acampado próximo da aldeia. Só de noite que a gente vai se apresentar. No outro dia a mesma coisa. No outro dia a aldeia é liberada pra gente ficar dentro da aldeia, pra gente se apresentar. Assim eu fui convidada pelo dono que está promovendo a festa, pega na sua mão e você vai andar com ela ao público, vai desfilando, até você sentar no meio, tem sua cadeira e está cheio dos seus adornos ali: colar, braçadeira, joelheira, tornozeleira. Então, você senta ali como princesa. E o dono da festa vai te presentear, vai colocar todo esse adorno pra você e, se você cantar bem, você carrega tudo que você quiser colocar em você. Se você cantar mais ou menos, tira isso, tira isso, tira isso e você ganha uma só. Então, como eu passei na plateia o maior aplauso que teve, eu tinha obrigação de carregar tudo que eu tinha. Eu só devolvi cocar e o resto, levei. Nessa hora, uma vitória pra mim. Eu não sei exatamente minha idade, eu lembro que meu peitinho estava começando a levantar. Isso que ela disse. Isso foi emocionante pra mim.
P/2 – Qual foi a música que ela cantou?
1:49:06 a 1:49:25 = 19 segundos
R – Ela vai apresentar o que ela cantou, uma canção sagrada na apresentação ao público. Na outra aldeia, também. Não na sua aldeia.
1:49:42 a 1:49:56 = 14 segundos
R – Eu vou cantar a canção do chefe do Iamaricumã, onde cita o seu próprio nome, ___________ [1:50:06] e seu irmão, __________ [1:50:09].
1:50:12 a 1:50:22 = 10 segundos
R – Quando você canta isso, você fica bem cercado, eles dão uma segurança pra cercar você, pra que não seja apertado. Porque todo mundo vai querer ver que você é capaz. Só que eles cercam. Só as autoridades que ficam. As pessoas ficam todas em volta. Todo mundo está curioso, querendo... que raramente acontece um jovenzinho cantando em todos os tempos, diz ela.
1:50:57 a 1:52:30 = 1:33
R – Daí ela começou a levantar e cantou ali e você fica com duas flechas na mão e mostrando sua força e coragem, dizendo que você não é qualquer um naquele momento. Os homens têm sua flecha, as mulheres também têm sua flecha. Isso que ele está falando ao público: “Nossa, eu fui mais aplaudida que eu vi na minha vida. Meu pai, mesmo, chorou de emoção e o cacique geral nosso também chorou de emoção, foi responsável de liberar nós mais cedo, porque o tempo que foi escassez de cantoras, a gente precisava repovoar cantoras, por isso que ele liberou ter um teste, se a gente não passasse, a gente não estaria segurando uma vaga de adulto ali”. Então, ele fez de tudo, só que a gente foi compatível com a ideia dele. E assim acabei me tornando como conhecida mais cedo. Depois daquilo ali acabei entrando na reclusão. Quando a gente cria o corpo já é outro. Foi de criança.
1:54:06 a 1:54:41 = 35 segundos
R – Não é qualquer um que tem esse interesse e também, dependendo, você tem o dom de fazer aquilo ali e você acaba se tornando como cantora oficial. Também não é pouca coisa. Dá uma canseira na gente você ficar 24 horas cuidando de todas as cantorias, não pode desfalcar a festa. Por isso que você tem que estar preparado. Quando você assumir uma cantoria não é pouca coisa. Por isso que não é qualquer um que faz. E você tem que estar preparado fisicamente, mentalmente e espiritualmente, pra você entrar nisso, sabendo que vai ser demanda maior.
P/1 – São 24 horas seguidas?
R – É. Você tem que saber cantar. Começa meio dia, até chegar meio dia, encerra e canção também, trocando canção por canção, conforme o horário, até bater certinho e você entrega sua flecha, significa que você já encerrou. E também que você venceu. Por isso que não é qualquer um que tem a coragem de assumir, mas recompensa. Não muitas coisas, mas você ganha a fama a nível regional.
1:56:10 a 1:58:41 = 2:31
R – Daí, no outro ano, quando entrei na reclusão e saí, já era bem no jeito de ser mulher.
1:59:08 a 2:00:30 = 1:22
R – A gente canta essa canção aí quando a gente vai fazer uma visita na outra aldeia. E quando eu saí da reclusão era já profissional de canção, reconhecida também. E onde outra aldeia, camaiurá, teve muita gente também ali, todo mundo sabia que eu era cantora, todo mundo sabia que eu era filha de fulano, que meu pai é cacique e tudo isso eu era bem comentada no regional. Daí que o cacique que promoveu a festa Iamaricumã desrespeitou meu talento. Não me presenteou muito. Me deu um só colar, pediu que eu cantasse, eu cantei, me apresentei, nossa, aquela alegria, emoção e meu tio avô estava até dançando por aí, vibrando por ter já superado cantora, já estava escassez de cantora, quase extinto, eu superei tudo nesse tempo. Nessa hora o cacique camaiurá pediu que eu cantasse canção completa, essa canção que eu estou cantando, onde a minha professora me deu toque, quase que eu cantei. Ela foi lá e falou pra mim: “É o seguinte: o que ele está falando?” “Pediu que eu cantasse completo” “Você não ganhou nada. Por que você vai cantar completo pra ele? Deixa e a gente vem aqui, se ele te der várias coisas, porção de coisas, assim você vai cantar completo. O cara não te pagou nada” “É mesmo”. Eu fiquei assim, arrepiada, com medo em quebrar protocolo dela, da gente e assim eu pedi desculpas pra ele: “Eu não sei cantar”, disse. “Eu não tinha mãe pra me contar, nem avó, apenas eu estava só procurando como cantar. Por isso que eu não vou poder cantar”. E assim eu escapei dele, acabei não cantando completo, onde a gente cantou a canção comum, não a canção pra prestigiar o cacique. Assim foi o primeiro e o segundo. Só que o cacique camaiurá, o pessoal já percebeu - os outros ali, tinha nove aldeias participando - que ele já quebrou o protocolo, ele exigiu que cantasse, ele não pagou bem a gente e assim, esse boato rodou toda a aldeia inteira. Toda vez que a gente vai lá, a gente ganha um presentão, pra gente cantar completo. E assim a gente recebeu esse elogio e reconhecimento. E, através dela, questão de receber respeito e a gente acaba conquistando espaço de uma liderança feminina. E a gente acaba fazendo parte. Até hoje eu faço parte dessa coordenação, onde eu continuo falando a fala do meu pai. Não adianta a gente falar que eu sou a linhagem do cacique. Mesmo que você pode falar, nunca vai atingir sua meta, ideal pra ser liderança e conhecido na sua sociedade em nível regional da sua região. Você tem que mostrar o que você tem de talento. Só assim o pessoal vai te ver em qualquer lugar e você vai ser considerada cacique e vai ser recebida bem em qualquer lugar. Isso que ela disse.
P/1 – Teve algum momento desse saber dela, que ela se sentiu muito valorizada? Da mesma maneira como teve momento que sentiu... momento que valorizaram bastante?
P/2 – Não, ela já contou da infância, antes da reclusão, que foi o momento áureo, que ela foi celebrada, lembra? Eu acho que a gente podia, principalmente pro benefício também do Museu e do Jonas também, que sua mãe explicasse um pouquinho o que é o ritual do Iamaricumã. Como e que funciona e o que está envolvido nesse ritual.
2:06:30 a 2:07:08 = 38 segundos
R – O Iamaricumã surgiu através da base de mutirão. Ela é que é responsável em cuidar do mutirão das aldeias. Por que isso? Está ligado no bem estar do povo também. Se não tiver mutirão, a gente não... você pode ficar trabalhando muito tempo na sua vida, nunca vai render seu trabalho. E hoje em dia tem nossa atividade cotidiana, é colheita de mandioca, plantio de mandioca, roçada de mandioca, tudo. E fazer colheita de pequi, colheita de aguapé, pimenta, tudo que a gente consome, a gente ajuda um ao outro, através desse movimento de Iamaricumã. Se não tiver nada disso, você pode trabalhar, nunca vai ter alguma coisa em quantidade maior. Quando é mutirão, leva uns dois, três dias, já termina o trabalho coletivo, a aldeia inteira para e vai trabalhar pra você. Vai fazer uma secagem, pescando, outro cuidando da canção e termina. A responsável que cuida dessa memória sou eu.
P/2 – Como é que fala a palavra mutirão na língua?
R - _________ [2:08:43]. Na nossa língua, ________ [2:08:48].
P/2 – Por que acontece o ritual do Iamaricumã. Qual é a razão que vocês, mulheres, fazem?
2:08:59 a 2:09:20 = 21 segundos
R – É muito bom pra, além de fazer mutirão, também uma maneira da gente transmitir conhecimento pra novas gerações. Uma escola e uma revelação das lideranças jovens e, no final de tudo, traz alma das pessoas de volta, porque às vezes a pessoa fica doente e esquece sua alma em algum lugar, sempre vai viver doente. Ele vive falando: “Vou me suicidar, vou embora daqui”. Nossa, fala tudo bobagem, porque ele está doente, esqueceu sua alma, a alma dele foi capturada pelo Iamaricumã ou outros seres da natureza, em algum lugar. Quando o pajé viu isso, a gente faz movimento, faz a festa e faz mutirão pra ele, oferece algumas coisas pra ele na festa, pra reanimar, reabilitar a alma, trazer a alma de volta, pra ele conviver com a gente. Por isso que, nesse sentido, a gente vê tanta corrupção no mundo e está acabando ambiente da gente. Onde eu sempre pensei: “Poxa, será que a gente poderia ajuda-los? De que forma?” Ele fala do pessoal de Congresso. Porque eles estão fora de si. Só pensam em ganância. Egoísta. E acabam com a gente. Às vezes também dentro da gente tem esses tipos de pessoas. Daí a gente pega essas pessoas, o senta, faz festa pra ele e ele vai ver como a vida é recíproca. Natureza é recíproca com a gente também. E assim a gente consegue fazer um tratamento mental pra essas pessoas, pra que não sejam egoístas, pra que não sejam gananciosas. E assim a pessoa consegue uma maneira de um tratamento completo pra nós. Isso que ela disse.
P/1 – Maravilhoso! De todas as milhares de conexões e sabedorias do seu povo, qual foi uma que, quando você se conectou, ficou bem forte pra você depois que você se tornou... porque você ficou bem nova... qual foi outra que depois você se tornou especialista e escolheu se aprofundar?
2:12:44 a 2:13:20 = 36 segundos
R – Depois desse Iamaricumã é uma iniciação pra gente estar preparada pra ser liderança. Depois que é liderança passou pra com fazer uma festa pra liderança feminina. Tem outro também: a gente dá, oferece tipo calcinha pra família de pessoa nobre também. Pra continuar a linhagem dele. Uma casca de madeira, foi feita e, quando é pequena, ela não tem. Quando chega 12 anos, que vai ter um tempo de ter um contato com relação e, antes de ter isso, a gente coloca, o que significa que é um respeito pra ela. Pra que ninguém toca, pra não atrapalhar o desenvolvimento dela. Ela tem que passar por um tempo certo, até chegar em uma idade e altura certa, pra ela ter o próprio sentimento e gostar de alguém, ela vai decidir que vai relacionar com um rapaz. E também tem essa coisa: no passado a gente não relaciona com qualquer um, a gente se relaciona com o filho do chefe e o chefe. Assim, pra ter conhecimento e a gente passa essa responsabilidade pra pessoa. Ou, às vezes, o pai que pede. Eu não passei por isso, mas eu passei pelo processo como cuidar, tornar a pessoa ser uma liderança jovem. E a canção a gente chama de Kaxatapá. E tatuagem também, que diferencia o corpo da liderança feminina. E depois vem a parteira. E assim, enfim, vem outros tipos de conhecimento que a gente precisa pra saber lidar com a natureza.
P/2 - Ela enumerou, ali, os rituais: primeiro Iamaricumã, depois Kaxatapá, depois o touro. Quais os outros que ela falou?
R – Parteira e raizeiro e depois vários outros também.
P/2 – O touro é um ritual?
R – Isso.
P/2 – E os outros rituais que ela mencionou, quais são?
R – Outros rituais que ela falou: da Festa do Pequi, a Festa de Mandioca, principais fontes de nosso alimento.
P/2 – Como chama a festa do Pequi?
R - Mapilawa. Esses outros que ela vem aprendendo depois desses conhecimentos, pra aperfeiçoar conhecimento.
P1 – Fala pra ela contar um pouco da trajetória dela como parteira.
2:16:58 a 2:17:13 = 15 segundos
P/2 – Talvez começando como ela se tornou parteira, primeiro e depois a trajetória.
2:17:21 a 2:18:31 = 1:10
R – Minha avó que me pediu que eu aprendesse com ela. Desde criança ela me convidava pra participar do parto. Assistia primeiro. Assim fui criando coragem e primeira coisa que eu segurei, aqui, em cima da barriga. E depois, conforme meu conhecimento, eu fui até pegar a criança a primeira vez. Quando nasce, eu pego, corto o umbigo, leva na rede, dá um banho, passa erva, limpo a boca, examino todo o corpo e assim vai indo, antes que eu tenha meu próprio neto. Minha avó me preparou pra o dia que tiver meu neto, eu própria fazer o parto da minha filha. E assim, bem que ela falou: “Eu fiz o parto da minha filha”. E todas as minhas filhas, eu tenho seis, todas elas não têm cesárea. E quando eu saí de uma aldeia central onde a gente estava, agora onde estão todas as minhas filhas, não saio pra cidade. Onde eu saio só tem uma parteira ali. Aproximadamente quase mil pessoas, ali ela não consegue. Tem as pessoas que vão pra fora, estudam, voltam pra aldeia e não confiam no trabalho da parteira. Sabe o que acontece? A esposa desses jovens que têm esse conhecimento e acreditam no conhecimento de fora acabam tendo uma cesariana mais cedo. Nossa, é triste ver isso. Quando eu converso com ela, falo: “Poxa, por que você não segurou?” “Eles querem que a esposa fique na cidade, é bem melhor, seguro”. “Seguro como?” E isso que está acontecendo, hoje em dia, com a gente. É triste ver isso, os parentes se machucando mais cedo, enquanto a minha família não tem isso. Enquanto eu estiver aqui, eu vou aplicando esse meu conhecimento. Eu, meu marido, agora tem mais a minha filha, outra minha filha, minha neta. Minha netinha já tem cinco aninhos, já está aprendendo com a gente como lidar com coisa de parto. E já tem quase dez gerações prontas pra aprender comigo.
P/2 – Qual foi o parto mais difícil que ela já teve?
2:21:46 a 2:22:41 = 55 segundos
R – Ela entrou em trabalho de parto, não sabia e eles acreditavam que conseguiriam dar um trabalho de parto das filhas dela, passaria sem passar meu conhecimento. Eles tentaram, sozinhos, ali e passou cinco dias, quase que a menina morre e eles foram me procurar. Assim a gente foi junto com seu pai e fez o tratamento do seu pai endireitando e eu fui pegar a erva, passei na barriga e dei uma limpada no canal, na vagina e pedi pra ela tomar um pouquinho de remédio. Passou alguns minutos, já saiu. Nossa, a menina ficou fraca. Ela levou quase um mês pra recuperar. Quase morreu. E outro, também, passou dez dias. Depois de dez dias, eu fui, quando ela já estava desmaiava e acordava, eles foram me procurar, a gente foi lá ver, fiz todo esse processo, passou alguns minutos, a menina nasceu e aquela ali levou uns três meses pra recuperar. E teve alguns partos aí que rapidinho eles foram procurar a gente, pra que não demore. Ou então eles procuram a gente antes de um mês do feto. Porque tem gente que está preparado pra engravidar e eles sabem, um mês já passa, metade do mês eles já sabem que está grávida. E assim procuram a gente, a gente acompanha e daí não dá mais complicação, quando é na mão da gente. Porque quando a criança não é acompanhada pela parteira, ela não vai saber, principalmente a menina nova, que não conhece, vai ser uma nova vida pra ela. Não conhece como dá o trabalho de parto, entrar no trabalho de parto. Daí ela acaba sofrendo muito. Quando a gente acompanha, orienta, chega alguns minutos, desceu o primeiro líquido ali, passa alguns tempos ali, minutos só e nasce, com tamanho pequeno ainda também e, na cultura do homem branco, muitas vezes eles falam assim: “Se nascer pequeno, dá problema”. Dá problema porque eles não tomam remédio. Porque você tem que cuidar da criança antes de passar o canal. Tem uma medida certa. Quando completar nove meses, isso é normal, padrão, pra nós. Nove luas, ela falou. Só que a gente adianta e dá um parto precoce pra ela de oito meses, pra que não ultrapasse o canal, cabecinha ficar pequeno. Só quando nascer, a gente dá um remédio recompensa pra ele rapidinho, um mês ele estica e fica um tamanho maior. Aí fica bom. Fora do útero fica maior, fica bom. Dentro do útero ficar maior é ruim, porque ficar maior acaba o músculo, porque o útero tem sua capacidade de músculo pra expulsar o feto. Isso a gente entende claramente. Se você quebrar o protocolo, você é capaz de matar sua filha, com isso. É isso. Assim que a gente aprendeu, eu e meu marido.
P/2 – E como é que ela faz pra saber se o músculo está na época certa? É uma coisa sistemática ou tem uma época que ela já provoca o nascimento, pra poder...
R – Isso. Ela tem uma época certa, por isso que é importante: a menina engravidou, saber o mês. Ela tem um calendário. Eles contam pela estrela e a lua. Porque cada mês tem uma estrela única, só. Não aparece no outro mês. Então, fica como calendário pra elas. Vai contando até oito meses, oito luas, oito estrelas, então já está na hora, pega esse remédio, dá pra ela, leva uns sete dias depois e provoca o parto. Rapidinho. Carrega, coloca na rede, cuida, no outro dia, depois, a menina volta ao normal. Não tem nada de dores.
P/2 – E ela já chegou a fazer algum parto de alguém não indígena?
2:28:18 a 2:28:28 = 10 segundos
R – Ainda não. Só nosso povo.
2:28:34 a 2:29:01= 27 segundos
R – Ainda não vi. Eu tinha curiosidade de ver como eles dão trabalho de parto e dar o remédio, ajudar também, dar o remédio pra ela. Só que até o momento a Doutora Sofia que falava pra mim, numa época, que ela traria alguma gestante pra gente praticar junto com ela ali no local, só que ela nunca cumpriu a promessa. A vontade que eu tenho é bastante.
P/1 – Quando foi a primeira vez que você foi pra uma cidade, mesmo, uma cidade grande? E quais foram as suas impressões?
2:29:57 a 2:31:07 = 1:10
R – Pela primeira vez que eu vim pra cidade eu tinha apresentado uma paralisia na minha perna e no meu braço e onde tem um grupo de médico da Escola Paulista, que trabalha com a gente e por isso que dentro do Hospital São Paulo tem um ambulatório do índio, onde a gente está sendo atendido. E lá que a gente veio buscar esse tratamento e assim que eu entrei pela primeira vez em um avião grande, eu chorei. Achei que eu não ia resistir e achei que eu ia cair do céu e a gente ia morrer em algum lugar naquele momento. E viajando, eu não tinha a mínima ideia como é uma cidade grande. O único que eu tinha na cabeça, próximo da aldeia tem um posto antigo da Funai e lá tem uma alvenaria bem baixinha, uma filinha, achei igual esse aqui. Também numa época tinha um hospital lá. Por isso que passou na minha memória, quando fala Hospital São Paulo, igualzinho aquele ali: baixinho, segundo andar, achei que era tudo isso. Quando eu cheguei aqui em São Paulo, nossa, era tudo diferente. Casa grande, comprida, parece igual abelha. Na floresta tem abelha, árvore alta, tem oco grande, está cheio e assim que eu tive impressão, vendo toda gente no prédio. Outro que me chamou mais atenção: até hoje eu consigo comer algumas coisas da comida de vocês, não todas, algumas coisas. E outra também: eu não tenho medo de vocês agora. Eu estou entendendo que na cultura de vocês tem gente boa. Achava que todos vocês são ruins, que falam mal da gente. E assim que eu tenho de conhecimento lá dentro, porque nós moramos, o povo de __________ [2:33:50] ali. ___________ [2:33:51] está cercado, em volta do Xingu. Quando você vai lá, não tem uma educação boa lá pra eles. Eles precisam aprender uma palavra certa. Ali só tem ignorância, preconceito. Isso que passava na minha cabeça quando eu vim aqui. É diferente forma que eu estou vendo. Agora é a segunda vez que estou aqui em São Paulo, quase aprendendo e eu estou entrando algumas vezes no prédio e ainda eu tenho medo. Eu não consigo ficar em pé e avistar de longe. De longe eu fico avistando, mesmo assim me dá um choque forte na minha cabeça. É isso que ela está falando.
P/2 – Eu queria fazer uma pergunta pra Pere, que ela, por ter ficado órfã cedo, acabou acolhendo diversas crianças que ficaram órfãs também e assim ela começou a cuidar. Eu queria saber a partir de que idade e eu sei que ela começou a cuidar de muitas crianças. Então queria que ela falasse quantos filhos de criação que ela teve, além dos filhos dela mesmo, que é você e suas irmãs e seus irmãos, os outros que ela também criou, que ela criou muita gente, foi mãe de muita gente. Pra ela contar um pouco dessa experiência de mãe dos seus filhos e dos outros filhos que ela foi acolhendo. Até, talvez, com os netos também, porque ela não parou de ser mãe, a vida inteira.
2:36:08 a 2:37:36 = 1:28
R – Eu comecei a cuidar dos meus irmãos desde que eu perdi minha mãe. E eles também perderam a mãe deles. Quando perdi minha mãe, nem demorou, meu pai casou com outras duas mulheres, onde teve dois de cada, filho e onde morreram também, não teve sucesso e morreram enfeitiçados e logo depois, no outro ano, meu pai casou outra vez. Duas mulheres de novo, onde teve uns 24 filhos. E morreram também, eu tive que assumir, cuidar dos 24 e, além dos 24, nove meus filhos e, além de nove meus filhos, 32 meus netos. Ixi, não foi fácil, só que eu usei método, técnica que eu aprendi durante minha vida, junto com esses vários caciques, lideranças, rezadores, anciões ou anciãs da aldeia, que me prepararam muito bem pra, além de cuidar do meu povo, eu tinha não se quantos os que eu acolhi porque a mãe morreu, perdeu o pai. Eu virei praticamente como se fosse alguma coisa de espécie que cuida das crianças órfãs, fazendo como? Eu fui até em uma instrutora pra eles e eu passei todo o conhecimento que eu tinha e eu fui como responsável em ir buscar mandioca e trazer mandioca e meu marido buscar peixe, caça e pesca e assim a gente trabalhou, juntos e a gente convidou todos os meninos grandinhos pra eles aprenderem mais cedo, pra nos ajudar. E assim eu dividi a responsabilidade de cuidar da roça e da pescaria e a gente tinha uma casa grande, dentro morou não sei quanta gente. E depois que todos cresceram, ainda continuo cuidando dos meus netos. Eu tenho cinco netos e umas seis netas também, continuo cuidando. Faz parte cuidar pra que eles sejam pessoas, cidadãos da comunidade. Eu não quero ouvir daqui pra frente meu nome. Eu sou liderança forte, conhecedora da história e vai ter vários dos meus netos sem conhecimento e vai ferir meu nome, vai sujar meu nome. Por isso que eu estou fazendo esforço máximo, junto com meu marido, educando todos os nossos netos. Ainda está uma luta, conseguindo educar a maior parte dos meus netos, que moram na minha aldeia. A gente tem 50 população, maior parte são meus netos. Foi isso que ela disse.
P/2 - Vamos lembrar lá agora os filhos, então. Vamos falar os nomes.
R – Primeiro a minha filha mulher.
P/2 – Como é que é o nome?
R - ___________ [2:42:14].
2:42:18 a 2:42:23 = 5 segundos
R – Segundo masculino que chama Curupi.
2:42:29 a 2:42:34= 5 segundos
R – Depois ela chama __________ [2:42:42].
2:42:44 a 2:42:46 = 2 segundos
R – Depois eu. Eu o chamo de _________ [2:42:50], é o nome do me pai.
2:42:57 a 2:43:01 = 4 segundos
R – Depois eu chamo _________ [2:43:02].
2:43:07 a 2:43:14 = 7 segundos
R - ____________ [2:43:14] está na outra aldeia.
2:43:20 a 2:43:25 = 5 segundos
R - _________ [2:43:25] está na Chapada.
2:43:27 a 2:43:40 = 13 segundos
R – São oito. Último ela chama ___________ [2:43:50]. Nove pessoas.
P/2 – Que é o rapaz?
R – Não. Mulher também.
P/2 – E os filhos adotivos dela estão espalhados?
R – Em todo canto da aldeia waura.
P/2 – Tem algum, dentre esses filhos adotivos, que assim como vocês, se tornaram cantadores ou pajés ou parteiros, que seguiram o caminho dela? Ou filhas também, que se tornaram especialistas do _______ [2:44:30]? Ela já teve seguidores entre os filhos?
2:44:36 a 2:44:51= 15 segundos
R – Meu irmão mais velho é cantor oficial da aldeia. E de reza. Ele é professor formado na cultura do homem branco também. Ele é graduado. ________ [2:45:08]. Depois, irmã mais velha é raizeira. Depois o sobrinho, o tio, que meu filho adotivo é cantor oficial da aldeia. Depois veio minha filha do meio, é cantora, ceramista - ela esqueceu de falar que ela é ceramista também – e parteira, tem três que ela está praticando.
P/2 - ___________ [2:46:08]?
R – Não. ___________ [2:46:10].
2:46:14 a 2:46:20 = 6 segundos
R – A ____________ [2:46:21] está prestes a se apresentar como cantora oficial e ela tem função ser como professora, educadora. Acredito que ela vai ajudar a passar esse conhecimento que a gente tem.
2:46:43 a 2:46:48 = 5 segundos
R – Depois vem a irmã dela, responsável coordenadora de rede semente, que faz movimento na comunidade.
P/2 - ___________ [2:46:59]?
R – Não, [2:47:02]. Ela tem função de parteira iniciante, tem formação audiovisual recém-formada e tem área de Administração, que está coordenando, aprendendo junto com a mãe, pra movimento das mulheres da aldeia.
2:47:30 a 2:47:45 = 15 segundos
R – Depois vem meu irmão, a minha filha que fica na Chapada, está prestes a terminar seus estudos. Terminou, só que ela tem problema de identidade, ela não está indo pra faculdade. E o irmão dela está prestes a terminar o ensino médio, esse ano vai terminar, só que a gente fez um estudo intercalado com ele, ele estudou cinco anos no __________ [2:48:23] e cinco anos com a gente, na cultura. Ele tem 20 anos, ele já tem conhecimento básico também: sabe roçar, sabe respeito, tem ética, é pescador, caçador, já construiu a casa, construiu a canoa, já sabe as coisas básicas, a sobrevivência da gente também.
P2 – O filho caçula?
R – Caçula. Ele obedece. Ele é muito bom também. Acredito que ele vai ser historiador um dia.
2:49:00 a 2:49:12 = 12 segundos
R – O meu primeiro filho adotivo já, como a energia era forte, na época, ele sabe igual eu. Ou talvez ele sabe a mais. No caso, ________ [2:49:29]. Ele sabe remédio, cantar, tudo que você perguntar pra ele. Ele já tem essa técnica, método de ensinar, a paciência redobrada.
P/2 - _________ [2:48:47] também é filho adotivo dela?
R – O primeiro filho adotivo.
P/2 – Cacique da aldeia. Então, ela é filha de um cacique e mãe de um cacique.
R – Isso. (risos)
P/2 – Incrível! Agora, eu queria que ela terminasse __________ [2:50:09] falando o que ela deseja pra você.
2:50:17 a 2:50:50 = 33 segundos
R – Ela disse que, primeiro, minha função foi como barqueiro, dirigia barco a motor, depois veio conhecimento como agente de saúde e depois eu assumi a pescaria em geral, caçada e a roça e, no último, ele está num processo de estágio fazendo como ser liderança. Ele está terminando também e, ao mesmo tempo, antes de terminar, ele está sendo nosso porta voz pra qualquer lugar do
continente. Isso faz orgulhar muito, por ele também, onde ele está disseminando a nossa ideia de olhar e pensar. Isso é muito bom pra mim, ter vários tipos de meus filhos.
P/1 – Qual que ela sentiu que foi a diferença quando ela teve o primeiro filho? O que ela sentiu mudar na vida dela?
R – Deixa eu concluir o que eu esqueci da fala dela? Ela disse assim: “Além de ser vários tipos de meus filhos, é muito bom quando a gente ensinar nossos filhos, desde criança, quando eles ficam adolescentes, dão menos trabalho. Só você entregar material pra ele e assim ele vai carregar, vai embora. Você sabe que ele vai lá, ele vai fazer, vai terminar, vai trazer e vai mostrar pra você o resultado do trabalho”. Isso que ela disse. Nunca nenhum dos filhos deu trabalho. Desde criança ensina e fica grandinho, ele pode ir sozinho.
2:53:22 a 2:54:12 = 50 segundos
R – Não sei se ela está cansada, ela falou que não mudou nada. Eu tentei explorar mais um pouco e ela falou: “Não mudei nada. Eu continuei do jeito que eu estava”.
P/2 – Já estava formada, super preparada pra ter.
P/1 – Já vamos encaminhar pro final, eu queria perguntar, acho que não perguntei isso: como ela virou benzedeira?
2:54:45 a 2:55:24 = 39 segundos
R – Ela disse assim: “Depois da morte do meu pai eu comecei a preocupar, porque meu pai que fazia algumas vezes pra mim esse tipo de erva, cuidava, benzia meus filhos e dava chá. Depois que meu pai morreu acabei me esforçando muito, indo pro primo dele pegar mais algumas informações técnicas pra eu própria poder cuidar dos meus filhos, pra que eles não fiquem doentes. Pra eu saber como as pessoas ficam doentes. Antes de piorarem, as pegarem e fazer vapor ou, se for preciso, fazer arranhadura no corpo, passar erva e melhora. Assim eu consegui fazer isso, todos meus filhos nunca sofreram dos problemas, eu sabia como remover todas as coisas malignas quando penetravam no corpo deles. Inclusive até agora, durante a viagem, eu estou vendo meu filho que está do meu lado, está cansado, quando a gente chegar lá, eu vou pegar erva, vou arranhá-lo, ele vai ficar bem. Ele está cansado, já.
P/2 – Qual, da sabedoria de tudo que ela tem, na experiência de vida dela, mensagem ela teria pra nós, pros Cajaiba?
2:57:19 a 2:59:57 = 2:38
R – Eu tenho uma mensagem aí pra vocês, homens brancos. Eu vou começar a falar assim: nos respeitar, pelo menos, nosso território, que está sendo cada vez mais desmatado em volta e começa a ter falta de comida e água e nós, lá no Xingu, temos a vida diferente. E assim vocês têm bem estar também. Vocês comem comida que vocês gostam. Assim nós também comemos nossa comida preferida. Vocês também têm comida que vocês comem qualquer hora e assim nós também comemos comida qualquer, comida comum, a gente fala. E tem comida especial. E assim vocês também. Por isso que eu peço pra vocês que prestassem atenção aí, se liga nesse mundo aí, que está muito conturbado. Nessa hora eu fico perguntando pra vocês: “Então quer dizer que vocês não têm cacique? Cadê o cacique de vocês, pra chamar atenção de vocês? Ou vocês que estão fazendo, mostrando mau exemplo pro seu povo, pra seguirem esse caminho errado? Vocês sabem que vocês só tem apenas pouco tempo que chegaram e vocês foram como praga da terra, destruíram tudo o que tem de bom na terra e o que sobrou lá vocês ainda insistem que a gente destrói aquilo ali? Vamos parar? E prestar um pouco de atenção na gente? Também somos seres humanos. A gente dorme, cansa, sonha e assim vocês também. A gente também tem sangue e vocês também têm. E assim, tudo isso, resumindo, que poderia dar chance pra nosso povo, pra que vocês venham aprender com a gente, porque não há mais outra coisa que vocês desviaram esse conhecimento que a gente tem. Vocês podem inventar outros conhecimentos, nunca vai entender como lidar com a natureza. E a gente foi feito dentro da natureza, a gente faz parte da natureza. Tanto é que na história, na mitologia waura, historicamente, a gente foi feito pela madeira. Por isso que nascemos, crescemos e morremos e assim as árvores também nasceram, crescem e morrem ao longo do tempo. Por isso que eu deixo essa mensagem pra todos vocês poderem vir aprender com a gente como lidar com a natureza. Natureza é muito importante. Nesses tempos eu fui convidada para um evento paralelo que foi promovido pelo ISA, Instituto Sócio Ambiental, que defende nossos direitos e bem estar coletivo da nossa população indígena do Brasil. Onde eu vi todas as imagens, áudio e vídeo e passou ali na mostra e mostrando todos os meus irmãos e meus amigos estão sofrendo de falta de água, falta de alimentos, falta de remédios, todos morrendo, chacina, massacre e tudo o mais e assim eu fico pensando: “Poxa, me fez fúria muito grande e eu peço desculpas por ter falado isso pra vocês. Não devia ter falado, onde eu abusei do meu poder de poder estar falando naquele público”. Eu me sinto envergonhada por isso também, onde eu falei pro público: “Pessoal, como estamos num momento de mudança climática, o rio vai acabar e a gente vai ficar sem rio. Por acaso, no meio de vocês, tem alguém que saiba onde pegar semente de água? Se alguém souber, aqui no meio do plenário ou qualquer lugar do Brasil, fala pra mim, pra eu poder chegar lá na casa dele e pedir a semente pra mim. O dia que acabar o rio, esperar por um tempo, meus netos começarem a passar sede e plantar ___________ [3:05:55] da água e nascer água de novo. Isso que eu queria de vocês”. Eu falei com uma raiva, fúria que eu tinha. Depois eu vou embora pra casa e fico refletindo: “Poxa, por que eu falei isso?” Por isso que eu falo pra sociedade envolvente: “Vamos parar, vem aí, vamos compartilhar esse conhecimento e vamos parar com essa ganância que tem. Isso que toma conta de vocês e vocês acabam perdendo a legitimidade, a cultura de vocês. Me desculpa pelo apelo”.
P/1 – Gratidão.
P/2 – Queria dizer pra ela lembrar que ela foi ovacionada em pé quando ela falou isso, todo mundo bateu palma pra ela lá no _______ [3:06:52] e eu queria dizer pra ela que eu acho que ela tem todo o direito de falar bravo com __________ [3:07:04], porque eles precisam levar uma sacudida pra entender, realmente pra reagir, pra impedir que os exploradores, esses gananciosos, continuem a fazer a destruição que eles têm feito e eu queria concluir a minha parte aqui dizendo que, se o waura vem da madeira, fala pra ela, ela é uma grande árvore mãe.
3:07:42 a 3:09:00 = 1:18
R – Pode deixar comigo e daqui retornando, o dia que tiver oportunidade, em geral acontece anual uma governança que a gente denomina, onde chama todas as lideranças do waura e reúne e planeja o que vai ser feito, o que foi feito e avalia as atividades e ali eu vou ter total... eu não vou ficar nem com vergonha deles, porque eles são meus filhos adotivos que estiveram ali, que estão coordenando como caciques, cantores, rezadores que estão lá. Por isso que eu não vou ter vergonha de falar essa palavra. Eu vou usar alguns palavrões pra eles, pra que eles fiquem sacudidos também. Vai saber que eles estão indo nesse caminho errado de arrancar, estão desaparecendo nosso rio. Através de quê? Vendendo madeira. É isso que ela está falando.
P/1 – Pra fechar, mesmo, pergunta pra ela como foi contar a história dela e qual ela acha que é a importância de se preservar as histórias indígenas?
3:10:28 a 3:11:00 = 32 segundos
R – É muito importante nesse tempo, porque eu não estou sozinha aqui. Eu tenho vários filhos, netos. Além de netos, tenho os bisnetos, tenho meus filhos adotivos e precisam ter esse conhecimento. Por isso que é importante arquivá-lo e guardar aqui e qualquer um deles, daqui a um longo tempo, daqui pra frente vai se perdendo isso, se eles souberem que tem aqui, eles vão vir e pra vocês deixarem porta aberta pra eles terem acesso quando chegarem aqui e dizer assim: “É verdade que tem uma história aqui? Memória do nosso bisavô? E tataravô?” “Sim”. E abrir a gaveta ali e mostrar pra eles e assim eles vão reeducando, através de conhecimento que eu estou arquivando aqui.
P/1 – Ela está muito cansada ou dá uma história resumida?
R – Pra?
P/1 – Fechar com uma história.
R – Sim.
3:12:18 a 3:12:54 = 36 segundos
R – Essa história que eu vou contar.
3:13:01 a 3:13:58 = 57 segundos
R – Ela contou uma pequena história aí do que é muito importante de tudo é você saber uma história, mesmo. Por exemplo: quando surgiu o mundo ________ [3:14:21] existiu árvore com arara. E depois do __________ [3:14:25] veio sua filha ___________ [3:14:29] e depois de _____________ [3:14:31] vem da outra. Eles que foram, o sol e a lua, responsáveis de toda a cosmologia, porque nós somos uma terceira humanidade. Primeiro existiu e não sabemos a história dele. Porque o nosso povo, os historiadores morreram antes da gente saber disso e depois veio ____________ [3:15:06] e o mundo já existia, a terra, a planta, as árvores, já existiam, mas existiam humano que não se comunicava. Ele ficava parado, sentado, deitado. Depois daquilo ali o nosso Criador existiu. E assim eles começaram a fazer o seu grupo, depois seus grupos começaram a trabalhar pra que eles eliminassem todos os seres antropogênicos que comiam gente. Se ele nos colocasse na Terra direto, a gente não estaria bem, a gente ia se confrontar com esses antropogênicos. Por isso que eles foram fortemente, trabalharam muito tempo. Alguns eles mataram e transformaram como estátua. Na nossa região tem uma pedrona, estátua, deitado, agachado ou então deitado de barriga pra cima. E tudo isso faz a gente ter respeito com você mesmo. Entender quem é você. E assim, essas histórias, o maior remédio que tem na humanidade, é você saber da sua própria história, pra você poder conseguir viver em paz. Sem história você não é nada. Assim como _________ [3:16:52] já criou todos os regimentos das regras de convivência da aldeia, do povo, entre relação, outro povo, quando terminou isso ele deixou bem claro pra nós: primeiro quem trabalhou foi ___________ [3:17:14], depois veio ___________ [3:17:16] e assim terminou tudo, como a regra de convivência com harmonia com a natureza e a humanidade. E depois que terminou isso ele deixou bem claro pra nós: “Eu vou embora pro céu”, onde está, atualmente a gente o chama de Sol e a Lua. O Sol é mais velho e a Lua mais nova. Então, essa regra que ele nos deixou aqui, quem quebrar a regra... a regra é livre, você é punido indiretamente. Por exemplo: se você não seguir a regra, quando você tem o primeiro filho na vida, não passar pela dieta de uns três anos, o que acontece é que você, rapidinho, completa aproximadamente 50, 60 anos e tem a aparência de 80 anos. É isso, porque você quebrou a regra. E se você mentir demais rapidinho você é eliminado da comunidade de qualquer jeito, porque você é mentiroso. Automaticamente devolve, a natureza, essa coisas ruins pra você. Por isso que nós acreditamos muito na nossa história.
P/2 – Maravilhoso! Se você não sabe sua história, você não tem nada. Maravilhosa essa frase!
R – É isso. Obrigada vocês também!
P/1 – Só fazer uma última pergunta bem curtinha, porque senão eu vou pra casa sem. Eu queria saber bem rápido qual foi o momento que ela virou, que ela é uma das maiores contadoras de história, se teve um momento que ela virou um contadora de história?
3:19:30 a 3:19:45 = 15 segundos
R – Eu me tornei contadora de história quando comecei a participar do encontro das mulheres regionais no Xingu. A partir dali eu tive que contar história quem somos nós, sem saber que eu estava apta, sendo nada, evoluindo indireto, quando eu vi, eu já estava na mesa. Porque eu fui uma inspiradora das mulheres de diferentes etnias. Eu sabia contar tudo, detalhe por detalhe, até chegar na parte da regra da convivência, exemplo que estava dando errado em pouco tempo, e também lembro disso, foi em 2008, eu estava no processo de formação de agente indígena de saúde, agente indigenista. Nesse tempo ajudei minha mãe na tradução, na palestra, falando sobre a questão de desnutrição.
Teve uma época que estourou uma desnutrição, foi 2006, 2008 e houve muita taxa de número, no Xingu, onde eu sou filho dela, trato, intérprete de tudo, que fazia projeção pra ela. Junto com ela a gente teve essa ideia de fazer palestra e fazer pesquisa, entender porque estava acontecendo no Xingu esse número, onde estava sendo acusado um grupo de agente de saúde, professores que trabalham, que têm seu salário todo mês, falavam que compravam comida pra trazer na sua comunidade, onde não se alimentavam direito. Compravam um monte de cesta básica, alimentam seus filhos crianças, não se alimentam direito e onde, junto com minha mãe, a gente estudou e entendeu que não era isso, era regra de convivência. Os jovens casando mais cedo, onde não sabem cuidar dos seus meninos, tem ainda de querer participar de todos as brincadeiras de juventude e acabam esquecendo e não cuidando direito dos seus filhos e também ficam comendo todas as dietas e não deveriam ter comido naquele momento. E a partir dali que eu recebi mais um elogio do público. As jovens que têm o filho mais cedo ficavam tão encabuladas comigo me assistindo, contando. A partir daquilo ali que eu vi que a gente conseguiu reverter esse problema através disso, fazendo palestras e explicando como lidar com a desnutrição. E foi o que também ajudou eu ser conhecida, essa televisão. Eles filmam, começam a distribuir todos os DVDs nas aldeias. A aldeia começa a assistir no centro da aldeia, nas escolas. Assim, quando eu vou passear nas outras aldeias, os meninos começam a me perguntar: “Você que é fulana historiadora?” “Sim. Alguma coisa?” E começam a perguntar: “Eu tenho dúvida disso” e eu começo a contar e assim eu fui compartilhando todo o meu conhecimento e até hoje eu sou conhecida no Xingu.
P/2 – Beleza! Muito bom!Recolher