Projeto Conte Sua História
Depoimento de Rodrigo Oliveira
Entrevistado por Carol Margiotti
São Paulo, 24 de abril de 2019
PCSH – HV – 769
_ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/editado por Paulo Rodrigues Ferreira
R – É nóis!
P/1 – ‘Tamu’ junto! Então, Rodrigo, bom dia! Muito obrigada por ter vindo aqui hoje e, para começar, seu nome completo.
R – Rodrigo Santos Oliveira.
P/1 – O local e a data do seu nascimento.
R – São Paulo, 22 de julho de 1980.
P/1 – E você sabe por que seus pais lhe deram esse nome, Rodrigo?
R – Não. Se eu não me engano, tinha algum personagem ou ator famoso na época, e daí o Rodrigo.
P/1 – E eles contavam sobre como foi o dia do seu nascimento?
R – Tem uma história que eu adoro que, na época, não tinha ultrassom. Ou pelo menos, não tão preciso como é hoje. Então, se descobria o sexo da criança no nascimento. E aí eu ouvi já, muitas vezes, a história do meu pai, quando foi ligar para o meu tio contando que era um menino e começou a chorar, porque ele tinha uma menina, já, minha irmã, Patrícia, sete anos mais velha e o sonho dele... Ele sempre falou que o sonho da vida dele era ter um casal de filhos. Mais do que ter uma casa, mais do que ser bem-sucedido, ele falava que quando via um casal com um casal de filhos, ele falava: “Uau, era isso que eu queria”. Essa história: (risos) ele não conseguir contar para o meu tio, meu padrinho, tio Gordo, saudoso, enfim.
P/1 – E falando nos seus pais, quais os nomes deles?
R – José Oliveira de Almeida e Maria de Lourdes Santos Oliveira.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco sobre eles.
R – Meus pais pernambucanos, sertanejos lá do interior do estado, meu pai de Mulungu, um vilarejo de Sanharó, e minha mãe de Socorro, um vilarejo de Alagoinha. Ambos retirantes, mas meu pai veio para São Paulo primeiro, de uma família muito pobre, de 14 irmãos; então veio para aqui já homem, mas com pouquíssima formação. Teve toda aquela figura do flagelo da seca, é a história dos meus pais, não é? Mas meu pai, especificamente, veio para São Paulo - depois de mais dois irmãos que já estavam aqui - e aí trabalhou com feira, metalúrgica, fundição, malharia e, numa das voltas a Pernambuco, quando estava visitando a família, conheceu minha mãe. Namoraram quase dois anos por carta, voltou, se casaram, aí vieram juntos. Minha mãe costureira, meu pai ainda estava na malharia quando eles se casaram, até que surgiu a oportunidade de começar com uma Casa do Norte e aí foi que a história da família começou a se transformar. Não só da nossa família, do nosso núcleo, mas da grande família, porque logo depois do meu pai também vieram outros irmãos, até o ponto em que a maioria deles estava vivendo em São Paulo e, dessa maioria, a quase totalidade empreendendo nesse negócio das Casas do Norte, dos bares.
P/1 – Mas você sabe como foi a vinda para cá, como foi esse momento da decisão, quem os esperava aqui?
R – Na verdade, não havia muita escolha. Ou era ficar e viver no flagelo, porque havia pouco recurso, ou então vir para o Sul. Era o caminho natural. Antes do meu pai, outros dois irmãos já tinham vindo e aí meu pai, com pouquíssimo recurso, inclusive nenhuma ou quase nenhuma formação escolar, deixou o pouquíssimo que tinha lá e veio com coragem. Poucas roupas, inclusive. E a primeira parada dele foi numa fábrica de laticínios, onde um dos irmãos trabalhava. Ele chegou a morar lá por um curto espaço de tempo, logo depois foi trabalhar na feira e aí depois foi fundição, metalúrgica, até que começaram a malharia.
P/1 – E aqui em São Paulo eles foram morar onde?
R – Acho que a primeira parada foi Água Fria, se não me engano, mas sei que ele passou um tempo na Móoca, acho que quando trabalhava na fundição, mas grande parte da nossa história na Zona Norte de São Paulo: Água Fria, Mandaqui, depois Vila Sabrina, Vila Medeiros, tudo girou nessa parte da cidade.
P/1 – Você pode descrever como eles são? Tanto fisicamente, quanto de personalidade?
R – Claro! Começar pelo meu pai de novo, era um sertanejo típico, muito duro, forjado ali no sol do sertão. Muito correto, íntegro, uma das pessoas mais generosas e desprendidas, materialmente, que eu conheci. Acho meu pai um homem muito bonito. Desde as fotos da juventude, até as minhas memórias com ele, de sempre ter orgulho. Nossa, meu pai é demais! E muito dedicado ao trabalho. Acho que se pegar meu pai e subtrair o pai, só sobra o trabalho, porque talvez tenha sido isso que me levou para o restaurante, porque era a maneira de ficar mais perto dele. E também um tanto cabeça dura, ao ponto de ser avesso a qualquer nova ideia, novo modelo proposto ali nos negócios. Bastante paternalista, assim, quer cuidar de todo mundo. O que mais? Mas, na essência, um cara muito doce, assim. Uma pessoa muito hospitaleira. Acho que é outra coisa que não pode deixar de ser mencionada. E com muito pouco recurso, não é? Tanto econômico e talvez de finesse, digamos assim. Meu pai, para mim, é uma das pessoas que melhor recebe e eu já conheci grandes anfitriões, mas talvez o grande traço do meu pai é o prazer em servir. Como ele fica feliz em acolher e servir as pessoas! Acho que falar da minha mãe, um pouco, agora, é igualmente uma mulher linda, muito forte, batalhadora, fez uma jornada que poucos conseguiriam, para conseguir estudar lá no sertão. Ela saiu de casa para estudar, porque naquele vilarejo não tinha, além do ensino mais básico, como ela continuar estudando. Só que a família não tinha recursos para mandá-la para fora, então ela ia morando de favor, ajudando nas casas, trabalhando em costura. Começou a costurar, se não me engano, com 11 anos de idade, profissionalmente, em máquinas manuais, movidas a pedal e trabalhou muito, mas muito mesmo, para conseguir estudar. Foi, realmente, uma epopeia essa história de tanto trabalho e de favores a pessoas que iam acolhendo-a em outras cidades maiores ali, para que ela estudasse. E quando ela chegou em São Paulo, ela foi terminar o que a gente... Na minha época, o Colegial, que tinha outro nome também quando ela estudava. E terminou grávida da minha irmã ainda. E quase desistiu e meu pai, que tem praticamente nenhuma formação, acho que o Primário, como a gente chamava, incompleto, foi um grande incentivador dela terminar os estudos. E aí trabalhou aqui em São Paulo com costura, sempre em casa, então nossa casa estava sempre cheia de pilhas e pilhas de tecido e de aparas e muitas das roupas que a gente usava, ela que fazia. E uma costureira finíssima, assim, que olhava para um vestido na rua e falava: “Vou fazer isso”. Desenhava, fazia todos os moldes, cortava, costurava, sempre impecável, assim. Eu vi minha mãe costurar muito, muito mesmo. E tem muito dote manual. Sempre foi dada ao artesanato. Então, cada temporada, era uma coisa que ela empreendia. Então, teve um momento em que era artesanato com ráfia e depois frutas em cera e depois pintura em cerâmica e depois, enfim, pelúcia. Teve os momentos, assim. E sempre muito competente em tudo. Então, ela ia fazer cursos e aí começava a aplicar técnica, desenvolver a técnica em casa, e foram algumas vezes. Ela voltou para as escolas, para dar os cursos. Muito sensível, muito fina, muito firme também, muito inteligente, grande anfitriã, também já acolheu muita gente na nossa casa, um monte de primos meus, sobrinhos dela, passaram temporadas na nossa casa, porque estava estabelecida em São Paulo e ela é de uma família de muitos irmãos também, então muitos precisando de apoio também, porque não tem recursos lá. E alguns deles acabaram passando temporadas com a gente lá.
P/1 – Tem alguma roupa que ela tenha feito para você, que você usou em algum momento especial e você lembra muito dessa roupa?
R – Deixa eu ver: não é uma peça específica, mas ela fazia jaquetas e eu lembro de São Paulo ser bem mais fria do que é, então a gente usava bastante. E a gente tinha roupas, calçados muito modestos, mas eu me lembro que eu me sentia o máximo quando estava com essas jaquetas, assim. Eram as minhas grandes peças. Eu falava: “Olha que bacana! Duvido que ninguém tenha uma igual” (risos)
P/1 – E você conheceu muito bem a história dos seus pais. Em que momentos essas histórias eram contadas em casa?
R – Eu acho que a todo momento. Meus pais, enfim, trabalhavam muito e os nossos momentos de lazer eram acho que 99% em casa, quando meu pai chegava mais cedo do trabalho, porventura. A gente não tinha uma rotina de saídas, de passeios. Então, acho que nessa convivência. E também por ter uma família muito grande, não eram raros os encontros de família na nossa casa, na casa de alguns tios e acredito que a maior parte dessas histórias vieram de ouvir meu pai com os tios, minha mãe com os tios e tias, conversando. Muito vem daí.
P/1 – E em casa tinha alguma tradição que seus pais trouxeram de Pernambuco? Tinha, no dia a dia, alguma coisa que não tinha em São Paulo, mas tinha dentro da casa de vocês?
R – Nossa casa em São Paulo era uma casa sertaneja, no que se comia, no que se ouvia, até no dialeto, no sotaque. Então, enfim, comer cuscuz, tapioca, mungunzá, guisados, carne de sol, jabá, que a gente conhece melhor aqui como carne seca. Era uma vivência muito sertaneja, porque era, desde pequeno, viagem ao sertão com eles. Meu pai ainda tem uma propriedade lá, uma pequena fazenda, e não era muito diferente do que eu encontrava lá, tirando a paisagem, o entorno, a própria construção em si, da casa, mas era uma vivência muito parecida.
P/1 – Eu queria que você falasse de um momento em que vocês quatro - seu pai e sua mãe, você e sua irmã - ficavam reunidos. Que memória você tem dos quatro reunidos em casa? Fazendo o quê?
R – Depois do jantar, vendo TV, a gente aguardava ansiosamente a chegada do meu pai, porque ele sempre trazia algum mimo: um iogurte, um achocolatado, um chocolate. E essa era, talvez, a memória mais doce que eu tenho, de família.E os almoços de domingo, também. Mas, no geral, meu pai, de manhã, nos acordava, nos deixava na escola - meu pai ou minha mãe, mas normalmente meu pai - de lá ia trabalhar, depois nos pegava na escola, nos deixava em casa, voltava para trabalhar e, ao longo do dia, era esse o contato com meu pai. Em casa, minha mãe estava sempre trabalhando também, mas sempre atenta, perguntando da lição. Quando eu ia para a rua jogar bola, andar de bicicleta, controlava os horários: “Eita, menino, vai tomar banho. Vai fazer a lição, vai comer”. Essa era a rotina básica, assim, de casa.
P/1 – E alguma vez você acompanhou seu pai, no trabalho dele?
R – Pequeno, eu tenho memória de estar muito pequeno tomando caldo de mocotó e toda vez que eu tomo caldo de mocotó, eu sinto o gosto desse mocotó, dessa casa original, que nem se chamava Mocotó na época. Mas não, quando eu comecei a frequentar o restaurante, já foi para trabalhar, mesmo. Porque eu me oferecia para trabalhar - lavar louça no final de semana - e, a contragosto dele, comecei lá aos 13 anos de idade.
P/1 – E o que seu pai fazia lá?
R – Meu pai, como todas as poucas pessoas que trabalhavam lá, fazia tudo: saía para as compras, chegava, cozinhava, ajudava a servir, limpava, lavava, começava tudo de novo, indefinidamente.
P/1 – Como chamava o restaurante?
R – Bar e Lanches Alcino. Mas acho que sequer fachada tinha, era só na razão social. E aí, trabalhando lá, quando eu comecei a me envolver mais com o negócio, comecei a reorganizar as coisas, pensei: “Precisa de um nome reconhecido”. E as pessoas sempre falavam: “Essa é a Casa do Norte, do senhor José Almeida, a Casa do Norte e falava o nome dele: a Casa do Norte do Mocotó, é o Bar do Mocotó”. Aí eu pensei: “Bar do Mocotó. Não, Bar do Mocotó, não, porque na verdade, e se não for só um bar, não é? E se, de repente, a gente conseguisse fazer um restaurante aqui? Só Mocotó. Mocotó”. E aí ficou. As pessoas estranharam no começo: “Mocotó?” Eu falei: “Mocotó”. Porque caldo de mocotó é a primeira receita servida pelo meu pai, é o que transforma aquela Casa do Norte naquele empório, em um pequeno bar, num lugar com cara de boteco mesmo, num restaurante. A forma desse preparo, dessa receita que vai atraindo gente e vai ficando famosa, e fez o Mocotó ser o que é hoje.
P/1 – Em que momentos seu pai lhe ensinava como preparar, como fazer? Como era passado?
R – Na verdade, eu já aprendi com gente que aprendeu com ele, porque, como ele saía para as compras e ajudava a servir, ele não era o cara que passava mais tempo na cozinha. Então, eu aprendi com a Cida, aprendi com o Pipoca. Foi bastante empírico, mesmo. Mais de observar e perguntar, do que ser realmente tutoreado, assim. Acho que a grande questão é que nem meu pai e talvez nem as pessoas que trabalhavam ali, enxergavam perspectiva para um jovem ter aquilo como profissão, como empreendimento pessoal, não é? Aí, talvez, por isso, nunca levaram muito a sério a minha participação lá.
P/1 – E nessa época... A gente avançou um pouco, mas depois a gente volta. Tem umas perguntas, ainda, da infância, mas já que a gente engatou nessa, vamos continuar um pouco. Ainda no seu começo no restaurante, Rodrigo, tinha algum freguês que estava todo dia lá ou alguém que era uma figura conhecida que frequentava e que pedia, talvez, alguma coisa específica, era sempre aquele prato?
R – Os habitués eram frequentes lá, porque imagina... A gente atendia à comunidade do bairro. A gente não tinha ainda o poder de atração muito além disso, então os rostos, ali, eram muito familiares. Eu acho que a grande maioria da nossa clientela ia quase todo dia lá. E pedidos especiais, coisas assim, acho que não tenho grandes memórias disso, mas eu lembro da sensação de oferecer coisas novas, apresentando coisas que, a princípio, não faziam muito sentido ali como, por exemplo, eu comecei a oferecer sucos, porque a gente tinha cachaça, cerveja e refrigerante. Eu falei: “Pô, mas eu não queria tomar refrigerante quando eu viesse aqui. Por que eu não posso tomar um suco de caju, como eu tomo na casa da minha avó?” E aí eu roubei o liquidificador da minha mãe, de casa, e comecei a comprar frutas, polpas de frutas e tal e comecei a oferecer sucos que foi, para o meu pai, algo ridículo, assim: “Suco, o que é isso? Não tem nem onde fazer”. Arrumei um espaço no balcão, lá, com a gambiarra de uma tomada, no meio das garrafas de refrigerante. Era, realmente, o balcão do estoque, assim, porque era tudo conjugado. E arrumei um cantinho lá, um espacinho na geladeira e comecei a oferecer sucos. E aí deu certo. Começou a um monte de gente vir e tomar um caldo de mocotó, uma mocofava e um suco de graviola, um suco de caju. Legal, isso. Gostei. E aí, até hoje, num processo sem fim, a gente está sempre experimentando alguma coisa nova, que as pessoas falam: “Mas isso aqui?”
P/1 – Mas de onde você tirava essa referência? Talvez, essa luz, o insight de suco? Por que não...
R – Provavelmente de casa. E da vivência no sertão porque, especialmente naquele momento, que era no começo dos anos 90, a gente estava no começo da onda da revalorização da cultura brasileira, de ter orgulho de, sei lá, dançar forró e comer farinha de mandioca, feijão de corda, e não era bonito você chegar na escola na segunda-feira e falar: “Ah, fui comer carne seca”. Não, era legal comer pizza, sabe? Sair para qualquer restaurante. Você não ia falar que foi comer tutu de feijão e nem torresmo. Então eu via, associados à cozinha sertaneja, adjetivos como feio, grosseiro, pesada, pobre, e aí falei: “Pô, mas não é assim, não é?” Eu como na casa dos meus avós, das minhas tias e não é assim, não é grosseiro. É muito simples, muito direto, mas tem uma finesse, tem um conhecimento do produto, importante, que talvez eu não entendesse a complexidade, mas eu sabia que não combinava a ideia que as pessoas tinham da cozinha sertaneja com a minha vivência de cozinha sertaneja. E aí, na busca de encontrar essas conexões dos sabores, o suco foi natural, porque a gente come, a cada viagem para o sertão, caju tirado do pé, umbu tirado do pé, manga, graviola, seriguela, goiaba. E é por isso que a cozinha sertaneja não tem a exuberância, sabe, da cozinha amazônica, ou mesmo da Mata Atlântica, mas é uma cozinha de sabores profundos, de sabores intensos. Eu tenho um amigo que diz... Filho de sertanejos também, um cara chamado Luciano Suassuna: “Onde a terra é mais seca, as raízes são mais profundas”. É isso, você não vai encontrar um sertanejo que não seja visceralmente ligado à sua terra. Imagina, assim como outros milhares de retirantes, meu pai nutria o desejo de voltar para lá. Imagina: a seca, a pobreza, a fome, como esse lugar pode ser tão magnético ao ponto de nunca deixar o sertanejo se distanciar completamente, não é? E foram outras centenas de histórias que a gente vivenciou de clientes, porque a gente atendia, com bastante frequência, a comunidade nordestina. E gente que trabalhou com a gente um tempo e que quando conseguiu fazer seu pé de meia, voltou para lá. Gente que trabalha com a gente hoje ainda, investe lá, vai comprando terras, vai investindo em gado, vai preparando sua casa para voltar. Então, tem uma beleza muito agreste ali, que é preciso sensibilidade para perceber e, não à toa, os nossos melhores cozinheiros, nossos melhores atendentes são sertanejos, porque é gente que tem uma sensibilidade acho que lapidada pela escassez. Porque quando você tem muito pouco, tudo é precioso, não é? E meu pai é um exemplo. Ele percebia: esse feijão não é dessa temporada, está guardado faz dois anos já, por isso que não está bom. O detalhe mais sutil que eu olhava: “Acho que meu pai está doido”. E demorei bastante tempo para entender essa minúcia, assim, da cozinha. E isso somente quando você está lidando com poucos elementos, porque se você está ali, num sem fim de possibilidades, como é que você pode se debruçar em torno de um ingrediente e trabalhar na exaustão até que se consiga tirar dali o melhor? Acho que essa é uma parte da herança sertaneja que ainda se perpetua no Mocotó.
P/1 – Rodrigo, em que momentos vinham essas reflexões sobre essa comida que eu como, que é diferente de tanta gente que mora aqui em São Paulo, é bruta, mas eu não acho bruta? Como vinham essas reflexões e esse distanciamento, mesmo, das outras pessoas em relação ao que era o seu universo ali?
R – Acho que observação. Porque num restaurante... Acredito que essa seja minha grande paixão... O restaurante, mais do que a cozinha, porque especialmente no meu papel de chef de cozinha, que é um dos que eu exerço hoje, eu passo menos tempo na cozinha do que quando eu era só... só, não, mas quando eu era um cozinheiro, dedicadamente um cozinheiro. É esse caráter humano do restaurante que me encanta e, com certeza, isso vem da possibilidade de me relacionar, de me conectar. Por exemplo: minha esposa, Adriana, conheci no restaurante. Alguns dos meus melhores amigos hoje vieram através do restaurante. Minha rede social hoje gira em torno da rede formada pelo restaurante e seus desdobramentos. E te dá uma oportunidade tremenda de observar as pessoas, de interagir. E quando o Mocotó começou a ganhar notoriedade... Digamos que antes disso, a gente tinha um pensamento... Eu digo a gente, porque acabou contagiando algumas pessoas da equipe, mas, basicamente, era eu questionando as coisas que meu pai fazia já há 30 anos, que ele defendia com um argumento muito poderoso: “Faz 30 anos que essa bobônica é assim e é assim que vai ser”. E, realmente, se funcionava por 30 anos, por que fazer diferente? Mas eu tinha muito pouca experiência na época, mas um desejo de fazer melhor um pouco, de deixar o lugar um pouco mais bonito, de fazer a comida um pouco mais gostosa, um pouco mais saudável, um pouco mais bonita também. E aí, quando o Mocotó começou a ganhar alguma notoriedade e a gente viu pessoas diferentes do meio gastronômico chegando para comer, eu percebia o encantamento dessas pessoas com coisas banais, até então, para a gente. Como, por exemplo, uma cumbuca de mocofava. Quando, sei lá, um chef como o Lorrain Soudeaux, francês, um cara que fundou a gastronomia, me ajudou a fundar a gastronomia no Brasil, chegou lá pela primeira vez e comeu tripa de porco e mocofava. E aí eu percebia a atenção dele ao comer e depois ele falava da qualidade do caldo, de como os sabores eram limpos, equilibrados, como tudo que estava ali fazia sentido. Tinha uma carne seca, uma carne defumada, uma carne curada e eu falava: “Caramba, é só mocofava”. (risos) É só mocofava, mas, realmente, tem um universo ali dentro que, para a gente, era tão natural... E eu percebia que não era banal. E aí foi um dos cliques, assim. Falei: “Pô, a gente não precisa reinventar a cozinha sertaneja”. Porque dentro da minha trajetória de dentro, trabalhando no Mocotó, fui fazendo Engenharia Ambiental, depois larguei o curso para fazer Gestão Ambiental, porque tinha um enfoque mais humano do mesmo tema. Acredito que inspirado pelo fervor ambientalista dos anos 90. Eu queria ser, sei lá, meio Indiana Jones, meio e meio Orlando Villas-Bôas, sei lá, ir com o Greenpeace lutar contra baleeiros em alto-mar. Só que no curso, eu percebi que era mais fácil eu trabalhar para a empresa que estava caçando as baleias do que lutar contra a pesca delas. E aí eu conheci Gastronomia, por causa do irmão de uma colega de classe. Olha que caminho torto para chegar até a Gastronomia! Fui fazer Engenharia, larguei, fui fazer Gestão, larguei, só que conheci uma garota, cujo irmão estudava Gastronomia. No primeiro curso de Gastronomia do país, superior, que era aqui em São Paulo, na Anhembi-Morumbi, onde eu fui estudar depois. E aí, quando eu me encontrei com esse mundo, foi um deslumbramento mesmo. Encantamento com o que era esse universo inteiramente desconhecido para mim, porque meus pais não cultivavam esse hábito de comer fora. Não tinham recursos, não tinham conhecimento. E eu, quando entrei na adolescência, comecei a ficar rapaz, também não tinha referências disso. Comer esfiha no Habib’s era, para mim, assim, um grande acontecimento. E foi a mãe de um amigo que me levou lá. Meus pais acho que nunca foram. Por exemplo: ao cinema, mesmo, eu fui pela primeira vez aos 14 anos,16 anos, algo assim, que um amigo me levou, um amigo mais velho, conterrâneo da minha mãe, me levou para assistir a um filme. Então, imagina, já com 21 anos de idade, descobrir esse mundo dos restaurantes. Que era, enfim, tão misterioso e tão vasto para mim, naquele momento, quanto o próprio universo. E aí larguei a Faculdade de novo, larguei Engenharia para fazer Gestão, larguei a Gestão para fazer a Gastronomia. E aí, naquele momento, aprendendo um monte de coisas, claro, com algum ceticismo do meu pai, que não entendia bem o que era aquilo. Aliás, ninguém entendia muito bem o que era aquilo, naquele momento. Quando eu contava que estava fazendo Gastronomia, às vezes as pessoas falavam: “Que legal! É médico do estômago, não é? Vai ser doutor”. (risos) E eu pensava: “Uau, a gente pode reinventar a cozinha sertaneja; fazer carne de sol, suvídicos a baixa temperatura por 24 horas e fazer não sei o quê”. Só que logo no começo, eu percebi que, na verdade, já tinha um produto muito, muito bom, muito especial, só que precisava ser apresentado de um jeito diferente. Não precisava sequer reinventar a roda, mas sim afinar as coisas lá e mostrar isso de um jeito digno, que fizesse justiça ao conteúdo que fizesse juz ao trabalho, esmero, porque imagina que numa cumbuca de mocofava tem a mistura equilibrada de, sei lá, seis ou sete especiarias e um monte de vegetais aromáticos, de fava e um monte de carnes, um cozimento lento e cada um tem o seu momento de estar ali, no final. Cada um também conserva uma textura diferente, um sabor diferente. Então, puxa, é um universo ali, não era pouca coisa. A gente precisava mostrar isso para as pessoas, de um jeito que honrasse, mesmo, todo aquele trabalho, a qualidade daqueles ingredientes, por modestos que fossem. E daí acho que começou o novo momento do Mocotó. Não sem, também, uma dose de ruptura, de propor coisas novas, de misturar influências, enfim, de arriscar. E acho que desse balanço entre tradição e inovação é que surge esse novo momento do Mocotó.
P/1 - Mas antes de você entrar para a Gastronomia, você já era alguém que trabalhava no restaurante. Nunca era uma primeira opção continuar no restaurante? Por que essas andanças? A cozinha nunca foi uma primeira escolha, nessa cabeça de adolescente?
R – Primeiro que minha referência de restaurante era o Mocotó. Não conhecia outros restaurantes. E o Mocotó, realmente, não era inspirador naquele momento. Então, trabalhávamos eu, meu pai e mais três pessoas, um negócio muito modesto, com uma estrutura física, acho que para ser bastante gentil, precária. Por exemplo: nossa cozinha não tinha exaustão. A gente tinha fogões com cara de fogão doméstico, cada um ligado a dois botijões de gás, então tinha dez botijões de gás na cozinha. Era um lugar um tanto insalubre, assim, no geral. Talvez por meu pai saber quão sofrida era essa lida, o quanto ele tinha abdicado para fazer esse negócio, nunca sonhou isso para mim ou minha irmã. Minha irmã foi estudar - ela é sete anos mais velha - então, nesse momento, ela já estava estudando Fisioterapia e o caminho, para mim, era estudar. Eu sempre gostei de estudar e então prestei Faculdade. O primeiro curso foi Relações Públicas, só que prestei um vestibular e fui viajar com meus pais logo depois que saí do colégio, nunca vi se eu passei ou não no curso da Cásper Líbero. E aí tinha pensado primeiro, quando era criança, queria ser veterinário, depois comecei a pensar em Engenharia, talvez Engenharia de Materiais, enfim, mas Gastronomia, sem dúvida, nunca foi desejo de infância, nem sonho, nenhuma possibilidade, assim, tangível.
P/1 – E para além dessa irmã do seu amigo, que lhe falou que existia esse curso, o que foi esse impulso da Gastronomia, na decisão de escolha ainda, para começar?
R – Foi visitar um restaurante de verdade, um grande restaurante. Quando eu entrei no Tordesilhas, da chef Mara Sales, por exemplo, enfim, parece que eu fui para uma realidade paralela. Parecia... Parecia não, aquele não era o meu mundo. E eu amei aquele mundo, sabe? A excelência, a hospitalidade, a dedicação, o perfeccionismo, o gosto das coisas, a sensação, a felicidade das pessoas ali, isso me arrebatou. Eu pensei: “Se eu trabalhar com Gastronomia, eu quero oferecer isso para as pessoas. Eu quero que elas tenham essa sensação. A missão mais básica do restaurante é restaurar”. Com a minha esposa, numa conversa, antes da gente começar a namorar, inclusive, ela me perguntou: “Para que serve um restaurante?” Eu contei uma história, uma resposta comprida, bonita, falei de cultura, da natureza e tal, ela falou: “Bonito, mas não é bem isso, não. O restaurante serve para uma coisa: para fazer com que as pessoas saiam melhores do que entraram”. Olha como isso é poderoso, não é? Que as pessoas saiam melhores do que entraram. Aí eu percebi: é isso mesmo. Primeiro é: todas as pessoas, não é? Não só quem vem comer, mas, especialmente, quem trabalha aqui. E as pessoas que se relacionam também: fornecedores, prestadores de serviço e a comunidade também. Porque não dá para destacar o restaurante do seu entorno. E aí fui além e pensei: “É isso mesmo. Restaurante serve para restaurar, mas não só fisiologicamente. Quem nunca se sentiu transformado por uma boa refeição? Você está num dia pesado, está cansado, problemas, e uma refeição. Vem o acolhimento, lhe transforma emocionalmente também. Mas se a gente for além e for mais bem-sucedido nessa missão, você pode restaurar as pessoas intelectualmente também, fazê-las pensar, questionar sobre o porquê a gente come isso, por que come desse jeito, de onde vem esse produto, por que ele é preparado dessa maneira? Faz sentido comer isso? A gente precisa de 300 gramas de carne a cada refeição? Por que o mundo inteiro come alface, rúcula e não come caruru e espinafre do mato, enfim, azedinha?” Porque é importante o nosso gesto isoladamente, tem mais impacto. Tem o impacto econômico, ecológico, social, religioso até, dependendo da sua crença familiar, claro; como você organiza as suas refeições ali e o que você come. Em que momento você come. E aí parece que o nosso trabalho começou do zero de novo. Aí fazia sentido repensar tudo, não é? Como a gente faz, onde a gente faz, por que a gente faz, com quem a gente faz, para quem a gente faz.
P/1 – E nesse restaurante que você falou que foi, que lhe abriu algumas questões, o que você comeu, você lembra?
R – Barreado. Um prato típico do Sul, onde o lugar mais famoso do barreado, Morretes, eu tive oportunidade de comer com minha mãe também, numa viagem que a gente fez pelo Sul, visitando alambiques, produtores, enfim. E lá comi, estava a chef Mara Sales preparando o seu lindo barreado, porque o preparo é de longas horas. E eu lembro do gosto, do calor do prato, do ritual do serviço. Foi marcante também. Lembro da sobremesa, que tinha chocolate e cupuaçu. O que é isso? Não fazia ideia. Esse gosto ainda me emociona. Já voltei lá algumas vezes, a Mara Sales foi minha professora na Universidade e virou uma grande amiga, foi uma das primeiras chefs a ir ao Mocotó e a se encantar com as coisas lá. Esse restaurante tem uma grande participação na nossa história.
P/1 – Rodrigo, ainda pensando no suco que você começou a introduzir no restaurante e a partir dessas reflexões que começaram a vir, pensando nos ingredientes, onde vocês compravam? Onde vocês pegavam? Encontravam onde?
R – Para o restaurante nordestino, São Paulo tem uma grande benesse, que é uma das maiores Capitais nordestinas, não é? Tem uma presença tão forte dos migrantes que praticamente tudo que você encontra lá, você encontraria aqui sem grande dificuldade. Mas tinha um lugar em especial, dentro da zona cerealista, ali no Brás, rua Paulo Afonso, que abastecia praticamente todas as Casas do Norte de São Paulo. Ele era o grande... Ainda é importante, mas lá era o grande entreposto de produtos e não importava se estava falando de jabá, de fava seca, de farinha de mandioca, de queijo coalho, de inhame, peneira, ali era o lugar.
Lembro de que, na época, a gente ainda tinha que buscar os produtos. Hoje, praticamente, tudo chega até o restaurante, poucas coisas a gente tem que buscar, mas na época, na nossa velha Kombi azul, bastante antiga - não sei dizer o ano, mas era bem antiga - a gente saía, no mínimo, uma vez por semana e uma segunda vez ia se acontecesse alguma coisa extraordinária. Mas, uma vez por semana, ia lá e voltava com a Kombi carregada, assim. E era incrível andar ali naquela calçada, o lugar era fervilhante, tinha muita gente, tinha muita mercadoria circulando, tinha muita diversidade, muitos pequenos distribuidores. Realidade diferente da de hoje, que os pequenos foram sendo comprados e engolidos pelos maiores, mais organizados, e hoje são poucos distribuidores ali. De memória, você imagina que, na época, deveria ter uns 50, 60 e hoje deve ter uns dez grandes e você não vê tanta gente circulando lá mais, porque eles entregam, inclusive para a gente. Mas quando a gente passa por lá tem uma sensação muito diferente daquela época. E dos itens específicos, esses eram e são os nossos principais parceiros. Na parte dos frescos, dos hortifrutis, tudo vem de mais perto. Então, a gente tem hoje um esforço muito grande de encurtar as cadeias. Já há dois anos a gente vem trabalhando com produtores orgânicos, comprando diretamente de cooperativas de produtores individuais e, claro, quanto mais próximo, normalmente mais viável. Para nós tem um filtro importante. A gente não procura pequenos produtores ou médios ou grandes, a gente procura produtores de excelência. A gente se relaciona desde grandes frigoríficos, que estão produzindo gado orgânico, que é uma tarefa tremenda, muito complexa, até pequenos produtores que fazem só cogumelos orgânicos. Quase num sistema de garagem, assim. Acho que está aí uma das forças do restaurante, porque ele permeia muitos estratos do mercado, assim, desde uma grande empresa de químicos, na parte de limpeza e manutenção, até um pequeníssimo produtor de vegetais ou então um grande frigorífico.
P/2 – E de onde vêm esses produtos? De que lugar, região?
R – De todos os lugares. No caso do entreposto, vem, sei lá... Exemplo: fava, da Paraíba; farinha, de Pernambuco; coco, pode vir do Ceará - coco seco. No caso dos orgânicos, pode vir queijo de Amparo; podem vir os vegetais da Cooperapas, no extremo sul de São Paulo, de Parelheiros. É bastante diverso para você manter o restaurante, que é uma realidade diferente de quando você entra no esquema convencional. Você liga para uma pessoa e recebe 90% do que vai usar. No caso de hortifrutis. No caso das coisas secas, você liga para uma outra pessoa e recebe 90% de tudo que você vai comprar. Então, é muito mais fácil. Só que desvirtua a cadeia de alimentos. Porque você perde a conexão com a origem. A gente começou um trabalho, no ano passado, de saber de onde vem nosso produto. E tem hora que você perde, que não tem como, porque você compra de um, no Ceagesp, esse cara compra de outro cara e esse cara compra de um monte de gente e mistura tudo. E então, é impossível, você perdeu, você não sabe se veio do Mato Grosso ou se veio de São Paulo, por exemplo. E hoje, a gente tem rastreabilidade e acredita - a gente não quantificou, não colocou numa tabela - mas talvez 85% de tudo que a gente serve, a gente sabe, exatamente, quem colocou a mão. E quem a gente não sabe, a gente tem pista: isso veio de Minas Gerais, dessa região. A gente não sabe ainda quem é o produtor, mas é de algum desses produtores.
P/1 – E ainda nesse momento da Faculdade, de conhecer outros espaços, como seu pai foi recebendo essas reflexões suas no dia a dia?
R – Super aberto, apoiando muito, incentivando. Só que não. (risos) Exatamente o contrário disso. Ele tem uma resistência tremenda a mudanças e acredito que desses embates é que minhas ideias foram se afinando e sendo colocadas à prova, porque imagina: com pouca experiência, mas com ímpeto muito grande, se não tivesse esse freio do meu pai, com certeza eu teria errado muito mais. Muito, muito mais. E saber que meu pai questionaria ou refutaria a ideia por completo, antes mesmo de perder algum tempo pensando nisso, me fazia desenvolver, ao máximo, qualquer projeto, qualquer ideia, já antevendo os contra-argumentos para, de alguma forma, tentar implementar. Mas, na prática mesmo, o que acontecia, na maior parte das vezes, é que eu fazia escondido e ficava só esperando a bronca. Coisas pequenas, às vezes, como reorganizar a minha primeira praça, a minha primeira grande responsabilidade, que foi cuidar da pia, lavei muita louça. Eu acho que eu podia ter até o título de PiaHD, porque (risos) numa época em que a gente não tinha máquina de lavar, era tudo feito na mão e a gente, naquele momento, lavava tudo junto: cumbucas, talheres, copos. Eu falava: “Pai, a gente não pode separar? A gente coloca os talheres aqui, coloca os copos que não são engordurados, a gente lava ali?” Então ele falava: “Faça isso, não, vai dar mais trabalho”. “Não, pai, mas eu que lavo a louça, posso tentar?” “Não, imagina, não nem tem espaço para colocar as coisas”. “Mas eu organizo”. “Não”. Enfim, fui lá, comprei as bacias novas, comecei a lavar de outro jeito, dali a pouco estava todo mundo lavando daquele jeito, porque via que era muito mais fácil. E, de repente, tirar o cesto de lixo do lado da comida, que estava pronta para ser servida, colocar uma tampa no cesto de lixo também. Enfim, reorganizar, de alguma forma, o espaço, por pura intuição, porque de novo, experiência não tinha nenhuma. E aí, até as grandes intervenções, como as reformas, quando eu esperava que meu pai viajasse para passar um tempo em Pernambuco, eu começava as reformas. Ele não só não podia saber que a gente estava fazendo a reforma, como também a gente precisava de recursos para as reformas. Então, para reformar o restaurante inteiro, sem fechar nenhum dia, como é que você faz? Arrumei um time de malucos, assim, imagina um encanador, um pedreiro, um eletricista... Que tipo de gente toparia trabalhar toda a madrugada e depois arrumar tudo para parecer que nada aconteceu? Porque, quando você faz uma obra, você quebra tudo e arruma tudo, é muito mais rápido, não é? Muito mais lógico. Mas não. A gente tinha que começar a arrumar e depois voltar tudo mais ou menos para o normal, para poder trabalhar no outro dia, porque senão também não teria recurso para bancar a obra. E foi isso. Tem uma pessoa que trabalha lá, Josafá Menino da Silva, no Mocotó, há 38 anos. A gente nunca perde a conta, porque ele começou a trabalhar quando tinha um mês de vida. Aí, no final da primeira grande obra, que foi quando a gente demoliu tudo, reorganizou o espaço, ele me emprestou mil reais para eu terminar a obra. Senão a gente não teria conseguido pagar as coisas. Mil reais. Que, na época, significava um tanto mais do que hoje. Imagina: ele estava lá já há muito mais tempo do que eu e ele me deu esse voto de confiança. Porque beirava o ridículo investir numa Casa do Norte, não é? Você reformar o espaço completamente e comprar equipamentos novos, cadeiras decentes, enfim. Louça, a gente não tinha, por exemplo, pratos, lá. A gente usava cumbucas de plástico. E o único talher que tinha era colher. Tinha, talvez, dois ou três garfos e facas ali, para alguma necessidade. Mas não tinha sequer isso. Colocamos uma coifa na cozinha, é claro. Tiramos aqueles botijões domésticos lá, que era um risco tremendo, assim, depois de vários acidentes. Ou de quase desastres. Conseguimos colocar bateria de gás, profissional, usando o quintal da padaria, que era nossa vizinha, porque não tinha espaço sequer para os botijões na nossa casa. Então, usamos o quintal da padaria. E aí eu percebi que jamais convenceria meu pai. Porque o resultado foi muito bom. Muito modesto, porque era ainda um pequeníssimo passo no sentido de tudo que a gente fez até hoje, mas que já mostrava um caminho. Eu fiquei super empolgado e a casa ficou muito mais bonita, muito mais funcional, muito mais acolhedora. Os clientes perceberam, a equipe percebeu, mas meu pai não deu o braço a torcer. Nunca me elogiou, por exemplo, por nada. E não importa que a gente se livrou de um monte de problemas; por exemplo, de pragas ou de vazamentos ou de coisas assim. Para ele, ele só via, pelo menos para mim, só dizia que tinha sido um monte de dinheiro gasto à toa e que, no final das contas, não ia fazer nenhuma diferença. Esse era o discurso dele. Eu percebi: “Não vou convencer meu pai, mesmo, mas eu tenho a impressão de que esse é o caminho”. E aí já não importava mais ter o reconhecimento ou não do meu pai, porque eu achava que aquilo era a coisa certa a fazer e que era maior do que eu e era maior que meu pai também, porque meu pai era tudo, até então. Mas, naquele momento, eu percebi que era algo maior e que tudo bem se ele não interessava. Talvez ele não tivesse referências para entender. E tinha outra coisa também que eu pensava: talvez eu estivesse errado, mesmo. Talvez ele estivesse certo e a gente só ia saber no final, mas eu queria saber se aquilo ia dar certo ou não.
P/1 – E qual foi o momento em que você percebeu que: “Nossa, não, meu pai deixou para mim e ele está confiando”? Teve esse momento, talvez, de passagem, assim?
R – Não, (risos) de jeito nenhum, mas teve um momento em que eu percebi que aí, sim, eu não era um completo idiota, não é? Tive uma briga com meu pai, ou talvez meu pai brigou comigo, por conta de uma pessoa que trabalhava lá no restaurante, que eu falava que essa pessoa não tinha condições de trabalhar lá, era desrespeitoso, muito, essa pessoa, mas tinha um laço familiar, aí... Mas eu falei: “Pai, não dá, não aceito, não tem como, é desrespeitoso com a equipe e com os clientes. Essa pessoa precisa sair agora”. E aí, nesse embate, eu saí muito magoado e falei: “Está bom. Talvez ele esteja certo, mesmo. Talvez esse seja mesmo o negócio dele, ele sabe melhor do que eu e, como ele diz tanto que eu não sei, eu vou descobrir agora”. Peguei o pouquíssimo dinheiro que eu tinha, escrevi o roteiro numa folha de papel, de caderno, lembro até hoje que caderno era, fiz um roteiro calculando os dias, quilômetros - não tinha GPS na época - eu peguei o mapa do Brasil, um mapão, Guia Quatro Rodas, tracei uma viagem, falei: “Agora eu vou conhecer o Nordeste. Se eu quero fazer a cozinha nordestina, ninguém vai poder dizer mais que eu não conheço esse negócio”. Porque quando você ouve seu pai falando, aliás, todo mundo falando... Ninguém olhava para a cozinha nordestina como algo rico ou com potencial de ter reconhecimento de algo de valor. Eu falei: “Eu vou descobrir se o que eu estou fazendo aqui é ridículo ou se, realmente, tem a ver com o que é o Nordeste”. E aí saí, numa viagem de carro, uma velha Dodge Dakota, sozinho, e rodei, em 50 dias, 10 mil e 500 quilômetros, fazendo ziguezague por mar, montanha, sertão. Fui até o Ceará, visitei feiras, mercados, produtores, cozinheiros, donas de casa, conversei com todo tipo de gente, comi todo tipo de comida e aí, além de aprender muito, de ver muitos produtos, de ter grandes experiências, teve uma coisa que foi determinante, que era: no Nordeste inteiro eu encontrei pouquíssimas pessoas que tinham tanto compromisso com a cozinha nordestina quanto a gente tinha ali na Vila Medeiros, no sertão de São Paulo. E conversando com um outro colega, um italiano, chef do Fasano, chamado Luca Gozzani, ele fala que se sentiu mais italiano fora da Itália, do que ele se sentia lá. E talvez tenha sido isso que aconteceu, não é? Talvez a gente, por ser sertanejo mais apartado do nosso lugar, do nosso contexto, a gente se apegou ainda mais à essência do que é a nossa comida, a nossa tradição, o nosso jeito de ser. E isso foi transformador. Eu voltei e falei: “Não. A gente não está envergonhando a cozinha nordestina”. Porque esse era meu medo, sei lá, de repente entrar alguém e falar: “Você está ofendendo a nossa história, a nossa tradição, o Nordeste”. E voltei convicto de que não, de que a gente estava fazendo um trabalho importante e que estava só começando também, que ainda tinha muito, mas muito para ser feito. E aí, isso também tocou meu pai, essa ausência. E a gente se falava com alguma frequência, não com a facilidade que tem hoje, mas se falava com alguma frequência e, em algum momento, ele falou: “Se você não voltar, eu vou fechar”. E aí voltei e já tinha um outro entendimento da minha relação com meu pai. Nem por isso recebi apoio, também, dele, nem mais espaço. Tive que ir brigando e fazendo as coisas e, enfim, mostrando para ele, também, novas possibilidades. Por exemplo, naquele momento, quando eu comecei, trabalhávamos eu, meu pai e mais três pessoas. E foi assim até o momento em que eu assumi o restaurante. Hoje trabalham 70 pessoas lá. E é assustador mesmo, ver tanta gente e ser, de certa forma, responsável pela condução de tantas pessoas. E a gente movimenta muito material, é muita área, muito equipamento, muita responsabilidade de atender 16 mil pessoas por mês. É assustador e eu entendo que, se é assustador para mim, para o meu pai deve ser melhor fingir que não está acontecendo, do que ter que lidar com essa complexidade toda. Mas meu pai está lá todos os dias, incansável, já não me dá tantas broncas mais, mas ainda também não bateu nas minhas costas e falou: “Até que ficou bonito esse negócio aqui. Até que isso é coisa gostosa”. Eu percebo que ele tem orgulho do Mocotó, do legado do restaurante, do que ele tem construído e a minha sensação é que agora, nesse momento, a gente entendeu como é o jogo. Dá uma impressão de que a gente estava se preparando, sabe, jogando ainda no campeonato amador e que agora, sim, a gente entendeu como é o jogo, sabe as regras, está bem treinado, tem os equipamentos, tem as pessoas e agora a gente vai poder, sabe, fazer cozinha sertaneja e ajudar essa cozinha a crescer. E faz dez anos, pelo menos, que eu ouço: “Nossa, esse é um grande momento do Mocotó. Você tem que aproveitar, porque está no auge agora, tem que fazer...”. Não estamos nem na metade, porque tem um monte de coisas que eu já sei, que eu não sei, e tem um monte de coisas que eu sei que vou descobrir que eu não sei. Por exemplo: carne de sol, um prato emblemático do restaurante, o prato mais pedido desde 2004 - foi quando eu coloquei no cardápio - mas eu nunca estive feliz com a carne de sol. A gente serviu, acho que 30 versões desse prato. Mais ou menos. O número não é longe desse. Mais ou menos 30 versões diferentes e só agora, há dois meses, é que a gente começou a servir uma carne de sol que eu acho que está no caminho da carne de sol que eu sempre sonhei. E foi uma volta tremenda. Ou seja, testamos um monte de coisas, já foi um processo, enfim, maluco e agora, depois de correr o mundo todo, o nosso processo é muito mais parecido com o tradicional, com o que, enfim, a gente faz no sertão. Com extremo controle, com muito mais finesse, com um produto extraordinário, finalizado num equipamento também extraordinário, que chegou há dois meses, por isso que a carne foi possível, uma conjunção de um monte de fatores. Conseguimos o fornecedor certo, aí conseguimos o equipamento certo e tivemos um insight ali, que resolvia uma questão importante de como traduzir um processo que seria impossível por conta da Vigilância Sanitária, para um processo controlado e seguro, tal. E, de repente, agora, a gente serve uma carne de sol que me deixa contente, que não está perfeita, que ainda vai... Mas que falo: “Isso é bom”.
P/1 – Rodrigo, eu vou ter que ir para as perguntas específicas agora, eu acho que a maioria você até já tocou um pouco sobre o que a gente vai lhe perguntar, mas você pode ficar à vontade para desenvolver ou falar: “Já falei”. Tranquilo, tá?
R – Fiquei feliz que você virou a página.
P/1 – Está ruim?
R – Não. É porque são tantas bolinhas...
P/1 – Pois é, e eu tenho que ir na maioria.
R – Foi o que eu pensei: “Será que eu falei demais e a gente ainda está na quarta bolinha”?
P/1 – Ficou um monte ainda. Um monte. Eu estou me segurando aqui, mas bom, nas perguntas específicas agora, só para te avisar, são 11 e 15...
R – Muito bom!
P/1 – Está torcendo para acabar, Rodrigo?
R – De jeito nenhum. Inclusive, vou fazer um convite: a gente podia levar a câmera ou um celular e continuar a entrevista lá no restaurante.
P/1 – Ia ser incrível. Ia ser muito incrível! Mas eu queria que você falasse um pouco que experiência o Mocotó traz para o seu público, que experiência vocês querem que quem frequente, sinta.
R – Acredito que o Mocotó consegue unir coisas que eram impensáveis até pouco tempo, não é? Por exemplo: oferecer uma experiência gastronômica que se costuma chamar de alta gastronomia e ser inclusivo, ao mesmo tempo. De mostrar, também, um menu, uma casa que tem um pé fincado na tradição, mas que tem uma abordagem inovadora em tudo, até no próprio conceito de restaurante. De mostrar, também claramente, o respeito à sua origem, mas sem, em nenhum momento, ignorar o seu contexto, seja ele geográfico, mas também temporal. Porque a gente fala de processos que são feitos há centenas de anos, mas a gente não ignora o dado do momento em que a gente está, não é? Então, acredito eu que o Mocotó se afinou como restaurante por conta do balanço delicado dessas instâncias, sabe? Da tradição, da inovação, da excelência e da inclusividade, da sua origem, do seu lugar, e é isso e fazer isso de uma maneira, também, que não explore a caricatura do Nordeste e do nordestino. Muito pelo contrário. Você nunca vai encontrar um garçom com chapéu de couro, com gibão, nem peneira pendurada no teto. A gente tem as peneiras para escolher feijão na cozinha, porque a gente escolhe à mão, exatamente como minha avó fazia. Foi aprendendo, sabe? Então, a gente cozinha cem quilos de feijão, são cem quilos de feijão escolhidos à mão. É isso. Eu acredito que o Mocotó tem o poder de mostrar que é possível, sabe? Se você quer um restaurante reconhecido internacionalmente, que sirva feijão de corda e carne seca, na Vila Medeiros, é possível. Por que não? Nunca foi um objetivo claro para a gente receber prêmios ou se tornar famoso, mas se tornar, talvez, reconhecível, mais do que reconhecido. Por exemplo: a gente ganhou um prêmio esse ano de melhor restaurante do mundo sem reservas. A gente recebeu outros prêmios internacionais também como Michelin, Fifty Best, mas esse, em especial, me tocou, porque a gente estava falando de um grupo de restaurantes, mundial. Praticamente sem nenhum filtro. Ou seja: qualquer restaurante poderia estar encaixado em alguma dessas categorias. Estavam lá as grandes personalidades da gastronomia no mundo como, por exemplo, Alain Ducasse, Andone Andures, algumas das mentes mais brilhantes do nosso setor. E o Mocotó foi eleito o melhor restaurante do mundo sem reservas. Na final, tinha dois restaurantes da França, um restaurante da Itália e um restaurante da Espanha. E o que me tocou foi, sem a menor ilusão de que o Mocotó seja realmente melhor do que qualquer um desses outros finalistas, numa comparação direta, melhor do que qualquer outro restaurante, porque é muito subjetivo, a gente entende isso, mas o que me tocou foi as pessoas entenderem a nossa linguagem. Elas sabem o que a gente está falando. E pensar que a gente partiu de um momento onde nem o paulistano, nem o brasileiro, entendiam bem o que a gente estava fazendo e propondo. Ver que o mundo entende a nossa linguagem e que a gente não fez concessões, muito pelo contrário, não é? A gente se apegou ao que era mais essencial e Mocotó continua sem ar-condicionado, sem reservas, sem talheres finos, nem louças, nem cristais, e as pessoas entendem isso. Entendem a nossa maneira de expressar excelência. Isso foi especial.
P/1 – E eu queria que você falasse um pouco sobre que aspectos que caracterizam a gastronomia ou as gastronomias da cidade de São Paulo e o que a diferencia de outras cidades.
R – Acho que os mesmos atributos que servem para São Paulo, servem para a sua cozinha. Esse colosso. São Paulo é o mundo. Você encontra o Brasil inteiro aqui, você encontra o mundo inteiro aqui, como as grandes cidades cosmopolitas, mas tem um quê de caos aqui que, por exemplo, você não encontra nas outras grandes cidades gastronômicas do mundo. Você pensa nas grandes cidades para comer: Paris, Nova Iorque, Londres, Lima agora, numa ascensão recente. Só que São Paulo, não só pelo seu porte, uma das maiores cidades do mundo com uma quantidade de gente maior do que muitos países dos mais influentes do mundo, também. Você ver isso condensado numa metrópole, gera um caos, uma efervescência criativa, que é difícil encontrar páreo. Enfim, São Paulo acho que se desenvolveu num ritmo alucinante. Esse movimento gastronômico chegou, não diria, talvez, com atraso, mas com um espaço, com uma diferença de tempo considerável em relação ao Velho Mundo. Mas, de repente, a gente tem alguns dos melhores restaurantes do mundo aqui e tem coisas que só tem aqui, e tremenda diversidade. E eu acho que o momento que a gente vive hoje é justamente de descentralizar a experiência gastronômica. Então, você tem grandes restaurantes - digo no sentido de qualidade - grandes experiências gastronômicas nas beiradas da cidade e de muitos posicionamentos diferentes. Acredito que a gente está num melhor momento gastronômico da história da cidade.
P/1 – E eu queria que você falasse sobre os desafios de se pensar o desenvolvimento sustentável na gastronomia de São Paulo. Você já comentou um pouquinho, mas se pudesse ter essa resposta exclusiva.
R – Vou pedir ajuda para os universitários, vou passar a palavra para Goutha . Eu acredito mesmo que a reversão desse sistema alimentar ou desse sistema maior que nos colocou em rota de colisão com o desastre, inevitavelmente passa pela comida. Pelo que a gente põe no prato. Imagina numa cidade como São Paulo, onde vivem 20 milhões de pessoas, a gente não vai conseguir produzir alimento aqui, no nosso quintal. Pelo menos não o bastante. Mas descentralizar o controle da comida é fundamental. Não pode ficar na mão de cinco companhias de sementes, não pode ficar na mão de cinco, seis distribuidores. A nossa comida não pode ter a cara de cinco, seis produtos diferentes. A gente precisa comer de maneira mais variada, a gente precisa colocar mais atores no meio, a gente precisa plantar no nosso quintal, no nosso telhado, a gente precisa colocar nossa caixinha de abelha lá. A gente precisa arrumar um jeito, também, de produzir cem toneladas de grãos, de maneira mais eficiente, mais respeitosa com o ambiente, com o Homem. E é isso, da junção de todos esses atores, da conscientização de todos esses atores que a gente vai começar a redesenhar um novo sistema. Não vai ser a feirinha de orgânicos que vai fazer isso. Não vai ser a CSA que vai fazer isso, não é o Mocotó. É um processo muito maior, que precisa de engajamento coletivo, porque o desafio é tremendo. A gente tem cada vez mais demandas e cada vez menos recursos. Então, obviamente, essa conta não vai fechar. A gente já tem dificuldade de fazê-la fechar hoje, quando a gente percebe que há comida suficiente para alimentar todo mundo e mesmo assim a gente é incapaz de fazer com que todo mudo coma bem. Mesmo os que não têm deficit calórico de gestão, têm um deficit nutricional tremendo. Não à toa a gente está morrendo pela boca. No momento onde a gente tem mais controle, mais recurso técnico, científico, para controlar colheita, a gente tem mais logística, a gente conhece mais sobre alimentos, a gente nunca esteve tão doente por conta do que a gente come. Nunca. Então, como isso é possível? E, talvez, mais importante ainda é: como a gente começa a consertar isso tudo? Tem pistas importantes aí, tem sinais claros sendo dados, de que a gente não pode ignorar a origem do nosso alimento, nem deixar esse controle ser tirado de nós. A gente precisa atuar. E hoje em dia, o voto que eu vejo mais poderoso está na sua compra. Cada vez que você vai em um supermercado, no mercado, numa feira, quando você monta o seu prato, você está dando um voto ali, no que você acredita. Então, quando você compra um produto ultra processado, como transgênicos alto em gordura, alto em açúcar, alto em sal, o sistema não volta, não volta para aquele sistema. Mas o sistema é dinâmico. Se a gente começar a votar diferente, o sistema se reorganiza. Aí vai de nós fazer o voto certo, não é? Não que seja simples, porque há realidades e realidades. Mas está na hora de começar. A gente não vai resolver as coisas da noite para o dia. Mas acho que a gente começou, na verdade. Tem um movimento crescente disso e a gente tem que persistir.
P/1 – E a última pergunta, dessas específicas, é se você tem alguma sugestão, alguma ideia, algum insight de como se pode ativar ainda mais a cidade de São Paulo como uma cidade criativa da gastronomia.
R – Eu acredito imensamente no poder empreendedor do brasileiro e, em especial, do paulistano, porque o ambiente urbano favorece a criatividade, as conexões, as possibilidades. O tanto de inputs que a gente tem é incomparavelmente superior à de outros contextos, até mesmo de outras grandes cidades. Então, acredito que estimular o empreendedorismo, claro, com formação sim, com aberturas, mas, especialmente, com regras mais justas, para que seja algo possível para esses players menores, para o pequeno empreendedor. Isso é fundamental, porque hoje a bola está numa esfera muito mais alta. Para você começar um negócio de gastronomia, se você for montar um restaurante modesto, você está falando aí num investimento de um milhão de reais. Um restaurante modesto, assim, médio. E a gente precisa fazer mais com muito menos. Então, a gente conseguir criar um sistema que contempla as diferenças de realidade dos pequenos empreendedores. E eu digo isso, praticamente, em todas as esferas, não é? Da tributária, de legislação, sanitária também. Tem discrepâncias muito grandes: exigências que são idênticas para o pequeno empreendedor e para a indústria. E não estou falando de assumir riscos. Estou falando, simplesmente, de olhar para alternativas. Acho que, basicamente, se a gente não atrapalhar o empreendedor, as coisas se resolvem. Você não precisa de muito mais incentivo. Se a gente deixar de atrapalhar, a gente já vai ver um movimento muito mais intenso e produtivo desses pequenos empreendedores que são, por essência, criativos, porque acho que um dos nossos motores de criatividade são as limitações. Se a gente tem poucos produtos e se é um produto que, a princípio, parece ter poucas possibilidades, é daí que surge esse motor, esse ímpeto criativo e não dá para deixar de ver; limitações e dificuldades não faltam na nossa cidade, não é?
P/1 – Como você se sentiu contando sua história hoje para a gente, Rodrigo?
R – Um pouco acanhado no começo, com receio de vocês se entediarem (risos) com essas coisas, mas feliz de poder contar da minha família, falar do meu pai, da minha mãe, da minha irmã. Não falei dos meus filhos, mas sou pai de cinco crianças: Nina, Flor, Pedro, Clara, Alice; das pessoas que trabalham no restaurante; do Josafá, o grande Josafá, que está lá há 38 anos. Orgulho de poder deixar um pequeno registro dessa grande história, que, obviamente, é muito maior do que a minha própria história. Começa em 1973, com meu pai, e já soma 45 anos hoje e espero que some muitos mais de agora em diante.
P/1 – E, para finalizar, quais são seus sonhos?
R – Todos eles? (risos) Eu vou falar dos grandes, então. Eu adoraria ver os meus filhos vivendo numa sociedade muito mais equilibrada e, para mim, não significa que todo mundo viva da mesma maneira, obviamente, mas onde as pessoas vivam com segurança. Certamente, vai demorar muito para que a gente veja todo mundo com a mesma oportunidade, com as mesmas condições, mas talvez o que mais me entristece hoje, pensando no futuro dos meus filhos, é que eles vivam com insegurança, independente das condições financeiras. Mas quando você perde essa sensação de tranquilidade, acredito que importa muito menos o que você tem, o que você come. No final, está todo mundo vivendo o mesmo problema. Então, o meu sonho é que os meus filhos e essa nova geração que está aí já esteja vivendo e ajudando a construir uma sociedade de mais equilíbrio, a caminho de uma sociedade igualitária, assim. Acho que é isso.
P/1 – Então, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada por ter vindo aqui hoje, foi uma delícia lhe ouvir, foi uma delícia conhecer sua história. Muito obrigada!
R – Obrigado a você, Carol! Adorei!
P/1 – Muito especial! Viva, galera! Foi muito bom!
R – Obrigado!