PCSH_HV755_Eduardo_Goldenberg _ rev
ENTREVISTA DE EDUARDO GOLDENBERG
ENTREVISTADO POR CAROL MARGIOTTI E JOYCE YUMI MATSUNAGA
SÃO PAULO, 12 DE ABRIL DE 2019
PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
ENTREVISTA NÚMERO PCSH_HV755 _ rev.
TRANSCRITA POR SELMA PAIVA
REVISÃO PAULO RODRIGUES FERREIRA
P/1 – Obr...Continuar leitura
PCSH_HV755_Eduardo_Goldenberg
_ rev
ENTREVISTA DE EDUARDO GOLDENBERG
ENTREVISTADO POR CAROL MARGIOTTI E JOYCE YUMI MATSUNAGA
SÃO PAULO, 12 DE ABRIL DE 2019
PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
ENTREVISTA NÚMERO PCSH_HV755
_ rev.
TRANSCRITA POR SELMA PAIVA
REVISÃO PAULO RODRIGUES FERREIRA
P/1 – Obrigada, Eduardo! Bom dia, muito obrigada por estar aqui hoje com a gente e, para começar, seu nome completo.
R – Bom dia! Imagina! Eduardo Braga Goldenberg.
P/1 – O local e a data do seu nascimento.
R – Eu nasci no Rio de Janeiro, na Tijuca, no dia 27 de abril de 1969.
P/1 – E você sabe por que seus pais lhe deram esse nome, Eduardo?
R – Não sei. Nunca perguntei. Você acabou de me dar uma grande ideia. Não sei. Eu sei que tem uma história engraçada com o nome que os meus pais deram aos filhos, porque eu tenho dois irmãos que são Fernando e Cristiano. E o que eu sei é que o Cristiano era para se chamar Gustavo, minha mãe queria F e G, mas meu pai foi registrar e deu Cristiano. Por conta do personagem do Tony Ramos em uma novela, na época, e não seguiu a sequência dela. Mas eu não sei por que Eduardo. Não sei, mas vou perguntar. Você acabou de me dar uma grande ideia.
P/1 – Mas na ordem de nascimento...
R – Eu sou o mais velho. Depois tem Fernando, em 1971 e Cristiano, em 1975.
P/1 – E seus pais contavam para você sobre como foi o dia do seu nascimento?
R – Não contavam muito. Mas quando eu fiz quarenta anos, a minha mãe me deu de presente o meu álbum de bebê e um diariozinho, uma cadernetinha preta - uma espécie de um Moleskini - com o diário do meu primeiro ano de vida. Desde dois dias antes do nascimento, até eu completar um ano, um pouquinho mais de um ano. E aquilo ali, para mim, foi uma coisa a qual eu recorria febrilmente muitas vezes, sabe? Para poder, enfim, saber das coisas, saber como aconteceram as coisas, como as coisas se deram e tal. Mas não, de falar, nunca; assim... Muito, não. Eu sei de histórias que cercam o meu nascimento. Mas, com relação ao nascimento em si, parto, essas coisas assim, não. O meu nascimento é cercado de uma série de histórias, a família sempre contou essa coisa, que parecem lendas até, mas que me marcaram muito, ao longo do tempo. Mas nunca foram de falar muito sobre o nascimento, o dia 27 de abril, não.
P/1 – Mas quais são essas histórias, lendas?
R – Tem uma história, que é do dia 26 de abril, a véspera, parece que eles foram - meus pais - para uma consulta médica de rotina e, enfim, tudo bem, o médico auscultou, fez o que tinha que fazer e a previsão para nascer em maio. Na segunda quinzena de maio, algo assim. E, na noite de 26 para 27, o meu pai tem o que ele chama de visão. Vê um vulto assim, do lado da cama, tal, e que diz a ele que eu nasceria no dia seguinte - que o filho nasceria no dia seguinte. E aí ele não quer ir trabalhar. No dia 27 ele acorda e não quer ir para o trabalho. E minha mãe diz: “Você está impressionado, imagina! Nós fomos ao médico ontem, está tudo bem”. Ele trabalhava na Reduc, que fica em Duque de Caxias, na refinaria da Petrobras, na época. Era longe. Ainda é longe, mas naquela época você ainda tinha mais caminho para fazer. E eu sei que quando ele chega na Reduc, então, convencido pela minha mãe de trabalhar, quando ele chega lá alguém diz: “Volta, porque a bolsa da sua esposa estourou”. Então, de fato, eu nasci no dia 27. Era a visão de um índio, como ele descrevia. Então, isso já é uma lenda que eu acho inacreditável, não é? Contavam muito isso. Uma coisa, inclusive, que foi confusa durante uma grande parte da minha vida, porque eu era tratado quase como um anunciado, sabe? E isso, na minha cabeça, fez confusão muitas vezes. Tipo o enviado, sabe? O escolhido, uma coisa assim. Mas isso todo mundo contava muito.
P/1 – Mas em que momentos que essa história era contada?
R – Eu acho que na minha mais remota lembrança já tem essa história, de ouvir. Porque era isso: tias, a família inteira: “Nossa, a história do Isaac com o Dudu”, que era como eu era chamado, não é? Era Dudu. Porque depois, muitos anos depois, não sei te precisar quando, o meu pai começa com manifestações mediúnicas, a incorporar um caboclo, que diz que justamente foi ele que apareceu para o meu pai, para anunciar o meu nascimento. Então você veja a maluquice, a doideira que é isso na cabeça de uma criança, ouvir isso. É isso.
P/1 – E nesse diário que sua mãe lhe deu tem alguma frase ou algum acontecimento que ela narra que tenha sido bom você descobrir?
R – Não sei se tem algo específico, uma frase, uma coisa assim, mas tem uma coisa que é muito constante na narrativa, no dia a dia, e que tem muito a ver com a memória que eu guardo da minha infância, da primeira, segunda fase da infância, que é uma coisa de estar sempre muito cercado de gente, das mulheres da família. Sempre falo que nasci e cresci no meio do matriarcado. As mulheres da família: minha bisavó, a irmã da minha bisavó, minhas avós. Então, isso está muito constante, o tempo inteiro. Visitei hoje, fui visitar, minha bisavó veio, minha tia veio. Então, tem sempre uma narrativa que deixa muito explícito o quanto eu sempre estive muito cercado, não é? Porque da minha avó, parte da mãe, eu fui o primeiro neto, não é? Minha mãe é filha única. Então, tinha uma coisa de ser isso, o primeiro, tal. Não tem nada que eu consiga me lembrar, de nada que marque, uma frase, mas essa constância de mulheres, das mais velhas, das tias e tudo. Muito constante.
P/1 – Eu queria que você falasse sobre seus pais, os nomes deles, o que eles faziam, como eles eram...
R – Meu pai chama Isaac Goldenberg, filho de (Oizer?) Goldenberg e Elisa Goldenberg. Judeus. Meu avô veio fugido de Odessa para o Brasil, fugindo da guerra. Meu pai foi criado no bairro do Rio Comprido, na Rua Campos da Paz. Tenho um avô até que, há alguns anos, estive lá com ele, para ir na vila onde eles moraram. Meu pai tem uma frase que - esta sim - não está no diário, mas uma frase que marcou muito, a vida inteira eu escutei, que era assim: “Você, quando nasceu, eu e sua mãe pagávamos mais de aluguel do que ganhávamos de salário”. Então, isso sempre me marcou muito no quesito da vida deles, da dificuldade deles de criar uma criança, não é? Três, depois. Meu pai era o filho mais novo dos meus avôs paternos, tinha um irmão, Léo, que ainda é vivo, e minha mãe, Maria Florinda Braga Goldenberg, filha do meu avô, Mílton, e da minha avó, Matilde, que tem o mesmo nome da minha bisavó. Eu sei te dizer que o meu pai estudava no Instituto Lafaiete, um colégio tradicionalíssimo na Tijuca, hoje é ocupado pela Fundação Bradesco. Não existe mais Instituto Lafaiete. E minha mãe estudava no Instituto de Educação, escola de normalista, uma coisa muito retratada numa série que teve na Globo - Anos Dourados. Ela, na escola de normalista;
ele, no Lafaiete. E começaram a namorar muito novos, não é? Acho que minha mãe tinha quatorze anos, uma coisa assim. E ela deu aula muito tempo e meu pai, quando eu nasci, trabalhava na Reduc, na Brigada de Incêndio. O trabalho dele era ficar dentro de um tanque com água por aqui, com uma mangueira, resfriando o tanque da Reduc. Depois, abriu prova para a Petrobrás e ele fez prova, passou e, enfim, aí ele fez carreira na Petrobrás. Mas quando eu era pequeno, era isso: ela dava aulas e acho que parou quando eu nasci, e ele trabalhava na Reduc. A formação dele é Química. Ele é formado em Química.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Sei como eles se conheceram. Se conheceram numa festa. Meu pai foi de penetra nessa festa, com meu padrinho, Mauro. Eles foram de penetra e, na festa, ele conheceu minha mãe. Meu pai conta. Tem uma história até que eu escrevi. Eu tenho um blog, sabe? Hoje eu escrevo muito pouco nele, mas eu contei muitas coisas, muitas memórias no blog. E uma história que eu gosto muito é essa que eu conto, o relato que eu faço, a fantasia que eu criei do dia em que eles se conheceram, que ele conta que a minha mãe vinha descendo uma escada nessa festa e diz ele que chegou para o Mauro - meu padrinho, que viria a ser meu padrinho, não é? - e disse: “Vou casar com essa mulher”. Criou toda uma história para contar isso e tal, mas foi assim que se conheceram e passaram um dobrado quando namoravam, porque minha mãe não é judia e meu avós, pais do meu pai, não aprovavam muito, vamos dizer assim, ele namorar uma “gói”, não é? E eu sei que é isso: enfrentaram aqueles reveses todos daquele período de uma família rejeitando a namorada dele e tal, mas passaram por cima disso tudo e casaram num dia de dilúvio, também é um relato que eles fazem que me choca sempre, assim. Foi um dia como agora, que o Rio passou por uma tragédia de chuva, mas parece que foi um dia como esse. A casa era na Urca, onde estavam lá os meus avós paternos. Acho que em meio a inevitabilidade, casaram, não tinha mais o que fazer. Mas se conheceram bem novos, é isso. Acho que minha mãe tinha quatorze e meu pai devia ter dezesseis ou dezessete, porque ele é dois ou três anos mais velho que ela.
P/1 – Sua mãe contava história sobre ela entrando na família?
R – Não. Muitas dessas coisas eu fui descobrir com o tempo, porque eu também sempre fui muito perguntador, não é? Eu sempre estive muito mais na posição que você está hoje. Ficava entrevistando as pessoas, a família, assim. E minha mãe não contava muita coisa até, acho eu, para não ficar colocando na cabeça dos netos essas coisas que eram ruins de fato, com relação a meus avós. Porque depois, com o tempo, também, eu acho que isso foi esfumando, sabe? Eu tenho uma memória dos meus avós, do meu avô, por exemplo, de um homem muito terno, que não combina com esse cara, não é? Já minha avó não, é mais durona e tal, mas uma coisa que era normal na época, que era cultural na época. Era uma pessoa que vinha para quebrar uma tradição de família, não é? Inclusive, havia uma dicotomia ali dentro, porque meu tio, irmão do meu pai, mais velho, também começou a namorar uma “gói”, que se converteu. Então, ainda tinha isso, não é? Tinha o mais velho que conseguiu convencer, vamos dizer assim, a “gói” a se converter e então passou a ser uma judia, e minha mãe e meu pai que, sequer, cogitaram isso. Mas ela não falava muito. Ao contrário, ela dizia sempre que o meu pai tinha muito mais mágoa, porque era o cara que enfrentava diariamente isso. E que o papel dela, em algum momento da vida, foi de tentar quebrar isso, não é? “Estamos casados, temos os meninos e então eu preciso que eles estejam com eles”. Então, os relatos que eu tenho são, justamente, no sentido oposto, dela agir como uma pessoa capaz de contemporizar a situação e fazer com que as coisas não tivessem uma ruptura muito abrupta, não é? Eu tenho memória de convívio com eles por muito tempo, férias fora do Rio com eles, com meus avós paternos. E, com o passar do tempo e dos anos, eu já fui sabendo, por que nós íamos - se tinha essa coisa com vocês porque minha mãe não é judia – passar as férias com eles? Então, aí vinham vindo coisas à tona: “É que nós não tínhamos dinheiro para ir nas férias, exatamente, e seu avô nos chamava e nós íamos”. Então, não era exatamente o quadro que em um primeiro momento me contavam. Eu tenho essa lembrança de coisas muito boas.
P/1 – E o que você sabe sobre a história dos seus avós paternos?
R – Então... Isso é uma coisa que eu tenho muita pena, sabe? Muito pouco, porque o meu avô veio sem nenhum documento, não é? O pai do meu pai. Ele veio sem nada. Aquela expressão: “Chegou com uma mão na frente e a outra atrás” é rigorosamente verdade com relação a ele. Ele trabalhou como mascate a vida inteira, não é? Vendendo roupa, inclusive. De casa em casa, sabe? Não tinha comércio. E eu imagino que, seguramente, ele tinha uma história de vida muito rica para contar, mas eu não... Ele morreu e eu não consigo nem te precisar o ano que foi. Eu era um garoto. Eu não tinha ainda o tino que eu tenho hoje - ou de algum tempo para cá tenho - de querer saber das histórias. Então... Ele tem uma fotografia de jovem - foi o que a família encontrou, depois de muito tempo - uma que parece que ele tirou quando desembarcou no Brasil, bem garoto. Então, sei muito pouco, não é? Sei muito pouco. Da minha avó eu sei que a minha avó era de uma família abastada, o pai da minha avó paterna tinha dinheiro aqui no Brasil, no Rio, mas era uma confusão: ela tinha muitos irmãos, eu não os conheci; se conheci, bebê, mas depois brigas, aqueles imbróglios todos, nem sei. Eu sei que chamava-se Iona o pai dela, a mãe chamava-se Ana. Meu avô paterno tinha o pai chamado (Oizer?), o mesmo nome que ele, e Ethel era a mãe. Mas eu não os conheci. Sei muito pouco. Na verdade, muito pouco. Eu tenho muita pena disso, sabe? De ter pouca coisa deles. Eu tenho, recentemente até... Posso até te mostrar depois, descobri em umas coisas que eu ganhei, meu pai me deu e tal, um postal datado de 1988, que o pai do meu pai deu a ele, meu pai, que é a foto do avô do meu pai, que eu não conheci, o (Oizer?). E, no verso, ele coloca: “Com afeto, para meu filho Isaac, foto do seu avô. Extensivo aos bisnetos Eduardo, Fernando e Cristiano”. É uma foto incrível, não é? Uma foto daquelas antigas. Foi a única vez que eu vi o meu bisavô paterno (Oizer?). Então, eu tenho muita dó, porque eu sou muito catador de coisas do passado, assim. De histórias, fragmentos das pessoas. Mas sei muito pouco deles.
P/1 – E eles são nascidos onde?
R – Meu avô é russo. Ah, sim, na verdade, é isso: ele contava que era russo, mas o meu tio tem certeza de que ele é romeno, sabe? Então, a gente também não sabe isso. A gente não sabe, não tem precisão com relação a isso.
P/1 – E a avó paterna?
R – A minha avó eu acho que é brasileira. Mas os pais acho que são poloneses. Iona Gliglich, o sobrenome deles. Ela casou com meu avô e ganhou o nome, não é? Elisa Goldenberg. Mas o nome dos pais dela – Gliglich - acho que poloneses. Mas é isso, eu acho. Nem isso eu consegui saber. Não tive condição, a tempo, de saber.
P/1 – E por parte da mãe?
R – Parte da mãe aí eu sei muita coisa, não é? Que eram as mais próximas, de verdade. A minha avó sempre foi dona de casa, sempre trabalhou fora com coisas, venda de produtos de beleza, mas minha avó era dona de casa - Matilde Eugênio Monteiro de Barros. Casou-se com meu avô, Mílton Montenegro Braga. A família da minha avó, da família da minha mãe, essa eu sei que tem... São histórias muito esparsas, eu não consigo juntar as peças, mas a minha bisavó, que era uma mulher fascinante, eu falo sempre: “É a mulher mais impactante com quem eu me deparei ao longo da vida”. Era a matriarca, sabe? No mais amplo sentido que a palavra possa ter. Aquela mulher juntava a gente. Ela era um fator de juntar gente, mesmo. Ela congregava. As pessoas ficavam em torno dela, ela tinha muitas histórias para contar. Então, tinha coisas... Por exemplo, moleque, que me impressionava: ela guardava um postal da mãe dela, que chamava-se Francisca, que a mãe dela tinha recebido da Princesa Isabel, quando a Princesa Isabel estava na França e a minha tataravó, a Chica, mandava feijão-preto para Paris, para Isabel. Então, tem os postais, estão comigo. Ela agradecendo; ela, inclusive, dizendo: “Estou mandando cinco mil réis” - algo assim – “para agradecer”. “Obrigada pelo feijão-preto”, sabe? Umas coisas assim. E ela tinha um leque de ouro. Ela falava: “Um leque de ouro. Era da Isabel”. Guardava aquilo. Então, tem umas histórias, também, que eu ouço, são coisas que eu falo - sonhos da minha infância - são vários sonhos, sonho do leque das velhas abanando aquilo na sala, tal, contando histórias e histórias. Uma história recorrente é assim: “Nós somos descendentes” – não significa nada - mas elas falavam de boca cheia: “… do Barão de Paraopeba”. E adoravam aquela história. E aí contavam isso, que a Chica era amiga de Isabel. E aí eu sei que o meu bisavô, o marido da minha bisavó Matilde – Eugênio - foi constituinte em 1934, deputado classista, presidente da Guarda Costeira do Brasil. Eles moravam na Gávea, na Rua Marquês de São Vicente, em uma casa gigantesca, que tem uma ou duas fotos dessa casa. Bom, meu avô era um cara influente, assim. Meu bisavô. Meu tataravô. Não, meu bisavô. Ele tem fotos com Getúlio no Catete, era deputado classista. Tem umas histórias que eu não consigo coordenar com um fio, para lhe contar, não é? Mas que são os meus fantasmas, sabe? Os caras que estão no meu imaginário, sempre. Então, não o conheci - o meu bisavô. Mas a minha bisavó, muito. É a presença mais terna que eu tenho na vida. (choro) Eu convivi com ela até ela morrer, em 1981. Portanto, eu tinha doze anos. Eu estou assim porque eu faço cinquenta este ano. Então, as coisas estão mais confusas. A minha bisavó é a mais constante e mais doce lembrança que eu tenho da vida. Ela morava com minha avó. Desde que eu me entendo por gente, eu lembro dela morando com minha avó. Essa é uma coisa curiosa: meus avós por parte da minha mãe - Mílton e Matilde - nunca moraram sozinhos. Moraram sempre com o irmão da minha avó, depois com a mãe da minha avó, depois com a irmã da mãe da minha avó, minha tia Idinha. E, também, sempre foi uma casa muito cheia, sabe? As memórias que eu tenho são sempre essas: casa muito cheia, cheia de gente, cheia de amigos, e tal. Eles moravam numa vila - eu depois mostro a vocês - também tem uma foto que eu acho lindíssima, que eu sempre falo que é minha santíssima trindade. Eu devo ter três anos nessa foto, pirralhinho, sentado do lado da minha mãe, a minha avó ao lado, minha bisavó ao lado da minha avó. As três e eu. Eles moravam em uma vila na Tijuca, uma vila que foi dizimada depois para subir uns prédios, sabe? Na Professor Gabizo ali, com Heitor Beltrão. Naquela região ali. Eu tenho alguma memória dessa vila, não é? Mas são flashes, assim. Não é algo que eu tenha memória viva. Mas dali se mudaram para uma outra vila, que essa existe até hoje, eu vou a esta vila com alguma frequência, como um louco, quase, eu acho, às vezes passo ali naquela vila e paro naquele portão ali. Eu costumo dizer, sempre que vou ali, ver se me vejo lá dentro, sabe? Se vejo o Dudu correndo. Aí morava minha avó, na São Francisco Xavier, 84, casa 4, apartamento 201, que era o segundo andar da casa da dona Neves e o “seu” Camilo. Eles moram, inclusive, até hoje, lá. Eles moravam nessa casa, minha avó Matilde, meu avô Mílton, minha bisavó Matilde e minha tia Idinha. Hilda, que era irmã da minha bisa. 84, a vila. Nós morávamos num apartamento na São Francisco Xavier, número 90. Então, era parede com parede, não é? A vila e o prédio. E o que eu tenho de lembrança é de todos os dias estar nessa vila. Não sei te precisar se é verdade. Memórias de criança são sempre muito fantásticas, não é? Mas a memória que eu tenho é de todos os dias ir para essa vila. E acho que tem algum fundo de verdade, porque minha mãe trabalhava fora nessa época, o meu pai trabalhava fora, então nós chegávamos do colégio e íamos para a casa da minha avó. Da minha bisa. E hoje eu falo sempre assim: aquilo foi, para mim, uma espécie de Sítio do Pica-pau Amarelo, sabe? Era um mundo fantástico. Porque tinha minha bisavó, que fazia absoluta e rigorosamente todas as nossas vontades - as minhas especialmente - porque ela tinha um carinho especial por mim, porque acho que era o mais velho, não é? É o mais velho da minha mãe. Muito grudado, sabe? Uma mulher que mimava, sobretudo... Mimava é um termo que eu não gosto muito, mas ‘nêgo’ fala de mimar, de mimar. Não. Ela me dava amor em estado bruto. Absolutamente. Me dava colo, contava histórias, aquela coisa. Tinha padeiro nessa época e vinha o padeiro de bicicleta todas as tardes. Ela comprava todos os dias Prestígio para mim, chocolate. Já tinha o pão que eu gostava, ela fazia aquelas coisas: pão com manteiga molhado no açúcar, assim, com café e com leite e tal. Uma pessoa que me mimava muito. E nessa casa era isso: o centro absoluto da família. Claro que não é factível, mas na minha cabeça - de segunda a sexta - aquela casa estava lotada de pessoas. (risos) Lotada. Meus avós jogavam carta, tinha sempre gente naquelas mesas jogando. E a vila, nesse período, todas as casas tinham crianças. Então, nós tínhamos dezenas de amigos, vivíamos ali, jogando tudo que você possa imaginar, soltando pipa, pulando amarelinha, jogando bola de meia, bola de gude. Essa é a memória que eu tenho deles: da minha bisa, a Idinha, a irmã dela, minha avó e meu avô. Essa casa era um negócio muito fascinante para mim. Muito fascinante. Eu estou com um filho agora, vai fazer um ano daqui a pouco, está com dez meses. Eu fico sempre: “Que pena!”. Mas, enfim, eu queria que ele tivesse a vivência de infância que eu tive, sabe? Uma coisa que eu falo muito é isso: a gente conversa muito, eu converso com muitas pessoas, então tem muita gente com lembranças ruins da infância, ou: “Ah, minha infância foi ok”. A minha infância foi um negócio inacreditável. Eu acho que foi um período inacreditavelmente bom, sabe? Tenho muita, muita, muita saudade boa desse período. Um período de muito afeto com as personagens todas: minha bisavó teve muitos filhos e então minha avó tinha muitos irmãos e todos se frequentavam... Eu lembro também disso: essa casa sempre lotada e quando eu falo para você das mulheres... Porque mesmo os tios... As imagens mais fortes são das mulheres desses tios. Então, é tia Noêmia, tia Irene, tia Linda, sabe? As mulheres sempre muito... A casa sempre muito cheia, muita festa, muito bom, esse período é um período muito rico na minha vida.
P/1 – Em que momentos você ia para essa casa?
R – Eu acho que todos os dias. Eu acho que eu chegava do colégio e lá ficava. Porque isso foi uma coisa que eu me lembro também: eu lembro da minha mãe, da janela, fazendo um assovio para que nós fossemos para casa. Minha avó nos levava, depois íamos, sozinhos. Porque a janela dos fundos do apartamento do prédio em que nós morávamos dava para a vila. Eu acho que eu ia todos os dias lá. E dormia por muitas vezes lá, também. Eu lembro: tínhamos um quartinho lá, eu e meu irmão - nessa época éramos só nós dois, não é? Eu e Fernando. Depois veio o (Pixam?), mas também ficávamos lá, tínhamos um quartinho, tínhamos duas camas, pinico debaixo da cama, lembro bem disso. Eu acho que eu ia todos os dias lá. Essa é a memória que eu tenho.
P/1 – E já na casa dos avós paternos, em que momentos vocês iam para lá?
R – Então... A minha memória diz que nós íamos lanchar lá todos os domingos. Eu lembro muito disso. Até um dia recente eu fui comentar isso com minha mãe e minha mãe disse: “Não era todo domingo. Era de vez em quando”. Mas eu achava que era todo domingo. Íamos lanchar na casa deles. Morava na Santa Alexandrina, no Rio Comprido também, próximo à Campos da Paz, que é onde meu pai nasceu, não é? Depois mudaram para a Haddock Lobo, na Tijuca também. E eu lembro desses lanches. Muita fartura, é uma coisa de que eu me lembro. Como meu avô passou fome, esse que veio da Rússia, hoje eu faço essa associação: aquela fartura era uma maneira dele negar tudo aquilo a vida inteira. E ele gostava muito que a gente comesse muito e então eu me lembro de falar: “Vô, não aguento mais”. “Não, vai comer mais um, come mais um”. Tinha umas montanhas de brioche, assim, com queijo, com presunto, com queijo e presunto. Ele fazia comer tudo, sabe? E meu avô tinha uma característica que eu herdei direto, que eu acho ótima: tudo ele dizia que o melhor do mundo era dele.
Então ele dizia assim: “Você tem que comer esse pão, porque é o pão da melhor padaria do mundo. É o melhor presunto do mundo, eu botei nesse sanduíche”. Você pensa... Para uma criança, o que era aquilo. Fala: “Meu avô tem tudo dele, o melhor
do mundo”. E eu sou um cara muito ________”. Sabe? Então, vira e mexe, eu falo: “Porque o melhor bairro do mundo é a Tijuca”. Isso é direto, é herança do meu avô - direto, sabe? Eu tenho essa memória de que nós íamos lá todas as semanas. E o meu avô, como morava na Tijuca, nesse período em que eu estava já maiorzinho, começando a sair da infância, vamos dizer, eu o encontrava todos os dias, a caminho da escola. Eu pegava o Metrô para ir para o colégio, ou o ônibus, e eu cruzava com ele na praça. Ele estava jogando damas com os velhinhos na praça, sabe? E eu me lembro sempre: ele me pegava pela mão, botava um dinheiro no meu bolso e ficava falando em ídiche com os amigos, comigo preso pela mão, assim. Mas eu também tenho a memória de que era algo muito bom. Porque os coroas faziam festinha no meu rosto, passavam a mão no meu cabelo. Eu não sabia o que ele falava. Mas era demais aquele som dele falando em ídiche, os amigos falando em ídiche com ele, mas era tudo muito afetuoso também. Então eu via meu avô com mais frequência do que via minha avó. Mas na casa deles nós íamos para esses lanches. Eram os lanches de domingo. E tinha um negócio também que tinha na época, era o Telecatch, que era uma luta em ringue e meu avô adorava aquilo. Tudo armado, mas se falasse para ele que era armado, ele ficava ‘P’ da vida. Ele adorava, torcia para aqueles caras: Fantasma... Aqueles caras que entravam fantasiados para brigar no ringue, aquelas brigas bem homéricas, lançava o cara para o alto, o cara rolava, caía, ele adorava aquilo. Também essa cena é uma cena recorrente, minha, da casa deles.
P/1 – Eles tinham alguma tradição judaica?
R – Se tinha, nós não íamos, não é? Não íamos. O que acontece, uma época, e que eu acho engraçadíssimo, não é? Porque eu fico vendo como a vida vai tecendo teias para provar a você que as suas conexões, às vezes, não são mais fortes do que as suas raízes. Meu pai, que tinha uma justificada antipatia por uma coisa do judaísmo, não é? Porque imagina: se os pais dele rejeitaram minha mãe por conta da minha mãe ser “gói”, a reação natural era essa suposta ojeriza: “Eu não quero”. Mas o que acontece? O que meu pai faz? Nós mudamos para a São Francisco Xavier, 90, ao lado da vila, 84, e ele nos coloca de sócios de um clube chamado Monte Sinai. Um clube judeu. Do lado de casa. O que significa dizer que, nesse período, também todos os meus amigos e as minhas amigas são judeus. E, no mesmo momento em que eu ia muito para a vila, eu ia muito para o clube, para o Monte Sinai, jogar bola, enfim. E tinha uma história, aí sim, uma tradição, de que eu participava sempre que fosse do âmbito familiar: no shabat, na sexta-feira, quando tinha o shabat, a reza do shabat na sinagoga, eu não sei te precisar o número, mas é preciso que haja não sei quantos homens dentro da sinagoga, para começar a reza. Não sei se são dez ou se são quinze, não sei. Mas os coroas do clube davam dinheiro para a meninada, para ficar ali na sinagoga, para dar um tal número e eles começarem a rezar. Então eu assistia aquela cerimônia da sinagoga em troca de dinheiro, os velhos davam: “Toma aqui, eu dou dez reais para cada um, para ficar ali na sinagoga uma hora”. E a gente ficava, não é? Criança. E, às vezes, eu chegava em casa com a marca do tefilin, que é aquela coisa que você põe no braço. Eu, menino, e o meu pai dizia: “O que é isso?” “Fiquei na sinagoga”. Eu tenho trechos da Torá que eu sou capaz de repetir, sem saber o que eu estou falando, mas de tanto assistir aquilo, não é? Eu ia muito a ‘bar mitsvá’, porque todos os meus amigos, quando eles fizeram treze anos, havia o ‘bar mitsvá’. Então, eu fui a dezenas de ‘bar mitsvá’. Você fica vendo, cara: ele botou a gente por acaso sócio do Monte Sinai? Não foi acaso, não é? Assim como a circuncisão. Eu, com poucos dias de vida, fui circuncidado por um rabino. A história que se conta... Eu não tenho nem como correr atrás da veracidade dela, não é? Mas conta meu pai que o pediatra recomendou que eu fizesse a circuncisão e que ele disse: ‘Não tenho dinheiro para fazer essa cirurgia”. E aí meu avô disse: “Eu faço, se for com um rabino”. Então eu, com dias de vida, fui circuncidado numa cerimônia do ‘brit milá lá’ - que é como chama - por um rabino ortodoxo, uma cerimônia ortodoxa. Ganhei um nome: Ben Arzahav é o meu nome de batismo, vamos dizer assim, não sei. Meu nome e sobrenome. Na cerimônia, eu ganhei o nome de Dan Ben Mosh. Ben é filho. Mosh é o nome do meu pai, que foi, também ele, circuncidado. Então, é o filho de Mosh. Então, veja que maluquice, não é? É uma confusão, sabe? Não, porque judeus, seus avós não gostavam da sua mãe, implicavam, mas ao mesmo tempo... “Venha para o Monte Sinai”. E você foi circuncidado. Então, é tudo muito confuso, não é? É um caldeirão confuso, uma ebulição capaz de transformar as coisas em coisas muito interessantes, muito _________, eu acho.
P/1 – E o dinheirinho que você ganhava para somar a esses homens, o que você fazia com ele?
R – Cara, eu acho que eu comprava figurinha, comprava chicletes, sabe? Eu tenho essa coisa. Na época eu tinha muito isso: chiclete com figurinha de jogador de futebol, Ping Pong gigante. Eu acho que é isso: juntava, comprava essas besteiras de criança. Eu não sei o valor, mas era uma besteira. Os caras falavam. Eles iam na quadra de futebol, pegavam a gente e diziam: “Vamos para a sinagoga, toma aqui”. Davam um dinheirinho e ficava todo mundo lá. Nós ficávamos conversando, tinha que botar o quipá, então eu usava o quipá, além de tudo, mas a tradição do judaísmo, com os meus avós, não tinha. Se eles faziam alguma cerimônia em casa, na Páscoa, no Pessach, no Rosh Hashaná, no ano novo judaico, não lembro. Com meus avós, nunca. Mas na minha vida muito, por causa do Monte Sinai. Muita coisa.
P/1 – Eu queria que você falasse como era sua casa na infância. Se você pudesse descrevê-la.
R – Então... Acho que consigo. A casa onde eu nasci, eu não lembro, não é? Que é na rua Barão de Mesquita. Eu sei que ficava do lado do Colégio Militar. Tem uma história maravilhosa que eu tenho, que me lembra minha bisavó de novo. É que eu nasci no dia 27 de abril. O aniversário do Colégio Militar é seis de maio ou nove de maio, comecinho de maio. Ou seja: uma herança da minha bisavó. Minha mãe conta que, como era do lado do Colégio Militar, no dia da festa do Colégio Militar, tradicionalmente tinha tiros de canhão, sabe aquela coisa? Então, nesse dia, minha bisavó, a véspera, ela dormiu lá para ficar em cima de mim ou me cobrir, sei lá, no colo, para que eu não acordasse com os tiros, não é? Uma coisa assim. Também, se é uma lenda, é uma lenda que foi lindamente contada, que a memória que eu tenho é essa. Desse apartamento eu não lembro nada. O primeiro que lembro é na São Francisco Xavier, 90. Porque nós moramos em dois apartamentos nesse prédio: no sexto e no segundo andar. Ambos com a mesmíssima planta, eu me lembro deles perfeitamente. Quer que descreva o apartamento?
P/1 – Sim. Como era isso de morar em dois andares?
R – Porque eles eram inquilinos, não é? No sexto andar, o proprietário deve ter pedido, alguma coisa, e eles mudaram para o segundo andar do mesmo prédio. É isso. O que eu consigo me lembrar é que o primeiro apartamento que meu pai comprou foi na Professor Gabizo. Não sei se é totalmente verdade isso. Ou se ele chegou a comprar o da São Francisco Xavier, eu não consigo lembrar. Mas os dois - tanto no sexto, quanto no segundo - era a mesma planta. Tinha um cachimbo, um corredor grande quando você entrava; o meu quarto ficava do lado do quarto dos meus pais e era um quarto onde dormíamos nós três: eu e o Fernando numa cama, Cristiano num berço. A memória que eu tenho é de 1975. Eu tenho muito vivo isso. Esse apartamento é muito vivo. Tinha uma sala bem grande, que talvez não seja tão grande, mas para mim é uma sala bem grande, com um cachimbinho, assim, também; um corredorzinho que dava na janela que ia para a rua; TV de tubo, aquela TV imensa, com antena. Mas é isso, assim, a memória que eu tenho. A cozinha de azulejos azuis; o banheiro, que ficava em frente ao nosso quarto; eram dois quartos, sala e cozinha. Mas as memórias que eu tenho são da casa da minha avó, sabe? Essa eu desenho, redesenho. A casa da minha avó. Onde morava minha avó e minha bisa. Mas era a casa, a primeira, que eu lembro. Depois, na Professor Gabizo, eu já era mais... Tinha dezesseis, acho.
P/1 – Tudo bem se a gente ainda falar da sua infância?
R – Sim.
P/1 – Ainda sobre essa casa que você, seus irmãos e seus pais ficavam, eu queria que você falasse como era o funcionamento dela: tinha divisão de tarefas? Como era a rotina?
R – Não, não tinha nenhuma divisão de tarefas. Eu tenho uma memória que eu luto muito contra ainda, não é? Porque me foi passada, mas eu tenho uma memória da minha mãe dizer: “Não faça nada em casa”. Uma loucura pensar nisso hoje, assim, mas eu tenho essa memória de ter sempre uma babá ou uma empregada em casa e a preocupação era essa: você tem que brincar e estudar. Então, eu não arrumava minha cama, eu não guardava minhas roupas. Eu tenho essa memória, dela dizer para eu não fazer nada: para eu não arrumar a cama, não me preocupar com louça. Não tem, não tinha, não consigo lembrar isso. Era um serviço que era dela ou da empregada, assim. Eu era o sujeito de, realmente, ficar brincando ou ir para a vila estudar ou sei lá, quando tinha que estudar já no coleginho, tal, mas tarefa em casa, nenhuma. Uma coisa incrível. Que hoje eu luto muito para ter um filho que eu não quero que passe por isso, não é? Que viva nessa realidade. Então, eu fico... Hoje eu luto muito contra, mas é engraçado, assim. Eu me lembro quando tinha alguém, sei lá, uma namorada ou uma mulher com quem eu tenha casado, enfim, assim: “Você não vai arrumar sua cama?” “Me ajuda a arrumar a cama”. Frase que não precisa nem de ajuda, não é? Você tinha que fazer. E eu me tocava e dizia: “Gente, eu não sei fazer, não é?” Tem que aprender depois de muito velho. Mas eu não fui treinado para tal. Não tinha divisão de tarefas. A pergunta sua para mim é quase que de uma outra galáxia, eu não sei o que é isso. De pirralho eu não sei o que é.
P/1 – E você tem alguma lembrança que seja marcante ainda desse período da infância, de vocês cinco juntos?
R – Hum hum.
P/1 – Esse núcleo familiar, de pai, mãe, irmão, juntos.
R – Sim. Muitas memórias, muitas. Nós íamos muito à praia: eu, meus irmãos, meu pai e minha mãe. Tem uma coisa que me marca, assim, porque meu pai é um cara muito metódico com hora, sabe? Então, eu tinha que sair muito cedo para a praia. Muito cedo. Acho que, sei lá, cinco e meia. Para chegar na praia com o sol nascendo, sabe? Isso, para criança, é uma coisa aflitiva, não é? Então, isso é uma coisa que, se puder falar a palavra trauma, que eu não gosto também, mas um trauma que eu tinha era esse: “Puta, amanhã é na praia, cara”. Eu e meus irmãos, assim: “O pai, cinco horas da manhã, ele vai chamar a gente”. Mas eram memórias boas, assim: a gente ia para a praia, nós cinco, sabe? Íamos na praia do Pepino, que hoje ainda é chamada praia do Pepino, é o cantinho de São Conrado, onde caem as asas deltas, sabe? Na época não tinha Lagoa-Barra, então a gente ia pelo Alto da Boa Vista, não é? Alto da Boa Vista/Estrada das Canoas, para cair em São Conrado. E lembro também que parava o carro e andava um pedação, tipo uma picada dentro do mato, para chegar na praia. Incrível! Eu fico vendo como que eu estou velho! Hoje você passa lá e imagina aquelas avenidas com pista, quatro para lá e para cá, mas não tinha isso, não. A gente ia na praia do Pepino, nós cinco; fazíamos algumas viagens de férias - nós cinco também - de carro, era uma curtição o negócio do carro. Meu pai sempre gostou muito de trocar de carro, então tinha uma Brasília, depois tinha uma Variant, tinha um Fusca. Lembro disso, assim. E era divertido passear de carro, não é? Passeava de carro, eu lembro disso: “Vamos passear de carro?” Entrava no carro e ia dar uma volta, ia no Aterro, ia para a praia Vermelha. Nós íamos muito à praia Vermelha, na Urca. Muito. Isso é uma lembrança que meu avô vem à tona, vem à mente, a questão das memórias. Meu avô paterno ia sempre conosco à Urca. E eu ficava admirado como ele pegava cigarras com a mão. Ele pegava uma cigarra na mão e ficava com aquela cigarra, para a gente ver a cigarra cantar na mão dele. Lembro muito disso. Na praia Vermelha. Mas era um programão. Nós cinco fazíamos muito isso. E a coisa que essa é uma marca como ferro na memória era o Maracanã com meu pai, não é? Essa é uma coisa que me alucina nas memórias e, também, tem o trauma do horário. Porque... O que acontece? Eu era criança, criança, criança, eu nunca tinha visto um final de jogo com meu pai. Porque ele saía aos trinta e cinco minutos do segundo tempo, para não pegar tumulto. E aquilo me desesperava, de certa forma. Então, muitas vezes, eu escutei grito de gol descendo a rampa do estádio, em pânico, porque eu não tinha como convencê-lo, não é? Poder de persuasão eu não tinha nem o que dizer, assim: “Bom, se não é para pegar tumulto, por que não espera o jogo acabar e a gente sai depois?”. Mas não, a ansiedade dele era muito maior. A ansiedade associada à loucura com horário: “Eu tenho que chegar em casa antes de não sei que hora”. Então só saía aos trinta e cinco minutos. Não via finais de jogo e, inclusive, tem uma história. Posso te contar uma história que não tem a ver com a pergunta?
P/1 – Sim, claro.
R – Mas é que ela é link direto com isso, que é a seguinte: o meu avô, o pai da minha mãe, Mílton – esse é um dos mitos da família, contado: “O Mílton, em 1950, que horror!” Que era o quê? Meu avô tinha estado na final do Brasil com o Uruguai. Essa era a história que foi contada: ele foi encontrado dois dias depois, ainda bebendo, num bar no Engenho de Dentro, no Engenho Novo. E ele jurou à família que nunca mais poria os pés no Maracanã: “Nunca mais eu piso no Maracanã”. O maior trauma da minha vida, você imagina o que foi aquilo em 1950. E eu também me lembro de pequeno, pequeno, muito pirralho, escutava meu avô contar essa história e ele dizia para mim assim: “Cuidado com o Maracanã” – e ele contava – “eu fui ao jogo com não sei quem”, tal. Então veja bem... Na minha cabeça, o Maracanã era uma espécie de um monstro capaz de, a qualquer momento da vida, mostrar uma surpresa, sabe? Então, eu me lembro de que quando eu ia com meu pai, tinha essa história da hora, mas tudo bem. Quando eu passei a ir sozinho ao estádio e, talvez, com treze anos, treze, quatorze, um pouquinho antes, aquela voz do meu avô ecoava dentro de mim a cada jogo: “Cuidado com o Maracanã”. Então, o que eu... Você veja como a minha personalidade também não é a coisa mais simples do mundo: eu tinha certeza absoluta...Era uma coisa como uma bigorna na minha cabeça, de que eu, algum dia, passaria por um trauma como o do meu avô e eu também não iria mais ao estádio. Então, eu ficava esperando quando seria a minha hora, porque era uma coisa muito impressionante: “Cuidado com o Maracanã. O Maracanã é traidor. Cuidado com o Maracanã”. Aquilo era uma coisa que ficava na minha cabeça. Então, em vários jogos eu dizia: “Será que é hoje que eu vou pela última vez ao estádio?” E teve um jogo do Flamengo, clássico, o gol de barriga do Renato, não é? O Flamengo perde um título para o Fluminense e, naquele dia, eu fiquei até muito tarde no Maracanã. O jogo acabou e eu não ia embora, porque eu fui tomado de uma tristeza tão grande naquele dia, era o ano do centenário do Flamengo, o Flamengo fez cem anos nesse ano e seria o título do Flamengo - o primeiro título daquele ano - e o Flamengo perdeu para um gol de barriga no final do jogo. Então eu falei: “Bom, é hoje. Hoje é o meu último jogo, eu nunca mais venho ao Maracanã”. E fiquei ali: “Que loucura! Que último jogo o quê!”
Enfim, fiquei debatendo comigo mesmo e, claro: “Não vou. Vou continuar vindo ao estádio”. E outra coisa é o seguinte: eu sempre fiquei depois do jogo, sabe? O jogo acabava e eu ficava conversando com os amigos. Quando tinha bar no estádio, ficava bebendo e depois, mais à frente, fui me tocar que eu estava, como um louco, resgatando os minutos que deixei de ver jogo com meu pai, sabe? Então, ficava depois, porque eu dizia: “Eu saí tanto tempo antes, que eu quero recuperar o tempo”. Mas o que acontece? Na Copa do Brasil, de 2014, eu fui ao Maracanã, com a minha mulher, com a Flávia, assistir Uruguai e Colômbia. E veja bem... O Brasil perdeu em 1950 para o Uruguai. Então, naquele dia, eu me lembro disso: a gente estava indo para o Maracanã e eu fui acometido de um troço, se tivesse essas ondas, eu diria: quase mediúnicas, não é? Eu senti demais o meu avô perto, assim. Eu falava: “Cara, meu avô está indo para o Maracanã comigo, para ver o Uruguai”. E eu falava para a minha mulher assim: “Eu vou torcer para a Colômbia como um louco, cara”, para vingar meu avô, sabe? (choro) Aí fui para o estádio - eu e ela -- e o Brasil tinha jogado, se não me engano, com o Chile e vencido nos pênaltis um pouco antes, rodada dupla. Então a gente saiu, foi para o estádio em cima da hora, tinha bebido e tudo, e então eu torci para a Colômbia como um louco nesse jogo. E me lembro de que, quando acabou o jogo e a Colômbia ganhou, com um golaço do James Rodríguez, quando acaba o jogo, eu ligo para a minha mãe chorando muito, muito, dizendo: “Vinguei meu avô”. Minha mulher: “Calma, cara”. Me abanando, assim. Ela achava que eu ia morrer, assim, sabe? Eu falei: “Cara, sessenta e quatro anos depois eu vinguei o velho”, sabe? Então, tinha essa onda dele. Mas as memórias de Maracanã com meu pai são muito ricas, muito ricas. Muito ricas, mesmo. No comecinho, eu ia com meu irmão. Era eu, ele e meu irmão. Meu pai é Vasco, meu avô era Vasco, o pai do meu pai e eu, portanto, nasci Vasco. O filho mais velho: touca, gorro, body Vasco, Vasco, Vasco. Só que tem um episódio, em 1974, fabuloso. Meu pai era muito amigo de um camarada chamado Péricles Barros. Ele era gerente de marketing do jornal O Globo naquela época, sabe? E, a título de curiosidade, é o autor daquele patético hino:
“Ah, meu São João de Deus,
Nosso povo te abraça”.
A música que fizeram para o João Paulo, quando veio ao Brasil, era do Péricles de Barros. Em 1974... Todo ano, nessa época da década de 70, tinha a chegada do Papai Noel, no Maracanã. Ele vinha de helicóptero, o Maracanã era tomado: 200 mil pessoas, 150 mil pessoas, crianças. Para ver o Papai Noel chegar. E em 1974, o meu pai pede ao Péricles que consiga que eu seja uma das crianças no gramado para receber o Papai Noel. E assim lá vou eu. Esse é o momento Forrest Gump na minha vida, total, porque é engraçado. E aí eu estou no gramado e, antes do Papai Noel chegar, tinha um milhão de atividades: Trapalhões, circo, tal, e tinha uma disputa de pênaltis entre Flamengo e Vasco. Entre vários clubes: Flamengo, Vasco, Botafogo, Fluminense, América. Mas nesse dia, a final lá de pênaltis era Flamengo e Vasco. O Flamengo tinha o Zico batendo pênalti e o Vasco tinha o Roberto Dinamite. O Flamengo ganha. O Zico ganha de pênalti e o Maracanã em peso começa a gritar: “Zico, Zico, Zico, Zico”. O Zico me cata no colo e dá uma volta olímpica, sei lá, comigo no colo, correndo, e o Maracanã gritando: “Zico, mesmo, Zico, mesmo, Zico, mesmo”. Daí em diante acabou a minha carreira de Vasco e veio o Flamengo. E o meu pai - de 1974 até 1978... 1978 é o marco, infernalmente, tenta me convencer do meu equívoco, não é? Em 1978 ele me leva para assistir aquela que vem a ser a primeira final da minha vida no Maracanã, que era Flamengo e Vasco. O empate era do Vasco. E ele me leva para o estádio - a mim e ao meu irmão, o Fernando - meu irmão vestido de Vasco e eu não estava de Flamengo porque ele se recusava a me levar de Flamengo. E o mote era esse: “Você, hoje, vai ver a burrada que fez na vida, de mudar para o Flamengo, o Vasco vai ser campeão”. Então, fomos ao jogo e o Flamengo ganhou, com um gol de Rondinelli no final do jogo, gol de cabeça, cruzamento do Zico, de escanteio, gol. E aí, é um outro trauma: quando faz aquele gol, ele não me deixa ficar para comemorar, ele me leva embora para casa e eu pedindo: “Compra a faixa”. Ele não me compra nada. Isso é outra coisa que me marca a infância: todos os Natais, todos, o meu irmão ganhava uniforme completo do Vasco e eu ganhava uma camisa Hering. Uma roupa qualquer. Eu ganhava o uniforme do Flamengo, que até hoje suponho que era ele quem comprava, mas quem me dava era um tio, um avô. Ele, nunca. Ele não me dava camisa do Flamengo. Então, essas memórias de Maracanã com eles, muito rica. Era um passeio que eu amava fazer. Amava. E era um terreno mágico para mim. O Maracanã, a gente passava na roleta, eu dizia para o meu irmão assim: “Aqui pode falar palavrão, hein!”. E a gente entrava xingando todo mundo do nada. Só pelo prazer de falar palavrão. Saía do estádio: “Acabou. Em casa, não. Na casa da sua mãe, não”. Então, o Maracanã também tinha uma coisa lúdica demais, assim.
P/1 – E pensando no jogo, tinha algum ritual que vocês faziam para entrar ou para sair?
R – Não. Tinha as coisas assim: a rigidez do meu pai era assim, imagina com criança! No intervalo ele dizia: “Vamos usar o banheiro”. “Eu não quero fazer xixi”. “Vamos usar o banheiro porque agora, no meio do jogo, não sai, para ir ao banheiro, não sai”. Então, tinha uns ritos, a coisa de comida e bebida, sempre tinha sanduíche da Genial, que era um clássico do Maracanã; mate naqueles galões. Na minha cabeça era um rito: tinha que chegar e tinha que comer um cachorro quente e tinha que tomar um mate. Não com relação a superstição, porque é isso: como eu e meu pai éramos - ele Vasco e eu Flamengo - não como galo de nenhuma espécie de rito. Mas eu lembro de coisas: radinho de pilha... Que coisa... Até hoje eu levo no Maracanã, jurássico, parece um dinossauro entrando no estádio, não é? Os mais garotos olham assim, cara: “O que é essa caixa preta no ouvido do cara?”. Mas eu vou com o radinho até hoje. O radinho é memória clássica desse meu tempo de moleque. E umas almofadinhas que ele levava para sentar, para ver o jogo na arquibancada, que eu lembro delas. Elas eram da Riotur. Que eram umas almofadas que se usava também para ver desfile de escola de samba. Quando ainda era na Presidente Vargas, não é? Aquela arquibancada de madeira, dura, sentava numa almofadinha para ver. Mas não tinha rito de superstição. Não tinha. O que tinha era: saía do estádio e íamos comer sanduíche na rua Barão de Itapagipe, na Genial, que era a marca do sanduíche, do cachorro quente que vendia no estádio, não é? Então, a gente saía do Maracanã e ia para lá. Eu tenho muitas memórias das coisas com meu pai, porque o meu pai é um cara muito metódico, até hoje, e então era tudo muito marcante, não é? Todos os jogos a gente saía cedo, antes do jogo acabar e todos os jogos íamos para o Genial. E então, são coisas que marcam pela constância, mas não rito para ir, não tinha.
P/1 – E ecoava essa ida para ver o jogo? Não sei, você falava com sua mãe depois, sobre como foi o jogo? Como era sua volta para casa e para a vida social em relação ao futebol?
R – Sim. O futebol era essa coisa da vila, não é? Os amigos da vila. Você vê: eu sou capaz, agora, de dizer o nome de todos eles e o time de cada um, porque era uma coisa muito louca, não é? E a gente disputava isso. As resenhas. Elas se estendiam, porque tinha programa de rádio, depois. A gente ficava... Eu me lembro de ouvir a resenha. Chegava do jogo e ficava ouvindo no rádio aquelas resenhas intermináveis.
Que ficava o debate do jogo. No dia seguinte, comprava-se jornal. Era uma coisa que tinha o Jornal de Esportes na época, o jornal era capa cor-de-rosa. Futebol, imagina, é uma coisa que faz parte da costura da minha infância toda, não é? Até porque a gente sempre morou perto do Maracanã e então eu sempre fui a pé. O Maracanã era um vizinho, não é? Sempre tive muita intimidade com o Maracanã, com essa coisa do medo do meu avô, que com o tempo é que ele foi embora. Eu acho que, em 2014, eu enterrei esse mito, com essa vitória da Colômbia sobre o Uruguai. Muito louco isso, não é? E essa sensação de vingança, assim, uma coisa engraçada demais. Mas aí eu acho que a pessoa vai enterrando as coisas mal resolvidas, os traumas, mesmo, as histórias ruins, você vai arrumando desfecho para elas. Acho que, para mim, de 2014, foi isso.
P/1 – Ainda no futebol, vocês tinham um time de rua?
R – Não. A gente jogava bola no Monte Sinai, mas era aquela coisa de pelada na hora, escolhia o time. O que tinha era futebol de botão. Porque, aí, sim, na vila... Essa vila da minha bisavó, a gente tinha uma liga, inclusive. Tinha um jornal, a gente editava um jornal no mimeógrafo, sabe? Cada um tinha o seu time, o meu chamava-se Nova Atlanta, até hoje tem. Cada um tinha um time com o seu nome e eram altas negociações para trocar um botão por outro. Então, o time de botão era o elo com o futebol. Não tinha time de pelada de rua, assim, não tinha.
P/1 – Alguém quer fazer alguma pergunta ainda sobre futebol? Não? Então, seguindo... Se tiver também mais alguma coisa relacionada, você pode ir voltando, tá?
R – Tá. Pode ser que eu lembre mais na frente.
P/1 – É, exatamente. E não tem problema. Não tem problema, mesmo. Pode voltar, pode avançar, para a gente é tranquilo. Eu queria que você falasse da sua primeira memória da escola. Da entrada na escola.
R – Memória ou história que eu ouço? A história que eu ouço, muito boa, que essa é uma que minha mãe adora contar, que é assim: primeiro dia que me levou para a escola, primeiro dia, foi com aquela expectativa assim: “Vai fazer um show, vai chorar horrores”. Que eu acho que é uma coisa que mais as mães têm, não é? “Vai sentir muito minha falta, vai ficar desesperado”. Aí, ela disse que foi me deixando na porta da escola, eu virei e, na boa, entrei. Não tive nenhuma espécie de trauma. Acho que ela ficou meio assim, frustrada, não é? “Meu filho, tchau”. “Tchau, mãe”. E vazei. Agora, a primeira memória que eu tenho é no Colégio Palas, que foi uma escola em que eu estudei durante grande parte da minha vida. O Palas era uma dissidência do Colégio Militar. Eram professores todos militares, mas parece que não eram militares linha dura, não é? A história que eu tenho é essa. Então, os caras saíam para fundar uma escola - o Colégio Palas - e um clássico na Tijuca. Assim... O Colégio Palas tinha duas unidades: na rua José Higino e tinha uma unidade na rua da Cascata, que foi a primeira onde eu estudei. Então, eu tenho essa memória de novo: quem eram as grandes pessoas da escola? As professoras: Elaine, professora de Matemática; Lili... Não, ela era professora de Português; Lili é que é de Matemática. As mulheres da escola, responsáveis pela cantina. As coordenadoras, zeladoras ali das crianças, tal. Essas mulheres todas. Eu não tenho uma memória muito viva, assim, da escola. Eu lembro disso. É um lugar onde eu gostava de ir. E uma passagem que se repetiu algumas vezes na minha memória. Também recentemente, conversando, minha mãe disse: “Eu só esqueci de você uma vez ou duas”. Eu lembro de muitas vezes ficar até mais tarde na escola, porque acho que ela dizia para o meu pai que meu pai ia me buscar, ele achava que era ela, e ninguém ia buscar. Eu ficava lá. Mas também não era ruim, porque ficava com a dona Zezé, tal. Uma memória que me marca demais no colégio, mas já não era mais tão criança, foi o primeiro cigarro que eu fumei na vida, foi na escola. E é uma outra história engraçada, se você me permitir contar, que é do meu pai. Pode?
P/1 – Claro!
R – A minha infância inteira eu escutava assim: “Quando você quiser fumar, fala comigo, que eu te dou o cigarro. Não vai aceitar cigarro de ninguém na rua, porque senão podem dar outra coisa para você fumar”. Então tinha aquele fantasma, também não vou aceitar de ninguém na rua. Até que... Você veja... Eu tinha dezessete anos. Tinha dezesseis para dezessete, foi Copa de 1986. Um grande amigo meu, que é meu amigo até hoje, Marcelo Vidal, me oferece um cigarro: “Ô, Edu, fuma, cara, é bom, fuma um cigarro”. Na escada do colégio, assim. E eu, de fato, fumo e evidentemente fico doidão, não é? Tonto para cacete, mas adorei, uma sensação maravilhosa. E naquele dia eu cheguei em casa e contei para o meu pai: “Pai, eu quero fumar”. Eu estava esperando aquele... “Claro, poxa, toma aqui”. “Quero fumar”. Cara, ele deu um soco na mesa e disse: “Dane-se, poxa. Então, se vira para comprar seu cigarro”. E ele puxou um cigarro assim da carteira, ele fumava muito nessa época, assim, e eu falei: “Vai me oferecer, não é?” Ele fumou e falou: “Agora compra com o seu dinheiro o seu cigarro”. E começou a falar mal do cigarro, que o cigarro mata, que o cigarro faz isso, o cigarro dá aquilo. E aquele cara fumando na minha frente, fumava desbragadamente, fumava três maços, sei lá, de cigarro, por dia, fumava Shelton Lights, mas o fato é que eu comecei a fumar e ele ficava danado quando me via fumando, sabe? Não gostava. É uma coisa louca, não é? “Me conta, me conta”. Eu estava esperando aquele: “Vou comprar, vamos fumar juntos”. Não. Não foi nada disso. Me esculhambou. Memória de colégio, uma muito viva é essa. Mas o colégio era um espaço do qual eu gostava demais, sabe? Eu gostava demais de ir para a escola. Eu me lembro muito de um episódio, em 1982. 1981, 1982. Portanto, eu tinha doze, treze anos. Eu lembro do colégio, os professores na efervescência, assim, por causa da eleição para governador do Rio. A primeira depois de não sei quantos anos, não é? E foi quando eu vi pela primeira vez a figura do Brizola na TV, aquelas coisas, e eu tive um fascínio. Fiquei fascinado por aquele cara. E você vê: com doze, treze anos eu fazia campanha do Brizola na escola. Eu ia com botton, tinha uma faixa escrita Brizola, na cabeça. E eu adorava. Achava que estava participando ativamente da vida democrática do país. E adorava. Essa é uma lembrança que eu tenho, muito. E os professores, a imensa maioria votou no Brizola, naquela eleição. Adoravam, me achavam, assim, muito empolgado, sabe? Na verdade, eu era um dos únicos que iam com aquele negócio na cabeça e tal. E fazia campanha, mesmo. Então eu tinha um entrosamento. Isso é uma característica, muito, da minha infância: eu sempre tive, de determinado momento para frente, não sei dizer com que idade, mas os meus amigos passaram a ser muito mais velhos. Eu me tornei amigo dos professores. Eu tinha um professor com uma história de vida riquíssima, chamado Lélio Rui - era um professor de Química. Foi um cara que me fez ponte com muita coisa, me levava para bar, para ver os caras tocando. Não para beber, inclusive, diga-se de passagem. Mas eu era tipo o mascote da turma. Passei a ser o mascote dos mais velhos, sabe? E o negócio do Brizola, para mim, foi clássico nisso. Aqueles caras, aqueles garotos, são tão loucos por Brizola. Eu era roxo pelo Brizola. E em casa isso não era bom, assim. O Brizola é um agitador, a mulherada da família toda era muito conservadora. Eram todas muito... “Mas, meu filho, Brizola, um agitador?”. Eu adorava e acho até que por uma faceta minha de contestação, que era um clássico meu, que vem inclusive com o negócio do Flamengo - eu ser Flamengo - eu gostei de ser Flamengo acho que por isso. Então, quando eu comecei a perceber que ninguém gostava muito do Brizola, eu falei: “Esse que é o cara”.
P/2 - Foi seu primeiro ídolo, então?
R – Primeiro ídolo, seguramente. Acho que sim, junto com o Zico. Não, acho que o Zico foi o primeiro ídolo. Teve o episódio de 1974, depois teve o gol em 1978, o campeonato mundial em 1981. O
Zico foi meu primeiro ídolo. O Brizola, seguramente, entre os três... Talvez o segundo grande ídolo tenha sido o Brizola.
P/1 – Eu queria que você descrevesse um pouco sobre como foi essa coisa de assumir essa opção pelo Brizola. O que você via e o que lhe encantava no discurso?
R – Eu, muitos anos à frente, conheci o Brizola, não é? Fui conhecer o Brizola, porque tem um episódio engraçado. Eu vou ter que contar a história fragmentada, para ela fazer sentido. Mas em 2000 - no ano 2000, lá se vão dezenove anos - eu vim aqui para São Paulo com um amigo que hoje é... Na época já era, mas hoje é, nacionalmente, reconhecido como um grande músico, um grande compositor, que é o Moacyr Luz. O Moacyr Luz chegou a ser finalista de um festival que a Globo promoveu naquele ano, 2000. Com um samba chamado Eu só quero beber água. E o Moacyr tinha uma galera no Rio, uns amigos de bar e tal, eu fazia parte. E vieram todos para São Paulo, com a camisa Eu só quero beber água, para torcer pelo Moacyr. E aí tem um episódio que é o seguinte: eu, a essa época, já era bastante amigo da Beth Carvalho. E a Beth Carvalho era a cantora escalada pela Globo para fazer o show de encerramento do festival. Quando se apresentassem todos, entrava a Beth Carvalho e depois vinha o resultado final. Sabe o que aconteceu nesse meio tempo? Começou a campanha para prefeitos no Brasil e o Brizola era candidato a prefeito do Rio. E a Beth, como foi ao longo da vida inteira, foi a voz do jingle do Brizola. O jingle era Faz um 12:
“Faz um 12 aí
Faz um 12 aí
Com o Brizola no Rio
Vai voltar a sorrir”
Então, a Beth era escalada para fazer, mas a Beth me ligou tipo três dias antes da final e disse: “Edu, eu estou muito aborrecida”. “Eu estou muito puta”. Para falar a verdade, foi o que ela disse. “O que houve?” “Porque eu estou fazendo o jingle do Brizola, me tiraram do show da Globo, não vai ser mais eu. Vai ser o Jorge Aragão”. “Poxa, como assim?” “Pois é”. E é verdade. Quer dizer: eu soube depois que era verdade, porque quando o Moacyr deu os convites para a gente, para a gente poder entrar, estava assim: Show de encerramento, Beth Carvalho. Estava com um carimbo de X em cima e, do lado, Jorge Aragão. Cara, e aí eu falei para a Beth, de brincadeira, disse: “Cara, eu vou para a final e deixa que lá eu vou te vingar”. Imagina, um arroubo, não é? Um arroubo de um sujeito que é bem a minha cara isso, não é? Para agradar os que eu amo: “Eu vou te vingar”. Só que aí fica aquela coisa na cabeça: “O que eu posso fazer, não é? Eu vou com um boné da campanha do Brizola no bolso e, quem sabe, lá eu apareço com o bonezinho e a Beth vai saber que é para ela”. E muito bem, fomos, eu fui com o boné no bolso e, assim, cara, no primeiro set do festival eu percebi que tinha uma repórter, que era a Renata Celibelli. Ela estava na plateia fazendo entrevista com as pessoas ao vivo, que o festival era ao vivo. Mas eu via, durante as músicas, que ela arregimentava as pessoas, tipo: “Você quer falar? Vem aqui, fica aqui”. Aquelas coisas de TV, não é? E veja bem: eu já tinha uma antipatia absoluta pela Globo, por causa do Brizola, alimentada pelo Brizola, não é? “Essa Globo, inimiga do povo”, tal, aquela coisa do Brizola. E aí eu falei: “Gente, estava tudo armado. Cara, a mulher está chamando as pessoas para fazer entrevista”. Eu cheguei perto e falei: “Renata, eu vim do Rio, faz comigo”. “Ah, está com a camisa do samba, está torcendo para o Moacyr?” “Estou”. “Então fica aqui que eu vou te entrevistar”. Aí eu falei: “É agora”.
P/1 – Nossa!
R – E tem esse vídeo no Youtube com não sei quantas mil visualizações, um negócio que saiu na imprensa no dia seguinte, não é? Eu sei que é o seguinte: ela entrevista uns caras e fala: “Está torcendo para quem?” Quando ela põe o microfone para mim e diz: “E você?”. Eu coloco o boné e grito: “Faz um 12, Brizola”. Ao vivo. Bom, o meu celular estrila na hora, era a Beth, louca, assim: “Você é maluco”, tal, papapa. Só que aí o festival para, eles param o festival, o cara lá no palco, e pedem para que me peguem. Os seguranças vão e me catam, assim: “Fora daqui, vamos embora”. Eu estava com alguns amigos, um deles trabalhava no Ministério Público aqui em São Paulo, falou para os caras: “Vai tirar o cara daqui por quê?” “Não, porque não sei o quê, porque o Talma quer ele fora daqui”. O Roberto Talma parece que dirigia o festival, na época. Tinha um negócio. “O cara quer você fora daqui do festival”. Meu pai ficou ligando, falou: “Eduardo, que merda que tu fizeste? O festival estava um anúncio, há cinco minutos não volta. Está um tumulto aqui”. Bom, o fato é o seguinte: no dia seguinte... O Brizola tinha um site nessa época, que era o www.fazum12.com.br. Quando eu entrei, no dia seguinte, tinha a minha cara gigante na capa do site. Eu já conhecia o Brizola, da Beth ter me apresentado, mas sempre formalmente: “Olha, Eduardo, esse é o Brizola”, tal. Muito bem, nunca mais nada além disso. E tem a minha cara com uma faixa assim: “Deu 12 na Globo”. Aí, cara, eu não aguentei, escrevi para o site um e-mail e falei: “Podem usar a minha imagem, podem usar o meu vídeo” – tinha um videozinho lá, você clicava, aparecia e eu dizia: “Meu nome é tal, eu já conheço o Brizola, sou amigo da Beth Carvalho”. Contei tudo e, no dia seguinte, um negócio impactante demais: meu telefone toca. Eu estava na rua São José, no Centro do Rio, eu nunca vou esquecer esse momento, que foi muito impactante para mim: eu estou caminhando, meu celular toca, eu atendo, é uma mulher e diz: “Eduardo Goldenberg?” “Pois não”. “Só um minutinho, o governador vai falar com você”. Governador, quem? Eu sentei: “Eduardo” – a primeira frase dele foi: “Tu não tens noção do quanto encheu de alegria o peito deste velho”. Cara, eu sentei, era como se eu estivesse falando com meu ídolo absoluto. Brizola. (risos) Eu, muito emocionado, e ele dizendo: “Eu faço questão de lhe cumprimentar pessoalmente, vamos marcar”. Tal, e marcou de me encontrar no dia seguinte, na sede do PDT - à época era na rua Sete de Setembro, hoje é na Praça Tiradentes. E marcou comigo uma hora e eu fui, não é? Cara, você imagina o Brizola me tratando como se eu fosse um... “Goldenberg!” Me apresentou para o partido inteiro: “Esse é o rapaz que fez aquele negócio colossal”. E me convenceu, nessa época, um dia, ficou tentando me convencer muito a me filiar ao PDT. Dizia: “Tu tens coragem, tu teve peito de enfrentar”. Porque tinha isso, não é? Não se podia falar o nome de Brizola na Globo. Brizola era um maldito para a Globo. Ele ficou fascinado e eu dizendo: “Não, eu não tenho vocação para fazer política partidária”. Eu sei que dali em diante, e até o Brizola morrer, não havia evento no Rio que acontecesse com ele, que ele não mandasse me chamar. E ele sempre fazia esse número: me chamava lá e dizia: “Conta aquela história colossal da Globo. Ele é o rapaz daquele negócio colossal”. Ele adorava a história, sabe? Então, eu, se não posso dizer que fui amigo do Brizola, mas fomos próximos. Falávamos com alguma frequência, ele gostava demais... Porque aí ele foi vendo, com o tempo, que, de fato, a gente estava muitas vezes - eu, ele e a Beth, não é? A última vez que eu cruzei, que eu estive com o Brizola foi na casa do Martinho da Vila, por ocasião do lançamento da candidatura dele ao Senado. E você veja que coisa engraçada: eu tenho muitas fotos com o Brizola, ao longo desse tempo todo, e ele, em nenhuma, está olhando para a lente da câmera. Está olhando para baixo, está olhando para o lado, está olhando para cima. Sempre achei que era _______ da casa, não é? Nesse dia, na casa do Martinho, ele cantou, ele bebeu, a gente tomou vinho. Era eu; a minha mulher na época; a Beth; o Brizola, o Lupe; os dois netos do Brizola - Leonel Brizola e o Carlos Daudt, que é o Carlito, era na época Carlito, hoje são Brizola Neto e o Leonel Brizola Neto. O Martinho e a Cléo. E a Martinália chegou uma hora também; a Narimar chegou, a outra filha do Martinho; teve uma roda de samba ali, tal, o Paulinho da Aba estava. E o Brizola, uma hora... Estava o Fernando, que era o fotógrafo que fazia as fotos do Brizola, e o Brizola me chama para tirar uma foto: “Vamos tirar uma foto”. E quando eu estou indo, ele chama o Lupe, fala uma coisa no ouvido do Lupe e o Lupe vai ao Fernando e a gente tira as fotos. Depois eu recebo as fotos e o Brizola está olhando para a lente, não é? E, naquela noite mesmo, eu falei para o Lupe: “O que ele disse?”. “Não, ele disse... Avisa ao Fernando que hoje eu vou olhar”. E eu digo: “Mas por quê?” Porque não é só o Brizola, essas grandes figuras evitam fazer essas fotos, para que as fotos não sejam posteriormente usadas em campanha, o que quer que seja. Então, naquele dia, ele falou: “Hoje eu vou olhar”. É uma foto que eu guardo com o maior amor do mundo. Tem uma que estou eu, o Brizola e a Beth; e outra que estava só eu e ele. Imagina! Uma foto que, para mim, é isso, que ele está olhando, mesmo, sabe? E ele ter tido essa preocupação é uma coisa que me comove de lembrar, assim, dele dizer, não é? Eu não sei se ele lembra que nunca fez olhando, mas esse dia ele falou para o cara que ia fazer. Talvez o Fernando fique não batendo enquanto ele está olhando, não é? Então: “Avisa ao Fernando que eu vou...”. Um cara muito querido, sabe? Imagina, depois eu fiquei... Sou, hoje, amigo dos netos, não é? Tanto do Brizola Neto, menos, mais próximo do Leonel. Teve agora o lançamento do meu livro no Rio. O nome do meu filho é Leonel, em homenagem a ele, evidentemente. Imagina, os netos falam assim... No nosso livro, o Leonel Brizola foi com a esposa e quando me apresentou, disse: “O Edu, seguramente, fora, tirando nós, é o cara que mais ama meu avô, que eu conheço”. O que, possivelmente, é verdade mesmo. Eu tenho em casa... O Júlio Bernardo, que é um cara aqui de São Paulo, um grande amigo meu, me deu um quadro gigante, escrito: “Faz um 12, Brizola”. Feito por um cartazista do Centro de São Paulo. E eu tenho as minhas memórias com o Brizola, fotos, e então tem muita coisa. Eu acho que a maior homenagem que alguém pode dar é o nome, não é? O nome do filho é Leonel. E a Flávia, a minha mulher, é do Paraná, sabe? Então, o sul sempre foi muito Brizola, não é? Ela até conta, quando a gente começou a namorar, a família, aquela coisa: “Rio de Janeiro, cara do Rio de Janeiro?” E ela disse: “Mas é brizolista”. Eu fui imediatamente aceito e aprovado por todo mundo. Mas então, quando nós soubemos que era um menino, não houve nem discussão, não ficamos debatendo qual nome seria. Era evidente que seria Leonel. Eu acho demais. E acho que foi muito emocionante quando o Leonel foi ao lançamento do livro, porque ele pegou o Leonel no colo, não é? E eu falei: “Meu filho, você está no colo do Leonel, neto do Leonel, que é a origem do seu nome”. Uma lembrança ótima, mas você me perguntou o que me cativou no Brizola. Cara, eu não sei lhe falar. Fora ele é um cara de carisma impressionante, não é? Impressionante. E eu acho que a faceta do Brizola é ser popular, sabe? A ligação dele com o povo. Uma coisa que eu não sei nem dizer qual é a origem disso em mim, mas enfim, eu tenho uma sensação de pertencimento ao povo, mesmo, sabe? Embora eu saiba que, desde moleque, eu estou numa parcela privilegiadíssima da população como um todo, mas as coisas que me são caras, as coisas que eu mais amo são genuinamente populares. E o Brizola falava a língua daquilo tudo que eu amava. E uma história, não é? A história da educação. Uma coisa que eu fui ouvindo aquilo das pessoas todas. A relação dele com os professores, com os alunos, a questão do Cieps. Você, ao longo da vida, vai vendo. O Stédile, do MST, fez a primeira escola: “Eu fui alfabetizado numa brizoleta, quando ele foi governador do Sul”. Uma figura incrível, sabe? Muita coisa que me fascina, mas é isso: eu me sentia parte daquilo, sabe? Ele falava para mim, era como eu percebia.
P/1 – A gente estava falando sobre o seu envolvimento com o Brizola e, voltando um pouco ainda para a sua adolescência, você falou que a maioria dos seus professores acabaram votando nele.
R – Sim.
P/1 – Como isso era conversado no seu dia a dia, na escola? Como o tema política vinha no seu dia a dia?
R – Nesse ponto, acho que dei sorte. Porque os meus professores eram muito engajados. A imensa maioria, inclusive, fundou, ajudou a fundar o PT, sabe? Eles eram muito à esquerda. E eu tinha... Especialmente um professor de Literatura, no colégio, chamado Darci. Ele era mineiro, de Ouro Preto. E esse cara era o responsável pelos mais acalorados debates na escola, sobre política. E ele foi, seguramente, o primeiro cara que falou abertamente, para quem quisesse ouvir, sobre a ditadura militar e tortura. Que era um tema que, sinceramente, não fazia parte do meu dia a dia. Não estava em casa, não era pauta em casa, sabe? Inclusive, num passado não muito distante, um amigo disse: “Todo brasileiro, à época da ditadura, que não se envolveu na luta, quando a ditadura era um...”, sei lá, esculhambou. Eu disse: “Eu não tenho porque duvidar, mas meu pai dizia isso, que ele só tinha tempo para trabalhar: ‘Eu vivia para trabalhar, botar comida em casa e cuidar de vocês. Eu não tinha tempo para me envolver com política. Não era que eu não sabia o que estava acontecendo, era que eu não parava para pensar. Minha vida era automática, não é?’” Então, não era pauta em casa, não tinha isso. Não posso falar que meus pais eram de esquerda, porque não eram. Meus avós muito menos, tal. Mas no colégio, sim. No colégio isso era muito falado. E aí o Brizola vai crescendo nesse quesito. Porque o Darci, inclusive, foi um cara que já, àquela época, dizia: “O Brasil tem um momento na história, que é a campanha da legalidade, que o Brizola lidera, do Rio Grande do Sul, que fala sobre aquilo, adiando o golpe militar em alguns anos, tal”. E aquilo me exerce um fascínio muito grande, sabe? Muito grande. E eu, ali, já me interesso por isso. Então, havia debate. Tinha eleição, a gente votou para governador, no colégio. Tinha urna de brincadeira, fazia eleição aqui, a escola me estimulou muito nesse ponto. Muito, mesmo. Depois entrei na faculdade. 1987 eu entro na faculdade. Um período de muita efervescência também, porque estava sendo feita a Constituição, não é? E aí, sim, também, os professores todos de esquerda. Aí vem a primeira eleição para presidente, em 1989, e é isso: a faculdade em peso, a minha turma, professores e tal, todo mundo dividido ali entre Lula; Roberto Freire - veja você, foi parar onde parou; e Brizola. A imensa maioria, Lula. Mas no colégio é isso: o Darci era o cara que mais fomentava. Mas tinha uma professora, de Inglês, chamada Elizabete, muito engajada; o Lélio, muito engajado; o Lélio é fundador do PT. O Lélio, inclusive, em 1985, se não me engano, quando teve o Darci Ribeiro, tentou se eleger, em 1986. E o Moreira Franco ganhou a eleição, infelizmente. Tinha uma galera no colégio que era Gabeira, que era do PV. Tinha o Lisâneas Maciel, do PT, eu não consigo lembrar agora se foi essa eleição. Mas todos de esquerda, eram todos de esquerda.
P/1 – E era um colégio militar?
R – Era uma dissidência do Colégio Militar. Os professores eram todos militares. A imensa maioria. Não eram todos. O Darci não era militar, por exemplo; o Lélio não era militar. Mas eu tinha professores: Coronel Mauro, Coronel Peniche, Coronel Arão, Coronel Nílton Couto, mas eles eram os professores que mais se manifestavam. Aí sim, eram todos não militares e todos de esquerda.
P/1 – E nessa juventude, com você se envolvendo, começando a __________ com esses movimentos políticos, de ter uma consciência crítica, apoiar Brizola, o que era, nessa juventude, o que movia vocês, o que vocês queriam?
R – Eu ia falar que a gente queria mudar o mundo, como aquela música. Não. Eu vou te falar uma coisa, que inclusive é uma coisa que me diferenciava bastante da molecada da minha idade: todos eram muito fascinados com a figura do Lula, sabe? O que eu me lembro era isso. Todo mundo. Eu, não. Já naquela época eu achava que eu era velho, eu já me sentia um velho, porque eu era Brizola, Brizola não era o novo. O Brizola era o Brizola, o Brizola de sempre. Inclusive o Brizola tinha esse discurso: “Dizem que eu mantenho o mesmo discurso, mas os problemas são os mesmos”. Então, eu tinha uma vontade, isso sempre, assim, de batalhar pelos menos favorecidos, sabe? Hoje é uma palavra mais usada, naquela época acho que não me lembro nem de ouvir, mas uma coisa inclusiva, sabe? De botar a molecada na escola, de fazer os garotos estudarem, comer. O negócio do Ciep é uma coisa que eu me lembro que as críticas que eu ouvia, até do pessoal de esquerda, com o Ciep, era um negócio de assistencialismo, criar escola em tempo integral, ficar dando comida. Era isso que eu queria, sabe? Mas tinha isso, os ícones da esquerda, que fascinavam todo mundo: Che Guevara, Fidel, as histórias que a gente... Os pequenos derrotando os grandes, os vilões. Uma batalha por um mundo mais fraterno, mais igualitário, que acho que é uma utopia, mesmo, mas que se você deixar de buscar a utopia, acabou. Deixa de ter graça.
P/1 – E, nesse período, você começou a ter algum tipo de referência musical, literária, que lhe estimulasse a...
R – Sim. Então... Essa é uma coisa que eu falei para você, do Lélio, naquela hora em que eu citei. O Lélio é professor de Química, não é? O Lélio me levava, moleque, não sei precisar o ano, mas havia um bar na Tijuca, chamado Caras e Bocas, sabe? Na rua do Bispo. Que era um bar que o Aldir Blanc frequentava, que hoje é meu amigo, não é? Meu chapa. Eu ia para ver o Aldir. Eu já escutava porque, musicalmente, a minha família era muito musical. E eles gostavam muito de música brasileira. Todo mundo. Eu me lembro, uma coisa que marca demais a minha... Não sei se dá para dizer infância, acho que aquela época era infância, quando você tinha doze anos naquela época, era infância. Hoje em dia já está quase casando, não é? Mas eu me lembro do dia da morte da Elis Regina, por exemplo. A minha casa virou uma filial do velório. Eu lembro perfeitamente. Eu estava fazendo rabiola de pipa no chão da sala da casa dos meus pais, o telefone tocou, eu me lembro da minha mãe atender, minha mãe soltou um ‘O quê?’ tão grande, e já desligou chorando. E foi contando e foi ligando para as pessoas: “Morreu Elis Regina, Elis Regina morreu”. Era de manhã e eu me lembro de ver aquelas coisas chegando, as pessoas chegando, todo mundo ouvindo Elis Regina, os LPs. Então, todo mundo adorava isso, não é? A minha memória de infância era de ouvir em casa João Bosco, Aldir Blanc, Beth Carvalho. Meu pai sempre foi muito alucinado pela Beth e é engraçado, porque eu me torno muito amigo dela depois. O primeiro dia que eu levo a Beth na casa dos meus pais, inclusive, é uma história engraçada, que mais à frente eu te conto. Meu pai quase morreu, no dia em que eu cheguei com a Beth Carvalho em casa. Esses caras todos eram minha referência. Nesse bar, eu ia ver esses caras tocar. O João Bosco aparecia, às vezes, tudo muito misturado, sabe? Porque também eu ia para outros lugares. Eu ia para a casa dos caras, às vezes. E eu era uma espécie de mascote, sabe? Eu era o mais novo daquele pedaço. Quando a vida vai avançando, vou me tornando amigo desse cara, não é? O Lélio morava... Nessa época em que me dava aula, com o Moacyr Luz. Eles dividiam apartamento. E o Moacyr morava, um pouco antes, com o Hélio Delmiro. Imagina, um puta violão brasileiro! Violonista. Então, a vida inteira eu fiquei ouvindo, ouvia muito. A vida inteira eu ouvi muito música brasileira. Muito, muito. Literatura, minha maior piração em Literatura é Nélson Rodrigues. O cara que eu mais li na vida, seguramente. O Nélson tem uma passagem que perguntaram a ele assim: “O que você lê?” “Dostoievski”. “Não, mas mais o quê?” “Não, só leio Dostoievski”. Um (hipergonismo?) rodriguiano absoluto, não é? Que acho que tem um pouco a ver com o meu (hipergonismo?) também. Tentativa de imitá-lo em algumas coisas, as ideias fixas. Acho que o livro do Nélson também eu li, no mínimo, umas dez vezes. Que eu li, reli, li, reli, mas eu não sei se tenho uma referência de Literatura, mas eu sempre li muito. O Aldir, que com o tempo foi se tornando meu amigo, foi um cara que sempre foi me dizendo o que ler, sabe? “Leia isso, leia aquilo”. Uma época, ele mandava muito livro de presente para mim. Eu garoto, assim, ainda, lia as coisas que ele... Não mandava, sugeria, sabe? Que é uma coisa: quando eu era mais garoto, eu via de perto esses caras, que eram os ídolos. E a vida fez com que eu, mais à frente, me tornasse amigo deles. Então, é engraçado isso: também se confunde. Você é amigo do cara que você admira demais, é uma coisa engraçada. Enfim, é uma sensação sempre muito curiosa. Acho que eu me perdi um pouco do que você me perguntou. Mas minhas referências são essas: música brasileira, muito. E conviver com esses caras me proporcionou ver muita coisa, muita história boa, saber de muita história engraçada, ter convivido com coisas muito legais. Muito rico. Nessa área, eu acho muita riqueza.
P/1 – E nesse período de transição, entre a infância e a entrada da adolescência, o que o Eduardo queria ser quando crescesse?
R – Você quer rir? Quando eu era moleque, eu queria ser motorista de táxi. Porque nessa vila que eu estava te contando, na São Francisco Xavier, 84, havia uma família lá que morava, o “seu” Mário Mazzei, era italiano. Ele tinha os filhos: Aurélio, Renato, Ricardo e Marta. Três meninos e uma menina. O “seu” Mário, como todo italiano, lá no Rio, na época, tinha uma banca de jornal e um táxi. Ele tinha um TL. Um táxi com aquele taxímetro das antigas, aquele que você virava, assim. E o “seu” Mário botava as crianças dentro do carro dele, o táxi, quando ele chegava na vila, e ficava andando no táxi, com a gente sentado no colo dele, na direção. Eu achava aquilo muito fascinante e quando me perguntavam: “O que você quer ser quando crescer?” “Motorista de táxi”. Quando eu fiz quarenta anos, um amigo meu, que tem um táxi, o Júnior, me deu de presente, um dia de táxi. Ele me ligou antes, não foi no dia do aniversário: “Vou te dar de presente uma diária. Vai pegar meu carro de manhã e vai dirigir até a noite”. E ele ficou com meu carro, mas você está até vendo pelo que aconteceu aqui, não é? Eu fui chorando do primeiro ao último passageiro. Entravam os caras no carro, eu dizia: “Bom dia”. “Bom dia”. “Tudo bem?” “Tudo bem”. “Está tudo bem?”. “Está. Eu estou, só, emocionado”. E aí contava: “Eu sempre quis ser motorista de táxi”. E o cara: “Então não tem licença?” “Não, não tenho. Não me denuncia, eu não sou motorista de táxi”. Eu dirigi o dia inteiro. E aí, sim, com a coisa da lembrança, eu sempre chamo esses arrancos do passado, assim, de arremessos do passado - eu vou arremessar o passado. Muitos dele eu provoco, sabe, para que as coisas fiquem vivas em mim. E, cara, naquele dia, no táxi, quando eu estava sozinho, indo com o passageiro, eu dizia assim: “’Seu’ Mário, o senhor está comigo, senhor Mário? Eu prometi ao senhor que eu ia ter um táxi, senhor Mário”. E eu chorava no carro. Então, eu queria ser motorista de táxi. Mas profissão e vocação, quando vai chegando o momento de eu fazer o vestibular, que não tinha Enem na época, você prestava vestibular ou para alguma faculdade particular ou fazia a Cesgranrio, que era um vestibular grande, que dava acesso às públicas. Eu tinha muita dúvida naquele momento, que é um momento que você ainda é muito garoto, tinha dezesseis, dezessete anos. Eu já era, a essa época, amigo do Fausto Wolf, que é um cara que eu tenho uma saudade absoluta também, não é? Um dos caras que eu mais gostei de ler e gosto de ler, na vida. Um jornalista maiúsculo, um brasileiro máximo, um cara referência minha de um homem de esquerda, sabe? Eu era muito amigo do Fausto e eu me lembro de que um dia eu fui conversar com ele sobre essa minha angústia. Eu falei: “Eu não sei se eu faço Jornalismo” – minha dúvida era essa – “ou se eu faço Direito”. E ele me convenceu a fazer Direito porque ele disse... Hoje eu acho que é obrigatório você ter a formação para se empregar ou para trabalhar com jornal, Jornalismo, mas na época, ele dizia o seguinte: “Os maiores jornalistas do Brasil nem passaram perto da universidade, da faculdade. Então, faça Direito, porque para advogar você vai precisar de um canudo. Para ser jornalista, você não vai precisar”. E foi o preponderante para eu fazer a opção. Eu fiz prova para a Cesgranrio, não passei, e fiz prova para a PUC e passei em Direito. Então, eu fiz Direito. Mas foi essa. Não sei se é meu vocacional, mas eu tinha muita vontade de ser advogado, para advogar para... Eu tinha esse delírio, não é? ... Quem não tem condição, batalhar por quem não tem condição de defender seus direitos. Ou ser jornalista. Que era isso: eu tinha muito fascínio por aquilo, não é? O Aldir escrevia em jornal; o Sérgio Cabral, pai, escrevia em jornal; o Fausto, Pasquim, escrevia no Jornal do Brasil; o Nélson Rodrigues, quanto tempo de jornal! Então, o Jornalismo me fascinava muito mais pelos personagens do que pelo exercício da profissão em si. E o Fausto foi demais, falou: “Faça Direito, porque você vai precisar. Para advogar, você tem que ter o curso”.
P/1 – E antes da gente falar dessa parte da profissão, antes mesmo até de você entrar na faculdade, você chegou a exercer algum trabalho?
R – Não. Eu estagiei, porque era obrigatório fazer estágio.
P/1 – Isso já na faculdade?
R – Já na faculdade. Trabalhar, antes, não. Eu me lembro que teve uma época em que eu queria ganhar algum dinheiro. Mas não tive condição, eu acho. Eu não parei para pensar, não me dediquei. Não quis, de fato. Achava que queria, mas não queria. Então, eu nunca trabalhei. Fui fazer estágio já depois da universidade.
P/1 – Tudo bem se eu falar um pouquinho antes da faculdade?
R – Claro!
P/1 – Porque, nesse período de juventude, de querer sair, ter vida social, como que essa fase da adolescência era lidada dentro de casa, com seus pais? Conversavam com você sobre as mudanças do corpo, namoradas?
R – Não. Zero. Meu pai sempre teve muita dificuldade de comunicação com os filhos. Eu atribuo isso hoje, do alto dos meus quase cinquenta anos, quando eu paro para pensar, ele teve uma infância muito dura, sabe? Uma infância muito difícil, não é? Uma relação com os pais muito difícil. Então, foi um cara muito cru, eu acho, assim, sabe? Se você perguntar para mim um adjetivo que eu associe ao meu pai, na minha infância, era o provedor. O cara que jamais deixou faltar alguma coisa para mim. Então, se eu precisasse... Chegava em casa e dizia: “Na escola, pediram para comprar dois lápis 6B”. Ele comprava uma caixa com cem e dizia: “Tem dois aqui e tem noventa e oito para...”. Ele era o provedor máximo. Na época, eu dizia: “Pô, mas o cara não...”. Hoje eu vejo que era o possível para ele, era o máximo que ele podia fazer e fazia com o maior amor do mundo, não é? Mas manifestações de afeto... E aí, assim... Até nessa coisa do trato, ele não conversava. Por isso que, hoje, quando eu paro para pensar, esses amigos mais velhos da vida inteira, não é? O Brizola,... Eu acho que foram pais que eu fui tentando buscar, que me dessem o que o meu pai não me dava: essa coisa da política, que conversasse comigo, alguém que me indicasse um livro, alguém que falasse de um show ou alguém que, de fato, sentasse para beber comigo, para conversar sobre minha vida, como é que é agora, seu corpo assim, seu corpo assado. Como é que era a vida, como eram as questões de drogas, enfim, as coisas da vida, não é? Essa coisa meu pai nunca exerceu. Nunca, nunca. Eu tenho pouquíssimas memórias de sentar com meu pai para conversar sobre qualquer assunto. Era sempre coisa esporádica: futebol, colégio, tudo muito pontual, assim. Então, um cara sempre muito pronto a servir e a prover. Mas não era em casa que eu buscava essas... Não digo nem informações... Esse papo não era a pauta de casa.
P/1 – E como foi viver a adolescência, os momentos de descoberta, de conhecer o sexo oposto, começar a sair, decisões...
R – Essa questão sempre esteve na minha cabeça porque esses caras, os mais velhos, contavam muitas histórias, não é? Eu achava todas muito impressionantes. As mulheres, as grandes paixões, os caras com histórias incríveis com mulheres, mas eu sempre fui – isso é uma coisa que, do alto dos meus quarenta e nove anos, eu digo, assim – muito namorador, sabe? Enquanto tinha os caras querendo quantidade de histórias para contar, aventuras, eu queria uma coisa mais quieta, assim. E acho que muito por conta desses mais velhos, que diziam assim: “Ah, cara, você vai... Não digo perder tempo, mas mulher é tão bacana, namorar é tão bacana”. Eu sempre quase como se tivesse sido incentivado a fomentar esse tipo de relacionamento. Então, eu tive poucas namoradas ao longo da vida e, claro, várias histórias. Mas nada que fique na minha memória, assim. Sempre tive relacionamentos duradouros, vamos dizer assim. E esses caras sempre muito na minha cola, assim. Sempre gostaram muito de estar comigo, com as mulheres que estavam comigo, sabe? Sempre tratei de fazer disso... Eu gostava, sempre gostei da história da companheira. Sempre tive a coisa da criação do meu núcleo, da família, que veio acontecer, na verdade, agora, mais recente, com a chegada do Leonel. Mas é isso. Acho que estou me perdendo de novo.
P/1 – Não, está ótimo! Nessa fase, mesmo, de turbulência, de adolescência, mas...
R – Ela é muito turbulenta, mas ela é bem resolvida demais. Mas não em casa, sabe?
P/1 – Sim.
R – Em casa não tinha isso. Não, mesmo. Inclusive, eles, de fora, assistiam algumas coisas, não é? Viam tudo, eu percebia que curtiam até, mas não eram os caras - nem meu pai, nem minha mãe - com quem eu sentava para conversar sobre isso. Era sempre com esses mais velhos. As figuras icônicas, mesmo, na minha vida, assim.
P/2 – Não te davam conselhos?
R – Não. Na verdade, assim, davam alguns, mas sempre pautados pelo medo. Isso é uma coisa engraçada, assim. Hoje você me pergunta assim: quarenta e nove anos, experiência com drogas. Eu fumei maconha a primeira vez na minha vida, já velho. Porque eu estava namorando com uma mulher com que eu me casei, inclusive, e logo nas primeiras vezes que a gente estava junto ela foi e... Não sei se é bom de contar isso, né, _______ com maconha, mas, enfim, naquele momento, ela disse: “Quer um?” E eu, na hora, falei: “Cara, eu vou ter que fumar, não é? Eu vou dar uma de bobão agora? Não, vou fumar”. Fumei, fiquei doido para caramba. Enfim, não sei se é bacana contar essa história. Ou talvez seja, não sei. Mas o fato é: por que eu estou falando o negócio da droga? Porque eu nunca usei droga nenhuma, tive pânico de droga, porque o meu pai contou para mim a vida inteira... Aliás, acabei de lançar um livro aqui em São Paulo, ontem, chamado De Hoje Não Passa. Uma troca de cartas minhas com um amigo aqui de São Paulo, e eu conto esse episódio numa carta, que é uma coisa muito marcante: a vida inteira meu pai contou a história do filho da Cinira Sabóia - o Hélio Sabóia e a Cinira Sabóia eram dois amigos da minha avó. Meu pai contava uma história assim: o filho deles – é tudo mentira, hoje eu vejo – ficou preso trinta anos por causa de maconha. “Mas o que foi?” Ele deu carona para um cara, foram parados numa blitz, abriram o porta-luvas, estava cheio de maconha. Era do amigo, mas o filho do Hélio Sabóia é quem foi preso e ficou trinta anos. Então, a primeira coisa: nunca dei carona na minha vida. Eu tinha carro na universidade. Quando eu passava, aqueles caras assim, eu fazia que não estava vendo, porque eu falava: “Vai entrar alguém aqui, vai botar maconha no porta-luvas e eu vou ser preso”. Sempre fui fóbico e, então, as piras do meu pai comigo sempre pegaram muito, não é? E eu tinha pânico, negócio de... Todos os meus amigos fumavam maconha. Eu dizia o seguinte: “Quero distância disso”. Porque, inclusive, esses mais velhos com que eu convivia, esse povaréu todo era da birita, sabe? A birita sempre foi minha onda. Então, eu não gostava. Eu tinha verdadeira ojeriza a isso. Era pela pauta do medo que ele me travava, sabe? Então era isso: se você der carona, você vai dar carona para um drogado, que vai botar maconha no seu carro. Aí você já associava: “Então maconha também é uma bosta”. Aí tinha: “Só fuma se eu te der o cigarro; ou então você comprar. Não aceita na rua”. Então, sempre foi dado muito à política do medo, sabe? Era isso. Seja com esses papos, assim, sobre drogas... Porque eu acho, imagino que deveria ser natural chegar: “Oh, meu filho, daqui a pouco você vai começar a ver as pessoas usando cocaína. Ou, isso, a consequência é essa e aquilo”. Não, não tinha esse papo. Era tudo pelo medo. E acho que eles também não tinham. Ele não dominava esse conhecimento, porque eu me lembro de uma festa, uma vez, na casa dos meus pais. Essa é uma coisa que está no anedotário da família, assim. Do nosso nucleozinho, lá: eu, meus irmãos e meus pais, para falar do núcleo original, não é? O meu pai... Um dia, um amigo do Cristiano, do mais novo, numa festa na casa deles, dos meus pais, um cara se trancou no banheiro no meio da festa, a festa rolando, música alta, tal, e aquele cheiro de maconha invadindo a casa. E meu pai falava bem assim: “Eu vou bater na porta desse banheiro porque tem alguém fumando cocaína lá dentro”. Não tinha nem isso, não dominavam, sabe? Eles eram absolutamente... Como não falavam de política, porque não tinham tempo. Não se interessavam por isso, eu acho. Não era porque não falava conosco. Não fazia parte da vida deles, mesmo, sabe? Não era uma pauta para eles. Não foi passado para nós. Para mim, ao menos, não foi.
P/1 – E quando foi decidido que você ia prestar Direito, como foi levar para casa essa decisão? Como foi que você compartilhou com seus pais?
R – Ah, então... Foi super bem recebido, sabe? Porque eu tinha um tio - irmão da minha avó - que era advogado. Carlos Henrique, meu tio Ique. Ele era advogado e tal, minha bisavó tinha muito orgulho, sabe, dele ser advogado. E tinha essa história do meu bisavô, do pai da minha avó materna, que era ligado a isso também, não é? Ao Direito, à profissão, ao cargo que ele exerceu depois, como deputado. Esse mundo sempre me fascinou muito e, enfim, tive total apoio. Aí, sim, nenhuma espécie de repreensão, de tentativa de me orientar para uma outra coisa. Muito pelo contrário. Estudei em uma universidade particular, cara, meu pai pagou a faculdade inteira, mas eu fui o único. Seguramente eu fui o filho que mais prejuízo deu aos meus pais, porque os outros dois passaram para universidade pública, e tal. Eu, não. Fui na PUC. Ele pagou a faculdade inteira. Enfim, foi legal, a formatura foi uma coisa bacana.
P/1 – Como foi receber a notícia de que você tinha passado?
R – Foi bastante euforia, eu me lembro disso porque tinha isso, tinha coisa... Mas não tinha internet, não é? Então, você tinha que ir para a universidade para ver baixar o papel lá, iam botar no mural o papel. Aqueles formulários de computador ainda velho, furadinhos do lado. Ficava lá um ano. Foi muita euforia, sim. Eu fiz faculdade num período muito rico, por isso. Era faculdade de Direito, com o Brasil entrando em um período forte da redemocratização. Com a Constituinte fervilhando, tal, promulgada em 1989, então estava no meio da faculdade. Foi um período muito rico. Muito.
P/1 – Você poderia descrever para a gente como era ser estudante de Direito nesse cenário político do Brasil? O que você acompanhava? Como eram as discussões? Pode deixar sair, mesmo.
R – Então... Era muito rico, porque eu tinha diversos professores que eram assessores parlamentares. Então muitos iam e vinham de Brasília e fomentavam muito debate conosco sobre as matérias que estavam sendo levadas para discussão no Congresso. Você imagina: a primeira eleição, em 1989, todos os candidatos foram à PUC para falar. E era aquilo lá, um ambiente lotado e nós - imagina, estava com quantos? Dezoito anos. 1987. Dezoito. Em 1989, com vinte, vibrávamos com a redemocratização, sem ter vivido os anos de chumbo, claro. Mas aquele ambiente contagiava, os professores, os mais velhos, extremamente, muito emocionados com aquilo, sabe? Eles se emocionavam demais com aquilo, porque contavam como era, como tinham apanhado, sofrido, ou que tinham sido exilados. Então a gente viveu uma euforia mesmo, que não era uma falsa euforia. Porque era tipo até de contágio, mesmo. Era contagiado por aquele ambiente, sabe? E, na faculdade... Que é uma coisa muito curiosa, porque a PUC é uma universidade de absoluta elite no Rio, não é? Eu era, talvez, o único cara da zona norte na universidade. A minha turma toda era dividida entre a Barra da Tijuca, alguns, Gávea, gente com muito dinheiro. Leblon, Gávea, Jardim Botânico, Ipanema. Na zona norte só eu. Praticamente só eu. Então, eu sentia, sofria uma espécie de preconceito no colégio. Eu me lembro de uma coisa que me marca demais, é a seguinte: primeiro dia de aula, eu acho... Não sei se é primeiro dia, mas eu me lembro que eu fui à universidade de bermuda, de sandália havaiana e uma camisa de malha, uma blusa de malha. E cheguei, quase todos os caras, na sala, de terno. Cara, eu achei aquilo muito impressionante. Falei: “Gente, está todo mundo trabalhando, já?” E enfim, aí conversa dois, três, quatro dias, ninguém trabalhava. Ia de terno para a aula: “Ah, porque eu faço estágio no escritório do meu pai, eu comecei o estágio agora”. Mas, de qualquer maneira, eu dizia o seguinte... Tanto que meu apelido, no comecinho da universidade, era pedreiro, porque eu ia de chinelo, mas enfim durou pouco, também, porque eu sou um sujeito que conseguia... Sempre consegui me relacionar bem com as pessoas. Mas era um ambiente muito rico. Vendia cerveja na universidade naquela época. Eu acho que hoje não pode mais. Salvo engano meu, não tem mais. Na PUC não tem mais cerveja. Mas, imagina, todo mundo fala assim: ‘matava a aula’. Hoje eu penso: o cara matava mesmo as aulas, era muito mais rico ir ao bar, às vezes. Chegavam dois, três professores e diziam assim: “Vamos lá”. E os caras contavam as vidas deles. Talvez o que eu estou fazendo aqui hoje, eu via algumas, muitas vezes, ao vivo. Porque eram uns caras que você percebia que estavam há quantos anos sem poder comentar nada e, aquele momento, era muito rico, sabe? Íamos muito para o bar, bebíamos muito, ouvíamos muitas histórias boas. Era muito rico. Muito legal. Um período muito legal, mesmo. E acho que, se eu devo à universidade, eu acho que é a solidificação de um sentimento que norteia a minha vida, a coisa de me preocupar com o outro, mesmo, sabe? A formação humana. Ciências Humanas, fazendo Direito, foi muito vivo aquilo. Tinha uma noção muito clara ali do que era o Direito, qual era o papel do operador de Direito. E com uma outra coisa engraçada, que hoje se critica muito, a chamada... Eles chamam... Há uma expressão de que a Direita é concursada, sabe? Esses caras que chegaram aí em cargos altos, com formação em Direito __________. Mas eu me lembro de que, na época, eu era um dos únicos, senão o único da minha turma, que não queria fazer concurso. Inclusive tem isso, que a Constituição, quando vem, abre concurso para tudo. Então, tinha uns caras que já no primeiro e segundo períodos: “Eu quero ser Juiz, quero ser Promotor, quero ser Procurador da República”. Eu só queria advogar, que era um negócio que eu achava, e acho hoje, que eu tenho talento. Eu não queria fazer concurso nenhum, não quero ser nada, não quero ser juiz, nada. Eu sou parcial para caramba. Imagina ser Juiz. Eu não consigo. Queria era defender, mesmo, quem não tinha condição. Que também era uma utopia, era mais fácil eu fazer concurso para a Defensoria Pública. Mas eu não queria também ser defensor, queria advogar. Minha grande paixão era o dia a dia mesmo do Direito. Até hoje eu gosto demais. Eu tenho verdadeira paixão pelo que faço.
P/1 – E como foi, depois desse trabalho? Quais os planos para depois do curso?
R – A vida inteira eu trabalhei sozinho, sabe? Eu falo sempre assim: “A perfeita definição de self employed sou eu: eu nunca tive secretária, estagiário, contínuo, ajudante, nada. Sempre trabalhei eu sozinho. Sempre escritório pequeno. Eu fiz estágio, claro, em um escritório ou outro, mas quando me formei, fui alçar voo só. Eu e eu”. E adoro, faço meu dia a dia, faço minha rotina, eu que controlo tudo, sabe? Fui percebendo que tinha ali também uma palavra que não se usava na época, mas hoje está em voga, ou já caiu em desuso também, não sei, mas que é o nicho, não é? Eu percebi um nicho ali que era esse, do cara que trabalha... Eu tenho e tive muitos clientes que foram me procurar porque iam para escritórios por conta de um cara lá, um figurão, e nunca mais falavam com o figurão. Eu escutei algumas vezes essa frase: “Eu fui lá no escritório do cara, fui recebido com coquetel e garçom, cafezinho, salgado e nunca mais falei com ele. Devo ter falado com advogado júnior, sênior, estagiário. Com ele, nunca mais consegui falar”. Comigo, nêgo fala comigo. Liga no meu celular, eu que resolvo; whatsapp eu respondo; e-mail eu respondo; minha agenda eu controlo; é tudo comigo. Então, eu sempre gostei dessa rotina também, de ser eu, chegar no meu escritório, ter aquele meu canto ali. Mas eu faço de tudo também: leio, escrevo, trabalho, é evidente, mas não ter a quem dar satisfação do meu dia a dia profissional sempre foi uma coisa que me fascinou.
P/1 – E qual foi esse nicho que você descobriu?
R – Das pessoas que queriam ter um atendimento. Porque hoje, inclusive, tem. Os caras falam boutique jurídica. Tem. É artesanal, quase. Porque a gente atende aquele cara. É isso: os caras querendo falar com o advogado deles. Era isso. O cara que ia para escritório grande falava com o bã bã bã lá e nunca mais falava com o cara. Então, quando eu falo nicho, é isso: o cara que quer falar o tempo inteiro com o responsável pela questão dele. Ele não quer secretária ligando, dando recado ou estagiário passando relatório. Não. “Eu quero falar com o cara”. Alguém que quer isso. A coisa do acolhimento de novo, sabe? É o advogado. “Quem é meu advogado? O Eduardo”. Eu vivo do boca a boca também, é claro, e então tem muita gente que chega assim: “Olha, fulano me indicou porque disse que você que resolveu o problema dele”. Que já estava no quarto, quinto advogado. É isso: eu acho que eu consigo dar um atendimento.
P/1 – Eu queria que você contasse algum caso que tenha sido marcante.
R – Nossa! Alguns.
P/1 – Seja pelo caso ou pela sua atuação; pelo resultado, enfim.
R – Vou contar um, que é um caso que foi parar na imprensa, na época, que é bem engraçado, que é o seguinte: o Zuza Homem de Mello tem um livro sobre os festivais da música brasileira e, num determinado livro do Zuza, que eu não vou lembrar agora qual é -
se eu estiver sendo impreciso, desde já você me perdoa - o Zuza conta um episódio que aconteceu em um festival da canção em que para justamente denunciar a ditadura, os compositores teriam combinado fazer inscrições fictícias dessas músicas e não aparecer ninguém para fazer nada. Tinha uma “confa” arquitetada para fazer uma crítica ao regime. E essa história vazou para o governo, para os censores, para a imprensa, para os organizadores e tal. E o Zuza, no livro, faz menção a quem teria sido o responsável pelo vazamento, que é um compositor chamado César Costa Filho. E, no livro, eu também não consigo lembrar com precisão do episódio, mas no livro parece que, em um depoimento do Aldir, o Aldir teria contado ao Zuza que, na época, vazou que tinha sido o César, sabe? No fim, eu não consigo lembrar muito bem. Eu sei que o fato é que o César entra com um processo contra o Aldir. Entra com um processo indenizatório grande. Imagine o contrato para fazer a defesa do César. E eu... É um negócio também que é característica minha, profissional, advogo muito com o estômago, sabe? Eu visto a camisa do meu cliente de uma maneira assombrosa e dou litígio. Evidente que eu sei a vantagem de um bom acordo, mas se a parte adversa quer briga, terá briga boa. Eu gosto. E aquilo indignou muito o Aldir, sabe? Porque foram parceiros - César Costa Filho e Aldir - e ele entrou com uma ação indenizatória pesada, não é? E eu me lembro de que eu preparei a contestação do Aldir, volumosa, com jurisprudência, com depoimento de uma porção de gente, tínhamos um rol de testemunhas da pesada, à época, bastante gente que trabalha na música. E, no dia da audiência conciliatória... Porque tinha uma conciliação, e tirar o Aldir de casa já era, naquela época, um perrengue, porque ele já estava naquela fase mais (reclusa?) dele, mas ele tinha que ir. Eu falei: “Você tem que ir, porque pelo rito que o cara usou, não dá para ir eu apenas, como seu advogado”. E aí nós fomos. E o César louco para abrir, mas quando ele vê a contestação, ele sai com o advogado dele, de assalto, para conversar e volta e tal, e diz: “Eu, então, vou retirar a ação. Eu quero desistir da ação”. E tem uma característica, uma regra em Direito, que é a seguinte: o autor de uma ação só pode desistir dessa ação com a anuência do réu, depois do réu citado, intimado, que era o caso do Aldir. Aí o Aldir vai, interrompe, eu digo: “Você quer concordar, concordamos”. Concordamos, a ação foi extinta naquele ato. Só que o César manda uma nota para o jornal dizendo o seguinte: “O Aldir se retratou durante a audiência e a ação foi extinta”. Aí a briga foi comprada de novo. Só que aí, à época, a gente mandou carta para o jornal, os jornais publicaram a verdade dos fatos: “César recuou. Quem foi o benevolente, de concordar com a desistência, foi o Aldir. Porque se o Aldir quisesse levar adiante e vencesse a ação, o César ainda pagaria sucumbência”. Então, essa foi uma ação que fez barulho, na época. Mexeu com muita gente. Mas tem outras muito legais, eu acho. A coisa de que eu mais gosto de fazer - eu vou te falar e que eu não falo muito delas porque não gosto de fazer propaganda disso, vamos dizer assim - mas é atender gente que não tem condição de ter advogado. Eu sempre reservo um pedacinho ali da minha carteira, daquele momento da vida, onde eu possa atender X pessoas sem cobrar, não é? Então eu tenho histórias muito legais. Essas são as que mais me dão prazer, sabe? Porque nós vivemos num mundo tão absurdo, que essas pessoas, na imensa maioria do tempo das suas vidas, não se dão conta sequer de que têm direitos. Elas vivem de favores, de migalha, não é? Vivem à margem, mesmo. À margem. Então, quando alguém chega a dizer: “Eu vou cuidar do seu caso, eu vou te defender”... Tem um caso que esse eu vou te contar, que eu acho que é muito bonito, do que é a pureza... Não é nem pureza, uma palavra que está muito desgastada, mas a beleza da essência da pessoa, sabe? A Madá, que é uma mulher que já morreu, era faxineira de uma amiga minha e essa minha amiga um dia ligou e falou: “Edu, a Madá tinha lá um dinheirinho na poupança, pouca coisa, mas era o que ela estava juntando para fazer uma viagem no final do ano para visitar a família, no Nordeste. E ela foi sacar e está zerado, está zero”. E aí Madá foi ao escritório, conversamos e eu falei: “Vai na sua gerente” – redigi uma carta para ela como se tivesse sido ela – “e relata que lhe levaram, não é?” E ela foi e voltou para o escritório uns dias depois, muito indignada, e disse: “A minha gerente riu da minha cara e disse: ‘Dona Madalena, faz uma coisa: contrata um advogado. Pega o dinheiro que a senhora não tem, na poupança, agora, e contrata um advogado e manda acionar o Banco´”. E ela me conta isso e eu fico muito, muito, muito, muito indignado e ingressamos uma ação contra o Banco Bradesco. E eu consegui quarenta salários-mínimos na época para ela, de indenização - o que hoje seria quase cinquenta mil reais. Cara, e a Madá, no dia em que sai a sentença e ela ganha os quarenta salários-mínimos, aí teve esse detalhe: na audiência eu chorei muito e o Juiz dizia assim: “Fica calmo”. “Eu estou calmo, mas eu não aguento a indignação porque o Banco chegou dizendo: ‘Não houve, o saque foi feito por ela’”. E ela chorando do meu lado e eu... Eu sei que a sentença foi um negócio muito lindo, o Juiz deu uma traulitada gigantesca no Banco e ela ganhou os quarenta mil reais. Ela tinha, na época, talvez, mil reais na conta, não é? E quando a Madá vai ao escritório e eu dou a ela o cheque para ela sacar, porque o depósito foi feito na minha conta... O depósito feito no Banco do Brasil, depósito judicial, e eu transferi para minha conta. O advogado vai lá no Banco e transfere para a conta e eu fiz a ele o cheque para ela sacar os quarenta e nove mil. E a Madá diz assim: “Mas não tem chance. Eu não quero isso. Eu só quero os meus mil”. Falei: “Madá, você ganhou isso de danos morais. Isso é indenização para você fazer o que você quiser com esse dinheiro”. “Mas não é justo. Eu só quero os meus mil de volta e eu quero que aquela mulher me peça desculpas”. “Então... Esse dinheiro é um pedido de desculpas que a Justiça obrigou”. O fato é o seguinte: ela pega o dinheiro, vai, saca o dinheiro... Eu morava na Haddock Lobo, nessa época, eu já morava só, e ela comprou três aparelhos de ar condicionado para a minha casa, porque não tinha nem na sala, nem nos dois quartos. Porque, à essa época, entre o caso e a sentença, ela passou a fazer faxina para mim e ela então sabia que não tinha ar lá em casa. E comprou uma aparelho de ar para cada quarto; pagou passagem para a família dela inteira vir de avião - do Nordeste para a casa dela aqui no Rio; fez um churrasco lá na comunidade onde ela morava, e me disse: “Só sobrou mil reais, agora eu estou satisfeita. Tinha um dinheirinho dela que sobrou na poupança”. E eu fiquei muito tempo conversando com ela sobre isso, falei: “Madá, era isso que o Banco tinha que fazer. Dar a você uma satisfação. Dar a você o prazer de trazer a família inteira de ônibus, de avião, poder dar um presente para mim, que você quis. Que ótimo, então”. Então, para mim, é muito simbólico isso, sabe? Uma pessoa que é isso: ela não se sentia sequer capaz de merecer a indenização, sabe? Então, sempre foi a coisa que mais me deu e dá prazer: defender quem não tem condições de se defender. É isso.
P/1 – Ainda nesse momento de muito crescimento profissional, como é que ficava essa
parte afetiva? Como você sonhava em constituir uma família?
R – Como eu te disse, acho que já falei um pouquinho mais atrás: sempre tive um ideário, uma coisa de ter a minha família, não é? A minha família: mulher e filhos. Ou mulher e filho. Mas acontece que, assim... A vida me pregou uma peça e que me proporcionou, no final das contas, quando eu já achava que isso não fosse acontecer, eu me deparei com essa coisa fabulosa, que é a paternidade. Isso se dá da seguinte forma: em 1999 eu comecei a namorar a Dani, que é a minha segunda mulher, e ficamos juntos por doze anos, não é? Até 2011. Quando ela morreu de câncer, em um período muito duro, uma coisa muito difícil de você enfrentar na vida. A doença dela é diagnosticada no exato instante em que nós decidimos ter um filho, sabe? Uma coisa que marca demais a minha vida por isso. Em 2008, a gente decide ter um filho. Depois de, já, nove anos juntos. Na verdade, a gente decide ter esse filho, uma coisa que só vou contar para fazer um fio de história: ela acordou em um determinado dia da vida, surda de um ouvido. E foi fazer uma série de exames e estava surda. Ficou surda, a chamada surdez súbita. Não sabia nem que isso existia, mas o fato é que ela ficou surda de um ouvido, uma coisa que foi muito ruim, imagina, até o cérebro se reorganizar e aquele negócio não fazer tanta falta para ela. Nós passamos aí um ano ela fazendo tratamento, com promessa de voltar a ouvir, e nada aconteceu - nem ela voltou a ouvir. Então, depois de um ano desse tratamento do ouvido, a gente se diz: “Vamos ter um filho e esquecer. Vamos viver com essa surdez súbita, beleza, e vamos ter um filho”. Aí, no começo dos exames, ela fazendo o preventivo, o médico detecta um câncer, que é uma coisa que acho que deve ser comum para quem vive essa experiência, mas é exatamente isso, não é? Você nunca acha que será protagonista de uma história dessas, sabe? Então, vem o câncer, evidentemente que a questão do filho fica esquecida totalmente, porque todas as energias e todas as forças, tudo fica voltado para a tentativa de cura, não é? Inclusive, eu aprendi ao longo desse tempo, que eu não gosto de usar a expressão ‘a luta contra o câncer’, não é? Porque é tão desigual e tão difícil. Porque luta já te mostra, desde o início, a situação de desvantagem absoluta, não é? Mas aí essa é uma vivência muito dura, muito dolorosa, sabe? Você ver, na verdade, a pessoa ao seu lado, minguando, a vida minando. O fato é que em 2011 ela morre - em julho de 2011. E eu sou tomado, naquele momento, de uma certeza que é essa: eu não serei pai. A morte dela, dentre tantas coisas, me traz, evidentemente, um ponto de infecção na minha vida porque eram doze anos de relacionamento e então eu me vejo muito perdido naquela hora, sabe? E tem um episódio nesse período que um grande amigo meu, o Aldir Blanc, telefona para minha casa e quem atende é a Léa, que trabalhava para mim, na época. Eu sei disso porque a Léa, depois, me contou. E a Léa falou assim: “Olha, ‘seu’ Aldir, o Eduardo está, há alguns dias, dentro do quarto. Ele só me pede para trocar o cinzeiro, o balde de gelo e para levar uma garrafa maior de whisky para ele”. Eu te confesso que é um negócio tão brutal, que eu não tenho memória de viver essa rotina, não é? Mas, evidentemente, que vivi. E eu lembro que o Aldir me disse o seguinte, que foi uma frase duríssima de ouvir, mas funcionou: “Cara, você só tem duas alternativas na sua vida: continuar fazendo o que você está fazendo aí, morrer e não encontrar com ela; ou procurar uma terapia para falar, falar, falar, falar”. E ele ficou falando a palavra ‘falar’ muitas vezes. Até eu começar a chorar (choro) e decidir que eu queria ‘falar’, eu não estava a fim de morrer. E aí, no dia seguinte, eu acho, eu começo a terapia, sabe? E nos primeiros muitos meses de terapia - e minhas primeiras muitas sessões - foi chorando muito nas sessões. Eu tinha uma pergunta que me incomodava muito, que era assim: “Será que eu vou amar de novo? Será que algum dia eu vou querer?” Isso é uma coisa que está sempre, muito, na minha cabeça. A angústia daquele momento era muito essa: como submergir? O fato é que aí, em setembro - dois meses, um pouco depois de dois meses da morte dela - eu encontro a Flávia, que é minha atual mulher, porque nós tínhamos nos comunicado por e-mail meses antes, ela pediu, sem me conhecer pessoalmente, nós trocamos uns e-mails, porque ela estava indo para o Rio e queria que ajudasse com a distribuição de currículos dela. Ela sabia que eu era advogado, para as redes sociais, twitter e tal, e eu sei que, como alguma das coisas que eu mandei funcionaram para ela - entrevista ou tentativa de trabalho - o fato é que ela falou: “Eu estou no Rio”. Estava na casa do namorado, inclusive. “Eu queria te conhecer, vamos conversar um pouco, te agradecer pessoalmente”. E o fato é que aconteceu uma coisa, hoje eu falo bem, mas naquele momento eu fiquei muito impactado quando a vi - uma mulher lindíssima, está muito mais bonita agora, depois de mãe – e fui tomado por uma certeza, naquela hora também, porque eu não tinha condição de jogo para falar uma linguagem. Eu falava: “Eu não tenho nada o que fazer, não tenho condição nem de...”. Então, trocamos telefone e eu com ela na minha cabeça, sabe? O fato é que os dias vão passando, vai passando o tempo... Outubro, novembro, dezembro, janeiro, foi chegando o Carnaval e eu falei para ela para vir passar o Carnaval no Rio. Porque aí eu soube, trocando e-mail, que ela tinha terminado com o namorado, em dezembro. E aí eu falei: “Vem passar o carnaval comigo”. E ela, de fato, vai para o Rio e passa o carnaval comigo. Ela vai passar o carnaval comigo e a gente, efetivamente, começa a namorar naquele Carnaval, sabe? Quando eu já achava que não ia ser possível eu amar. E foi uma coisa muito rica, que é uma experiência muito nova. Ela morava no Paraná e então nós passamos um ano namorando de avião, não é? Eu muito mais ia do que ela vinha para o Rio, mas, enfim, a cada três idas minhas, uma ela que vinha. E foi demais, assim, a Flávia. Porque é do Paraná, acho, tem uma coisa que eles são de uma cultura muito diferente, de uma maneira de ver o mundo muito parecida comigo: uma mulher de esquerda, uma mulher de luta, uma mulher com história, se envolvendo com movimento social desde muito cedo, não é? A família dela tem ligação com política, enfim, a gente tem muitas afinidades ideológicas, mas, no começo, muito estranhamento com relação a comportamento, não é? Mas era uma riqueza para mim aquilo, uma coisa louca. Eu, de fato, me apaixonei num primeiro momento, mas depois passei a experimentar de novo o sabor de amar, sabe? Isso também na terapia, era muito vivo. Eu comemorava aquilo como, de fato, uma vitória minha. Eu estava assim me reerguendo e um amigo a chamava de Paraguaçu, a índia. “Porque ela passou e te catou, te salvou do rio, assim”. Tinha essa imagem. A Flávia foi uma figura absolutamente fundamental para que eu me reerguesse. E a gente, enfim... Passamos o ano de 2012 todo namorando à distância. Ela, no final de 2012, se muda com tudo, decide vir morar no Rio comigo. Enfim, casamos, na verdade, recentemente, tem pouco menos de um ano que nós casamos no papel e casamos quando nosso filhote estava com três meses, não é? Porque essa é a grande boniteza toda dessa relação, porque aí reacende em mim essa história do filho, que é uma conversa, inclusive, que a gente tem no primeiro dia em que a gente ficou junto na praia, era filho e eu: “Quero demais um filho”. “Também quero demais”. Ela também queria muito. E nós tivemos um filho e só que assim: tentamos um ano, dois anos e não rolava e aí fomos para os exames e você imagina o que é o trauma do ser humano. Eu ficava: “Começar tudo de novo”. São coisas horríveis, que essas marcas você percebe que elas estão dentro de você o tempo inteiro, não é? Não tem jeito. Podem estar adormecidas, estão quietas, você mexe com o bicho, o bicho sofre. Então, naquele momento em que ela falou: “Vamos começar a fazer os exames”, eu tive muito medo, internamente, de que tudo fosse se repetir, não é? Mas, enfim, o fato concreto é que se estabelece, se diagnostica uma dificuldade absoluta, por conta de mim, coisa de espermas que não são assim, não são assado, são... Tem um nome, cara, que eles usavam, é como se eles não fossem ágeis, sabe? Eles eram... Tem um nome que eu vou lembrar, já, ou não... Tínhamos que fazer um tratamento. E aí, enfim, caiu na mão de um médico, doutor Ivan Penna, que, para mim, ele virou um totem. Começam as consultas conosco, começam os exames e vai nos botando a par de toda a situação porque, inclusive, ele nos convence a fazer um tratamento assistido, por conta da minha idade - eu já com quarenta e oito, a morena já tinha quarenta e um - e ele fala isso: “É preciso que vocês, se puderem fazer uma gravidez assistida, fertilização “in vitro”, _______ como chama. Eu até então nem sabia que tinha diferença da fertilização para a inseminação, mas ele nos convence, a gente vai e o fato é que o tratamento vai funcionando e a gente vai fazendo o tratamento como tem que fazer, até que vem o momento em que ele nos diz: “Vocês têm...”. A morena tinha uma quantidade absurda de óvulos que ele falou: “É quase uma doadora de óvulos, com essa idade”. Foi lá, fecundou todos e o fato é que, no final das contas, tinha quatro embriões congelados. Na reta final, tinha quatro embriões congelados. E aí ele nos convenceu a mais uma coisa, que é a seguinte: se vocês tiverem condições financeiras - porque não é barato mas também não é nenhum absurdo - mas eu gostaria que vocês fizessem o escaneamento desses quatro embriões congelados, para ver se tem problema, se não tem, genético. Você mapeia o DNA dos quatro. Fazer o quê? Vamos fazer? Claro! Fomos fazer, só que nós não sabíamos que o detalhamento vinha, inclusive, com sexo. Porque é óbvio que viria, mas a gente só soube na hora. Então, quando veio o resultado do exame e já nos manda por whatsapp, está lá: embrião número X, sexo feminino, não compatível com a vida e que aí, até, depois ele nos explicou que eles não investigavam qual era o problema. Só sabia que não ia vingar. Ou abortava ou nascia com problema, enfim, ele não investigava, não tinha a cadeia perfeita e tal. Embrião número X, feminino, não compatível com a vida. Embrião número X, sexo não definido, não compatível com a vida. E tinha lá um bichinho, masculino, perfeito. Era esse. E aí a gente falou: “Um. Que merda!” Porque, desde o início, então, era esse. Quando contavam a história, era assim: “Cara, é muito difícil que vingue, é muito difícil que dê”. E tem essas que ele fala assim: “O ser humano produz embriões ruins. A regra é produzir ruins. Por isso que tem tanto aborto. O que você acha que é aborto? O bicho não vinga, cara”. E eu lembro do Ivan falar assim: “Não é só um, é o filho de vocês. É isso aí”. E aí já tinha nome aquele bichinho, já tinha ___. Então, tem o dia que marca o implante para colocar o embriãozinho lá na morena e aí você vê como tudo já é feito para te emocionar, não é? A gente chega no lugar lá, a enfermeira vem com uma toalhinha azul, assim, com um potinho, e fala: “O embrião está aqui congelado, boa sorte, Leonel”. (risos) E aí implanta e o Ivan ainda fala uma coisa engraçada. Implantou, fez o tratamento, fez o negócio que tinha que fazer, era um painel como esse aqui, gigante, sabe, e um médico - senhor já, doutor Sérgio - acompanhando o Ivan, o Ivan lá manipulando, tinha um duto, um cano, assim, lá para dentro da morena, e o Sérgio, assim, na imagem: “Um pouco mais para cá, um pouco mais para lá”. Falei: “Um flanelinha, botando... Estacionando num lugar”. “Aí, pronto”. Me fez fotografar, inclusive falou: “Agora vai ficar uma coisa branca, é o ar soltando no embrião, você fotografa, vai ser a primeira foto do seu filho”. Fotografei, tal, o Ivan diz assim, maior barato: “Se fosse há dois anos, o protocolo mandava vocês ficarem aqui seis horas, a Flávia deitada, mas agora isso não tem mais problema, vocês podem ir”. A Flávia: “Tsc, tsc, tsc. Vou ficar aqui”. Não ficou seis, mas ficou um tempinho lá e uma semana depois a gente saberia se ela estava grávida ou não. Era o tempo que precisava. Uma semana. Você imagina como se dorme durante uma semana, não é? Mas aí foi isso. Foi, foi, foi, foi, foi, e era um sábado. Num sábado pela manhã, eu a deixei seis horas da manhã na clínica para fazer o exame de sangue e o resultado sairia às treze horas. Ela foi me encontrar na praia e ficou na praia com o nosso cachorro. Ela foi para a praia e você imagina aquela pilha, não é? Está grávida ou não está? O que é isso? Aí vem o resultado que ela estava grávida e aí é um negócio de louco porque aí, quando o cara fala: “Mas agora é acompanhar isso aí”, é a coisa mais bonita da vida. A gente estava falando sobre religião, um pouco antes. E aí, no domingo seguinte, sabendo que ela estava grávida, a gente foi na procissão do Círio de Nazaré, porque lá na Tijuca tem, no segundo domingo de outubro, o Círio de Nazaré na Tijuca, porque a comunidade do Pará toda se reúne para fazer a festa do Círio. E então nós fomos à festa do Círio, eu fiz promessas inacreditáveis lá para Nossa Senhora de Nazaré, não é? E aí é isso, cara, o Leonelzinho vem e vem super bem. Na gravidez inteira, a gente teve, assim, o suporte do sobrenatural com um grande amigo nosso, que é o Simas, que é meu babalaô, que é um cara que cuida dessa coisa da minha vida, cuidou demais da gestação, fizemos ebó ao longo da gravidez inteira, as coisas que tinha que fazer, ele fez o jogo o tempo inteiro para a gente, sabe? Jogava e tinha as coisas para fazer. Tem um episódio muito marcante, só para lhe contar de onde vem, como não acreditar em tudo? A Flávia estava há seis semanas sabendo que estava grávida e ligou para o trabalho, louca, enlouquecida, com um sangramento muito forte. Me ligou, já chorando, sabe: “Acabou, perdi agora, vem para casa”. Eu estava no trabalho, falei: “Vai voando para perinatal, para a clínica, fazer o ultrassom, que eu vou te encontrar lá”. E ela diz: “Liga para o Simas”, chorando. “Liga para o Simas, liga para o Simas”. Eu liguei para o Simas e o Simas fazia jogos constantes, toda semana jogava e dizia: “Está tudo bem, está assim, está assado, tem que fazer ebó, tem que fazer isso”. E eu liguei para o Simas, já chorando, no táxi, contei e ele disse: “Edu, se a Flávia tiver perdido o bebê, nunca mais eu jogo na vida, cara. Está tudo bem”. “Ela está sangrando demais”. “Não tem nada”. E chega lá - é impossível não lembrar disso - ela bota o coiso lá e escuta: tuc, tuc, tuc, tuc. (choro) É muito solavanco, eu tomei muito solavanco. Por coisas boas e coisas ruins, sabe? Mas a gestação da Flávia foi a coisa mais bonita da vida, sabe? O Leonel veio de parto normal e, seguramente, a coisa mais bonita que eu vi na minha vida foi o parto. A Flávia, eu falo sempre para ela: “Morena, você...”. E é isso: quem acompanha sempre parto talvez tenha a mesma experiência, não sei, mas eu falei: “Você não era a Flávia que eu conheci. O seu olhar mudou, a sua cara mudou, a sua expressão mudou, o seu olhar, para mim, é como se estivesse atravessando”. O som da voz dela era diferente. Parecia um bicho, sabe? Parecia uma leoa, sei lá o que era aquilo, cara. Coisa linda, o parto lindo. Ele nasceu um pouquinho prematuro, com trinta e seis semanas e seis dias, no dia 31 de maio de 2018. A coisa mais bonita que eu vi na minha vida foi aquilo. E aí é isso: a vida me premiou com ele, com o Leonel. A Flávia, nós estamos juntos aí, morando juntos, há seis e pouco. E é isso. Quando a gente conversou também, eu falei: “Estou no meu terceiro e último casamento”. Porque é isso: uma pessoa que me trouxe, na mesma medida em que me trouxe muita mexida na vida, porque eu costumo sempre brincar com ela, que ela mexeu na zona de conforto, sabe? Eu era muito acomodado com uma série de coisas e ela vem para dizer, tipo ela me salva, sabe? Não dá para dizer que ela me salva, porque não era uma situação passiva, não é? Eu não sou um sujeito passivo. Mas ela é a pessoa que proporciona essa inundação de vida na minha vida, sabe? De novo. É isso. E o Leonel vem coroar isso para mim. E agora eu estou aí, às vésperas de fazer cinquenta, antes dele fazer um ano. Acho tudo muito bonito. Acho que até o momento meu desenho de vida me agrada muito.
P/1 – Quais são as descobertas sobre a paternidade? Como é o Eduardo pai?
R – Uma por dia, não é? Não tem jeito, não tem receita. Primeiro que assim: tem uma coisa que tudo que eu escutei a vida inteira de paternidade eu ficava assim: “Cara, os caras não percebem que estão repetindo a mesma coisa? Que pieguice, que chatice ouvir a mesma coisa”. Só que é tudo verdade. É um deslumbre tão grande aquilo. Outro dia estávamos conversando em casa: eu, a morena, meu pai e minha mãe. E a minha mãe contando, inclusive para o meu pai, que tem um monte de __________ na hora, assim, mas rapidamente passou, que ela disse: “O Edu é um pai que você não foi nesse quesito”. Porque, assim, ele está com mais idade do que você tinha, porque quando meu pai me teve meu pai tinha vinte e poucos. Pai velho, está com quarenta e nove. Eu fui pai com quarenta e nove anos. Com mais tempo, com mais disposição, mais material para ler, a gente lê muito. A gente quase se preparou para um vestibular, sabe? Muita coisa para ler, muito material para ler, muito filme para ver, muita coisa para discutir e, então, eu acho que várias coisas que eu escutava e dizia ‘papo’, não é papo, sabe? Aquela coisa assim: “Eu deixei de fazer coisas para mim por causa do meu filho” é totalmente verdade e totalmente bonito, sabe? Eu hoje fico vendo as horas que eu tenho, os tempos que eu tenho, é tudo para ele. Estarmos hoje, eu, ele e ela acho que é a coisa que eu mais gosto na vida. Estarmos os três, sabe? Porque é uma construção diária de um negócio tão impressionante, para o qual não tem preparo, não tem regra, e então eu não sei te dizer. Eu só sei que eu, inclusive, falei isso outro dia com a Flávia, nessas palavras: “Eu quero demais que o Leonel venha a ter a memória de infância que eu tenho, que seja um troço amoroso, sabe? Que ele seja um guri cercado de muito amor, sabe? Um piá, como no Paraná chama, piá”. É só o que eu penso. Todos os dias o que eu penso é isso. Que ele se sinta acolhido, sabe? Que ele se sinta benquisto. Que ele seja cercado pelas pessoas de que a gente gosta. Porque eu e a Flávia... Tem um troço que a gente faz muito, que a gente gosta de fazer: receber gente em casa. Que é, na minha cabeça, uma reconstituição de tudo que eu vivi. A gente gosta de casa cheia, dos amigos perto, e hoje, os filhos dos amigos. Então, é tudo muito, muito, muito bonito, muito fascinante e a minha cabeça dá essas voltas loucas, não é? Então, eu tenho muita vontade de que a minha bisavó conheça o Leonel, eu fico nesses meus delírios, sabe? O tempo permeando tudo isso, é tudo muito bonito.
P/1 – Eu queria tentar fazer um exercício. Eu não costumo fazer muito isso em entrevista, mas é muito inspirado no Moleskini, no diário que sua mãe lhe deu e que você sempre voltou. Nesse primeiro ano... Porque daqui a pouco você faz cinquenta e o Leonel faz um, o que, voltando para o Moleskini que sua mãe deu, você gostaria de ter lido, talvez de perguntas ou algum fato curioso, nesse primeiro ano de paternidade? O que você quer deixar para o Leonel, aqui? Pensando nesse primeiro ano, como se você desse, mesmo, o seu Moleskini para ele.
R – (choro) Tem uma coisa que eu penso muito, não é? É uma coisa que, de vez em quando, me assalta. Eu fico muito hoje em busca de viver mais, não é? Eu quero ter vida longa. Às vezes, eu penso isso: estou com cinquenta. Até quando eu vou ver o Leonel? Vou viver até os sessenta, setenta, oitenta, noventa? Onde eu vou? Eu quero ir longe, sabe? Hoje, a gente tem recurso que não tinha, não é? Então os Moleskinis, hoje, talvez estejam dentro dos celulares: as fotos, os vídeos que você faz. E outro dia, você veja só... Ele não tem nem um ano ainda, mas outro dia a Flávia sentou-se assim do meu lado e a gente ficou vendo os vídeos do Leonel, que eu fiz desde que ele nasceu, já, e eu acho que em todos - e é por isso que eu estou me comovendo aqui antes de responder (choro) – fica muito evidente para ele o quanto ele foi querido, sabe, desejado. Tem um outro episódio que eu vou te contar porque isso eu acho que é a cara do que foi todo esse processo. O Ivan, esse médico, o doutor Ivan Penna, a gente se segue nas redes sociais e tal, e um dia ele escreveu in box no Instagram... A gente tem que lembrar hoje, que é tanta coisa, não é? A pessoa manda wathsapp ou in box Facebook ou in box no Instagram ou não sei o quê, enfim. Ele me mandou lá no Instagram, falou assim: “Eu quero conhecer o Leonel, vamos marcar de conhecer o Leonel. Qual dos bares você gosta?” - tem muita foto de bar no meu perfil e tal – “vamos marcar em um bar”. E aí marcamos, efetivamente marcamos para ir dali uns dias. Ele falou: “Me fala o bar que você mais gosta que eu vou, na Tijuca”. Então, marcamos no Bar Madri, que é um bar lá perto de casa, e aí fomos: eu, Flávia, Leonel e eu falei para os meus pais também irem. Falei: “Mãe, se você quiser ver o cara que montou o Leonel...”. E eu ficava para o Leonel assim: ‘Filho, vou te levar ao cara que fez o seu Lego. Pegou um pedacinho do papai, um pedacinho da mamãe, te montou’”. Mas eu falei: “Mãe, você quer conhecer?” E minha mãe: “Imagina! Estou louca para conhecer o Ivan”. Eu sabia que ia tomar um tranco emocional na hora, quando eu visse o Ivan, mas você veja como as coisas são! No fundo, dão a você - no caso, a mim - um atestado de que é aquilo mesmo em que você acredita, sabe? O Ivan sentou-se conosco, foi muito afetuoso com o Leonel, pegou o Leonel assim, ficou com ele, tal, e aí ele sentou-se uma hora e falou para a minha mãe e para o meu pai assim: “Eu vou dizer uma coisa a vocês: eu tenho...”. Não vou lembrar... “não sei quantos anos de formado e o meu guru, meu professor, à época, o cara que me conduziu para a profissão e tal, me disse que eu tinha três mandamentos que eu não podia nunca descumprir”. Que eram os seguintes: “Ivan, nunca aceite convite para batizado; nunca aceite convite para primeiro aniversário e nunca se tome do desejo de conhecer os filhos dos pacientes, porque senão você não vai fazer mais nada na sua vida. Você precisa ter uma espécie de desprendimento com relação a isso, não é? Porque se você começar a querer ir a batizado, aniversário e conhecer, você não faz mais nada na vida”. E aí o Ivan conta isso e diz: “O Leonel é a primeira vez que eu digo a alguém que eu quero conhecer”. E ele começa a contar para os meus pais: “Só eu sei o que foram as consultas com esses dois aqui”. Eu me lembro que eu e minha mulher ficamos super felizes de ouvir aquilo porque o quanto a gente transpareceu e evidenciou, sem vergonha, às escancaras, sabe, o quanto aquele moleque foi desejado. E, evidentemente, que ter sido um processo de fertilização “in vitro” não faz dele, nem de nós, melhor ou pior do que ninguém. Mas o processo propiciou à gente a vivência desse desejo muito vivo, sabe? Que é um processo, pensa bem, angustiante. Cada exame que você faz, cada coisa que você tira, e faz injeção não sei aonde, hormônio, tudo muito tenso, em busca de um resultado, que a gente, desde o início, já sabia que era pequeno. A porcentagem é tanta. Era tudo desanimador, no final das contas. Mas o Ivan era um cara tão contagiante, sabe, tão para cima... E quando ele falou isso, eu falei: “Cara, é isso mesmo, ele sacou que o Leonel era fruto de muito bem querença, sabe, de muito desejo, mesmo”. Então, quando eu penso nisso, a vida inteira eu quero que ele tenha certeza do quanto ele foi amado, antes de ser visto, sabe? Isso é demais, acho a coisa mais legal e é uma coisa que emerge do meu Moleskini. Embora eu tenha te falado aqui tantas vezes do quanto meu pai é provedor, a minha mãe trabalhando fora, mas desse Moleskini emerge uma coisa de muito afeto, mesmo, porque eu estava sempre muito cercado de gente me querendo muito bem. Acho isso fundamental para a formação dele, inclusive. Não tem um Moleskini, mas tem isso: ______ de vida. Sempre tem isso: muito afeto, muito amor em direção a ele.
P/1 – Ainda do seu filho e pegando todo seu histórico de participação política, tal, eu queria que você falasse um pouco como foi o Eduardo vivendo esse novo status de pai no ano passado e esse período de eleições que a gente teve?
R – Então... Olha, as pessoas mais falam hoje isso: “Puxa vida, olha o mundo em que ele chegou”. Porque as agressões ao Brasil, na verdade, são pedaço de uma tragédia
que eu acho que está se reproduzindo no mundo inteiro. É isso: a ascensão de um pensamento fascista no mundo inteiro, não é? Excludente. Preconceitos vindos à tona com força, não é? Tudo, por onde você olha tem tragédias similares. A questão dos refugiados; a questão do nazismo de novo subindo; a xenofobia e os resultados da eleição no Brasil são o espelho dessa tragédia mundial, não é? As pessoas falam isso: “Em que mundo ele vai viver?” Como eu acho que é preciso que dentro do pequeno mundo dele, dentro daquelas quatro paredes ali, o mundo dele seja o melhor possível e que ele conviva com as melhores pessoas, que ele escute as melhores histórias, que ele reconheça o que é o certo dentro da nossa ótica, não é? O ser justo, ser solidário. Então eu acho que é um período de muita angústia, porque você não sabe o que vem, mas é um período também de muita força. Ao menos é assim que eu vivo isso. O desejo de fazer com que ele se transforme ao longo do tempo, na medida das possibilidades dele, ainda que pequeno, com os amiguinhos do convívio. Que ele seja um elemento transformador, sabe, propulsor. Aliás, é isso, assim: que ele faça com o mundo e que ele faça com ele e com os dele, o que a mãe dele fez comigo, por exemplo, sabe? Traçando um paralelo, assim. Seja uma pessoa capaz de chegar e transformar aquela realidade. Eu acho isso... Eu penso muito nesse viés, sabe? É difícil, eu sei que serão tempos... A gente vai ter tempo de perrengue, de batalha, mas é isso... Estamos aí para isso, para a peleja.
P/1 – Sérgio, tem alguma questão? Eduardo, tem alguma coisa que você queira contar que eu não estimulei que você contasse?
R – Não bota pilha, cara. Eu tenho e não tenho, assim. Eu tenho uma história engraçada, que eu chorei tanto! Eu vou contar uma agora que me faz chorar de rir. Uma que tem a ver com minha avó, com minha bisavó. É uma história cômica, mesmo, tá? Não tem nada de muito importante, não. Mas ela é engraçada. Eu não sei em que período foi, não sei quantos anos eu tinha, mas eu era bem pequeno. O Sérgio talvez vá me entender o que eu estou falando, que é um momento importante na vida de um menino. Eu tenho exata noção, sei o dia e a hora, o momento que foi em que eu descobri o ananismo, quando eu toquei a minha primeira punheta. Involuntariamente. Isso é uma coisa assim: eu lembro que eu estava na casa da minha bisavó, da minha avó, e tinha uma revista Amiga em frente ao sofá. Eu era muito pequeno. E vi naquela revista a Adele Fátima. Como vocês são novos, não sabem quem é. Adele Fátima está viva, mas à época era uma mulata impressionante. Ela fazia propaganda de uma sardinha chamada Sardinha 88:
“Nem oito, nem 80, sardinha é 88”.
Então, aparecia na propaganda a Adele Fátima de costas, com as costas nuas, sem sutiã e, naquele momento, você ver um peito era tão difícil quanto ver um fantasma, não é? Ela dançando. Aquele samba era o tipo da coisa que me alucinava, assim. E eu me lembro que eu peguei aquela revista e, automaticamente, fui para o banheiro, escondido. Peguei a revista e fui para o banheiro. No banheiro, vendo aquela imagem da Adele Fátima, começava a fazer carinho em mim mesmo por ela ser bonita e senti, que louco, coisa boa! Mais à frente, eu falei: “Cara, foi ali a primeira punheta”. E eu me lembro que depois, mais velho, falava com os amigos: “Você lembra quando foi a sua primeira?”. A imensa maioria lembrava, porque é a hora em que você, sem querer, não sabe o que vai fazer. Ninguém chega para você e diz: “Vai lá e faz isso”. Não, você apenas faz e descobre, não é? É uma cortina que se abre, assim, para o seu mundo, não é? Uma janela aberta para o infinito, você fica louco com aquilo. E aí aquilo virou um negócio que eu ia para a casa da minha avó, eu voava para o banheiro com a revista, para viver aquilo tudo de novo. Sabe que muitos anos depois, mas muitos anos depois, talvez trinta anos depois, eu estou em um bar no Leblon, bebendo com uns amigos e entra a Adele Fátima? Já era uma senhora, não é? E um desses meus amigos, especialmente, sabia da história e nós já tínhamos bebido horrores, e ele falou: “Cara, você tem que ir lá contar para a Adele Fátima essa história, você tem que levantar”. E eu assim: “Claro que eu vou contar, imagina. Deixa eu só beber mais um pouco aqui”. E ela estava no balcão lá com o marido - que eu vim, depois, a saber - com o companheiro lá, em pé, lá, dela, um alemão, era casada com um alemão. E ela, lá, tomando um drink dela, toda elegante, e eu falei: “Lá vou eu”. E fui, cara, e cheguei e disse... Só que quando eu cheguei perto dela, eu comecei a chorar e falei: “Adele, eu preciso te contar uma coisa, Adele”. E os amigos, lá, todos assim, não é? E o que sabia assim. Eu falei: “Adele, eu preciso te contar uma coisa”. Ela falou: “Ô, querido, o que foi?” Eu disse: “Adele, preciso te contar uma coisa: a minha primeira punheta foi em sua homenagem”. Cara, ela pegou a minha cabeça, assim, botou aqui no ombro e disse: “Ô, querido, que bonitinho!”. A mesa aplaudindo, ele já tinha contado para todo mundo. Foi tão engraçado aquilo, cara, mas foi tão engraçado. E depois eu fiquei pensando: “Não deve ser bacana”. Porque ela era um símbolo sexual de verdade, porque ela estrelava, inclusive, um filme que também não é do tempo de vocês - todos bem novos - mas se colocar no Google, talvez apareça. Havia um programa no Canal 9 - no Rio de Janeiro era Canal 9 - chamado Sala Especial. Eram só filmes pornôs nacionais. Tosco, não é? Imagina, a produção era do Costinha. O Costinha era autor de vários. E tinha um filme, na Sala Especial, que chamava-se As Histórias que as nossas Babás não Contavam, que era a Adele Fátima, negra, que era a Branca de Neve. Era a história da Branca de Neve e os Sete Anões. Os sete anões comiam a Branca de Neve. E eu adorava aqueles filmes. Então, a Adele Fátima era, de fato, um troço absurdo, não é? E os amigos falavam: “Ela podia ter dado um soco na sua cara ou ter contado para o marido alemão e ele lhe dar uma surra”. E ela foi a coisa mais dócil do mundo, cara! Foi isso mesmo: ela botou minha cabeça aqui e disse: "Que bonitinho!”. E eu me acabando de chorar, cara. É uma memória que eu tenho bem boa da casa da minha avó. Onde eu vivi muitas coisas boas. Onde eu comecei a beber, escondido, pequenininho. A minha bisavó dava vinho do Porto para todos os bisnetos depois da refeição. Uma colherinha de chá, assim. O que já é estimulante. Você imagina hoje eu pensar em dar álcool para o Leonel, nem pensar, imagina! Na época... E meu avô, eles tinham uma garrafa de cristal com licor de menta. Verde. E aquilo exercia um fascínio para mim, naquela garrafa da “Jeannie é um Gênio”, com aquele líquido verde e eu bebia aquilo escondidinho, todos os dias. Eu ia lá e botava escondidinho, era uma bala Halls. Muitas histórias da casa da minha avó. Se eu fosse falar só da minha bisavó e da minha avó, nós passaríamos uma semana aqui, com você dormindo, a câmera ligada e eu não parava de falar.
P/1 – Então posso ir já para as perguntas finais?
R – Pode. São piores, são mais graves, para ter esse nome: perguntas finais?
P/1 – Não.
R – Vamos lá!
P/1 – Como foi para você, hoje, ter contado sua história para a gente?
R – Foi muito bom. Foi bem bacana. Foi surpreendente. Eu me emocionei mais do que imaginei que fosse, mas foi muito bacana.
P/1 – Prestes a fazer cinquenta...
R – É isso, é como se fosse um arremesso ao passado verbalizado, dividido. Achei bem incrível. Eu não tinha a menor ideia de como a coisa seria conduzida, de verdade; mas foi surpreendente, foi bem bom. Um efeito bom, que fez bem.
P/1 – Para encerrar, Eduardo, quais são seus sonhos?
R – Eu quero viver com saúde, bastante tempo mais. Isso próximo dos meus cinquenta anos está batendo muito, porque eu fico pensando assim: “Com otimismo, eu cheguei à metade da minha vida, mas eu quero, de fato, que seja metade da minha vida. Eu quero chegar aos cem e quero chegar com saúde, eu quero ver meu filho bem, assim, na vida. Bem”. Eu ia falar bem encaminhado - palavra horrível - mas eu quero vê-lo bem, feliz. Quero viver com a Flávia para o resto da minha vida. É o meu desejo hoje, a gente estava falando sobre isso, não é? Da transitoriedade das coisas. Mas aí, quando eu penso, assim... Na verdade, é isso: quando eu penso no caminho que eu percorri,
eu acho que já, em algumas muitas coisas, eu posso querer manter, do que mudar, sabe? Então, eu quero muito viver com saúde e quero poder ver o Leonel feliz, ser um cara feliz. Eu acho que é isso, não é? Meu sonho máximo, hoje, é esse. Não quero perder a capacidade que eu tenho de reunir gente, sabe? Eu e a Flávia temos essa característica muito comum. Tem uma amiga nossa, que chama-se Mariana. Ela, possivelmente exagerando também, porque eu também sou cercado de pessoas exageradas, a gente se atrai, fala sempre uma frase quando se encontra - a mim e a Flávia, e o Leonel: “Vocês são uma família que emociona”. Não sei se ela fala de verdade ou não, mas eu penso sempre em manter isso, sabe? A capacidade de comover as pessoas. Porque eu acho que o que salva, o que salvou até hoje, o que salvará o mundo, é sempre o afeto. Por mais pieguice que isso possa parecer, cara, é o afeto que vai nos salvar, sabe? É o bem-querer que vai nos salvar. É estarmos próximos, não é? Essa eleição trouxe aí à tona um slogan que é muito real: “Ninguém solta a mão de ninguém”. É preciso, nesse momento, a gente estar muito junto, muito próximo. Dividindo as experiências. Dividindo, inclusive, as angústias, não é? Para fazer disso elemento de seguir. E é isso. Quando eu penso no Leonel, acabei de lembrar de uma frase que eu acho que escrevi recente, assim: “Eu espero que o Leonel faça das memórias dele o alicerce do homem que eu quero que ele seja”. Como eu acho que eu faço das minhas. As minhas memórias, as minhas lembranças de vida são o meu alicerce, mesmo. Eu acho que eu vivi e sobrevivi por conta dos afetos com que esbarrei ao longo da minha vida. É isso. Está bom? Tem mais alguma pergunta?
P/1 – Está incrível. Estou muito contemplada e feliz por ter conversado e por ter te conhecido.
R – Que bom!
P/1 – Então, em nome do Museu da Pessoa, de mim, do Sérgio, da Joyce, que estão aqui, muito obrigada por ter contado sua história, Eduardo!
R – Obrigado vocês, gente!
P/1 – Foi um presente.
R – Puxa, presente foi para mim, cara. De verdade. Foi muito legal. Muito acima da minha expectativa. Tenho que compensar vocês. À Rosane, estava perguntando: “Quanto tempo leva lá?” Ela falou: “Olha, pode levar uma hora, pode levar uma hora e meia, pode levar seis. Depende muito de você”. Então, era um buraco negro para mim, um espaço desconhecido, mas foi ótimo, foi maravilhoso.
P/1 – Que bom!
R – Obrigado, vocês.
P/1 – Obrigada, Eduardo!
R – Imagina!Recolher