PCSH_749_Mafuane_Oliveira
ENTREVISTA DE MAFUANE OLIVEIRA
ENTREVISTADA POR JONAS SAMAÚMA
SÃO PAULO, 15 DE ABRIL DE 2019
PROJETO AFINADORES DE OUVIDO
CONTE SUA HISTÓRIA
ENTREVISTA NÚMERO 2 AFINADORES DE OUVIDO
TRANSCRITO POR SELMA PAIVA
P/1 – Mafuane, bem-vinda, né, ao Museu! Queria que voc...Continuar leitura
PCSH_749_Mafuane_Oliveira
ENTREVISTA DE MAFUANE OLIVEIRA
ENTREVISTADA POR JONAS SAMAÚMA
SÃO PAULO, 15 DE ABRIL DE 2019
PROJETO AFINADORES DE OUVIDO
CONTE SUA HISTÓRIA
ENTREVISTA NÚMERO 2 AFINADORES DE OUVIDO
TRANSCRITO POR SELMA PAIVA
P/1 – Mafuane, bem-vinda, né, ao Museu! Queria que você pudesse falar, assim, o seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Mafuane Silva de Oliveira, eu utilizo como nome artístico Mafuane Oliveira, nasci no dia 14 de fevereiro... ah, puxa vida, eu tenho que falar o ano? 1984. (risos) Sou aquariana, sou uma pessoa que gosta de mousse de maracujá e arroz de carreteiro. (risos)
P/1 – E você pode falar, assim, um pouco da sua árvore genealógica, da história? Da sua família, dos seus avós, dos seus pais, até chegar você?
R – Sim. Essa história que eu comecei contando, do menino que fica com a avó, é uma história que me toca muito. Me lembra muito o nordeste da minha avó materna, Judite Maria de Jesus, né, que encantou já há algum tempo, falecida, ela faleceu com 92 anos, na Bahia, mas morou em São Paulo muito tempo, mas vamos começar a história do começo, né? Essa história que eu contei, dessa avó que conta muitas histórias e que tem muitos filhos e, consequentemente, tem muitos netos, né, me lembra muito da minha avó porque a minha avó é uma mulher do tempo que havia lamparinas e lampiões, bem do interiorzão da Bahia, de um vilarejo que chamava Riachão do Jacuípe, onde ela dizia que, por lá, havia passado Lampião. Ela era, enfim, pequena, mas eu lembro que uma vez, fazendo uma entrevista pra coisa da escola, assim, eu perguntei pra ela: “Vó, e da guerra, o que as pessoas falavam? Você tinha medo da guerra, da Segunda Guerra?”. Ela: “Guerra? Que guerra? A gente tinha medo, mesmo, era de Lampião, mas ele passou na minha cidade e não mexeu com ninguém, não”. Então, isso era uma coisa que me encantava bastante e eu não consigo me lembrar exatamente uma narrativa, assim, sabe, que seja da minha avó. Mas na casa dos meus avós maternos, né... na verdade, eu tenho até essa foto, aqui, que eu gosto, né, bastante. É do dia do casamento dos meus pais. Então, essa é a Dona Judite, o meu pai José Adão, minha mãe Carmelita e meu avô Ireno, que é padrasto da minha mãe, porque o pai da minha mãe já é uma outra história, né? O pai da minha mãe é o vô Francisco, que eu não conheci, morreu quando ela tinha 13 anos e a gente tem um gap geracional na minha família, porque o meu avô é de 1885. Então, ele é da Lei do Ventre Livre, ele é de antes da Abolição. E ninguém sabe muito bem essas coisas de idade, mas quando ele casou com a minha avó, minha avó tinha 16 e ele já tinha mais de 45 e ele já tinha seis filhos, né? E com ela ele teve 20 filhos, né? Ela teve, na verdade, 20 partos. Teve, enfim, dois abortos e duas crianças que morreram novinhas, né, mas ela criou 16 crianças e mais os seis dele que, inclusive, tinha filho que já tinha praticamente, ali, a idade dela, né? Enfim, esse aqui é quem eu também considero meu avô, porque é quem estava comigo, ali, desde pequenininha. Então, essas histórias também do vô Francisco são coisas que me encantam, na verdade, por essa memória também, que é de dor, que a minha mãe fala que meu avô, mesmo trabalhando na roça, lá no interior da Bahia e tudo, nunca ficou, nunca, em nenhum momento, sem camisa na frente dos filhos, né? E ela, olhando pelas frestas de porta e tudo, via que ele tinha marcas, né, nas costas. Marcas muito feias, assim, nas costas, né, provavelmente de chicotada e que às vezes ele conversava com a minha avó e ele chorava, mas essas histórias eram histórias que não eram pra ser contadas. E, quando perguntavam coisas para minha avó, ela falava: “Isso é coisa que já passou”. Então, são histórias que a gente sabe que permeiam ali o seio da família, mas da série Das Coisas que Não Falamos, né? Minha avó nunca quis contar essas coisas, nunca gostou de contar e meu avô também não gostava de tocar nesse assunto. Era uma coisa ali, deles, né, mas a minha mãe sabe que, em algum momento, não sabe o motivo, mas, enfim, que ele sofreu castigos físicos e que ele tinha essas marcas nas costas, que são marcas pessoais, que dizem respeito à nossa micro história familiar, mas que dizem muito, né, da macro história. Do que é esse país, de como a gente constrói essa cultura brasileira, essa família brasileira. Então, eu tenho esse avô e, ainda na história dessa avó, né, a minha avó falava que eu tenho a minha bisa, que é a Alzira, mas ela não tem pai na certidão. Então, ela falava que ela era filha do caboclo do mato e que a mãe, bem essa história, que foi pega a laço. Eu não sei, ela também não sabia me falar a etnia, mas ela é indígena. Pelos traços da foto dá pra ver bem, assim. Ela tinha a pele um pouco mais clara e tudo, os traços bem indígenas também, mas é isso, essa mulher do tempo que havia lamparinas e lampiões e com essa bisa, né, que foi pega no laço, essa coisa de ser filha do caboclo do mato. Então, tem essas histórias aí, que vão permeando a família. E, na casa desses meus avós, além das outras histórias ali que eles contavam entre eles, meus avós contavam muitas histórias um para o outro, assim, muito causo, né? Mas tinha muita coisa de lobisomem, assim, e eu lembro que eu ficava com bastante medo porque esse meu vô, por exemplo, tinha um irmão que tinha virado lobisomem. Então, são coisas que eu tenho contato desde pequena, né? E ele sofreu um acidente, não sei se dá pra ver na foto, mas ele tinha uma mão invertida. Eu não lembro se foi queimada, enfim. Os dedos dele eram, assim, virados, então era um figura meio mítica pra mim também. Emblemática, na verdade. É uma deficiência física, mas eu tinha esse vô que tinha essa mão, assim, e ele fazia de tudo com essa mão, né? Consertava as coisas...
P/1 – Como é que é a história do irmão virar lobisomem?
R – É. Ele tinha um irmão que virava lobisomem, né, do qual que eu nunca conheci e tudo, mas eles contavam essa coisa. E eu tenho muita memória de rádio também, né? Tinha televisão na casa da minha avó, uma TV preto e branco, mas eles ouviam muito rádio, né? Tinha rádio, tinha a vitrola e ficava em um programa. Eu não lembro se... eu não sei se era Eli Correia, era alguma coisa da ______, mas era um programa que ficava contando vários causos, assim várias histórias, umas histórias, às vezes, tenebrosas. Tinha umas que eram de encantamento, mas umas coisas que, na verdade, acho que era mais proibido, mas eu estava sempre ali, escutando com eles. Então, essas são as minhas primeiras memórias, assim, de muitas histórias. E a minha mãe também me contava muito as histórias quando eu era pequena, mas minha mãe é aquariana como eu, então ela nunca contava uma história igual a outra (risos). Ela reinventava, assim, os contos de fadas, ela inventava cantiga também, mas é isso. Eu não consigo nem reproduzir, porque era sempre uma coisa diferente, né? E o meu pai já mais, enfim, divertido, mas com histórias mais sérias, né? Meu pai é um ativista do Movimento Negro, ele fez parte, é co-fundador do Movimento Negro, tem depoimento dele aqui também, ele estava ali nas primeiras manifestações de práticas antirracistas. Na primeira manifestação contra o racismo, ali na frente do Teatro Municipal, eu olho em arquivo, uma foto dele lá, de black power, assim. E eu tenho esse nome, né, Mafuane, muito por conta do contato do meu pai com os movimentos negros e com uma sede, desde muito jovem, assim, que a gente pudesse, enfim, honrar os nossos ancestrais, honrar as nossas histórias, né, ter orgulho da nossa raça, enfim, da nossa cor. E eu sou filha de uma primeira geração de ativistas do Movimento Negro que decidem colocar nomes africanos nos seus filhos. Então, eu me chamo Mafuane, que significa terra natal, que foi o significado que meu pai me disse, que era um nome africano, que significava terra natal e eu sempre tive orgulho do meu nome. As pessoas perguntam de bullying, tudo, então eu, de fato, tenho muita boa sorte. Pelo menos na minha frente (risos) os colegas não zoavam. Eu estudei em uma escola pequena, escola de bairro e acho que sempre fui muito protegida, né, ali pela escola, enfim, pelos professores e então, diretamente, com meu nome, as pessoas não zoavam muito e eu acho que tem uma coisa: quando a gente sabe da sua história – e eu tenho muita gratidão ao meu pai por conta disso – você chega de um jeito diferente, acho, nos lugares. Então, eu sempre falei do significado do meu nome, eu sempre amei não ter ninguém com o mesmo nome que eu e eu sou, então, Mafuane de Oliveira, filha do Adão, filha da Carmelita, irmã também do (Russane?), que significa bondoso, magnânimo e do (Minca Rarun?), que é o meu irmão caçula. (Minca?) significa justiça, (Rarun?) exaltado perante Deus. Eu sou a mais velha, né, o (Russane?) é o do meio e o (Minca?) é o caçula. E eu tenho muita gratidão, porque esse meu mundo de histórias, esse meu mundo da arte e da educação não começa por aí, eu trabalhei, enfim, em cargos administrativos, minha trajetória é outra, foi no meio da caminhada que isso surgiu, mas nada surgiu do nada, nada surgiu da pedra. Então, eu tenho esse alicerce, né, esse solo fértil que pôde fazer com que eu conseguisse desenvolver essas práticas de narração e essa paixão que eu tenho, mesmo, pelas histórias, assim. Então, eu trago essa foto. Eu a acho significativa, por conta disso, né? Essas pessoas eram as pessoas que me ajudavam ali no quintal, né, com essa coisa de ficar ouvindo rádio e com essas histórias, desde pequena. E essa é da união dos meus pais, acho que a minha história começa aqui, então, com esse moço bonito, que é esse ativista, né, que sempre se preocupou com essa nossa formação identitária e a minha mãe, essa coisa do mulherão, assim, de estar sempre fazendo, enfim, todas as coisas de casa, mais arrimo de família, mesmo, funcionária pública, mas mesmo em meio a tudo isso, ela tinha essa preocupação. Quando eu falo que meu pai é umas histórias mais sérias, porque eu lembro do meu pai lendo jornal, assim, com a gente e minha mãe falando: “Para de ler essas coisas chatas pros meninos” e aí minha mãe comprava Revista Recreio, eu gostava muito de gibi e então minha mãe assinava gibi também, enfim, essas coisas de Turma da Mônica, né e trazer um pouco dessas outras literaturas, com mais encantamento. E responsável também pela compra daqueles livros, que eram os adotados da escola. Uma pessoa que sempre gostou bastante também de dançar e de se enfeitar. Então eu acho que eu sou muito uma mistura, assim, dos dois e minha história começa com essa união. Hoje eles não são casados, mas eles têm uma super amizade, né e a gente é resultado da decisão dos dois, né e então, eu sou muito grata por eles terem decidido, enfim, formar essa família. E ainda hoje, enfim, são muito amigos e tudo o mais, né? Mas é meio que isso, né? Então, falei da parte materna e não falei da paterna. Então, de um lado tem essa vó do tempo que haviam as lamparinas e os lampiões e aí, do outro lado, eu tenho uma mineira de um metro e meio, a vó Rita que, nas férias, também ficava muito nesse quintal. Eu não ia pra Minas, meus pais sempre... enfim, se conheceram em São Paulo, meu pai veio pra cá com cinco anos de idade e a minha mãe com dois anos de idade, né, a família materna baiana e a paterna mineira, mas com poucas referências, assim, já de Minas ou da Bahia, porque se criaram mesmo por aqui e a referência que me vem desses lugares, enfim, dos falares e tudo, é por conta dessas avós. Então, minha avó paterna tem um quintalzão, assim, também. Desses que tinha parreira no quintal da minha avó. Então, eu, pequena, assim, com cinco anos, gostava de ver aquela chuva de uva, então, são lugares que me trazem bastante afetividade. Ela era bem divertida, fazia muita comida gostosa, sabe? Bolo, essas coisas. E a minha vó também é super contadora de causo, assim. Se ela vier aqui, ela via te contar várias histórias, assim, porque algumas que passam, né, pela questão também religiosa. Ela é adventista do sétimo dia, mas ela é super pra frentex. (risos) Hoje eu pergunto, ela não consegue
mais falar, mas eu lembro que tinha uma história que a minha vó, essa paterna, também teve muitos filhos, mas muitos abortos. Então, ela teve 16 partos, dos quais vingaram cinco crianças, mas entre esses 16 partos, a minha vó, que é mineira, um lugar que não tem mar, mas ela teve uma estrela do mar. Ela deu à luz uma estrela do mar. Uma tia conta. Então, a minha família tem essas histórias assim, tipo histórias míticas, místicas, né? (risos) E hoje, outro dia eu fui perguntar e ela: “Não sei, não lembro”, mas eu lembro que tinha essa história, de que minha avó tinha dado à luz uma estrela do mar. E sempre algum anjo sempre conversa com ela e ela é uma querida, assim.
P/1 – Nossa, você pode contar um pouco mais sobre isso?
R – O quê? (risos)
P/1 – Sobre ela ter dado luz à estrela do mar.
R – Então, hoje eu não consigo contar. Eu sempre tive essa memória, meu pai fala disso também, mas recentemente, até porque eu estava querendo fazer alguns registros de histórias de família e ela também está com 93 anos e aí agora tem muito mais os anjos e bem menos estrela do mar, né? (risos) Muito mais histórias de Jesus do que estrela do mar, mas eu lembro que acho que em um desses parques, ela, enfim, deu à luz essa estrela, mas ela tem umas histórias, assim, que às vezes uma estrela desce do céu e conversa com ela. Minha avó é assim, é dessas que conversam com as estrelas. (risos) E que já deu à luz uma estrela também. (risos) Mas hoje, se você perguntar, ela não vai falar, né, da estrela do mar. Mas dessas de que uma estrela do céu desceu, que o Senhor falou com ela, ela tem várias histórias, assim. Essa é a Dona Ritinha, né? Quase vereadora lá na zona leste, assim, porque é super conhecida por todo mundo, né, é uma querida, assim. Então, essa coisa de ser faladeira, né e contadeira, vem dessas pessoas. O meu avô paterno eu tive pouco contato porque ele faleceu eu tinha uns seis anos, mais ou menos, e a recordação que eu tenho dele já é mais assim na cadeira de rodas, né? Teve derrame. Então, eu não me lembro, assim, na verdade, de muitas coisas, mas enfim, veio de Minas também, trabalhou em São Paulo como pedreiro, né, no calçamento da Faria Lima, de coisas da Praça da Sé. Esse era o vô Geraldo, mas eu não tenho, enfim, muitas histórias, né? As mulheres acabam sempre ficando com uma memória mais forte, eu acho, que às vezes, os homens (risos), até porque eles faleceram cedo, né? Esse meu avô, mesmo sendo padrasto da minha mãe, tenho muita afetividade, mas ele faleceu também quando eu tinha uns 11 anos, mais ou menos, né? Enfim, é isso, um pouco, da árvore, né? E são muitas tias também, muitas coisas, né?
P/1 – Você lembra da história do seu nascimento?
R – Da história do meu nascimento? Mais ou menos, assim, porque eu era pequena, né? (risos) Mas, quando eu nasci, os meus pais estavam morando, recém casados, tinha um ano de casamento, casou e minha mãe logo deu a luz, assim, já, um tempo depois. Acho que com um ano de casada eu já nasci. A princípio, eles moraram um tempo com a minha avó, né? Acho que nos primeiros dois meses eles moraram na casa da minha avó. E depois eles conseguiram, nesses sorteios de conjunto habitacional, né, ela conseguiu um lote na Cohab e então eles construíram a nossa casa, que ficou sendo próxima também da casa da minha avó materna, né? E aí eles mudaram. Enfim, eu sei que antes de mim... ah eles remarcaram, assim, sabe, acho que o casamento, várias vezes. Tipo: tinha uma coisa que a minha avó paterna, sei lá, ficou doente e já tinha marcado o casamento. Minha avó paterna ficou doente, aí eles desmarcaram e aí, depois, eles remarcaram e a minha mãe foi ficando brava, né, de não casar logo. (risos) E aí, acho que no dia do casamento, parece que, nossa, teve muita chuva, minha mãe foi uma frustração, assim, com essa coisa, que no dia do casamento dela acho que, sei lá, choveu muito. No final, minha avó paterna não foi, né, também e ela, no começo da relação, tinha essa coisa: “Ah, eles casaram, sei lá, comigo no hospital!” E tudo o mais. Tinha uma coisa, assim. Meio que um mal-estar, assim, das duas e acho que com o meu nascimento, essa coisa do nascimento, essas coisas foram se apaziguando. Eu acho que os nascimentos, as crianças, trazem essa renovação, né, da energia, enfim, dos nossos familiares. Então, eu acho que eu fui essa junção, essa harmonização, né? A minha avó paterna já tinha os dois netos, mas a minha mãe é a caçula, assim, então, uma criança querida quando nasceu, apesar ali das dificuldades e quando você fala ‘a história do nascimento’, dentre todas essas histórias estatísticas do Brasil, eu faço parte de uma estatística bem ruim, né, que a minha mãe foi vítima de violência obstétrica. Ela, enfim, passou um tempo de conseguir ter o parto normal e ela tinha essa carinha, né, meio que de menina, assim. Quando chegou no hospital, eu não lembro exatamente, acho que era um hospital meio que de freira, alguma coisa assim, acho que Ana Neri, eu não me recordo exatamente qual foi o hospital, mas eu lembro que ela ficou de ambulância, indo de um lugar para o outro e, sei lá, não tinha vaga, até conseguir ir para um hospital lá de um plano e aí as mulheres falavam coisas horríveis pra ela, assim, do tipo: “Não foi bom na hora de fazer? Agora está gritando”. Sabe, assim, essas coisas? E aí, no final, ela não conseguiu ter o parto normal e chegaram a subir em cima dela, né, pra ela ter o bebê e ela não aguentando de dor e isso até, recentemente, ela me contou mais detalhes dessa história. E a minha avó, com esse monte de partos, teve os filhos dela todos em casa, né? A minha mãe nasceu no hospital, mas em um parto supernormal, assim, parto natural. Minha vó chegou – essa minha avó materna – a dar à luz sozinha. Em uma das ocasiões ela teve um filho sozinha e mandou uma criança chamar, tipo a vizinha, depois, assim, né, pra ajudar. Então, ela também tinha muito medo dessa coisa de hospital e ela falava pra minha mãe que não devia fazer escândalo, porque os médicos não gostavam, assim, né? Então, ela, com aquela super dor e aí subiram em cima dela e tudo e não rolou e aí ela começou... não lembro se ela começou a convulsionar, mas ela começou a passar muito mal e falaram: “Nossa, vai morrer mãe e filha” e aí fizeram uma cesárea na minha mãe sem anestesia. Ela, sentindo ali o corte, desmaiou e, na verdade, ela nem me viu, né, praticamente, nascer, assim. Foi uma coisa, uma história um pouco traumática, assim, do nascimento e aí, quem me pega primeiro, na verdade, é minha vó, né e minha mãe vai acordar, tipo, sei lá, horas depois, pra amamentar e aquela coisa ainda assim tipo: “Olha, a menina está no seu colo, não vai deixa-la cair”, assim, sabe? Ela meio grogue, assim. Ela contando isso, foram coisas que me fizeram sofrer bastante, porque a gente sempre acha que está na estatística, né? Sabia que tinha sido um parto difícil, mas não sabia que tinha sido assim. Eu também, ali, atrás de histórias da família. E eu fui filha única por praticamente sete anos, assim, sem pedir um irmãozinho pra minha mãe e tudo o mais. E eu acho que a decisão, na verdade, seria de repente de não ter mais filho, talvez até por conta desse trauma que ela passou, mas aí, depois, enfim, ela decidiu e, enfim, pra mim foi muito bom. Eu gosto muito dos meus irmãos, mas a gente tem uma diferença de idade muito grande, então eu acabei sendo uma segunda mãezinha deles e eles são muito mais próximos, enfim. Eles têm três anos de diferença e eu tenho sete anos de diferença, né, do do meio e do caçula eu tenho dez anos de diferença. Então, a gente acho que brinca e se conversa muito mais hoje do que ali quando pequeno, assim. Que eu ficava muito mais ali de cuidadora, enfim. No começo meus bonecos também. Do que agora. Mas a história do meu nascimento tem toda essa violência, né e essa coisa que muitas mulheres, sobretudo as mulheres negras, passam nesse país.
P/1 – Nossa, que forte! Queria perguntar qual você lembra que foi uma primeira palavra que você aprendeu, que você lembra e qual foi a primeira história que você ouviu, que você lembra que seu ouvido começou a ter contato com as histórias?
R – Nossa, eu não lembro qual foi a primeira palavra que eu falei. Minha mãe diz que foi papa. Tipo papai. Não sei de que outra palavra que você está pensando, se é essa. A primeira palavra, então, é papai. O que a deixou muito triste, porque ela queria que fosse mamãe, mas foi isso, uma coisa meio papa. E ela fala que eu comecei a... aquarianos são assim... andar, também muito cedo, né? Engatinhar muito cedo. Ela queria continuar amamentando, mas eu parei de mamar, enfim, com nove meses e com nove também ela fala que eu já ficava meio que em pezinho, ali, nos lugares e tudo, comecei a andar rápido, né? E história, assim, que meu ouvido acho que começou a ter o primeiro contato com as histórias, eu acho que a lembrança que eu tenho é essa, da casa da minha avó. Eu ficava muito com a minha vó. Meus pais eram autônomos, então eu passava o período da manhã normalmente com eles ou só com a minha mãe e à tarde eu ficava bastante na casa da minha avó. Ela teve umas tentativas de me colocar em escola de educação infantil, mas enfim, não dava certo também. Filha única, ela sempre achava que as pessoas não estavam cuidando direito, então uma menina muito protegida, assim. Acho que teve uma escolinha só que eu fiquei um bom tempo, depois já entrei direto no pré. Que foi a escola que eu estudei, enfim, até a oitava série, né, que hoje é o nono ano. Ms eu acho que eu penso, quando eu tento lembrar essa escuta de histórias, acho que me vem essa coisa do personagem, mesmo, ali: do lobisomem, esses causos de vô e de vó e eu tenho muita memória narrativa, mas a sensação de estar escutando as histórias no rádio, assim com a minha avó. E gostava muito disso, de ouvir essas histórias de rádio e de ouvir os adultos contando ali, pra eles, assim, essas coisas meio que de assombração, essas coisas que davam um pouco de medo, assim, de espírito, de alma penada. Dessas coisas, assim. Esses contos que têm bastante no norte, né? E, na verdade, enfim, eu falo que isso foi um solo fértil porque o meu caminho, na verdade, foi outro, assim, né? Eu, quando comecei a prestar vestibular e pensar em profissão, primeiro pensei, na verdade, em ser jornalista, aí não passei no vestibular, enfim, tentei de novo, aí depois eu pensei em Letras e, no final, eu entrei no mercado de trabalho cedo também, eu fui estagiária na antiga Nossa Caixa, Nosso Banco, né? Um Banco que era do Estado e foi vendido. E ali eram aquelas meninas do Posso Ajudar? Ficava ali no negócio do autoatendimento, era estagiária, com 16 anos, aí eu terminei a escola e aí não podia mais ser estagiária, né? Aí eu fui recepcionista e depois virei secretária numa casa de forró, que já fechou aqui também (risos), que era o Projeto Equilíbrio, bem no boom do forró universitário, assim, né? Então, fazia a produção dessas bandas tipo Fala Mansa, Circuladô de Fulô, Raiz do Sana. Aí inventei um jornalzinho nessa casa também, que saía a programação e aí eu falei: “Vamos dar um destaque pras pessoas que vêm aqui”. Não sei mais se tem esse jornal. Eu não tenho esse jornal, olha só, mas eu entrevistei o Dominguinhos na época, assim. E eu lembro do Dominguinhos falando que o jovem não se interessava, né, mais por nada e tudo e que era muito bom, né, que as pessoas pudessem, ali, enfim, contar a história no jornalzinho, mas que o jovem pudesse dançar na coisa do par, de você pensar no ritmo e de você pensar ali no outro, né? E é uma figura que, enfim, sempre tive muita afetividade, gosto de ouvir muitas músicas. Já ouvia de casa e, pra mim, assim, nessa época eu já tinha 18 anos. Foi, nossa, o auge, assim! Eu, que não tinha passado na carreira lá de jornalismo, ainda estava meio que fazendo o cursinho, mas pra mim já era ali um começo, com esse jornalzinho. Muito bacana!
P/1 - Mas voltando aqui, se você pudesse, você que é contadora de história, qual foi uma história da sua infância, como se fosse algum causo de infância que aconteceu, que te marcou bastante?
R – Um causo da infância, não de histórias que eu ouvia na infância?
P/1 – É, da sua vida, mesmo.
R – Da minha vida? Hummmmmmmm. Não sei se é uma história, mas acho que, de repente, quando você fala isso, me vêm à memória: eu morava em uma rua e tinha um feirante, um peixeiro. Ele tinha várias caixas. Essas caixas de plástico, né, na casa dele. E as pessoas sempre tiveram mania da coisa do carrinho de rolimã, assim. A gente não tinha carrinho de rolimã, mas tinha os caixotes de rolimã, assim. (risos) Era uma ladeira e aí a gente entrava nessa caixa, né, eu era amiga da filha dele e ele emprestava as caixas, assim e a gente descia aquela rua nesses caixotes, assim, pegava aquele embalo, empurrava e aí, enfim, meu joelho sabe. Contar essa história, ainda bem que estou de calça hoje porque, vira e mexe, a gente capotava com esses caixotes, assim. E aí, de outros causos que eu lembro também, de bicicleta. A gente não tinha, né, tipo um superpoder aquisitivo e então queria muito ter uma bicicleta. Não vou fazer propaganda pra marca, mas enfim, a bicicleta da modinha, que era uma bicicleta rosa, que tinha uma cestinha e tudo o mais. E aí meus pais fizeram ali um esforço pra me dar essa danada da bicicleta, isso é meio um trauma da minha mãe, que eu ficava: “Ai, que bom, Papai Noel trouxe essa bicicleta pra mim” e nunca agradeci, assim, né? Um dia ela falou assim: “Fui eu que deu essa bicicleta pra você”. E eu: “Não, você não tem pra me dar. Não foi você, não. Quem me deu foi o Papai Noel”. E ela ficou com essa frustração. E, no final, essa bicicleta, que eu moro em um bairro de periferia, né, então não eram todas as crianças que tinham a bicicleta e ainda mais a bicicleta da modinha, da cestinha, né, e tudo o mais. Aí várias crianças aprenderam a andar na minha bicicleta, mas eu mesma não aprendi a andar de bicicleta. Eu vim aprender a andar de bicicleta muito tempo depois, que eu tive essa e depois minha mãe comprou uma outra, né, porque eu fiquei maiorzinha e tentava tirar as rodinhas e eu nunca que aprendi a andar de bicicleta, mas o bairro inteiro aprendeu a andar de bicicleta nas minhas bicicletas, assim. Esse eu acho que é um causo, assim, de infância. E aí eu vim aprender, mesmo, assim, andar de bicicleta já com 30 anos. É uma coisa recente. Com 29 pra 30 anos. Eu fui em um desses projetos, assim, de Bike Anjo e aí aprendi a andar de bicicleta (risos) na Praça do Ciclista, pra ser a redenção do esforço dos meus pais de me dar a bicicleta da modinha e eu nunca consegui, ali, andar na bicicleta, mas eu descobri, uns anos depois - porque era meu pai que me levava pra andar de bicicleta - que meu pai mesmo não sabe andar de bicicleta. Eu que vou ter que levá-lo um dia no projeto. Ele quer aprender andar de bicicleta. Agora, com 62 anos. Então, é essa coisa de você sempre tentar proporcionar, né, na verdade, mais para os filhos, né, deles me darem esse presente, né, que é tão genuíno, que eles nunca tiveram e eu nunca tinha me atentado a isso, porque meu pai me dava todas as coordenadas de como que tinha que ser e ficava ali, segurando atrás: “Olha, presta atenção no equilíbrio” e tudo o mais, mas ele mesmo não tinha essa experiência no andar de bicicleta. Então, quando você fala nos causos da infância, me vêm essa coisa, acho, das brincadeiras.
P/1 – Coisa bonita! Você estava falando que você ouvia muitas histórias dos seus avós. Você lembra em que contexto isso se dava? Se pudesse descrever, se você lembra, mesmo. Eles chamavam as crianças e falavam: “Vamos contar uma história” ou começavam a contar um para o outro e você pescava? Como se dava esse momento de você ouvir história com eles?
R – Eles contavam, meus avós, enfim, muitos desses causos, essa família materna. Eu pescava muito, eu lembro mais disso. Mas às vezes a minha avó cantava umas cantigas que, enfim, não vou saber cantar aqui, agora e a gente tem um outro problema, assim, né, familiar, porque quando o meu avô faleceu, o segundo marido dela, enfim, ela ficou muito triste, né e tudo e ela achou um reconforto, né, mudando para uma religião pentecostal. E aí, o que acontece, muitas vezes, infelizmente, com muitas religiões, é de você negar muitas coisas, principalmente as coisas de encantamento. Existe um endurecimento, assim, pra aquilo que também é a ludicidade. E a minha vó parou de contar, né, muitas histórias, assim. Com 12, 13 anos, inclusive, ela parou de cantar, assim. Às vezes era difícil pegar. Ela cantava bastante coisas do tempo de roça, enfim, essas cantigas acho que de lavadeiras e tudo. Então, acho que você passa a cantar muito mais hinos, assim, da igreja. Você vai perdendo um tanto da sua própria cultura familiar e vai fazendo uma identidade acho que mais, sei lá, homogênea, né, dentro disso que é a cultura das igrejas, enfim. Não é uma crítica porque, enfim é importante, é reconfortante, mas eu percebi isso ali na minha família. Mas anteriormente, enfim, tinham muitas cantigas, né, que minha vó cantava e às vezes ela contava alguma história dessas cantigas, assim. E uma coisa muito curiosa, em uma dessas histórias que eu lembro, da minha avó me contando... a minha avó, também tem até um depoimento dela que ela nadava muito bem, né e ela conseguia pegar peixe com a mão, assim, até e era um açude que ela falava que tinha muitos peixes e tudo o mais. E eu tinha uma memória muito fragmentada, que eu comecei também tentar buscar essas histórias, assim, de infância, quando eu comecei a trabalhar com a narração de histórias, de alguma história, enfim, que tinha alguma coisa de um peixe encantado, de história ali da Bahia, não lembrava exatamente a narrativa, né? E quando eu comecei a contar as histórias, eu vi que isso, de fato, tinha um poder muito grande, que eu comecei a narrar em uma biblioteca, em um projeto de mediação de leitura, então tinha que fazer a mediação, ali, de leitura e uma das minhas funções, pelo menos uma vez por mês, eu tinha que trabalhar a oralidade com as crianças e trabalhar uma narração de histórias e eu não era uma contadora de histórias, né, até então. Aí eu, enfim, comecei meio que, enfim, você começa como? Começa começando. Tinha referência de um menino que já trabalhava no lugar e então eu o vi contando, né? A gente contou uma primeira vez juntos, depois eu tive que contar separada. Me veio aquele susto, mas as crianças super gostaram, vieram me abraçar naquela semana, enfim, no final. E aí eu falei: “Não, eu preciso entender o que é isso que eu estou fazendo” e eu comecei a estudar, enfim, a teoria e encontrei um curso e eu fui fazer uma formação com a Stela Barbieri e o Fernando Vilela sobre narração de histórias, um curso de extensão e ali, enfim, apresentando a bibliografia, a gente pensando sobre essas histórias, já pensava essas histórias, enfim, na biblioteca, mas pensando o quanto isso é um recurso humanizador, a gente tinha uma prática que era pra narrar uma história, assim, no final do curso, meio que dividido e também foi o presente que ela me deu, que ela me deu uma versão de uma história que se chamava As Comadres, mas de um livro que chama Cinderela Baiana e que tinha justamente, as marcas de oralidade, assim e essa história foi muito emocionante pra mim porque era um resultado de uma pesquisa e então tinha a transcrição e então, ao ler essa história, eu conseguia ouvir muito do tom ali, da minha vó, das minhas tias, né, aquele tom, aquela baianidade ali e me remeteu a essa história que a minha vó já contou pra mim em um desses momentos, assim, dessas cantigas e dela falando que ela também pescava com a mão e que tinha esse peixe, que era um peixe... eu lembro que tinha uma coisa que era um peixe encantado. Então, eu atribuí essa história a essa narrativa que a minha avó contava pra mim, mas eu meio que reconstruí essa história já na vida adulta e achei que ela tinha bastante semelhanças. Então, a gente chama de Cinderela Baiana. A minha avó nunca chamou de Gata Borralheira, nada, mas tinha um peixe mágico, ela tinha uma cantiga que era alguma coisa, enfim, de água e tudo o mais, mas tinha um peixe mágico que ajudava uma menina, né? Enfim, sempre achei que essa menina era ela também e depois, quando entrei em contato com a história, que é uma história que foi recolhida no interior da Bahia, em Inhambupe, não é o mesmo distrito que minha avó morava, mas eu acredito que são coisas que circulavam ali, porque as histórias é isso: elas vão pegando nacionalidade, vão pegando territórios e falários por onde ela vai passando e quem vai contando também vai se apropriando, mas achei curioso, né, de ser um conto popular, uma versão de Gata Borralheira, justamente no interior da Bahia e com um pouco do arquétipo que minha avó, ali, narrava pra mim. Então, essa é uma história que eu sou apaixonada, assim, por ela, porque foi uma primeira história que eu estudei de um outro lugar, né, a forma, enfim, de memorização, mas sobretudo ela... se eu quero contar essa?
P/1 – É.
R – Não tinha pensado, mas pode ser. (risos) Pode ser. Ela é uma história que, o que aconteceu?
P/1 – Mas calma. Você está falando que você tinha trabalhado outro jeito de memorização dela. Como é que foi?
R – Não. Então, antes, eu, enfim, lia a história, meio que fazia um ponto dessa história, colocava ali algumas palavras chaves e contava, assim, o que ficasse forte ali, pra mim. A partir desse curso, eu fui fazendo essas orientações que a Stela foi passando pra mim e que também passa, na verdade, por discussões e estudos da Regina Machado também, que é de você, de repente, dividir a história ali em oito partes e buscar oito frases que sintetizem essa história e depois, enfim, ali em oito palavras e de você pensar em objetos e em recursos, em sons que te ajudem a contar essa história, em função das partes que você separou. Então, essa que foi uma primeira história que eu comecei a memoriza-la ali com uma metodologia, mas ela, na verdade, me pegou pela afetividade, por essa possibilidade de poder encontrar com a minha avó a partir dessa história, né? Assim como a primeira que eu contei também. Então, as histórias que eu decido contar, a maioria das vezes, ou porque elas me trazem, enfim, uma sensação, eu gosto de conto engraçado, né? Ou porque ela me traz alguma coisa, enfim, de felicidade, que eu acho que de repente eu tenho possibilidade de fazer o outro rir. Ou porque ela conversa com alguma paisagem interna, minha, com alguma subjetividade, ainda que isso não esteja, né, explícito, ali no conto, né, mas essa, em especial, é porque ela me possibilitava esse encontro, né, com o quintal da minha avó e com a casa da minha avó, que é uma casa muito simples, uma casa de vermelhão, né? E eu sempre pensava nela, assim, quando estava contando a história, na possibilidade também meio que dela ser um peixe, dela ser ali ajudada e ela que conseguia pescar com a mão. Porque ela também saiu de casa muito cedo, porque tinha um padrasto superviolento e foi criada ali na roça sozinha e tudo, então alguém que teve que se emancipar muito cedo, então, por várias violências, ali, domésticas. Então, quando eu vejo a menina, é só uma história, de repente é só uma Cinderela, mas me vem um pouco dessa memória. Posso tentar, aqui, contar pra você. Vou tentar ser breve. Porque ela é longa, também. Não ia contar, mas ela é assim:
“Era um lugar que tinha duas comadres. Uma era rica, rica, rica, de marré, marré, marré e a outra era pobre, pobre, pobre de marré deci. As duas mulheres, todas duas, tinham meninas. E as duas meninas se chamavam Maria. Tinha a Maria da comadre pobre e a Maria da comadre rica. Como a da comadre pobre comia menos, então ela foi ficando pequenininha, né? E aí a gente a começou chamar, então, de Mariazinha. E todos os dias a comadre rica chamava a comadre pobre pra ajudar no serviço da casa. E a outra atravessava com a menina, ajudava naquele serviço de casa, né, ali, limpava, lavava e ela ficou sendo a madrinha, né, da Mariazinha. Toda vez que a comadre rica olhava pra menina, ela falava assim: “Ô, minha comadre, me dê essa menina pra mim, me dê minha afilhada pra eu criar, deixe estar que eu cuido dela direitinho”. E a mãe da menina falava: “Minha comadre, eu não dou, não. Eu só tenho essa meninazinha. Eu não dou, não”. Mas a mulher, gente, foi ficando com uma maldade e foi ficando com uma fissura de querer ter a menina de qualquer jeito. Quando foi um dia, ela fez um plano diabólico com a intenção de matar a comadre, pra poder ficar com a menina. Chamou a mulher pra tomar um banho de rio, naquele lugar que era mais fundo, só pra fazer um passeio pra perto do rio. Porque naquele tempo ninguém sabia nadar. Não tinha esse negócio de saber nadar. Ninguém sabia nadar. Deixou as meninas ali brincando, nossa e quando a comadre pobre estava distraída, a mulher foi e EMPURROU a comadre pobre pra dentro do açude! E a mulher caiu dentro da água e foi afundando, afundando, afundando, afundando, afundando, e eu só sei, na verdade, é que a mulher morreu! Mas ela não morreeeeeeeeu assim de vez, ela encantou, virou um peixe, que era a coisa mais linda, que começou a viver ali naquele poço, naquela água. E, logo que ela voltou pra casa, a meninazinha, a Mariazinha foi logo perguntando: “Ô, minha madrinha, cadê minha mãe, cadê mainha?” “Ah, sua mãe ficou ali, fazendo não sei o que, ela já é vem, ela já é vem” “Mas cadê mainha?” “Ahhh, ela já é vem”. E ela, uma menina pequena, a madrinha, a comadre rica, foi enganando a Mariazinha. Deu um cafezinho, umas bolachinhas, e tudo e o tempo foi passando e ela era pequena, ela acabou esquecendo a mãe. Quando ela estava meninazinha assim, não sabe, de sete pra oito anos, nossa, a comadre já juntava aquela roupa da casa inteira, a roupa toda e dava pra menina ir pro rio, pra lavar. E a menina ficava chorando, né, porque ela não sabia lavar roupa, porque ela era pequena ainda e aí ela ia com aquela trouxa pesada pra beira do rio, pra lavar a roupa. Quando ela está assim, gente, olhando e chorando e chorando e chorando, uma lágrima salgada dela, caiu, gente, no meio daquela água doce e, quando isso aconteceu, daqui a pouco é vem a (gabrina?), é vem aquele peixão, com aquela dor dourada, que era a coisa mais linda! O peixe colocou a boca assim pra fora e disse: “O que você tem, Maria, que você tá chorando desse jeito?” “Ahh, foi minha madrinha, que mandou pra eu vir lavar essa roupa e eu não sei lavar essa roupa”. E o peixe disse: “Ô, Maria, me dá a roupa aqui, que eu lavo”. E o peixe abriu a boca desse tamanho e a Maria foi jogando a roupa dentro da boca do peixe. O peixe afundou. Quando foi meio dia... não, antes do meio dia, o peixe voltou com a roupa já dobrada, lavada e seca. Até eu queria um peixe desse pra mim, né? E era só a Maria pegar a roupa, dobrar e levar pra casa. Quando chegou em casa, a madrinha dela olhou aquela roupa tão bem lavada, toda engomada e falou: “Maria, ô Maria, quem foi que lavou essa roupa, Maria, tão bem ligeiro, tão bem lavada, que você não sabe lavar roupa desse jeito?”. Ela: “Fui eu, minha madrinha, que lavei”. Ela: “Maria, sua mentirosa, quem foi que lavou?”. E ela: “Fui eu, minha madrinha”. A mulher, sabendo a maldade que ela tinha feito, ficou ainda imaginando, suspeitando que talvez pudesse ter sido a mãe dela, né, que tinha ajudado de alguma maneira, mas não sabia ainda que a mãe tinha encantado, né, que tinha virado um peixe. E ela ficou só observando. E a Maria passou dessa por pouco. Quando foi da outra vez, a Maria chegou na beira do rio e nem ficou chorando, porque ela já sabia que o peixe vinha ajudá-la a lavar. O peixe abria a boca, ela colocava a roupa, o peixe afundava e trazia a roupa já lavada e dobrada e seca. Aí o peixe avisou pra ela: “Olha, Mariazinha, você preste atenção, que quando a sua madrinha descobrir que sou eu que estou lavando sua roupa, ahhhhhh ela vai querer me pegar, ela vai querer me comer, com certeza e você que vai me preparar, então, você não prova de mim, se isso acontecer, você não prova de mim nenhum pedaço, nada, você não pede nada, não come nada meu e você também não perde nenhum pedaço meu. Em horas que ninguém veja, você junta tudo que sobrar, todas as escamas, as espinhas, o fato e tal, e você vai enterrar na porta dos reis. Em horas que ninguém veja, viu? Você vai lá e enterra na porta dos reis. E a menina falava: “Não. Ela não vai descobrir, não. Ela não vai descobrir”. Quando foi a terceira vez que ela foi lá pra lavar a roupa, a madrinha dela, a comadre rica, já disse pra filha dela, lembra, que também chamava Maria: “Você vá, Maria, pra ver quem está lavando a roupa de Mariazinha, que ela não sabe lavar roupa assim tão bem ligeiro, que eu quero pegá-la hoje e depois você volta aqui e me conta”. E ela, sem perceber, foi seguida ali pela meia irmã. A menina ficou por detrás daquelas moitas que tem, sabe, na beira de rio e ficou só vendo a hora que a Mariazinha colocou a roupa dentro da boca do peixe. Ela voltou e falou: “Minha mãe, mainha, pois é um peixe que toma a roupa de Maria e lava, mainha. É a coisa mais linda, mainha! Um peixe dourado!”. E a mulher foi ficando com um ódio e foi logo pensando: “Ahh, isso só pode ser a mãe dela que encantou” e a raiva foi subindo pelo estômago e a mulher foi ficando com o olho vermelho e foi tudo estatelando, naquele olho, daquele tamanho que, quando a menina chegou, a mulher era só raio e trovão de raiva e falava: “Maria, eu já descobri que não é você que lava essa roupa. Eu descobri que é um peixe que toma sua roupa e lava. Pois saiba que eu vou pegar esse peixe pra eu comer, viu, sua menina? Eu vou pegar esse peixe” e aí inventou que estava com vontade de comer peixe e mandou não sei quantos pescadores jogar a rede lá no poço, que não teve jeito. Quando foi no final da tarde do dia seguinte pegaram o peixe e a mulher ficou numa satisfação só e disse: “Ah, taí, Maria, esfole e trate, prepare esse peixe pra mim” e a menina já estava sabidinha, né? Ela sabia que aquilo não era, assim, um peixe, né, qualquer. Que aquilo ali só podia ser a mãe dela, de alguma forma, a ajudando. Pois ela pegou o peixe, gente, chorando e foi cantando assim:
“Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?
Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?
Como poderei viver?
Como poderei viver?
Sem a sua, sem a sua, sem a sua companhia?
Sem a sua, sem a sua, sem a sua companhia?”
E preparou o peixe. A comadre rica, que era madrinha dela, comeu. A meia irmã Maria comeu também, mas a Mariazinha não tocou nada, nem pra ver se tinha sal. E a mulher ainda ficava: “Mas você não vai querer do peixe, não, Maria? Não vai querer, não? Não vai querer provar?”. E ela: “Não, minha madrinha, eu não quero, não. Eu não estou com fome”. Quando todo mundo foi dormir a Mariazinha juntou as escamas, as espinhas, o fato, tal e, quando foi tarde da noite, meia noite, em horas que ninguém via, ela caminhou por um caminho, numa noite sem lua, no meio daquela escuridão, chegou na porta dos reis, cavou um buraquinho e enterrou o restinho do peixe. E voltou pra casa. Quando foi no outro dia o príncipe acordou com um cheiro maravilhoso exalando pela casa inteira, pelo quarto dele, ele falou: “Mas que cheiro é esse, que eu nunca senti esse cheiro antes?”. Quando ele abriu a porta do quarto, que dava pro pátio, nossa! Estava aquele pé de flor que era a coisa mais linda do mundo! O lugar onde não nascia rosa, nasceu uma rosa lá naquele lugar. Ele ficou: “Mas que flor maravilhosa é essa, que eu quero essa flor pra mim”. Quando ele foi pegar a flor psiuhhh, subiu, ficou lá em cima. Ele achou aquilo estranho. Quando ele se afastou, pouhh, a flor descia. Quando ele ia pegar de novo, psiuhhh, a flor subia. Ficava lá em cima. Quando ele se afastava, pouhhh, descia. E aí, ele vendo que o negócio estava difícil, chamou todo mundo da casa pra pegar aquela flor, todo mundo que tentava, psiuhhhh, subia. Quando as pessoas afastavam, pouhhhhh, descia. E ele, vendo que o negócio estava difícil, já foi avisando que se fosse uma menina moça que tirasse aquela rosa, nossa, ele casaria. Se fosse uma senhora ou um senhor, que ele dividiria a metade do tesouro, a metade da riqueza dele. E aquilo se espalhou e todo mundo da cidade foi tentando pegar aquela rosa. Todo mundo que tentava psiuhhhh, a flor subia. Quando se afastavam, pouhhhhhhh, a flor descia. Que ninguém, gente, conseguiu. Nem homem, nem velho, nem mulher, nem criança, ninguém conseguiu. E aí ele ficava: “Ô, gente, mas não tem mais uma pessoa, nenhuma, que pode vir aqui pra tirar esse pé de flor pra mim?” e um dizia: “Eu não tenho”, o outro: “Eu não tenho”. Quando foi de repente que a comadre rica, né, madrinha da Mariazinha, falou: “Lá em casa tem uma meninazinha, mas ela não pode vir, não, que ela está toda suja” e o príncipe disse: “Traga, assim, mesmo” “Mas ela está muito ruim, não tem nem o que calçar” “Traga, assim, mesmo”. Porque ela dava todo maltrato pra bichinha. Daqui a pouco, gente, é vem Maria com um vestidinho coisa, toda molambenta, toda rasgada e olhou pra aquela flor e começou a cantar:
“Flor, minha flor
Flor, vem cá
Flor, minha flor
Laiá, laiá, laiá
Como pode um peixe vivo
Flor, vem cá
Viver fora da água fria?
Lalaiá, laiá
Como poderei viver
Flor, vem cá
Sem a sua companhia?
Lalaiá, laiá
Esse nobre cavalheiro
Flor, vem cá
Quer o seu perfume ter
Laiá, laiá, laiá
Flor, minha flor
Flor, vem cá
Flor, minha flor
Laiá, laiá, laiá”
E assim, cantando, ela foi, splash, e quebrou a rosa. E entregou para o príncipe. E ele via que aquilo ali não era qualquer menina, que aquilo ali era uma menina especial. E decidiu que ia casar com ela. Mas primeiro a colocou pra dentro de casa, pra terminar de crescer, né, porque ela estava muito menina moça ainda, pra casar. Quando ela cresceu, ele casou com ela. E a comadre rica, a madrinha dela, ficou só com a inveja e falando pra filha dela, que também chamava Maria: “Mas Maria, por que você não foi tirar aquela rosa? Por que tinha que ser Mariazinha, pra pegar aquilo ali?”. E elas ficaram com uma inveja, gente, porque a riqueza, mesmo, tinha que ser só da Maria. Aí acabou. (risos)
P/1 – Que maravilha de história! Nossa, gratidão!
R – Essa é uma pesquisa, né, de Cinderela Baiana e aí eu acho que, através dela, eu meio que consigo, sei lá, encontrar com minha avó e, na construção dessa história, eu fui colocando... é um pouco maior do que isso, tentei ir resumindo, mas eu fui colocando outras músicas, com parceiros meus, né, que são músicos e cantigas, né, populares porque me remete a esse tempo ali, dela meio que lavando louça, cozinhando, cantando e eu ali, meio que na beira do fogão e brincando ali no chão de vermelhão. E essa coisa do peixe, assim, que me encanta bastante, né? Ela é só uma história, mas ela mostra muito, né, da realidade de muitas meninas, essa coisa de começar a lavar roupa cedo e lavar roupa em beira de rio, onde existia muito dessa cultura, né, de dar os filhos, né, quando você não tem muita condição, então tem sempre um apadrinhamento, uma madrinha que, de repente, vai substituir esse papel da cuidadora, né, da mãe, mas é quem, na verdade, coloca esse ser em uma situação de maior vulnerabilidade do que se tivesse ali com a própria mãe. Então, essa história me diz muitas coisas, né, pra além dos encantamentos e desse encontro, mesmo, com essa vó. E aí, pra essa madrinha, né: “Ô, Maria”, como minha vó veio pra cá muito cedo, a minha família meio que se perdeu, assim, então tinha um monte de gente na Bahia que eu não conhecia. E aí eu fui fazer uma viagem com a família do meu pai, na verdade, fui pra Ilha de Itaparica e decidi ir atrás da família que eu não conhecia, né? Consegui o contato de uma prima e aí ela foi me levando, eu descobri tipo uns 40 parentes, assim. Entre primos e primos de segundo grau e tia que eu não conhecia, que minha mãe tinha perdido contato. Descobri que um dos filhos da minha vó tinha falecido e vim com esse peso de trazer essa notícia pra ela, alguém que fazia muito tempo que ela não tinha, ali, contato e eu tinha essa prima que tinha uma neta que, às vezes, por qualquer coisa, ela brigava com a menina e falava: “Ô, Rebeca” e isso (risos) entrou na história, assim, né, quando eu penso nessa baiana, assim, um pouco brava e soltando raios e trovões. Eu achava divertido ali o jeito que ela brigava e então eu saí fazendo uma colcha de retalhos ali e essa cantiga do peixe é uma cantiga que eu também lembro, assim, muito, de criança, tem um mineiridade também. Então, o conto é baiano, mas a gente vai colocando outras paisagens, né?
P/1 – O conto é a Cinderela, mesmo?
R – O conto tem todo o arquétipo, né, da Cinderela: no lugar do peixe... no lugar da fada madrinha, na verdade, a gente tem um peixe; no lugar do sapatinho de cristal, você tem uma flor, né? No lugar da madrasta, você tem essa madrinha, né? E, no lugar da Cinderela, você tem Maria. Normalmente, em conto popular, às vezes os personagens não têm muito nome, né? Mas eu acho isso muito significativo, né, de ser Maria. E das duas chamarem Maria. Porque quantas não são as Marias desse Brasil! Acho que é um nome bem emblemático, né? A Maria somos todos nós, assim, né? São as mulheres. Mariadeiras. (risos)
P/1 – Eu ia perguntar se você lembra como era o seu contato com os livros? Contar um pouco a trajetória, se você chegou a ler bastante na infância?
R – Eu gostava muito mais de gibi, assim. Pira por gibi. Gibi e Revista Recreio, assim. Era o que fazia os meus olhos brilharem. De leitura, eu lembro, na verdade, de um livro de adulto, assim, que meu pai lia, que era o Boa Nova e eu lembro que tinha um mapa, assim, no final, dos planetas e tudo o mais. Aquilo me encantava, eu gostava de vê-lo lendo e dele me mostrando ali as coisas também. E é engraçado que a gente lia, todo domingo... eu não lembro exatamente de nada do Evangelho, mas todo domingo a gente lia o Evangelho em casa, assim, era engraçado. Porque às vezes era um pouco chato, mas eu tenho essa memória da leitura, assim, que era aconchegante, na verdade, com os meus irmãos e aí meu pai lia e depois a gente ia conversar sobre o capítulo. Teve um momento da vida que ele estava super disciplinado com essa coisa de ler em casa, ele ficou estudando o Kardecismo e tudo. Então, tinha essa prática. Acho que rolou, sei lá, uns dois anos. Eu não lembro muito bem que idade eu tinha. Acho que oito pra nove anos, mas a gente, enfim, lia e depois tinha que conversar sobre isso. E os livros de literatura infanto-juvenil eu lembro muito daqueles que também foram adotados pela escola, então...
P/1 – É isso que eu ia perguntar: se você lembra, se teve alguma professora que te encantou com a palavra?
R – Não. Sim, mas já mais velha, que já era a professora que eu acho que contribuiu muito pra quem eu sou hoje: a professora Rosângela. Um beijo, professora Rosângela. Mas era professora do sexto e do sétimo ano. Porque ela tinha um projeto de teatro, assim, no contra turno, então ela incentivava, ali. A gente fez algumas peças super caseiras, mas eu me lembro de um dos anos que tinha um monólogo. Então, cada um contava ou inventava uma história a partir de uma música, né? E eu lembro dessa performance, assim, enfim, que eu pude fazer. E que era teatro, mas que é muito parecido com o que eu faço hoje, né, que é contar uma história ali, sozinha. E ela tem essa grande contribuição. Agora, dos livros, eu me lembro que o Ricardo Azevedo e a Tatiana Belinky são literaturas ali que me marcaram, assim, né? Do Ricardo Azevedo é um livro de poemas que chama Casa do Meu Avô e aí, de novo, essa coisa do avô, (risos) que era a história, sei lá, de um menino, que vai passar as férias na casa do avô e aí, cada poema é de um personagem dessa fazenda. Então, tinha um maluco, uma menina que ele gosta, enfim. Eu lembro que eu sabia essas poesias de cor. E da Tatiana Belinky, o Cofre do Tio Onofre, assim, que era uma história de mistério, mas bem engraçadinha, bem de criança. E eu falo muito do Ricardo Azevedo porque depois, quando eu comecei a narrar profissionalmente as histórias, uma história que eu contei durante muito tempo foram as histórias do Pedro Malasartes, mas sobretudo A Quase Morte do Zé Malandro, né, que foi uma primeira história, assim, que eu também contei ali profissionalmente, assim, no Sesc. Essa foi uma primeira história, ali, que eu contei. Então, eu reencontro com esse autor anos depois e o trabalho riquíssimo que ele tem, de registrar os contos populares, assim. Mas eu acho que a questão da narração de histórias não vem - é isso: é um solo fértil à questão da infância – mas ela não vem na minha vida por isso, né? Então, quando eu estava falando pra você: fui ser secretária e aí, depois, eu fui trabalhar em um ambiente corporativo e então trabalhei um tempo em uma empresa de operadores de telemarketing. Eu fui operadora, inclusive, durante uns nove meses, assim, depois eu fui promovida pra ser analista e eu sempre tive isso, assim, né, tirando ali o secretária e a coisa do Posso Ajudar?, de estagiária, nessa minha vida adulta, né, eu sempre tive cargos e profissões, de repente, que não existem, né, ou com nomes engraçados. Então, quando eu virei tipo analista...
P/1 – Eu ia falar só, se você pudesse pegar, então, do primeiro trabalho, já que você está falando de trabalho. Mais uma passada: o primeiro trabalho que você teve, assim. Conta, já.
R – Então, trabalhos eu já tive muitos, né? (risos) Eu acho que, quando eu penso em trabalho, assim, mesmo, eu queria, enfim, sair e queria, às vezes, ter outras coisas, então minha família ali com três filhos, né, meu pai autônomo, minha mãe funcionária pública, então sempre teve uma coisa bem empreendedora em casa, né? Então, meu pai teve loja de roupa, bombonière, eu também meio que o ajudava ali e às vezes ganhava a mesada, mas na escola eu já vendi papel de carta, no ensino fundamental II; no fundamental I eu lembro que no primeiro colegial eu era conhecida como a menina das trufas, então eu vendia trufas; e depois, quando eu fui estagiária desse Banco, Nossa Caixa, Nosso Banco e, quando terminou o estágio, eu fui ser secretária nessa casa de forró, que era o Projeto Equilíbrio e aí circulava também ali pelo Remelexo, uma casa que tinha na Cardeal, que era o KVA, danado de bom. Eu vivi muito esse tempo, assim, né, do forró e, como eu queria fazer cursinho, não queria ter que trabalhar e fazer o cursinho, então juntei uma graninha e depois eu saí desse trabalho e resolvi ficar uns seis meses estudando pra prestar o vestibular, aí não passei e entrei nessa empresa, que era uma empresa de operadora de telemarketing, trabalhando ali na Paulista e era terceirizada, na verdade, de um Banco, enfim, X, né? Um Banco grande. Então, eu tinha esse relacionamento com os clientes que tinham um grande poder aquisitivo, mas que não estava movimentando a conta, aí ligava ali pra saber se estava tudo bem, oferecia uns brindes e tudo o mais. E aí, pelo destaque no cumprimento das metas, eu fui promovida pra ser analista de qualidade, mas eu cuidava de campanhas motivacionais no setor que eu trabalhava. Então, primeiro era um modelo, ali, para as pessoas, né? Quando você fala: “Quando você começou a contar história?” Acho que, profissionalmente, sendo operadora de telemarketing. (risos) Que você está sempre ali contando uma história para o cliente. E eu era modelo também, para os outros, pra quem chegava na operação, então eles chamavam de carrapato. Então, era uma pessoa que ficava ali comigo e eu ensinava as abordagens, enfim, as regras, mas eu comecei a ter esse trabalho de fazer campanhas de incentivo pra quem batia meta, né, desde ficar dando brindes, sei lá, uma paçoca, pra cada venda, doce, até, enfim, viagem de final de semana. Quando tinha essas metas que são coletivas, fazer uma viagem para um sítio, né, com todo mundo da operação, com churrasco e tudo o mais. E aí ficava incentivando a galera a vender. Mas isso em um setor menor.
Aí, enfim, deu certo e aí eu virei supervisora. Como é que pode, né? Supervisora motivacional. (risos) De várias operações! E de várias terceirizadas. Enfim, sei lá, TecBan, Banco do Brasil, todos os operadores que eram terceirizados eu meio que fazia essas políticas de incentivo, né, em parceria com outros analistas. Então, um trabalho meio que, sei lá, de endomarketing, de clima da empresa e, quando tinha datas comemorativas, as pessoas iam fantasiadas também. Eu ficava inventando: o Dia do Pijama, ahhhhhhhhh a sexta-feira junina, coisas ali pra desestressar, porque é um ambiente extremamente desumano, né? E que tem essa coisa da meta muito forte. Isso, sei lá, 2002, mais ou menos. Os programas de cuidado, mesmo, dos profissionais, acho que não eram tão seguidos, assim, sabe? Então, as pessoas trabalhavam seis horas, e nessas seis horas, elas tinham que ficar com aquele headset e elas tinham 15 minutos pra poder tomar um lanche e cinco minutos de banheiro. E cada vez que você se ausentava do seu posto de trabalho, você tinha que colocar um código. Então, ‘eu quero fazer xixi de novo’ meio que não pode, assim, sabe? O pessoal meio que era descontado. Então, é uma coisa super constrangedora e que as pessoas vão ficando estressadas e então, esse era um trabalho que me dava um prazer e que eu era, também, muito querida, porque trazia essa alegria ali, né, para o ambiente, mas conforme eu fui crescendo na empresa, eu deixei de ser terceirizada e passei, na verdade, fui incorporada como funcionária do Banco, era um grande sonho e aí, paralelo a isso, quando eu entrei na universidade, eu meio que entrei pra fortalecer algo que eu já fazia, né? Então, como eu estava muito mais próxima da área de Recursos Humanos, na minha época eu fiz Pedagogia com habilitação em Recursos Humanos. Porque tinha isso. Então, eu já dava treinamento, trabalhava com treinamento e então eu fiz essa formação. Mas justamente quando eu fui promovida que, sei lá, era algo que eu queria bastante, que todo mundo quer deixar de ser terceirizado, né, pra ser o cliente, ali, então, pegava um cargo de supervisora, mas atuava, na verdade, quase como uma coordenadora, né, porque eu era supervisora e tinha mais oito supervisores, né, abaixo de mim, com 400 operadores de telemarketing ali pra você responder e não mais fazendo essa parte gostosa, que eu cheguei a contratar pessoas pra dar palestras motivacionais, eu era a pessoa que organizava as festas, né, super bacana. Eu ficava, só, na verdade, pra controlar, mesmo, os resultados, né? Então você começa a lidar, ali, com os números e não mais com pessoas. Então, tem a matrícula da pessoa: ela é o X939, vendeu tanto, recuperou tanto. Era um setor, quando eu tive essa promoção, justamente, de cobrança. E, vendo ali as pessoas adoecendo e, quando a pessoa não cumpre a meta por três meses, as pessoas precisavam ser desligadas e quem tinha que fazer essa lista de desligamento era eu, assim. Então, eu fui ficando extremamente estressada e eu comecei a ir trabalhar chorando, assim. Estava tudo bem, na hora que eu chegava pra trabalhar, eu tinha que ir direto para o banheiro porque eu começava a chorar e algo me dizia que não estava tudo bem porque, enfim, a regra é da empresa, mas você que meio escolheu estar trabalhando naquilo, assim. Então, às vezes, as pessoas tinham problemas pessoais como eu acompanhei, que foi o estopim pra mim: houve acho que um falecimento e uma pessoa que sempre deu uma produtividade, é óbvio que decaiu a produtividade dessa pessoa, ela não conseguia mais bater as metas, enfim, passou os três meses e eu: “Ai, não, segura, né?” Quatro, cinco e: “Não dá mais pra segurar”. Porque aí, se você não manda embora, você que também tem que responder por aquilo, você que é mandado. Então, está sempre renovando, as pessoas passam a ser números e passam a ser descartáveis, assim. Aí eu fui ficando com essa angústia e eu queria estar em qualquer lugar, que não aquele, assim. E foi muito místico, porque justamente no dia que a minha equipe, no geral, essa operação bateu lá uma grande meta, a gente foi ter uma reunião nesses cafés chiques, com o diretor, pra falar o quanto a gente era maravilhoso, não sei o que e aquelas taças de cristais e bla bla bla e eu falei: “Nossa, eu não queria estar aqui de jeito nenhum, né? Acho que não tem mérito nenhum”. O dia que a gente estava sendo premiada, eu não via mérito nenhum pra minha vida, pra aquilo que eu estava fazendo. Não tinha nada a ver com os meus valores, assim. Eu estava muito sentida. E justamente nesse dia uma colega que trabalhava em um colégio de grande porte em São Paulo, enfim, tem várias unidades, estavam implementando um projeto de mediação de leitura e com incentivo, na verdade, né? Um trabalho de incentivo à leitura nas bibliotecas e que tinham profissionais mistos, não eram bibliotecários. Um trabalho que eles chamavam de infoeducação. É uma linha de pesquisa de um professor da USP, Edmir Perrotti, e mesmo eu nunca tendo trabalhado em escolas, enfim, eu já tinha, também, feito, nessas coisas de trabalhos, bico em buffet infantil, já vestia aquelas roupas, assim, um pouco, na adolescência, e sou comunicativa, né, sempre tive um pouco de jeito, ela falou assim: “Eu acho que tem tudo a ver com você, por que você não tenta, eu vou te indicar” e eu falei: “Eu quero porque eu não quero estar aqui, mesmo” e aí eu fui nessa reunião de manhã ganhar prêmio e tudo o mais e fui fazer a entrevista à tarde no colégio, né e fiquei super insegura porque não tinha uma experiência escolar, estava terminando ainda a Pedagogia, não estava formada e, pra minha surpresa, eu fui falando, enfim, das minhas experiências anteriores, a questão da recreação e, enfim, era pra ser meu, elas gostaram e se propuseram, enfim, a investir na minha formação e eu fui contratada pra trabalhar nesse projeto de mediação de leitura e aí uau, né? A primeira coisa, o que eu queria primeiro era sair daquele lugar, então ok. (risos) Vou sair. Então, vamos ver depois o que a gente vai fazer. Então, eu precisava trabalhar com os livros paradidáticos, ter atividades e intervenções ali na biblioteca que incentivasse as crianças a ler e precisava fazer essa questão da narração de histórias, que eu não tinha ideia de como eu ia fazer, né? Na faculdade eu tive as disciplinas ali de literatura infantil. Essa disciplina foi fundamental pra eu ter coragem e foi justamente essa disciplina que começou a me desestabilizar no trabalho. Eu pensando no lúdico, na humanidade das histórias. Então eu tive essa professora que marcou muito, que foi a professora de Literatura Infanto-juvenil e essa análise, na verdade, dos contos, dos arquétipos, dos saberes e eu já fui ficando apaixonada, na faculdade, mas não tinha essa prática, né? Então, no dia que eu resolvi pedir... eu passei na entrevista, aí voltei e fui pedir demissão. Aí meu chefe olhou bem pra minha cara e falou assim: “Nossa, mas você vai sair daqui pra trabalhar numa escolinha?”. Porque a educação, sobretudo a educação infantil, enfim, fundamental, estão num não lugar, assim, né? Elas são menos do que, sei lá, qualquer outra profissão e ele falou assim: ‘numa escolinha’. Ele falou: “Nossa, onde que isso vai te levar? Você é tão boa funcionária”. As pessoas meio achando que eu estava pirando. E a nossa sociedade curte, né, a questão do corporativo, a questão da segurança, de você estar em uma superempresa, né? Era um Banco, supergrande. Quem não quer, né, essa oportunidade? Os colegas, também, que eram terceirizados: “Nossa, pirou o cabeção”. Isso, de alguma maneira, também me magoou um pouco, assim, tipo: onde isso ia me levar? Enfim, eu comecei acho que a me apaixonar e a estruturar, né, essas histórias, não só na infância, mas nesse momento eu comecei a, todas as vezes que eu tinha que mediar as histórias e contar a história para as crianças, eu também ia me apaixonando mais pelas histórias. Eu comecei a fazer uma grande pesquisa, né, com faixa etária diferente, ali. No começo eu trabalhava, inclusive, com o ensino médio também, em parceria com esse colega que era historiador e então tinha alguém com essa formação de História e sempre uma pedagoga que estava acompanhando, que, no caso, era eu. E aí a primeira vez que eu o vi contando história, eu achei aquilo fantástico! Pensei: “Nossa, será que eu vou conseguir também?” Então ele contou, depois a gente montou junto, enfim, saiu e contou pras crianças. Só que como ele tinha que fazer as intervenções do ensino médio, às vezes, separado e as aulas combinavam, então tinha o dia que eu tinha que contar sozinha, né? E aí eu fui contar a história e aí, no final do período, uma criança veio e falou: “Nossa, essa foi a melhor aula da minha vida!” Comigo, ali, contando a história. Era uma história de carnaval e aí, por isso que essa foto é super significativa pra mim. Porque foi a primeira vez que eu contei história na escola, era uma história do Pierrot e Arlequim, um conto, enfim, italiano e tudo e depois a gente fez uma festinha ali na biblioteca e as crianças ficaram super pirando e eu falei assim: “Nossa, eu quero”, sabe? Taí. É isso que eu quero fazer da minha vida e eu quero fazer isso bem feito. Então, além de, enfim, começar a estruturar um repertório vasto, com contos do mundo, eu queria entender, mesmo, a estrutura, né, do conto popular, o que era isso de contar as histórias e, durante um bom tempo que eu concluí esse trabalho, eu, de fato, acreditei que as histórias serviam pra incentivar a leitura. Eu comecei a dar cursos de formação de história pensando no incentivo à leitura, né? E com, enfim, as minhas vivências, né, e eu percebendo o impacto que tudo isso tinha, eu fui vendo que é muito mais do que isso. Isso pode ser uma coisa, mas é nada, diante do poder das histórias, né? Eu comecei a pensar na minha responsabilidade e entender que as histórias tinham uma função social.
P/1 – Qual foi, assim, o momento que você teve alguma história disso, de você sacando o poder da história?
R – Sim. Na verdade, quando eu comecei a dar os cursos já pensando na questão de incentivar, né, a leitura e a Unesp fez o Primeiro Simpósio de Literatura Africana de Língua Portuguesa e aí tinham várias oficinas e aí eles me convidaram pra esse simpósio, pra dar uma mini oficina, pra falar ali de oralidade, de pensar a literatura, né e a oralidade e, nessa palestra, tinha uma santomense e isso já vai me dar em uma outra história: uma menina africana que morava em São Tomé e Príncipe e que fazia faculdade na USP por conta de intercâmbio e ela também foi dar uma palestra na Unesp. Também foi dar uma mini oficina. E nós duas éramos as convidadas, enfim, de São Paulo, só que eu era brasileira e me chamava Mafuane e ela era Kate Kely e era africana. E as pessoas achavam que era o inverso, né? E aí, quando ela foi ouvir, enfim, minha palestra e tudo, ela ficou muito encantada e falou assim: “Nossa, você contando as histórias me fez lembrar da minha avó, né?” E eu sempre, também, tive esse idealismo que às vezes a gente tem, da questão de inventar uma África mítica, onde todo mundo está na oralidade, que as pessoas estão nessa até hoje e que estão ali em volta das aldeias e um romance, assim, também. Então, é verdade que a tradição oral é algo extremamente forte, que estrutura toda a cultura afro-brasileira e várias culturas, né, africanas, mas a gente tinha essa coisa de deixar meio que homogêneo, assim, né? E aí ela falou pra mim: “Isso me fez lembrar muito da minha vó”. E eu a levei ali pra outro lugar e eu vi uma emoção dela me ouvir contando as histórias e depois eu falando um pouco do meu trabalho, quando ela pensou que esse trabalho acontecia na escola. E aí ela falou pra mim: “Eu gostaria que você contasse essas histórias, né, no meu país” e eu falei: “Nossa, mas eu queria muito, né, poder contar”. Falei assim: “Já não tem tantas pessoas assim contando histórias desse jeito. As pessoas estão a esquecer os contos e tudo”. Aí eu fiquei com uma fissura, a partir do momento que eu conheci essa menina, de ir pra São Tomé e Príncipe, que é um lugar que quase ninguém conhece e que não aparece no mapa, porque é o segundo menor país do mundo e do continente africano. São duas ilhotas que estão perto da ilha do Equador e eu comecei a sonhar, assim, com esse lugar e vendo aquela emoção e, na verdade, esse convite e eu comecei a entender que eu também, enfim, com esse trabalho que eu estava fazendo e, sendo quem eu sou, com as histórias de vida que eu carrego, todo mundo que eu mostrei essas fotos, né, quando eu estou contando a história, a minha vó está comigo, meu vô está comigo, os meus pais estão comigo e que eu não me permitiria também ficar contando qualquer história. Ou só pra incentivar a leitura. Porque algumas histórias era isso: elas já estavam nos livros. Então, elas poderiam ser acessadas de uma outra maneira, mas que eu poderia usar o meu corpo e a minha voz para reconstruir, inclusive, histórias, porque eu mesma, em relação a questão da cultura africana, no começo, em algum momento, eu também estava acho que estava estereotipando e trazendo uma visão que, não que ela não fosse verdade, né, como a Chimamanda diz: “O problema dos estereótipos é porque eles só contam uma parte da verdade”, né? E a gente cai nesse perigo da história única. E, conversando com essa menina de São Tomé, ela me ampliou, ali, muitos horizontes e eu fiquei pensando que outras histórias eu poderia contar e que, mesmo ela sendo santomense, a gente fica pensando, né, que vai ter um nome, né, de repente, africano, um nome numa língua que seja falada só lá. Ela tinha um nome, enfim, português, um outro nome, inglês também. Então, que as histórias podiam reconstituir a nossa própria identidade e que, a partir das histórias, essa história do Brasil, que é de escravidão e de São Tomé também, né, de muita desigualdade, que é através, de repente, dessa língua portuguesa que nós duas estávamos ali sujeitas a falar, essa língua ali que era do colonizador, que a gente poderia ressignificar essa experiência, né, de opressão, tentando entender o que a gente tinha ali de comum culturalmente, né, através dessa língua portuguesa, como que eu poderia contar as histórias que eu digo que são contos tradicionais brasileiros e ouvir histórias lá e saber que histórias que, de repente, eram semelhantes ou mesmo cantigas que eram semelhantes. Eu comecei a entrar nessa pira, que ela era muito maior do que simplesmente incentivar ali a leitura. E aí eu, que sou muito ousada, escrevi um projeto pra embaixada brasileira, falando que eu era contadora de histórias, mandei algumas fotos me oferecendo pra fazer algum trabalho lá e, enfim, não tive resposta, depois eu mandei de novo e aí, até que um dia uma mulher me respondeu e falou que não tinha como fazer a programação e aí eu fiquei pensando durante três anos, eu fiquei em contato, até que deu certo. Eu escrevi o projeto e aí coincidiu dela ter uma programação pra fazer uma atividade do Dia da Criança do Brasil em São Tomé e Príncipe porque o dia da Criança é em outro dia lá e o nosso é no dia 12 de outubro e então, em outubro de 2012, eu fui pra São Tomé, pra contar histórias brasileiras, mas também pra dar um curso na embaixada brasileira. Na verdade, partilhar um pouco da minha experiência como narradora de história em espaços institucionais de educação, né? No espaço da escola. E aí eu tive esse curso, enfim, ministrei esse curso, essa roda de conversa com alguns professores de lá, visitei algumas escolas e também com alguns, sei lá, arte educadores, enfim, alguns artistas de lá. E narradores. Ela, a menina, falou pra mim: “Não tem tantas pessoas assim”, mas, na verdade, tem. E a diferença é que vão mudando os nomes. Então, eles chamavam lá de animador cultural, animador de cada uma das roças, que são os distritos que, enfim, vão substituindo ali algumas comunidades, né? A gente chama de roça porque é da herança colonial: em cada roça, enfim, cada fazenda, tinha um plantio e tinham migrações diferentes. Então, tem roça que é caboverdeano e que as pessoas falam uma língua que é caboverdeana, né? E aí tem o crioulo caboverdeano e tem o crioulo também, que é de São Tomé, que é em outra roça. Então, em cada bairro, um lugar que é muito pequeno, que é menor do que São Paulo, você fala cinco línguas diferentes. Se não for pelo português, muitas vezes as pessoas não se entendem, porque tem culturas ali completamente diferentes. Então, o meu trabalho foi de contar essas histórias brasileiras e, a partir da minha narração, eles foram lembrando, de repente, de histórias que eram parecidas e eu fiz registro de algumas dessas histórias também, ali com eles, e foi uma oportunidade deles também resgatarem, né, esses contos tradicionais e que estavam sendo pouco contados, por conta daquilo que a gente fala que é educação, daquilo que a gente fala que é escola, enfim, que é o livro e que é o professor e que é ali a lousa. Então, tem uma ânsia. Na época que eu fui, 2012, ainda não tinha nenhuma universidade em São Tomé, por isso que ela fazia a faculdade aqui. Então tinha uns convênios. Tem convênios com a união europeia, então algumas pessoas vão pra Portugal, vão também pra França, né, os que conseguem e alguns vieram para o Brasil e aí a gente tem essa ânsia iluminista, de pensar nesse conhecimento que seja pelo viés do livro. O que acontece é que muitas culturas vão demonizando, na verdade, a oralidade, porque ela vai ficando nesse lugar que, antes, eu, inclusive, colocava, que é o lugar do romântico. Essa oralidade está no lugar do arcaico, né, as pessoas pensam. Então, quanto mais elas aprendem a ler, de repente mais modernas elas são. E aí, quando eu comecei a narrar a história, quando eu falo dessa questão da função social, eu acho que eu comecei a entender pra mim e comecei a querer partilhar com os outros que, através dessas narrativas, enfim, dessas oralidades, né, a gente pode reconstruir, ressignificar, na verdade, as nossas histórias, né e dignificar, né, esses povos, né, que tiveram as suas culturas diminuídas, né, por serem culturas orais, né e a questão de você saber ler, conhecer esse código alfabético que a gente utiliza hoje foi predominantemente utilizado pra dizer que esses povos não tinham cultura e então, povos que não têm escrita são povos sem cultura e tamanha é a riqueza, né, dessas comunidades que são oralizadas e tamanha é a tecnologia de você pensar qual é a tecnologia de alguém que não tem um papel pra contar a sua história e então as pessoas são preparadas e têm funções cognitivas que hoje a gente está perdendo e a gente perde cada vez mais, porque se você me perguntar: “Qual telefone do seu pai?”, eu não sei. Meu celular é que sabe. Então, as pessoas também memorizam porque elas vão transmitir, enfim, as suas histórias pessoais, mas toda a história de um povo, enfim, de uma comunidade, as receitas, a gente está sempre pensando na questão da oralidade e do conto, de repente, pelo viés do conto popular ou da fábula, mas a narração das histórias é muito mais ampla do que isso, né? Através das receitas, das cantigas. E muitas comunidades também têm o recurso como a gente tem aqui, enfim, a literatura de cordel, mas existem autos e formas de você memorizar, com as rimas, com as cantigas e assim você vai passando isso, né, de pai pra filho. Você começou me perguntando da minha árvore genealógica e aí eu consigo falar até certo ponto, até porque tem essas fragmentações, né, históricas. Mas você chega em várias comunidades africanas e a pessoa consegue falar até o seu centésimo ancestral e é uma coisa que a gente não consegue. Isso é cultural. As pessoas têm tecnologias, são ensinadas, né, a saber e a carregar as suas histórias. Enquanto a gente, de alguma maneira, vem terceirizando, né, nossa memória. É uma memória que não está mais dentro, uma memória que o tempo inteiro a gente quer pôr ela fora, né? Pôr ela fora, pôr ela fora, pôr ela fora, assim. Enfim, acho que é isso.
P/1 – Eu queria saber, além desse trecho que, realmente, é muito bonito, que outros momentos as histórias e esse contato com elas te ajudaram a viver sua identidade de negra, mesmo, assim? Se foi só esse momento específico ou se teve algum...
R – Esse momento específico é um divisor de águas, né, na minha vida. Porque quando eu comecei a contar na escola tinha esse projeto, que eram os contos do mundo. Então, eu contava histórias, enfim, de vários lugares e amo e, quando eu canto, né, a minha música de início de histórias, eu sempre falo: Cantos e Contos de Todos os Cantos eu vim contar. Então, eu comecei contando essas histórias e, com o passar do tempo, eu fui percebendo que as pessoas sempre, na verdade, também contam as mesmas histórias e, na questão do mundo, né, tem uma parte do mundo que não está representada, né? Ou, quando a gente fala: “Ah, é um conto africano”, mas a África é um continente, né? De que lugar a gente está falando? E eu comecei a ter essa preocupação, na verdade, né, de quando estou narrando as histórias. Não é sempre que eu consigo, mas eu tenho feito um esforço de devolver pras pessoas - eu acho que, quando eu narro as histórias - as identidades delas, porque quando eu narro uma história, eu me coloco como mantenedor cultural, viro um protetor de determinadas culturas, algumas que, inclusive, já morreram. Ou de, na verdade, quando as pessoas estão: “Ah, é um conto africano”, a gente banaliza e minimiza a história das pessoas. Então, quando eu estou narrando, eu faço questão de falar: “Esse é um conto achante”, né? Porque é uma forma da gente começar a ajudar as pessoas a não estereotipar e não pasteurizar todas as coisas. E desmembrar, porque mesmo quando a gente fala: “Ah, é de Moçambique”, mas Moçambique a gente tem xona, tem (chopue?), tem changana. Quem inventou Moçambique foi o colonizador. As pessoas não se entendiam, né? Hoje talvez até um pouco mais, mas até há pouco tempo elas não se entendiam moçambicanas e isso gera uma guerra pra gente ter Moçambique. E aí, se fica muito distante, é só a gente pensar no exemplo brasileiro, quando a gente fala ‘essa unidade’, mas que unidade é essa, brasileira? O que significa essa nossa bandeira? O extermínio de vários povos, porque esse é um país continental. Quase não tem país do tamanho do nosso. Então, quando a gente pensa nas culturas ameríndias, que a gente vai chamar de indígenas – eu tenho utilizado bastante a questão ameríndia - mas o mundurucu não se vê índio, né? Índio é o nome que o colonizador deu. As pessoas se entendem como mundurucu, como xavante, como maxacali. Enfim, devolver pras pessoas as etnias. Esse conto é um conto guarani. Então, acho importante. Esse mesmo exercício eu tenho feito ao narrar essas histórias e aí tentar entender, no meio desse marzão que a gente fala que os contos são africanos, qual parte dessa diáspora e dessa África, enfim, faz parte de mim e são estruturantes da formação da cultura brasileira. Então, de tentar buscar algumas histórias assim. E aí eu tive essa oportunidade também, em 2017 pra 2018, que eu fui pra Moçambique, pra fazer uma pesquisa independente, mas novamente tive uma super oportunidade de poder conduzir rodas de conversa na embaixada brasileira, me fizeram esse convite e então foi um trabalho um pouco mais curto porque em São Tomé e Príncipe eu fiquei uma semana e aí, só pra voltar na história do meu trabalho, quando o meu chefe fala: “Pra que lugar que essas histórias vão te levar?” Pra muitos lugares. O que isso vai te levar? Então, essa pulga que eu fiquei, nossa: pra que caminho eu estou indo? Então, essas fotos são muito significativas pra mim, que foi a primeira vez que eu fiz uma viagem internacional, pra esse continente, pra esse país, que é tão pouco conhecido. Então, aqui, eu estou contando história na ilha de Príncipe, né, que é a ilha menor. Eu fui contar história nessa roça, pra esse grupo de crianças e encontrar também ali com professores, foi maravilhoso. E aqui, essa foto é muito especial porque, em várias histórias, que a gente generaliza como é o africano e tudo o mais, sempre tem um pé de baobá e as pessoas se reúnem em volta do baobá e aqui eu estou justamente em cima de um galho de baobá e olhando pra essa extensão de mar e justamente, enfim, agradecendo nesse momento e olhando pra esse mar onde, do outro lado, está o Brasil. E muito feliz por poder ter feito essa travessia, por poder ter essa conexão. A gente sabe pouquíssimo de São Tomé e Príncipe, mas ela era meio que um lugar onde tinham várias plantações de cacau e tudo e, a partir desse lugar, às vezes eles levavam caboverdeanos, angolanos, pra começar a testar e depois essas pessoas vinham para o Brasil. E lá, na ilha do Príncipe, eu também entrei em contato com pessoas que tinham histórias que contavam de parentes, que sabiam de outros parentes que tinham embarcado para o Brasil a partir de lá. Tem um pouco dessas histórias, mas é pouco conhecido nos nossos livros didáticos e tudo o mais. Então, as histórias me levaram pra São Tomé e Príncipe, me levaram também pra Moçambique, pra muitos lugares, né, do Brasil.
P/1 – Você chegou a conhecer algum griot, assim?
R – Então, essa palavra, o griô, mesmo...
P/1 – Eu sei que é uma palavra francesa, né, que está denominando, mas essa função. Se você chegou a encontrar esses mestres.
R – Sim, encontrei, que é isso que eu falei, que lá eles chamavam: “Ah, o animador da comunidade”. Então, era alguém que contava as histórias e a primeira coisa que ele fez foi contar uma história no crioulo de... eu não vou lembrar exatamente o nome da língua, mas é o crioulo da ilha do Príncipe, né, meio que como quem diz: “Esse daqui é o meu lugar, né?”. Então, ele contou tudo na língua deles, materna e depois contou em português, assim, a história. Foi muito bacana. E em Moçambique, a grande parte do trabalho que eu fiz foi em Maputo, que é capital, enfim, é uma cidade grande, não tão grande quanto São Paulo, mas sei lá, parece um pouco, sei lá, com BH. Então, no centro, a gente encontra pouco disso, mas tem um movimento jovem, justamente querendo resgatar, enfim, essas práticas, em contato com os mais velhos, assim. Então, através do encontro com eles, eu pude conhecer um pouco mais essas práticas de oralidade. Eles estavam com um projeto que chamava Aos Pés da Fogueira Acesa, onde eles iam até as comunidades mais orais pra ouvir as histórias e aí o menino falava assim... quando a gente começou a fazer eu queria fazer, de repente, em um domingo à tarde, eu queria poder ir mais cedo e aí o mais velho falou pra ele: “Não, mas não se conta história de dia. Só se conta história depois que o sol nasce. Então, a gente acende a fogueira”. E ele só ia contar se fosse de noite. Então, por isso que o nome do projeto era esse, assim, mas nos interiores, inclusive, você encontra várias pessoas que não falam nem português, né? Então, eu tive a oportunidade de conhecer algumas senhoras, assim, que contavam histórias também em changana. E aí eu estava ali com um tradutor, me falando um pouco dessas histórias. Mas é que eu acho que, na verdade, a gente se encanta muito e acaba tendo um olhar meio que de fetiche, né, às vezes, para essas culturas, porque a gente perdeu isso, né? E aí, pra eles, era bem estranho, assim: “Como assim você é uma contadora de histórias e isso pode ser, de repente, uma profissão?”. Porque é natural do ser humano e das pessoas contarem histórias e partilharem, né? Então, a gente perdeu essa naturalidade, a ponto da gente ter um movimento meio que de profissionalização. E aí tem os horários, né, e os lugares onde a gente conta a história. Então tem a roda de contos em tal centro cultural, né, todo sábado à tarde, todo domingo de manhã, mas a gente, em casa, conta pouco, a gente tem os novos contadores de história: o You tube, o Netflix. Então, a gente está nessa conexão desconectada. (risos) Desconectada do outro, da gente mesmo. E, através, quando você fala: “Onde mais você percebeu esse poder das histórias?” Eu comecei a pensar, até citando Ruben Alves, que as (rações?) de história, acho que sobretudo na escola, assim, que às vezes é um ambiente chato, enfadonho, vem justamente como um recurso revitalizador, eu acho que, de uma prática pedagógica onde as crianças podem, enfim, ter um descanso, uma questão mais lúdica, mas eu acho que a gente possibilita para o outro sempre um curso de escutatória, né? Então, você está contando, mas as pessoas também vão aprendendo a ouvir. A gente está com muita dificuldade, né, de ouvir. Tem muito curso de oratória e tem curso de contação de histórias e tem curso, agora, da moda, né, que é storyteller, que é pra você aprender a falar da sua história de vida, com muito dinamismo e palavras chaves, lalala, tudo muito no lugar da performance, né e acho que pouco no lugar da intimidade, né? E, de repente, de um sentido, né? Acho que não cabe a mim julgar o outro, mas tem vários tipos, né, de narradores de histórias e aí tem narrador que também conta em festa de aniversário, tem os que contam nas rodas do Sesc, né, enfim, estão lá nas bibliotecas culturais, mas eu acho que, pra mim, a grande sacada que eu fui mudando meu trabalho, né, no decorrer desses dez anos, foi justamente pensar nessa função social e no que fazia sentido pra mim. Então, tem algumas histórias que eu super entendo que elas não cabem em mim, não porque eu não gosto delas, assim, mas é porque eu não vejo um sentido em partilhar, sabe, em investir um tempo, enfim, sabe, pensando ou colocando músicas e inventando uma performance pra essa história, porque de repente ela já é muito contada, assim. Então, eu tenho tentado buscar acho que outras histórias, justamente pra devolver e dignificar acho que povos que foram, né, esquecidos, assim. Enfim, tem um pouco de escolha minha, mas acabou sendo essa minha escolha acho que de mercado, que de repente eu virei uma especialista de contos africanos. Mas eu gosto sempre de frisar que eu não comecei contando histórias só africanas. Também. Mas eu gosto de contar contos do mundo, né?
P/1 – Qual é uma história, assim, que nossa, que na hora que ela te pegou, ela... porque teve umas histórias que eu mesmo ouvi que eu quase caí no chão, fiquei tipo uma hora só apreciando, assim, pensando, sobre ela. Qual foi uma história que você lembra que, quando você escutou, você ficou: “Nossa!”? Depois, já, de virar contadora, assim. Alguma que alguém te contou e você, nossa, pegou ali, no seu espírito.
R – Depois que eu virei contadora? Hummmmmmmmmmmm splish... mas que me mexeu, assim, que me moveu? Então, pode não ser história? Pode ser a pessoa? (risos)
P/1 – Sim.
R – Eu acho que uma pessoa que me mexeu muito é a Dona Ceci. Não sei se você conhece. A Dona Ceci é uma narradora de histórias, ela foi assistente do Pierre Verger, né? Ela trabalha na Fundação Pierre Verger e ela é um patrimônio vivo, né, da cultura iorubana, assim. Então, ela narra as histórias, mas narra também trechos em ioruba. Ela é uma grande conhecedora de muitas histórias e ela narra essas histórias – é uma senhorinha de bengala e tudo – em um bairro da Bahia, agora eu não lembro exatamente, enfim, o nome do bairro, mas também em lugares que têm grande vulnerabilidade social e, através das histórias, ela foi ali transformando, né, a vida das crianças e, toda vez que eu escuto ela contando, eu fico: “Ahhhhhh”, assim. Eu volto a ser menina. Porque ela é muito impactante. E ela tem uma coisa muito louca, a Dona Ceci, né, porque ela anda de bengala e tudo, ela tem essa dificuldade, então ela está sempre contando as histórias ali, na cadeira, mas tem momentos que ela dança, assim. E aí, se ela está contando a história, e ela tem que dançar, ela larga a bengala e ela dança, mas se ela precisar andar, ela anda com a bengala, assim. (risos) E eu acho que é isso, né, que a história traz uma energia vital e uma força, quando ela está nesse lugar do sagrado, que não tem a ver com a questão religiosa. É o sagrado da palavra, assim, né? Eu me faço por palavras quando... essa coisa, quando eu falo, da função social, sabe, te traz uma outra energia vital, uma sobrevida que as pessoas percebem, também, às vezes, quando eu estou contando. Que, enfim, eu estou aqui conversando com você normal, mas de repente, quando eu estou contando, parece que vem uma outra coisa, que sou eu, assim, sei lá, meio que fora do corpo, mas é uma potência que você consegue acessar, mas isso só vem se você tem, acho, essa pegada da questão, sabe, acho que da função social. E aí o sentido da história não preciso falar pra você, sei lá, quando eu estou contando, da Cinderela Baiana, que é porque eu lembro da minha avó. Você não precisa saber desse pano de fundo. Mas são todas essas referências, né, que fazem com que eu tenha força e presença na hora de contar determinadas histórias, assim. Por isso que, pra mim, só vale a pena contar essas que eu faço ligação com alguma outra coisa, que é o meu mundo interno, que é a minha subjetividade, que é a minha afetividade e que não diz respeito, enfim, a você ou quem está me escutando, mas é isso que me dá força e que te impacta também. Mesmo que eu não fale, né? Ou que, a partir do momento que eu falo, também vai conversar com o seu mundo interno, com as suas memórias, né, com a sua história de vida e você vai ressignificar, enfim, vai entender o que você quiser, né? A partir do momento que eu falei, eu te dei um presente, né? Você vai guardar e leva-lo da forma que você quiser, mas essa minha presença e minha força internas vem das minhas memórias e da minha vivência. Se eu pegar uma história, por mais que ela seja engraçadinha, que ela seja fofinha e eu só decorar e contar e não tiver nada que remeta à minha afetividade ou àquilo que eu acredito que seja o meu papel no mundo, eu tenho certeza que ela não te pega e eu tenho alguns exemplos porque, como eu trabalho ainda na escola, hoje menos, primeiro eu trabalhava todos os dias, hoje eu vou dois dias por semana, mas tem algumas histórias que, por conta do projeto pedagógico, às vezes eu tenho que estudar, enfim, que eu tenho que fazer e que é pra trabalhar ali em parceria com a professora polivalente. Enfim, as crianças gostam também, eu também gosto, mas é muito diferente do jeito que eu conto quando é uma história que me pegou ou que, enfim, eu tenho essa coisa que eu nomeei de função social. Eu sinto as crianças diferente, no olhar delas e elas estão diferentes pelo meu olhar e pela energia que eu jogo nelas através da minha história, assim. Então, de fato, é uma esfera de encantamento e, quando a gente está narrando e ouvindo, acho que a gente inventa um tempo, que é suspenso, assim. A gente está suspenso, em uma outra dimensão e, de repente, depois, a gente volta. Então, já como narradora, é isso: acho que a Dona Ceci me impacta muito pelo trabalho que ela faz, mas pelo jeito que ela conta, que é de muita simplicidade, né? Não tem fotinho, não tem sininho. Ela ali. Às vezes tem algum músico que acompanha, mas é ela que fala o que é pra tocar, como é pra tocar e ela vai, ali, levando a gente. É isso, esse patrimônio vivo da humanidade. Então, quando eu penso m Brasil, eu penso na Dona Ceci. E fora...
P/1 – Eu ia perguntar como é que nasceu o seu grupo Chaveiroeiro? Eu vou acabar errando se eu falar de novo.
R – Chaveiroeiro. (risos) Então, eu sou muito grata, assim, à escola. Algumas pessoas perguntam, às vezes: “Mas você, enfim, faz tanto trabalho, por que ainda está na escola?”. Não é uma questão de estabilidade, mas eu acho que a escola pode ser, sempre, um laboratório de sonhos, pra mim, assim. Não tem nada que eu faça fora da escola, que eu já não tenha feito dentro da escola. É ali que tudo começa e, com a resposta, ali, das crianças, é que eu consigo evoluir com as minhas narrativas, assim, com a minha história. Então, o Chaveiroeiro começa a partir da experiência que eu tenho na escola, em parceria com uma outra colega, que entrou no mesmo ano que eu na escola, que era musicista, mas também trabalhando ali no projeto de mediação de leitura, mas ela gostava muito mais de cantar, do que de contar e eu tinha habilidade pra contar e bem pouca pra tocar. E ela, na verdade, já havia construído esse instrumento, que chama carrilhão de chaves, enfim, com as crianças dela e aí uma criança deu o nome, né? “Como é que vai chamar isso daqui?” e uma criança pequena falou assim: “Chaveiroeiro” e aí ficou sendo chaveiroeiro. Quando a gente decidiu que ia contar história juntas, eu não pensei em outro nome que não fosse esse, né? Falei: “Não, vai ser o nome da companhia, Chaveiroeiro” e começo, na verdade, com uma companhia de duas, que depois ficou uma, ela foi morar no interior. Ela, hoje, continua ainda contando história, ela tem outra parceria, ela também utiliza, né, o carrilhão, não usa esse nome chaveiroeiro, o nome do grupo dela virou Ziriguidum e eu continuo mantendo como companhia porque o chaveiroeiro, pra mim, são todas as pessoas que somam nesse meu projeto. Que ele é de narração de histórias, então tem sempre músicos convidados, às vezes um, às vezes dois, às vezes três, tem alguns parceiros que ficaram fixos comigo por um bom tempo, né, tem outros que vão de vez em quando, mas sobretudo esse é um projeto de arte e educação também, porque a minha intenção é, sempre, formar outros narradores de histórias. Formar não é bem a palavra, mas despertar o narrador que existe em cada um. Eu acho que não tem curso exato, assim, de contação de histórias, porque cada um tem ali o seu jeito de contar histórias e a gente pode ir pensando como a gente desperta essa coisa que a gente vai chamar de presença, de empatia. E, quando eu estou falando sobre a minha prática e estou incentivando o outro a seguir por essa prática, eu estou sempre pensando nessa questão do repertório, que você pode escolher histórias que fortaleçam, na verdade, alguns estereótipos, enfim, algumas coisas ou repertórios que dignifique, né, a vida das pessoas, que ressignifique costumes, né e conceitos que estão tão impostos pela sociedade. Então, eu acho que é um chaveiroeiro, porque é tipo um chaveiro, mesmo, assim, também, né? Que tem música, que tem história, que tem brincadeira e cada chave aqui vai representando, de fato, os lugares por onde eu passei, mas as pessoas que eu encontrei e, enfim, cada narrador que eu escutei, está comigo. Eles estão comigo, aqui, de alguma maneira, né? Ou fortalecendo o meu repertório ou meu jeito de contar, ou a minha entonação, além da minha família e todas as coisas que eu venho construindo e acho que acessando, nesses últimos anos, assim. Eu lembro que você perguntou da questão da minha identidade, né, como isso também foi sendo fortalecido no decorrer do processo. Então, eu acho que eu tenho essa boa sorte, de ter nascido na minha família, sobretudo com o pai que eu tenho, que sempre foi muito preocupado com isso. Durante a adolescência, em vários momentos, isso, na verdade, foi... nunca tive problema com a minha identidade, né, mas o ativismo do meu pai, durante algum tempo, foi um problema, né, pra mim, porque às vezes parecia que ele estava muito preocupado com o mundo inteiro e, às vezes, as nossas micro histórias, as nossas necessidades estavam meio de lado diante dessa coisa de você construir uma sociedade com mais equidade. Mas enfim, eu tenho esse privilégio, que eu nunca tive dúvida ou medo da minha descendência, né, africana, enfim, afro-brasileira, mas eu acho que me fortaleci também, muito, nessa busca da questão das histórias, eu tive a sorte de encontrar com uma professora muito bacana na USP, a professora Cristina (Vicembá?) e, com ela e com meu atual companheiro, né, que é um historiador também, o Rafael Galante - a gente brinca, né, que eu conto as histórias de mentira e ele conta as histórias que são de verdade - eu comecei a visitar comunidades quilombolas, né, também. E isso me levou pra um outro lugar, pra eu entender o que é um quilombo, pra além do território, mas os quilombos culturais, que ainda são mantidos, nesse país. Mas, entre as comunidades, eu fui percebendo a questão da oralidade e das histórias, nem sempre vão se dar dessa forma que eu estou contando, ou mesmo essa forma que você conta, onde a gente tem uma introdução, tem uma cantiga e a gente começa a falar sobre essas histórias, mas as músicas são grande porta vozes e mediadores, acho, dessas histórias, sobretudo nas comunidades quilombolas que têm a prática do reinado, que eu tive oportunidade de conhecer algumas de muito perto. Então, a comunidade quilombola de Justinopólis, a irmandade do Rosário de Nossa Senhora de Justinopólis, a prática do congado foi me trazendo muitas histórias, a própria história de como eles começam a louvar Nossa Senhora, como eles começam com a guarda de Congo e de Moçambique, uma história que remete ali à escravidão, mas de um outro lugar, com muita arte, que são coisas que estão perpetuando até hoje. Então, a forma como eles vão cantando e fazendo os cortejos, vai contando a própria história do Brasil e a história dos afro-brasileiros, dos afrodescendentes, do nosso país, mas a questão da travessia, uma memória muito linda do que é o mar, do que foi essa travessia. Então, eles contam muita coisa de mar e esse mar, que é repleto de histórias. E tem uma figura que faleceu, infelizmente, também, o seu Adão, do quilombo Pedro Cubas, né? É outro que também me lembrava um pouco ali dos meus avós, porque ele era do tipo mateiro, todo mundo da Biologia, enfim, de várias faculdades ia atrás dele pra deixar câmeras na mata, na floresta, pra conseguir mapear as espécies raras que ainda habitam ali o Vale do Ribeira, mas era uma pessoa que contava pra mim que às vezes deixava fumo na mata, na janela, porque ele já tinha visto saci. Sabe essas coisas assim? Então, que pra gente está aqui nesse campo muito chato, às vezes, do folclore e aí do folclore, mesmo, com uma coisa menor, que acho que a gente também atribui esse conceito, acho, que de menor, pelas narrativas e a difusão do próprio Monteiro Lobato. Alguns acham que enaltece a cultura. Eu já penso que às vezes não, não é dado o devido valor, sabe, quando a gente entra em contato com esses personagens, por esse tipo de literatura. A minha oportunidade de novamente estar com alguém que vivencia e aí não cabe a mim falar se é verdade, se não é, mas cabe a mim escutar e pensar que alguém vivencia essa prática, de deixar um fumo de corda na mata, de deixar uma coisa no peitoril da janela, pra ter boa sorte, pras coisas não sumirem, pra poder voltar bem. Então, eu acho que os contos também têm uma função de sustentabilidade, assim, sabe? Porque alguém que está conectado com o Curupira, com o Caipora, com o Saci, não é alguém que vai estar desmatando e ferrando com as coisas, assim. Então, sobretudo, essas histórias que a gente vai tratando como mitos menores ou simplesmente como folclore, né, trazem uma sustentabilidade, tanto pra vida social, quanto, sei lá, pra vida ambiental também. Seja pelo medo ou pela ludicidade, mas elas regulam ali o comportamento social, enfim. O comportamento humano também. Acho que é isso. Falei?
P/1 – Legal. Como que foi pra você contar a sua história?
R – A minha história? Ah, foi gostoso. Em alguns momentos difícil, difícil puxar... eu queria ter feito ontem, assim, sabe, um ritual de ficar pensando nas histórias, mas não rolou e acho que tinha que ser assim, mesmo, né, na fluidez, ver o que aparecia, mas às vezes você me fez uma pergunta e eu não lembrava muito bem das coisas e, quando estava falando de outra coisa, às vezes me veio (risos) outras memórias, enfim. A coisa do nascimento eu acho que é uma parte de vida que vai ficar até meio embolado assim porque é isso: a gente acha que... enfim, é isso: não lembro sistematicamente do que foi esse parto, né, mas eu acho que essa é uma história que me marca e, mesmo antes de saber desses detalhes, assim, eu tinha uma coisa com o meu nascimento, já tinha feito algumas vezes esse roteiro de parto espontâneo, onde falava: “Como estava na hora que você nasceu?” e então, espontaneamente, você vai e responde que está frio, né? De onde que vem isso, né? Então, eu acho que tem muitas coisas que marcam e pra mim foi um pouco difícil. Eu acho que eu nunca falei isso, pra ninguém, assim, da coisa. Porque acho que é uma história que não é só minha. Ela é minha, né, mas ela não é só minha. Ela também é a história da minha mãe, né? Uma coisa com a outra. Poucas pessoas sabem disso. E talvez muitas mulheres tenham sofrido ainda com isso porque são das coisas que não falamos, né? E muitas mulheres ainda continuam sofrendo, né, com essa violência, que deveria ser um momento tão genuíno, né? Mas muitas vezes é isso: as pessoas estão, super, ali, vulneráveis, e acontecem essas coisas. Acho que, quanto mais a gente fala, acho que menos... acho que mais a gente consegue, de repente, evitar ou se proteger, no momento que essas coisas acontecem. Acho que foi um pouco difícil, né, mas foi feliz, foi muito feliz estar aqui falando.
P/1 – Como afinar o ouvido de alguma pessoa?
R – Como afinar o ouvido da pessoa? Hummmmmm eu acho que contando histórias. Contando boas histórias. Porque a delícia das histórias é isso: por que elas são tão poderosas? Porque a gente consegue tratar aquilo que é objetivo pela subjetividade. Porque quando eu conto uma história, o que eu estou contando é só uma história, não tem muito a ver com você, né? É uma história do outro, mas de alguma maneira, né, entra ali no seu ouvido e te afina o ouvido, os valores. Ou desafina também, às vezes, nem todas vão ser boas, né? Às vezes ela vai te trazer desconforto, também pode trazer incômodo, né? Mas é isso: as histórias têm esse poder. Eu posso falar de Alzheimer sem falar na palavra Alzheimer, né? Só falando de uma vó que, de repente, esquecia das coisas. Eu posso falar pra você de uma angústia, de uma frustração tremenda, de não saber qual que é o meu lugar no mundo e o que eu vou fazer da minha vida sem falar de todas as minhas profissões, mas simplesmente contado a história da contadora de histórias, né? Então, ainda que seja afrodescendente brasileira, eu posso recorrer à cultura judaica pra contar a minha própria história de vida, né? Porque a história da contadora de histórias é, na verdade, a minha história. Então, é isso. Eu acho que a gente afina.
P/1 – Eu acho que a gente vai ter que escolher entre a da cultura judaica e a da kalimba.
R – Você falou que essa também nunca viu, ninguém, acho que vou contar.
P/1 – A da kalimba tem você já contando?
R – Não, não tem. Ela é bem curtinha. Eu acho que dá pra fazer as duas.
P/1 – Então, vai, conta a da kalimba primeiro.
R – Vamos ver.
“Abram as portas
Abram as janelas
Acendam as velas
Pra iluminar
Tindolelê ilê se faça assim
Essa história já vai começar
Tindolelê ilê se faça assim
Essa história já vai começar:
Um amigo me contou que outro amigo contou que, lá no interior do Zimbábue, uma pessoa contou pra ele que, nos Camarões, as pessoas dizem que, no princípios dos tempos, não existia nada. Só um imenso, mas um imenso vazio e, na Terra, não tinha nada pra fazer. Só habitava aqui, na verdade, um criador, um grande criador, um deus que vivia entediado, porque como não tinha nada pra olhar, né, nada pra fazer, ele passava os dias assim, bem entediado. E aí, um dia, ele completamente entediado, perguntou para sua criatividade, pra sua força interior: “Criatividade, o que há pra ser inventado? O que há pra ser feito?”. E a sua criatividade respondeu: “Invente um instrumento musical, invente uma kalimba, para acabar com o seu tédio”. E assim ele fez. Inventou um instrumento musical. Ele achou aquilo muito incrível. Ele logo decidiu tocar uma tecla. Quando ele tocou essa daqui: plim plim plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, de repente, não mais que de repente, no meio daquele vazio, a Terra foi se avolumando. É, ela foi se transformando e foram surgindo ali vales, montanhas e ele achou aquilo muito bonito. No meio dessas montanhas foram surgindo várias árvores e a Terra, assim, foi se transformando. E ele, admirado, logo pensou: “E se eu tocar essa daqui?” Plim, plim, plim, plim, plim. E de repente, não mais do que de repente, no meio dessa terra, surgiu um olho d’água, que foi aumentando, aumentando e criou uma fonte, que criou um lago e foi aumentando, aumentando e, descendo no meio daqueles morros, foi formando um rio, que foi aumentando ainda mais e foi se dividindo, até formar a imensidão que é o mar e ele ficou encantado com aquilo e então ele decidiu tocar essa tecla aqui: plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim. E de repente, e não mais que de repente, adivinha o que aconteceu? Surgiram as estrelas. Com um céu maravilhoso, o sol, a lua e todas as coisas que hoje a gente avista toda vez que olha para o céu e aí ele pensou: “E se eu tocar essa daqui?” Plim, plim, plim. De repente, no meio daquela terra, começaram a aparecer vários animais, todos os bichos que moram na Terra. Todos os bichos que andam sobre a terra apareceram nesse exato momento. E ele foi vendo que aquele mundo foi ficando mais bonito. Foi então que ele decidiu tocar essa daqui: plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim. De repente, no meio daquela água, que tinha se transformado em rios e mar, começaram a surgir peixes, baleias, golfinhos e todos os bichos que hoje nós dizemos que habitam as águas. E aí ele resolveu tocar essa daqui: plim, plim, plim, plim, plim. E você já imagina o que aconteceu, né? No meio daquele céu maravilhoso apareceram todos os bichos que sabem voar. Todos os pássaros, todos os insetos que hoje nós conhecemos. E ele logo pensou: “E se eu tocar tudo de uma vez?” e assim ele fez: plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim. E de repente, e não mais que de repente, apareceram todos os seres humanos. É, as mulheres, as crianças, os homens, os velhinhos, as velhinhas, todos criados a partir do som da kalimbaaaaaaaaaa. Acabou. (risos). Curtinha. A da contadora de histórias, bem rapidinha.
P/1 – Mas faz uma versão sucinta, assim.
R – Tá bom.
“Dizem que houve um tempo em que existiu uma mulher que decidiu que ela queria mudar o mundo. É, ela achava que as pessoas já não se comunicavam mais, que elas não tinham sensibilidade e ela tinha que fazer alguma coisa pra transformar o mundo e ela pensou que a melhor forma de mudar o mundo era através da sua profissão. Então, ela logo se adiantou e achou que o melhor jeito de mudar o mundo era sendo médica. Porque assim ela poderia fazer muitas pesquisas, atender muitas pessoas e ela iria encontrar a cura para muitos males, mas foi pesquisando, pesquisando e de repente ela percebeu que aquele não era o jeito dela mudar o mundo. Foi então que ela decidiu ser advogada. Assim, ela poderia mudar o mundo, conheceria das leis e iria defender todos aqueles que estavam sendo injustiçados. Mas ela foi vendo bem e ela percebeu que aquele não era o jeito dela, pelo menos, mudar o mundo. Que não cabia a ela ser juíza, advogada ou qualquer coisa parecida. E aí ela pensou, pensou, pensou e achou que, de repente, o melhor jeito seria ser professora. Mas ela percebeu que já tinham tantos professores por aí. Professores muito bons. É verdade que muitas vezes eles sofriam, mas eram professores excelentes e era alguma coisa por ali, mas esse não era o jeito dela mudar o mundo. Foi então que, no meio dessas angústias todas, ela começou a caminhar, foi caminhando por aí e encontrou, em uma praça, uma pessoa contando histórias. E ela ficou admirada. Ela parou diante dessa pessoa e começou a escutar, a afinar os seus ouvidos. E com ela tinham outras pessoas, ali, escutando. E tamanha era a força desse contador que ela pensou: “Taí. Esse é o meu jeito de mudar o mundo. Eu também quero contar histórias”. E assim fez. Começou a fazer uma grande viagem. Primeiro ela mergulhou pra dentro de si e começou a resgatar todas as suas memórias, todas as suas histórias. Se encontrou com sua vó, com seu pai, com seu vô, com tudo aquilo que fazia parte dela e depois ela fez uma viagem pra fora e saiu por aí, pelo mundo, recolhendo muitas histórias. Ela sabia que, quanto mais ela escutasse, melhor ela poderia contar e assim fez. Passado algum tempo, ela voltou pro seu lugar. E estendeu um tecido bem bonito no meio de uma praça e fez a mesma coisa que ela viu aquela pessoa, aquela primeira pessoa contando histórias. E se preparou e começou a contar, respirou fundo e o ar saiu como uma brisa encantada. As pessoas paravam e escutavam, se deliciando ao som daquelas palavras. Ela tocava, de fato, o coração das pessoas. Centenas ali pararam pra escutar e ela teve certeza que ela estava no caminho certo. Quando passou alguns dias, ela voltou a contar, mas não tinha mais centenas de pessoas. Ainda assim eram muitas pessoas, mas não tantas pessoas quanto da primeira vez. Mas ela continuou contando, como se ela estivesse falando pra milhares de pessoas. Quando ela foi contar, na outra semana, hum, o mesmo aconteceu. Ela estava contando cada vez melhor, mas o seu público estava diminuindo. Até que 50 pessoas paravam, 40, 30, 20, dez, até que chegou um tempo em que as pessoas nem terminavam de escutá-la contando a história. Eles ficavam um tempo e logo iam embora e ela continuava contando como se estivesse falando pra milhares. Até que chegou o dia que ninguém mais parou pra escutar as suas histórias, mas mesmo assim ela continuou contando. E contava, e contava, e contava, até que um dia uma criança apareceu, com essa habitual sinceridade que as crianças têm. A criança puxou a sua saia e falou: “Ô, moça, o que você está fazendo?”. Ela: “Estou contando uma história, minha pequena. Você não está vendo?”. Ela: “Eu estou vendo e você não está vendo que ninguém está escutando?”. Ela: “Sim, eu percebo” “Então você é louca, é, você é boba? Você continua contando, mesmo que ninguém escute?”. Ela: “Não, minha pequena, deixa eu te explicar uma coisa: é que antes eu contava histórias pra mudar o mundo. Hoje eu as conto pra que o mundo não me mude”. E pirlimpimpimpirlimpimpim, essa história chegou ao fim. Obrigada! (risos)Recolher