O meu nome social é Babalu. Nasci em 1967.
Meu nome veio de uma novela que passou em 1990, 1991. Tinha uma personagem… Eu já era travesti, sempre usei cabelo loiro e usava roupa mais curta. Eu trabalhava na rua, era profissional do sexo e o pessoal começou a me chamar de Babalu. Geralmente, eu...Continuar leitura
O meu nome social é Babalu. Nasci em 1967.
Meu nome veio de uma novela que passou em 1990, 1991. Tinha uma personagem… Eu já era travesti, sempre usei cabelo loiro e usava roupa mais curta. Eu trabalhava na rua, era profissional do sexo e o pessoal começou a me chamar de Babalu. Geralmente, eu tinha o cabelo bem chanelzinho, daí surgiu o nome.
Quando eu era criança, eu me sentia diferente. Quando eu chegava ao espelho e me olhava eu dizia assim: “Isso não sou eu, não condiz com a pessoa que eu me sinto.” Eu tinha essa necessidade de me olhar, eu me sentia estranha. Eu começava a usar roupas da minha irmã escondido. Quando o meu pai descobriu, aconteceu essa tragédia.
O meu pai é separado da minha mãe porque a minha mãe sempre me apoiou para ser travesti e a separação deles veio por minha causa. Eu com treze, quatorze anos, quando disse que era travesti o meu pai me deu uma grande surra, botou água de sal nas minhas costas e eu fui expulsa de casa.
Eu fui para outra cidade. Viajei treze horas de lancha e chegando na casa da minha tia eu fui bem acolhida.
Eu tenho só um irmão que até hoje não aceita a minha orientação. A minha mãe sempre me respeitou, eu sempre sou e seria o filho dela e com essa briga de querer que eu voltasse para casa. Quando eu voltei, o meu pai saiu, se separou da minha mãe e ela me acolheu. Ela disse que entre ele e o filho ela ficaria com o filho.
Com os meus primos, o relacionamento sempre foi bom. A minha tia sempre me respeitou. Eu também já trabalhava, já me prostituía, já ajudava nas despesas de casa porque quando se começa a investir junto nas despesas torna-se bem mais fácil, as pessoas começam a pensar assim: “Ele contribui para pagar uma conta de água, de luz e colocar alimentação, as coisas básicas de casa.”
Eu me travestia sempre para ir a escola.
Na escola, para uma travesti… Hoje a visão que eu tenho é que a escola deveria ser um espaço acolhedor, mas não, nos sentimos totalmente excluídas. Você vê que tem muitas travestis que não têm o ensino médio, o ensino fundamental por causa dessa exclusão.
Os amigos, o pessoal não chama pelo nome social da pessoa. Às vezes, a pessoa faz questão de [chamar de] José, Antônio. Quando eu fiz o meu curso aqui em uma faculdade particular eu sentia reprovação das pessoas, como elas me olhavam. Aprendi a olhar dentro do olho da pessoa. Eu sinto aquela coisa e dessa maneira fica no meu pensamento: “Se você está aqui é porque pode pagar. Estou aqui também porque eu posso pagar, então, direitos iguais.”
Eu acabei passando por constrangimento no dia da minha formatura, porque o Conselho de Educação baixou na portaria que as travestis poderiam usar o nome social na sala de aula e eu fui um dos realizadores desse projeto, demos entrada na ONG. No dia da minha formatura, eu pedi: “Olha, me chama de Babalu” porque todos os meus professores me chamavam de Babalu. Na hora eu estava bem produzida, com um vestido muito bonito, o meu padrinho belíssimo e na hora me chamaram pelo meu nome. Eu fiquei louca e disse que não ia entrar: “Eu não vou entrar!” Chamaram a organizadora do evento. Depois que me chamaram de Babalu eu entrei, mas não deixei de passar um constrangimento.
Eu me acho uma verdadeira gladiadora, a gente mata vários leões por dia para sobreviver. Quando saímos, de cara percebemos os olhares de condenação, é muito grande, mas tentamos lidar e estar nos espaços, deliberações, por sermos cidadãs. Você paga imposto, eu também pago. Temos que dar mesmo a cara a tapa e estar inseridas dentro do mercado de trabalho e dentro da sociedade também.
Entrei na prostituição porque sempre conhecemos, tem outra pessoa que nos leva. Essa pessoa já [diz]: “Esse aqui veio conosco.” Sempre conhecemos outras pessoas que já trabalham no ramo, mas eu nunca parei de estudar. É muito difícil, às vezes, sair com uma pessoa que não gostamos. Eu tenho que pagar o meu aluguel, tenho que comprar comida senão na minha casa não tem comida, é muito difícil.
Saía com turista, com pedestre mesmo. Turistas e a população em geral, os próprios moradores. Recebemos muitos homens casados também, a maioria das pessoas que nos procuram são homens casados, mas turista também procura bastante.
[Quando você é] bem novinha, as coisas se tornam bem mais fáceis do que para as veteranas. Corpinho bonito, um bom cabelo, uma boa maquiagem, lente, essas coisas todas fazem uma produção. Temos muitos clientes, era bastante procurado.
Passava por várias situações. Quando entrava dentro de um carro pedia: “Meu Deus, me proteja.” Geralmente elas pedem proteção para a pomba-gira, dentro dessa coisa ela sempre se pega com algum santo, como se fosse o último fio: “Eu me apego a isso.” Quando a gente entra e a gente não sabe ou [quando] a gente vence, então é: “Eu entrego a minha vida a Deus, a São José do Ribamar” ou um santo, aquilo o que a pessoa acredita. A gente entrega a vida, porque a gente não sabe, a gente entra ou sai morta, é um risco. Saía para trabalhar, quando chegava em casa: “Graças a Deus, eu voltei com vida.” Porque eu já vi várias amigas minhas serem mortas e é muito difícil.
Tinha dia que não dava nem para comer, tinha dia que não tinha dinheiro para pagar a passagem, voltava pegando carona.
Durante o dia tínhamos vergonha de ir até o supermercado, ao comércio ir comprar alguma coisa, sempre mandava alguém ir. Quando era noite não estava [com vergonha]: botava peruca, se transformava, essa aqui é a guerreira. No fundo ficamos retraídas, ficamos com vergonha por aquilo que fazemos, mas a necessidade falava bem mais alto. Simplesmente, era um teatro o que a gente fazia porque não era a realidade. Ir para a cama com uma pessoa que não se gosta é péssimo e quando voltava para casa ficava triste: “Puxa, vendi o meu corpo para uma pessoa que eu não queria, é muito ruim.”
Na época, em 1986, quando eu fiz o meu curso iniciante de cabeleireiro, foi um cliente que eu conheci que pagou meu curso. Eu saí com ele, ele perguntou como era, eu falei que fazia aquilo por necessidade. Esse cliente abriu uma conta - o nome dele era Eduardo, ele era alemão. Foi a minha primeira conta poupança que eu abri, e ele passou o dinheiro para eu pagar o meu curso.
Meu professor me levou para trabalhar no salão dele, eu trabalhei seis meses enquanto terminei de montar o meu; de lá eu comecei a trabalhar para mim mesmo.
Eu me senti com uma grande autonomia e realizada. Hoje eu deixei a prostituição, estou trabalhando no meu salão. Foi uma alegria muito grande estar, ver as pessoas chegando; pessoas que eu às vezes tinha vergonha de encarar já olhava no olho. Eu comecei e a sociedade vai me respeitando. É muito legal, é uma autoestima muito grande que dá.
O meu salão não é aquele espaço chique. Não tem ar condicionado, é simples: cadeira, lavatório. É bem simples, mas quando a pessoa vai ela tem qualidade de serviço. O cliente não paga o luxo que tem no salão, paga o serviço.
Eu agradeço muito a Deus por essa pessoa ter me ajudado, me senti pessoa, me senti cidadã. Eu fiz isso, cortei o cabelo, me sinto mais amada, em todos os aspectos eu sou feliz.
O Grupo Lilás foi registrado em 2004. Primeiro ele surgiu como um grupo de gincana, toda gincana que tinha na cidade nós ganhávamos. Primeiro nós éramos só gays desse grupo de gincana. O grupo de gincana era assim: eles faziam uma equipe daqui, eles fazem várias tarefas - por exemplo, uma apresentação da Xuxa com as suas paquitas. Tem vários grupos que vão se apresentar, o jurado vai julgar, quem fizer a sua melhor apresentação ganha tantos pontos - por exemplo, dez pontos por cada apresentação. Sempre fazíamos perfeito: íamos de peruca, salto, vestido, sempre fazíamos a coisa bem feita.
Quando tinha uma gincana o pessoal: “Corre para o grupo Lilás.” Já sabiam que ganhávamos. Sempre fazíamos uma festinha depois com o prêmio que ganhávamos e ficava aquela coisa toda.
Foi dentro das reuniões que fazíamos da gincana [que] começaram a surgir as demandas, as necessidades, pelo preconceito. Fomos crescendo, fomos abrindo as nossas ideias, dissemos assim: “Por que não transformar isso em uma ONG? Então vamos transformar em uma ONG porque temos o CNPJ. Tentamos pegar recursos, fazer alguma coisa e ser um grupo de fato reconhecido, registrado.”
Depois que passou a ser ONG começamos, chamamos as pessoas, fazemos o grupo. Fazemos as oficinas de prevenção, sempre estamos qualificando mais um: “Vamos fazer isso hoje, vamos fazer uma parte de Direitos Humanos” e vamos pautando, chamamos o grupão. “Hoje vamos dar palestra nas escolas.”
Às vezes, vamos para praças, colocamos coisas de prevenção. Se tem alguma coisa, se tem uma pessoa, por exemplo, que teve uma relação sem proteção [e] depois de dois meses quer fazer teste de HIV, encaminhamos para coordenação fazer o teste de HIV. Somos muito preocupados.
Às vezes, tem uma pessoa que tem uma DST, ela não quer ir ao hospital. Ela vem na ONG, já cuidamos. Ligamos para a coordenação municipal. Já digo: “Tal hora tem uma consulta marcada assim e assim na unidade básica de saúde.” Nós nos tornamos um grupo que encaminha as pessoas, como se fossemos referência, principalmente para os meninos que vivem em vulnerabilidade social, em todos os aspectos.
Quando eu falo em prevenção, não é só prevenção a DST, AIDS. [Falo de] prevenção ao preconceito, em Direitos Humanos. Falamos: “Olha, vamos fazer uma oficina com foco em Direitos Humanos.” Se tem uma discussão voltada para criança e o adolescente: “Vamos ver como é que está?” Participamos. O pessoal fala só do adolescente hétero; onde ficam os adolescentes que são gays e são expulsos de casa? O que o Conselho está fazendo, o que o Poder Público está fazendo? Então perpassamos por todo esse leque. Não é só a prevenção de DST, AIDS, existem todos os tipos de prevenção.
Geralmente fazemos duas vezes por mês. Somos muito chamados pelas escolas para dar essas palestras. O grupo também trabalha muito… Por exemplo, tem uma do grupo que está passando necessidade. Pegamos vários profissionais da beleza, colocamos na praça, trocamos o serviço por alimento. Às vezes, quando pedem, fazemos o Natal sem fome, fazemos várias campanhas pontuais.
Nós fizemos um seminário com 140 pessoas, fizemos as oficinas porque geralmente as pessoas só ficam falando, falando e a pessoa fica com sono. Nós botamos protagonistas juvenis.
Nesse [seminário sobre] violência urbana, dividimos os grupos e eles começam a tirar dúvidas, começam a entender porque é aquela coisa. Se colocar o pessoal e ficar falando eles não acham tão interessante. Nas nossas oficinas de prevenção a DST, AIDS pegamos o vídeo e colocamos, mostramos imagens. Não ficamos só falando, estamos trabalhando com a imagem; com a imagem fica registrado na mente deles.
Hoje nós somos cadastrados no Conselho da Criança e do Adolescente, temos CNAS, que [é] o Conselho de Assistência Social do Município e agora estamos no Estado, estamos todos documentados.
Conheci o ViraVida em um evento em 2006, onde a Associação de Prostitutas estava fazendo um seminário sobre prostituição. O grupo Lilás também estava realizando, junto com a Associação, e as pessoas que estavam lá começaram ver a pauta, depois me deram um folder. Como eu estava na organização, organizando comida, viabilizando tudo, os convidados, eu também não dei muita importância. Peguei e botei dentro da minha pasta.
Um mês depois eu passei mal, eu sou hipertensa e fui para o hospital. Depois que eu tomei a minha medicação deitada na cama, a minha pasta estava de lado. Eu olhei o folder dentro da minha pasta: “Mas o que é isso aqui?” Eu peguei, olhei: “Eu vou saber o que é isso.” Quando eu liguei foi agendada uma reunião na ONG e as pessoas foram.
Eu achei um projeto de portas abertas, uma oportunidade e abracei o projeto com garra mesmo. Eu quis dizer assim: é um trabalho que eu vivo e eu posso encaminhar esses adolescentes para estarem nesse espaço, ter uma qualificação. Foi muito bom. Eu também sou muito ativo, em todas as reuniões eu venho, eu sou presente. Na hora que me chamam: “Fulano de tal não veio no curso” eu vou e falo com a família para saber por que não foi, se estava doente, o que foi que aconteceu. Eu monitoro muito e sempre falo a eles: “Olha, é uma oportunidade única que vocês estão tendo, vocês tem que agarrar com unhas e dentes. Talvez vocês tivessem mais incentivo na idade de vocês, talvez eu nem estivesse aqui porque eu teria feito outros cursos, mas Deus sabe o que faz.” Eu converso muito com eles e tem sido muito bom.
Eu vejo o Projeto ViraVida como uma oportunidade muito grande para esses jovens. Quando eu li tudo, quando foi me passado, foi como se eu tivesse reencontrado, como se eu estivesse vendo a situação que eu vivi e [pudesse] dar oportunidade a essas pessoas que estavam passando pela mesma situação.
Pra recrutar o pessoal para o projeto eu passava pelo ponto de prostituição, depois eu sentava com eles, conversava: “Se tu tivesse essa oportunidade, como é que tu fazia?” Muitos diziam assim: “Ah, eu gosto do que eu faço.” Eu digo: “É, está ganhando dinheiro, né?” Mas outros diziam assim: “Não, eu faço porque eu preciso.”
Vendo que eles estavam na vulnerabilidade social, mesmo - a maioria dos que eu encaminhei são filhas de mãe solteiras também que vivem uma situação. Um falou para mim assim: “Ah, a minha mãe já está ficando velha, sai para fazer programa e não traz nada. Eu tenho que fazer alguma coisa para ajudar. Eu preciso de um barbeador, de um perfume, de um chinelo. Preciso sair, eu tenho que fazer alguma coisa para ganhar dinheiro.”
Eu levava folder, sentava com eles e contava: “Olha, tem projeto ViraVida.” Passava tudo, explicava tudo o que era o projeto e fizemos uma pré seleção na ONG. “Depois você passa na ONG.”
Eles passaram, conversamos, eu e a secretária, [com] um por um. A pessoa contava realmente a situação, fazia-se aquele relatório e encaminhava as fichas. Quando chegava aqui eles tinham sido selecionados, faziam uma redação e conversavam com os psicólogos.
Começamos primeiro com as travestis e com prostitutas. Eles [os jovens] que chegam até nós, mas é muito difícil trabalhar com eles, porque eles não têm confiança de falar totalmente, como essas profissionais femininas.
É como se fosse um grande pagamento que foi feito para mim. A grande transformação, isso foi o pagamento que eu tive deles. Hoje eles já estão com a mentalidade, vendo mais adiante, um futuro bem próximo. É isso que eu chamo de pagamento: vê-los felizes, com a vida transformada. A gente vê uma qualidade de vida, eles sendo mais responsáveis, pensando. O pensamento deles está direcionado como vencedor e não para ser vencido.
Quanto à parceria com o ViraVida, a expectativa é muito grande, às vezes fico até sem palavras para falar. Mas essa transformação… Por eu ser uma travesti, tendo a maioria dos direitos negados, os olhares diferentes… O projeto me olhou como cidadã por ser uma travesti e está trabalhando em cima desses jovens que estavam na prostituição e todo tipo de vulnerabilidade em si. [Por] terem me convidado, eu me senti honrada, é gratificante. É por isso que eu falo, não tem pagamento.
Meu grande sonho é ver vários adolescentes no mercado de trabalho. As pessoas que eu vejo, convivo, a situação deles… O que me dói muito é ver que eles não estão no mercado de trabalho. Eu tenho outro sonho, que é fazer uma faculdade em Direito, mas por falta de dinheiro… Eu não fiz ainda esse curso porque pago seiscentos reais de aluguel, tomo conta da ONG. Tenho a minha mãe também, um irmã com deficiência. A minha mãe tem 81 anos, eu tenho uma irmã que tem síndrome de Down que eu cuido também, ela tem 34 anos e me impede de eu estar em uma faculdade, frequentando. Eu tenho que trabalhar para ajudá-las e não só elas, as outras pessoas que precisam da minha família também, que são muito humildes, às vezes não tem nem o que comer e eu tenho que me virar. Eu me acho muito guerreira, mas eu espero que Deus me dê essa oportunidade de fazer faculdade em Direito.Recolher