Conte sua História - 20 anos de Museu da Pessoa no Brasil
Depoimento de Carlos Antonio Noia de Souza
Entrevistado por Thiago Majolo e Silvia Espíndola
São Paulo, 30/08/2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV365
Transcrito por Priscilla Proetti
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhã...Continuar leitura
Conte sua História - 20 anos de Museu da Pessoa no Brasil
Depoimento de Carlos Antonio Noia de Souza
Entrevistado por Thiago Majolo e Silvia Espíndola
São Paulo, 30/08/2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV365
Transcrito por Priscilla Proetti
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Então, Carlos, a gente vai começar perguntando o nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Eu sou o Carlos Antônio Noia de Souza, nasci em São Paulo capital em 6 de dezembro de 1960, segundo a minha mãe, na Maternidade do Belém.
P/1 – Tá, então fala um pouco sobre os seus pais, o nome deles, qual a atividade deles...
R – Meus pais são de Alagoas, vieram de uma cidadezinha pequenininha lá no sertão alagoano, Água Branca. Meu pai é Antonio Manoel de Souza e a minha mãe Maria de Lurdes Noia de Souza, meu pai veio primeiro para São Paulo, arrumou um emprego, fez um pezinho de meia, né, depois... A minha mãe ficou noiva lá, aguardando ele voltar para se casar, e aí ele voltou depois de uns três anos, se casaram e vieram para São Paulo. Eu sou o caçula de uma família de três filhos, o mais novo, né, o caçulinha.
P/1 – E todos nasceram em São Paulo?
R – Todos foram aqui em São Paulo, ele só casou lá, né, numas férias que ele pegou do serviço ele foi para lá casar e já veio embora com a minha mãe.
P/1 – Nessa época o seu pai fazia o quê?
R – O meu pai era metalúrgico, mas aí logo depois, na década de 1960, ele casou, veio, morava numa casa na zona leste, né, de aluguel, depois nasceram as minhas irmãs, ele conseguiu comprar uma casinha velha ali no Cangaíba, perto da Penha, e quando eu nasci eles já moravam nessa casa própria, que está lá até hoje. Logo depois ele trabalhou como motorista, né, deixou essa parte de ser metalúrgico e começou a trabalhar como motorista de caminhão em várias empresas.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe era costureira, costureira de mão cheia, mas a função dela no início da vida era cuidar dos filhos, aquela coisa de esposa mesmo, do lar, cuidar dos filhos. Mas em vários momentos da nossa vida ela atuou como costureira, eu me lembro na minha infância, de, no meio da casa, ter um monte de costuras, ela trabalhava para oficinas, aí levava sacolas de costuras para fazer, e a gente ficava atrapalhando, né, no meio das costuras lá, dava aquela atrapalhada, dava um estresse (risos), e isso era para ajudar no orçamento..
P/1 – Ela costurava com máquina ou costurava naquela...?
R – Era uma máquina de costura que ela tinha, não era automática, naquela época não existia isso, né, era no pedal ali mesmo, e ela fazia essas costuras para essas oficinas.
P/1 – E os seus avós ficaram em Alagoas, de onde eles são?
R – Meus avós sempre foram de lá, meu avós maternos e os avós paternos também, só que o meu avô paterno... O meu pai é filho do segundo casamento dele, quando ele se casou com a minha avó ele já tinha mais de cinquenta anos de idade, mas ainda tiveram cinco filhos, e ele já tinha vários outros filhos do primeiro casamento, tanto é que quando o meu pai veio para São Paulo ele ficou instalado na casa de um irmão, por acaso um irmão que já tinha filhos bem mais velhos que o meu pai, né, então ele ficou instalado na casa desse irmão. E eu não conheci o meu avô paterno, quando eu nasci ele já havia falecido, convivi com a minha avó por parte de pai, essa sim eu convivi até vinte e poucos anos, até ela falecer. E os meus avós maternos, eles sempre foram... A minha avó paterna veio, ela chegou a morar em São Paulo com um dos filhos, né, ela veio para São Paulo no final da vida dela e o final da vida dela foi em São Paulo, já os outros não, meu avô tinha vindo para São Paulo, mas quando era jovem ainda, para trabalhar, tinha alguns irmãos que se instalaram aqui em São Paulo, no estado todo, tanto na capital como no interior, e ele veio para trabalhar na estrada de ferro, na expansão da estrada de ferro, mas foi por pouco tempo, e a minha avó materna nunca veio para São Paulo, nunca saiu da cidadezinha dela lá.
P/1 – Mas você conheceu?
R – Conheci, inclusive depois que eu casei, eu casei com vinte e oito anos, eu fui em lua de mel para Maceió e fui visitar a minha avó, ela ainda era viva, a minha esposa chegou a conhecer a minha avó.
P/1 – O seu avô não?
R – O meu avô não, ele já tinha falecido, mas a minha avó ainda era viva, e na minha infância eu fui várias vezes para lá, na minha infância, adolescência, fui com os meus pais, né, eu ia com eles, e depois ia sozinho.
P/1 – Vocês iam como para lá?
R – A primeira vez eu tinha, acho que, um ano de idade, um ano e pouco de idade, foi de ônibus, a segunda vez que nós fomos já foi de carro, meu pai já tinha um carro, enfiou a família toda, e dois dias viajando para chegar lá, aí depois ia sempre de carro. Depois eu já era adulto, já tava trabalhando, aí eu ia de avião, fui uma vez de ônibus para sentir a viagem, né, mas voltei de avião.
P/1 – Você lembra dessas viagens de carro, você tem recordação disso?
R – Tenho, tenho recordação, eu tinha oito anos na segunda vez, que já foi de carro, as minhas irmãs tem diferença de dois anos, né, a mais velha tava com doze, a outra com dez, e foi, inclusive, uma prima minha também, que tinha em torno de dez anos, então foram quatro atrás num fusquinha, o meu pai dirigindo e a minha mãe do lado, e esses dois dias foram... Essa viagem era dura, o fusca não tem conforto nenhum, muitas horas de viagem né, o meu pai ia parando de tempo em tempo, a gente parava para reabastecer onde tinha uma alimentação, uma coisa assim.
P/1 – E para dormir, dormia onde quando parava?
R – Em hotel de beira de estrada, hotelzinho lá...
P/1 – E aquilo era uma aventura, como era o momento de ir para lá, era um momento especial?
R – Era um momento especial, né, era uma viagem, não era comum para a gente viajar para lugar nenhum, era uma viagem onde a gente ia conhecer os primos, os avós, a gente só ouvia falar... As histórias, os lugares, os meus pais contavam muito, né, sobre a infância deles, meu pai gostava de contar histórias sobre a infância dele, ele aprontava muito, tinha o apelido de Santinho, e não era por acaso (risos), então a gente tinha curiosidade de saber como era, aí ia para lá, um sítio, né? E um sítio para uma criança, não tem coisa melhor, conviver com os bichos, com a terra, com árvores frutíferas, andar a cavalo, era um paraíso para gente, a gente adorava.
P/1 – Quanto tempo vocês ficavam lá?
R – Em torno de uns vinte dias.
P/1 – Qual era a cidade? Eu não me lembro do nome dela.
R – Água Branca, ela fica bem no sertão de Alagoas, é num ponto onde você já tem divisa com Pernambuco e com a Bahia. Para ter uma referência, é próxima de Paulo Afonso, onde tem a Usina Hidrelétrica da Chesf. Então lá, como era uma montanha onde tinha a casa do meu avô, em determinados pontos a gente, a noite, conseguia enxergar luzes das cidades tanto de Paulo Afonso como de Caraibeiras, que é uma cidade de Pernambuco, então do alto a gente via um vale onde ficam essas cidades, né, e o São Francisco cortando lá.
P/1 – E os seus avós viviam de plantar, do que eles viviam?
R – É, tinham as agriculturas de subsistência, as roças, né, como eles chamavam. Isso também servia como uma fonte de renda, o que eles colhiam de lá também servia para vender e ter uma renda durante o ano, e o meu avô era um comerciante, ele comprava coisas de uma outra cidade, revendia na feira dessa cidadezinha, ele vendia rapadura, corda, coisas que ele via que ia dar dinheiro ele levava da cidade. Por exemplo, na época da safra era rapadura, ele tinha as roças dele, né, de cana, colhia, fazia uma parceria com um engenho, que não era um engenho de açúcar, mas era de rapadura, e uma parcela disso ficava com o engenho, então não era por dinheiro, não tinha essa... Ele não pagava por isso, né, pagava com o próprio produto: “O que der, aí, da sua cana...”, sei lá, um percentual que eu não me lembro quanto era, era do dono do engenho, o restante era dele e ele vendia, essa produção dele, ele vendia. Era a mesma coisa com a farinha, eles plantavam a mandioca, quando dava mandioca, ele tinha uma casa de farinha própria, é comum, né, todas as casas nos sítios terem, aí fazia uns mutirões lá, ralavam isso, a gente participou desse processo algumas vezes, dele fazer a farinha e a gente estar junto. Algumas coisas eram perigosas, como a parte de ralar, era uma máquina, uma bola, né, cheia de cerdas para descascar a mandioca e até para ralar mesmo, né, então isso é perigoso porque você vai enfiando uma a uma e pode ir a mão junto, era coisa para adulto. Mas outras coisas não, mexer a farinha, era um forno redondo onde se joga em cima de umas pedras, você joga em cima, embaixo a lenha, né, queimando e tal, e fica com o rodo de madeira mexendo a farinha para ela chegar num determinado ponto lá, sequinha, né, e isso aí a gente fazia, era muito mais uma coisa de brincadeira do que a produção, mas era marcante, né, para uma criança, na infância, era legal de fazer.
P/1 – E essa avó que veio para São Paulo, como foi? Você ia à casa dela, ela morava perto?
R – Não era muito perto, mas era no mesmo bairro, ela morava com um tio meu, que era solteirão por opção, e ele era quem a mantinha, tinha uma casa, e os outros filhos iam lá visitar.
P/1 – E como era essa avó?
R – Na minha infância ela era uma pessoa bem mais fechada, a gente não ia muito lá porque ela tinha uma série de plantas no quintal, que ela gostava e tal, e criança tem aquela energia, corre para cá, corre para lá, eventualmente batia numa planta dela, ela brigava com a gente, então a gente não gostava muito de ir na casa dela. Posso dizer que ir para lá não era o passeio dos sonhos, né, nem meu e nem das minhas irmãs, mas depois, numa determinada época, né, a gente cresceu e ela ficou uma velhinha muito legal, e aí a gente começou a entendê-la também, que tudo aquilo era culpa nossa, não era culpa dela (risos). Era uma pessoa de idade que queria uma certa tranquilidade e que as crianças não proporcionavam, muito pelo contrário, né, então ela se estressava com aquilo. Depois que a gente cresceu, o relacionamento com ela era maravilhoso, né, eu ia para lá e brincava muito com ela: “Ô, vó, vem aqui que vai ter uma balada ali, vamos”, naquela época chamava baile, né, bailinho, “Vamos pôr uma mini saia na senhora”, e ela pegava e olhava feio, com a bengalinha, pegava a bengalinha, eu tinha que correr: “Sem vergonha, me respeita”... Aquela coisa de avó, mas ela já dava risada, via que era brincadeira. E uma coisa que eu me lembro bem dela é que ela era racista ao extremo, ela era racista, ela dizia que a avó dela era uma índia muito bonita, e até hoje eu tenho traços índios, né, que vem dessa parte, e que acabou sendo obrigada a acasalar com o negro reprodutor da fazenda. Então essa avó dela devia ter ódio do negro porque ela foi estuprada na verdade, né, foi obrigada, e passou isso para filha, que passou para neta, que era ela, então ela era extremamente racista, e eu brincava com isso, eu chegava lá: “Vó, arrumei uma namorada”, “Ah, é, filho? Traz aqui para eu conhecer”, “Então, ela é negrinha, é linda”, e ela já fechava a cara, né: “Eu não quero saber não”. Então ela tinha isso por motivos lá históricos dela, por causa do escravo, que também era o reprodutor, era obrigado a fazer, né, era o serviço dele de reproduzir para fazenda, mas ela era extremamente racista.
P/1 – Como era a sua casa de infância, essa na Penha, né?
R – É, era no Cangaíba, quando o meu pai comprou era uma casa bastante antiga já, e a minha mãe falava: “Pô, quando a gente veio morar aqui as portas eram todas de madeira, todas quebradas, a gente via quem passava na rua, chovia mais dentro do que fora e tal”, e aos poucos é que o meu pai foi reformando uma, duas, três, quatro, cinco vezes, né, até chegar em uma condição boa de habitabilidade, e ele construiu também, nos fundos do terreno, era bastante grande, uma casinha que ele alugava, então era uma fonte de renda. Eles tinham muito pouco estudo, os dois, fizeram o básico da alfabetização, o equivalente a uma quarta série, feito lá em Alagoas, né, mas ele tinha uma visão muito boa, meu pai era um cara com uma visão de futuro, é um cara que investiu na vida, assim, pros filhos estudarem. Então ele sempre foi contra a gente trabalhar, não que ele proibisse, né, mas ele dizia: “Não, você tem que estudar”, “Mas, pai, e se eu for...”, “Não, vai estudar, vai estudar”. Ele ralava para que a gente estudasse, porque a visão dele é que só com o estudo é que os filhos iam ser algo na vida, né, e ele não queria que os filhos passassem a série de dificuldades que ele passou, né, mas foi um vencedor, o meu pai é um cara com uma história de vida, assim... Já faleceu, mas seria alguém que se contasse a história de vida dele (risos), seria interessante.
P/1 – Você contou um pouco da sua impressão de quem era o seu pai, e quem era a sua mãe para você? Você vendo de pequeno, assim...
R – Ah, a minha mãe era o sustentáculo, né, a minha mãe era... Também com muito pouco estudo, mas uma pessoa muito forte, uma administradora, tudo o que o meu pai ganhava ele passava para ela, o meu pai não administrava dinheiro em casa, né, o salário dele, ele vinha e dava para ela, e sempre a gente viu isso, sempre foi assim, ela era quem gerenciava tudo, as contas para pagar, a compra do mês, era tudo na mão dela, né, ele era o cara para prover o dinheiro, e ela para fazer toda a gestão de tudo, não adiantava eu pedir alguma coisa pro meu pai: “Pai, eu preciso de um sapato, preciso disso...”, ele não tinha a mínima ideia se tinha dinheiro ou se não tinha para aquilo: “É a sua mãe”, não que ele não tivesse noção, ele tinha, mas ela se encarregou disso, ela tinha, sei lá, acho que aquele dom natural para administrar, e aí ela pegou para ela, e ele deixou ela administrar, lógico que coisas maiores eram com ele, né, eles juntavam um dinheirinho e tinha um do lado da nossa casa, em um dado momento ele quis comprar, era interessante comprar o terreno do lado, então lógico que era com ele que... O carro, por exemplo, quando foi comprar o carro, aí era com ele, né, ela não entendia nada disso, mas no dia-a-dia, no gerenciamento do salário, ela tocava muito bem, e como eu falei, em vários momentos da nossa vida onde o meu pai ficou desempregado ou teve algum tipo de dificuldade, ela foi à luta, né? Depois dessa fase de motorista de empresas ele comprou um táxi, aí ele era taxista, mas me lembro que numa época aconteceu um acidente onde o carro dele foi destruído, ele mesmo ficou um tempo sem poder dirigir por conta do acidente, e ele era taxista, né, então a renda, se você trabalha tem, se não trabalha não tem, e ela, depois de vários anos que ela tava sem costurar, ela voltou a costurar para poder sustentar a gente durante alguns meses.
P/1 – E ela é viva?
R – Não, ela faleceu também.
P/1 – Quando eles faleceram, os dois, faz tempo?
R – A minha mãe faleceu em 2008, ela teve um câncer de fígado, mas uma lutadora, né, quando foi diagnosticado os médicos deram alguns meses, ela ainda durou um ano e meio, tinha vontade de viver, até porque o meu pai já era acamado, ele teve uma série de AVC’s, e ela era quem cuidava dele, então ela falou assim: “Não, eu não posso morrer, eu que cuido dele”, (risos). Então ela ainda ficou um ano e meio bem, até que chegou uma hora que não tinha mais jeito, né, e ela faleceu com setenta e três anos. E ele em 2010, ela faleceu em 2008, ele em 2010 em decorrência de... Foi definhando, mas ele ficou dez anos, quase dez anos, depois que ele teve os primeiros AVC’s, sendo que os últimos três anos absolutamente acamado, né, e já com pouca consciência, com mais de oitenta anos, então, vamos dizer assim, de velhice.
P/1 – Vou voltar um pouco para sua casa de infância, como era a relação com as sua irmãs?
R – A mais velha, a Dilma, que não é presidente hoje (risos), depois a do meio, a Dirce, e o nosso relacionamento foi sempre muito bom, os três irmãos sempre se deram muito bem, tinham aquelas briguinhas de irmãos, que acontecem, mas até hoje a gente mantém esse espírito, assim, muito unido, sempre juntos, a gente sempre se visita, eu mudei, hoje eu moro na zona sul, a minha irmã do meio mora na mesma casa que era do meu pai, né, e a outra irmã também mora lá para zona sul, mas a gente conversa: “Vamos para lá? Vamos”, aí todo mundo vai para casa de um, é uma união bastante grande. E como eu sou o mais novo, eu tinha muita vontade de aprender a ler e escrever porque elas já estavam na escola, né, dois anos, já chegavam lendo, mostrando as coisas, e eu tinha uma vontade louca de aprender a ler e a escrever, então quando eu entrei na escola eu fui um aluno excelente por causa dessa vontade, eu queria aprender logo, então, sem falsa modéstia aqui, eu era o melhor aluno da classe, eu aprendi com muita facilidade por causa dessa vontade, chegava em casa e queria mais e mais, e elas me ajudavam, viam, né, a minha vontade, aí eu fazia toda a lição, e refazia, a professora me adorava, né: “Nossa, o Carlinhos...”
P/2 – E qual era a matéria que você mais gostava?
R – Não, isso era no início, né, era alfabetização, era o primeiro ano, né, na época, então tudo para mim era maravilhoso, eu ia muito bem e a professora gostava muito de mim, tinha umas coisas de medalha na época, né, o primeiro aluno da classe ganhava uma medalha, e tinha essas cobranças também, naturalmente para mim, mas a minha irmã mais velha sempre foi muito inteligente, muito aplicada, e como eu disse, o meu pai tinha esse foco no estudo, e ela era a primeira aluna da classe, e na cabeça do meu pai, os outros filhos eram filhos do mesmo pai e da mesma mãe, comiam o mesmo feijão e arroz, então tinham que ser tão bons quanto ela, então se ela era a primeira aluna da classe por que os outros não eram? Também tinham que ser, se não fosse é porque era vagabundo, porque não queria estudar, porque ficava na rua (risos), na cabeça dele os três tinham que ter o mesmo nível intelectual, e meio que forçado a gente era obrigado a tirar dez nas coisas; tinha uma nota que era de comportamento, era um boletim, um cartão, onde eram anotadas as notinhas que a gente tirava em cada coisa lá, e tinha uma tal de uma nota de comportamento que tinha que ser cem, as notas eram de zero a cem, e a nossa tinha que ser cem, não tinha outra opção, se você vai para escola, que é para estudar, como você vai lá para conversar ou fazer bagunça? Então não tinha opção, se não fosse cem certamente ia “tomar um couro” em casa (risos).
P/1 – E como eram as brincadeiras entre vocês e os amigos, como vocês brincavam?
R – Era periferia, né, a gente tinha uma infância pobre, humilde, então os brinquedos a gente fazia, porque os brinquedos industrializados eram preditivos para nós, então a gente fazia os brinquedos a partir de madeiras, né, tinha um quintal grande, o meu pai sempre foi aquele tipo “faz tudo”, né, então ele tinha muitas ferramentas, muitas coisas, o terreno do lado não era dele, depois acabou sendo, mas ele que tomava conta, né, tinha madeira, restos de materiais de construção, e isso acabava virando brinquedo, latas, tinham muitas coisas que eram em latas de alimentos, óleo, por exemplo, né, e a gente cortava aquela lata e fazia como um tratorzinho, né, como carrinho de rolimã, pião, jogar bola na rua, que não era asfaltada...
P/1 – E como era esse bairro?
R – Era um bairro de periferia, né, bairro de terrão, de chão, muitos terrenos vazios na época, próximo tinha um campo de futebol, vários, na região tinham muitos campos de várzea, né, eu joguei muito futebol lá, uma área onde a gente empinava pipa sem risco de enroscar nos fios, né, e era muito próximo, assim, de uma área rural, uma infância... Não era como num sítio, numa fazenda, mas uma infância que dava para ter uma ideia do que era pisar no chão, na terra, tomar chuva, quando cai a chuva e você tá lá brincando, e continua, e a chuva cai, e a criançada crescia assim, todo mundo junto, brincadeiras coletivas, né, que hoje ficam só na memória das crianças aí, o que se faz é dentro das escolinhas, pega-pega, esconde-esconde, né, mãe da rua… E tinha uma série de outras, cabra cega, passa anel, se formavam os grupinhos, né? E aí quando foi se transformando em adolescente incrementou um pouco mais, a gente colocava umas... Jogava bola na rua, às vezes colocava uma rede de poste a poste para jogar um vôlei, dava uma incrementada nas coisas, né, mas tinha toda essa garotada que se reunia lá para brincar no dia-a-dia.
P/1 – E tendo duas irmãs, duas meninas, como foi isso para você, conviver mais com as mulheres?
R – Não tinha, não tinha... Por conta disso que eu falei que a rua era o nosso quintal, então não tinha isso de você estar em casa com duas meninas, em casa eram duas meninas, mas na rua tinha um monte de meninos, né, que vinham para dentro da minha casa brincar, que eu ia para casa deles brincar, então não era aquilo isolado, né, eu, o único menino, tendo que conviver com as brincadeiras das meninas, não era assim. Eventualmente a gente tinha que ficar dentro de casa porque os meus pais saiam ou porque tava chovendo, ou a noite, né, tinha que ficar dentro de casa e aí inventava alguma brincadeira lá, mas no dia-a-dia não. Se você falar assim, com relação a formação: “Como foi a sua formação?”, isso não influenciou em nada porque essa abertura que tinha dentro da comunidade ali, da rua, né, a gente chamava de rua mesmo, era muito grande, então elas brincavam com as meninas da rua, iam para casa dos vizinhos, os vizinhos vinham, e eu também ia para casa dos vizinhos, então não tinha essa influência de um pro outro.
P/1 – Você falou que os seus pais apoiavam, incentivavam essa coisa do estudo, né, comportamento, estudo, tal… Eles tinham um desejo, para você no caso, do que vai ser, em que vai se formar, ou era uma coisa aberta?
R – Era aberto, eles tinham as ideias deles, que na época não eram só ideias deles, era realmente o que se tinha de mais rentável em termos de profissões, que eram as profissões clássicas, né, ser médico, advogado, engenheiro, então quando alguém perguntava ou mesmo quando eles falavam com a gente: “Não, você tem que estudar, tem que ser alguém na vida, tem que ser um médico, um engenheiro, um advogado, um doutor”, alguma coisa assim, né, de que eles entendiam que era algo bem acima deles e que ia proporcionar pros filhos uma renda boa, uma vida boa. Mas aí depois, quando a gente foi crescendo, já na adolescência, na fase adulta, eles também foram entendendo que o mundo era muito mais aberto do que aquela meia dúzia de profissões clássicas e que dava pros filhos serem felizes fazendo outras coisas, né; o meu pai,pela criação dele, pela educação que ele teve, ele era, assim, bem militar, gostava dessa área militar, né, então quando eu enveredei para essa área militar, para ele foi a realização de um sonho, né, ele se viu em mim, o militar que ele gostaria de ter sido. Ele não foi, mas o filho foi, então eu chegava em casa, ele colocava o meu quepe, saia marchando na sala, coisas desse tipo, e falava pros amigos, cheio de orgulho: “Meu filho está na academia”, então ele gostava dessa área, mas não foi uma imposição dele, nem influência dele porque ele não era militar, né, foi uma decisão minha mesmo.
P/1 – Mas o que você sonhava ser quando você era pequeno? Tinha algum sonho, você imaginava o que você ia ser?
R – Eu não me lembro de quando pequeno ter alguma coisa que me chamasse atenção, assim em termos de profissão, algumas coisas me chamavam a atenção como criança, né, ser marinheiro por causa dos navios, ser piloto por causa dos aviões, coisas desse tipo, mas não era nada, assim, focado: “Eu quero isso porque eu gosto”, eu não tinha. Já na adolescência, até aí já tem uma influência da minha irmã nisso porque ela acabou entrando na USP, em matemática, então ela convivia com muitos engenheiros, logo depois ela passou a fazer um estágio no IPT, tinham muitos engenheiros, então ela falava de engenheiros isso, engenheiros aquilo, e começou a me despertar um interesse pela engenharia. Tanto é que depois eu ia prestar vestibular também para engenharia, né, e depois acabei até fazendo engenharia também (risos), eu sou engenheiro químico hoje também, então me despertou, mas muito mais por influência dela. Aí eu descobri que eu tinha a ver, que realmente eram coisas que eu gostava de fazer, não era a toa que lá atrás eu construía meus carrinhos (risos): “Pô, esse troço era de engenharia”, o cara já tem um Q de engenheiro desde os sete, oito anos de idade, né, e depois acabei fazendo engenharia, mas muito mais por satisfação pessoal do que para exercer a profissão.
P/1 – E a sua irmã do meio fez o que?
R – Ela é enfermeira, ela entrou na Escola Paulista de Medicina em enfermagem.
P/1 – Vou voltar de novo um pouquinho, a gente fica voltando, mas é assim que funciona a memória. Voltando nos seus pais, eles eram de Alagoas, como era a comida, essa coisa da cultura mesmo na sua casa, tinha uma influência forte de lá ou não?
R – Não, não tinha, forte não. Lógico que tinham algumas coisas que a minha mãe tinha aprendido a fazer lá e eventualmente ela até fazia como comida, mas não dá para dizer que a comida lá em casa era típica nordestina. Não era, era o básico, arroz, feijão, salada e alguma coisa de carne, né, um frango, um bife, uma coisa assim, batatas de vez em quando, no final de semana uma macarronada, que não tem nada a ver com o nordeste, coisas que ela aprendeu aqui também, com a cultura daqui, e ela fazia. Eventualmente é que ela fazia um beiju, tapioca, bolo de milho, até porque nesses quintais aí do lado de casa eles plantavam mandioca, milho, cana, era quase que uma chácara onde eu morava. Tinha bananeira, goiabeira, abacateiro, era um terreno minúsculo, mas eles trazendo de lá aquela cultura, eles plantavam de tudo ali, aí colhia uma quantidade grande, acabava fazendo esse doces, bolos, eventualmente alguma comida típica de lá, mas não tinha aquela influência forte não.
P/1 – E essa casa que o seu pai alugava, vocês tinham contato com esse pessoal, com as pessoas que iam alugando, como era, tinham um convívio? Porque era no fundo, né?
R – Era, era no fundo, não tinha muito não porque o meu pai tinha uma exigência de que as pessoas que fossem morar lá não tivessem filhos, até por conta da gente, para não ter atrito, aconteceu de algumas pessoas irem morar com filho ou foram morar e depois tiveram filhos, né, mas eram adultos que trabalhavam o dia inteiro e voltavam... A gente se via no final de semana, se dava bem, mas era aquela coisa bem afastada, não tinha-se muita proximidade não.
P/1 – Conta um pouco então agora... Você falou que gostava de ler, do colégio, essas coisas, esse seu primeiro colégio como ele era? As primeiras lembranças dos dias de aulas, esse começo da educação.
TROCA DE FITA
R –(...) córrego, mas quando chovia vinha toda a água, né, desde lá... E ele transbordava, virava um riozão (risos), a gente fala córrego dá impressão que é só uma linhazinha de água, mas não era, a parte de cima dele tinha uns dez metros, a calha dele, né, a parte de cima de ponta a ponta tinha uns dez metros, pontes de madeira por onde a gente atravessava e tal...
P/1 – Vou voltar a te perguntar da coisa da educação, da entrada no colégio, como foi? Você se lembra desses momentos, dos primeiros professores?
R – A escola era pertinho, era na mesma rua da minha casa, há uns quinhentos metros da minha casa ficava a escola, então a gente ia a pé, era um mundo diferente, mas era aquilo que eu tava esperando, eu queria ir para a escola, então a gente tinha que aprender a conviver com aquilo. Era uma cultura diferente, a minha professora era muito rígida, ela batia nos alunos, o meu pai apoiava isso completamente, eu chegava contando isso horrorizado: “A professora bateu em um aluno”, “Ah, é porque deve ser vagabundo, essa é das minhas, se você aprontar tem que quebrar a régua na sua cabeça também e me contar para quando chegar aqui você apanhar de novo” (risos). Aquela coisa assim, então não era só ter que tirar cem na nota, o couro ia comer por qualquer coisinha que acontecesse, então a professora batia, dava tapa, puxava orelha, minha não porque além de eu gostar de fazer aquilo tinha todo um terror por trás que eu não me atrevia nem a olhar pro lado, quanto mais aprontar alguma coisa, então me lembro de pequenininho, sempre a minha estatura foi menor, né, de ficar lá pro fim da fila para entrar, tinha um pátio grande onde todas as classes ficavam em fila, mais ou menos por ordem de tamanho, a professora ia organizando a fila, se cantava hino antes de entrar pras salas, em dado momento se fechava o portão, se você não chegasse não podia entrar mais, aí depois que cantava o hino tinha uma certa ordem para entrar, pelas classes, creio que os alunos mais velhos, maiores, né, das classes de alunos mais acima, entravam primeiro e a gente ia entrando por último, todos em fila e quietinhos, né (risos), se falasse alguma coisa já era repreendido, era uma cultura de bastante disciplina, que eu acho que hoje perdeu-se um pouco isso, né, não sei se era o melhor método não, mas funcionava bem.
P/1 – Você falou que gostava de ler, você lia no colégio, mas e em casa, tinha livros também?
R – Tinha, na verdade não é que eu gostava de ler, eu tinha uma ansiedade muito grande para aprender a ler e a escrever, mas tinham os livros que já eram das minhas irmãs, né, as cartilhas Caminho Suave delas, já tinham. Tudo muito colorido para atrair a criança, e eu gostava de olhar, quando eu comecei a ler alguma coisa então: “Nossa, agora eu to lendo”, era muito bom.
P/1 – E durante a infância e a adolescência você ficou no mesmo colégio?
R – Também, eu fiquei durante oito anos estudando no mesmo colégio, uma base muito boa, professores muito bons.
P/1 – Qual era o colégio?
R – Era o Caetano Miele. Os professores realmente ensinavam, cobravam, eram rígidos, era um tipo de educação bem mais rígida, onde o aluno que não tivesse afim era convidado a se retirar, se não se retirasse era mandado embora da escola, existiam essas ferramentas, né, se o aluno está aqui é porque quer estudar, se não quer estudar vai ser feliz em outro lugar, então tinha uma rigidez bastante grande, e eu só saí da escola quando atingi o limite. Porque lá era só primeiro grau, hoje, ensino fundamental, né, era só o ensino fundamental lá, então quando terminei o fundamental eu tive que sair para outra escola.
P/1 – Era perto também?
R – Era no mesmo bairro, era um pouco mais longe que essa, né, essa era na rua de casa, mas também ia a pé, essa era há quinhentos metros e a outra há uns dois quilômetros.
P/1 – Como foi o momento da adolescência nos primeiros namoros, dessa descoberta das mulheres, como foi esse momento dos bailinhos, anos 1960, anos 1970? Era um momento super importante também...
R – É, tinham também algumas questões que pesam, né, não tinha nem de longe a violência que tem hoje, a insegurança, pelo menos a sensação de insegurança que a gente tem hoje, né, de poder deixar um filho sair a vontade e tal, mas existia uma série de regras em casa e de limites que os meus pais impunham, impunham pras minhas irmãs por serem meninas e para mim também por tabela. Na frente da minha casa tinha uma instituição que era a Sociedade Amigos de Bairro, que era comum naquela época, era uma ONG que cuidava dos assuntos do bairro, todos os anseios do bairro ela se encarregava de anotar e fazer contatos políticos para resolver, então chamava-se Sociedade Amigos de Bairro. Eram organizações interessantes, e por coincidência na frente da minha casa existia lá uma dessas sociedades, era bem organizadinha, tinha um salão grande onde se promoviam festas, bailes e tal, né? E por conta disso eu frequentava muito, e era na frente de casa, então não tinha nem que ir para muito longe, o que acabava também restringindo esse contato com as meninas de outros bairros, então os contatos que eu tinha com as meninas era na escola, que era na rua de casa, e na Sociedade Amigos do Bairro, que era em frente de casa. Lá durante o dia a gente jogava ping-pong e outras coisas assim, a garotada se reunia lá para
jogar, na época do mês de julho eles faziam lá umas quermesses, com as barraquinhas, faziam shows lá dentro, então juntava muita gente do bairro todo, iam para lá, e era quando a gente tinha esses contatos, e aí descobrindo a sexualidade e tudo, né, tínhamos contato com as meninas. Mas a sexualidade nossa era dar um beijo na boca (risos), era isso, não passava muito na cabeça, mesmo dos meninos, de ter uma relação sexual com uma menina… E a minha mãe, ela tinha alguns discursos que serviam pras minhas irmãs e ela batia em mim também o mesmo discurso, né, ela falava: “Olha, você respeita a filha dos outros. Do mesmo jeito que a gente quer que respeitem as suas irmãs, você respeita, né, então não vai aprontar por aí”, e ela batia forte naquilo: ‘Não é porque você é homem que você pode tudo, baixe a sua bola, não vai ficar aprontando por aí”. Então ela tinha esse discurso forte e realmente não era comum as meninas terem essa liberalidade de hoje, né, então namorar era pegar na mão, era dizer que era namorado, era ir no cinema e ficar junto ali e tal, dar um beijinho meio acanhado, aquilo que era o namorinho de adolescente. Já teve isso, já era o cara, e meninas mais liberais já assustavam, entendeu, aquelas meninas que tinham uma vida sexual ativa com quinze, dezesseis anos, né, eram meninas que assustavam a molecadinha: “Hum, essa menina aí...”, e elas acabavam se relacionando com homens mais velhos, porque a molecada da idade dela tinha um certo receio, imposto até pelos pais: “Não quero ver você com aquela menina, ela não presta”, então a gente respeitava muito.
P/1 – Vocês iam no cinema na cidade, no centro?
R – Na Penha tinha, no Cangaíba tinha, tinham muitos cinemas de bairro. Então no Cangaíba tinha, a um quilômetro da minha casa, tinha um cinema que eu cheguei a ir, na Penha tinham vários cinemas, cinema de rua. Na Páscoa, por exemplo, a igreja promovia um cinema de rua, colocava um caminhão com a tela e projetava Paixão de Cristo, né, numa praça, em algum lugar, e a gente ia assistir, juntava todo mundo lá na sexta feira santa e ia assistir a Paixão de Cristo. A Paixão de Cristo era um filme, na infância, que a gente assistia e no ano seguinte ia assistir de novo, ia assistir de novo, né, era um momento de você ir assistir. Eu me lembro que na minha infância já tinha Trapalhões, já tinha Didi e companhia, eu fui assistir uma Paixão de Cristo, era uma sessão dupla de cinema, e tinha um filme que era dos Trapalhões e o outro a Paixão de Cristo.
P/1 – E você tinha TV em casa?
R – Tinha, nessa época já tinha uma TV preto e branco, mas os programas não... Não tinha, assim, uma vasta programação, eram dois, três canais e com determinados horários, não era TV o dia inteiro, né, não tinha. Em determinada hora você tinha lá a TV Tupi, a TV Excelsior, depois veio a Globo, mas a Globo era bem fraquinha, a gente assistia mais a Tupi, e depois a Record e a Excelsior eram as fortes, depois é que surgiu a Globo, já no final da década de 1960 com um pouco mais de força. Na década de 1970 a Globo teve um impulso bastante grande, mas era uma TV preto e branco, né, até porque o sistema só veio depois da década de 1970, já em 1980, e que em determinadas casas colocavam-se um plástico colorido na frente para ela ficar colorida, né, degrade, era azul em cima para alguma cena de céu, né, e o meio era meio avermelhado, rosado para quando aparecesse um rosto parecer meio vermelhinho (risos), então era algo assim, mas era um plástico que colocavam na frente da TV para colorir, era um artifício que se usava, mas tinha, tinha uma série de dificuldades, de restrições, mas tinha um conforto também, os meus pais se preocupavam em ter aquele conforto para gente, né, geladeira, televisão, sempre teve.
P/1 – Em que momento e como que vai surgindo, na adolescência, essa coisa da academia de polícia, como vai surgindo isso em você?
R – Na verdade, não surgiu na adolescência, quando eu fui fazer o ensino médio, e o ensino médio não tinha naquela escolinha, eu acabei indo fazer na Penha, no colégio Nossa Senhora da Penha, fui fazer o segundo e o terceiro ano, o primeiro eu ainda fiz lá no bairro e depois passei pro Nossa Senhora da Penha para fazer o segundo e o terceiro ano. Lá eu conheci um garoto que se tornou meu amigo, o Camilo, um excelente amigo, uma pessoa realmente do bem, e ele me falou do exército, porque aí já tava chegando a fase do exército: “Ó, estamos chegando na fase para se alistar e tal, como faz, como não faz”, e ele me falou do CPOR: “A gente pode prestar CPOR”, eu falei: “O que é isso?”, “A CPOR é um curso que tem dentro do exército, que não é como um soldado normal, que você vai sair como oficial da reserva do exército”, e me pareceu interessante, me pareceu um pouco distante de mim: “Não sei se isso é para mim, mas vamos tentar”. E eu sei que quando eu fui me alistar, como ele tinha me falado isso, eu me voluntariei para fazer o teste lá pro CPOR, e acabei indo, passando nas etapas, ele também, e no fim, para minha surpresa, fui aprovado, né, e acabei indo, nessa fase de exército, servir o exército no curso de CPOR, fazer o curso de oficiais da reserva.
P/1 – Conta um pouco dessa fase, como era? Um posto, um lugar?
R – CPOR é Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, o exército brasileiro tem a Academia das Agulhas Negras que forma os oficiais, mas como o território nosso é continental, a quantidade de oficiais que é formada anualmente na academia, que eu não sei quantos são hoje, sei lá, quatrocentos oficiais são insuficientes para você suprir toda a necessidade do Brasil inteiro, então o Exército criou uma outra categoria de oficial para suprir a necessidade, principalmente da base do oficialato, que é o tenente, que é aquele que tem o primeiro contato com o soldado comandando um pelotão ali, de trinta, quarenta homens, né, e falta muito, então eles falaram: “Vamos criar uma categoria que é um oficial temporário, ele fica durante algum tempo e supre essa necessidade nossa”. Então quando eu fiz já era em 1979, era finalzinho da ditadura militar, mas dentro da ditadura militar eles tinham uma necessidade muito grande de ocupação, de fortalecer o exército, então esses centros formavam esses jovens para serem tenentes do exército, você podia ficar no máximo cinco anos trabalhando depois de formado, e supria essa necessidade.
P/2 – Não é a Academia do Barro Branco, não tem nada a ver?
R – Não, a Academia do Barro Branco é da Polícia Militar, é um centro do exército, que também fica na zona norte, fica lá na Doutor Zuquim, então tem um quartel lá que é exatamente para formar esses jovens. Então em 1979 eu, numa seleção normal aí de exército, né, eu me voluntariei para isso, passei por uma prova lá escrita, depois testes físicos, médicos, passei e acabei indo servir na área de infantaria lá, 120 garotos, 18 para 19 anos, servindo como infantes. E tinham outras especialidades lá dentro, esse meu amigo, por exemplo, ele foi servir lá também, mas como intendente, né, uma outra arma, né, como se chama no exército, eles dividem em armas, arma de engenharia, arma de infantaria, uma de cavalaria, de intendência, de artilharia, então tinham essas armas lá, e a maior delas era a infantaria que tinha 120 jovens, né, eram duas turmas de 60 cada uma, e a gente passa um ano servindo o exército, mas na verdade fazendo esse curso, não é como um soldado do exército normal.
P/1 – Então conta um pouco dessa experiência, como era, o que você fazia, onde era?
R – Então, aí eu fui fazer esse curso lá na Doutor Zuquim na zona norte, eu morando na zona leste...
P/1 – Santana, né, lá?
R – É, Santana ali, Tucuruvi, mais para cima. Então, eu era garoto, como eu falei, tinha uma série de limitações ali, não tinham muitos atrativos para sair do bairro, né, e o que tinha acabava sendo na frente da minha casa, era tudo muito próximo. Nesse período aí, em que pese de eu ter feito dois anos de ensino médio na Penha, já tinha que pegar um ônibus para ir e voltar, tudo, isso era muito mais longe, então já tinha que... Hoje parece absolutamente tranquilo para um garoto, né, mas naquela época não era, há quarenta anos atrás era mais restrito, né, eu ter que sair dali, pegar um ônibus até a Penha, depois outro até Santana, depois outro até a CPOR, era algo que já me fazia sentir muito bem, e na hora que colocava uma farda então, um garoto numa época ainda de ditadura militar, isso dava uma autoridade, né, dava uma autoridade para alguém que não tinha nada até então, era uma sensação muito boa de poder, de ser autoridade. Em tese eu não me preocupava com isso, mas tinha esse sentimento até pelo meio em que a gente convivia, e lá era muito heterogêneo porque na época existia também um Q de modismo, por conta da ditadura militar, o que eu quero dizer com isso? Que as famílias ricas tinham interesse do filho não servir o exército porque tinha que fazer academia e tal, né, mas pelo menos fazer o CPOR para dizer que o filho era oficial do exército, então você via lá garotos que chegavam de carro zero, com dezenove anos, chegavam lá de carro zero e com muito dinheiro realmente, saiam em coluna social, um pessoal abastado mesmo de São Paulo, e via os outros lá da zona leste, do fundão, como eu, por quê? Porque nessa mescla você tinha que tirar aqueles que efetivamente iam trabalhar, que não era o caso do rico (risos), ele queria terminar aquilo ali, só ter a patente dele, dizer que era do exército, mas o cara ia para faculdade, ia cuidar da empresa do pai, eram efetivamente outros voos, não ia trabalhar ralando no exército, então eles tinham que ter uma parcela que ia cumprir a função do CPOR, que era suprir a necessidade do exército e atendia, por outro lado, uma gama de empresários e comerciantes que tinham interesse em ver o filho dentro do exército, mas lá...
P/1 – Vocês não dormiam lá?
R – Eventualmente, a gente vinha embora todo dia, só quando tava de serviço, ou preso, né, que ficava por lá, cumprindo algum castigo, a gente chamava de preso, aí ficava por lá; ou de serviço, todo dia tem que ficar alguém na guarda do quartel e outros tipos de serviços internos lá que ficavam, no dia-a-dia ia embora.
P/1 – Que é diferente de quem presta academia para soldado, que fica lá durante um ano, não é isso?
R – Não, não, hoje não mais, fica só o pessoal que a gente chama de laranjeira, o que é o laranjeira? É o cara que mora no quartel, que vem do interior, fica longe, então tem um alojamento interno, mas não tem mais essa obrigatoriedade de ficar. E na academia ainda, os primeiro-anistas ainda ficam internos, depois tem alguma flexibilidade maior para poder sair. Houve uma época em que era realmente um semi-internato, só saía no final de semana, mas hoje tá muito mais flexível; e no exército mais ainda por questões de verba, falta verba para manter toda essa estrutura, então hoje o pessoal realmente vem e vai, de preferência antes do meio-dia para não almoçar no quartel (risos).
P/1 – Então conta um pouco da sua experiência, como eram o que você fazia, o dia-a-dia...
R – Tinham as instruções militares, né, gerais, para aprender realmente as estratégias de guerra, os armamentos, as comunicações do exército, inicialmente toda base militar para você conhecer o linguajar, saber as diferenças das patentes, das graduações, e esse linguajar específico típico de caserna, de exército militar, e depois coisas mais voltadas para estratégias de guerra, posicionamento de pelotões, como você faz um ataque, como você faz uma defesa, como tomar determinado território, ou como retomar… Então tem uma série de exercícios que a gente fazia, também, em campo, tanto de tiro como de progressão, uma série de técnicas para você andar no mato, para você andar em determinados tipos de terreno, fazer determinadas operações, na época ainda se falava em terrorismo, então como você faz a tomada de um aparelho terrorista, que seria um local onde está alojado um grupo de terroristas, que é chamado de aparelho, como você faz para tomar um aparelho desse, todas as estratégias para resgatar uma vítima que esteja refém de terroristas… Então a gente ouvia essas coisas, né, em meio a algo, assim, turbulento, porque já tava num processo de abertura, então não era a fase mais dura do militarismo, já tava aí de Médici para Geisel, João Figueiredo, né, para fazer a abertura e retomar a democracia, mas ainda aquela instrução era muito voltada para isso. E a gente fazia também, no dia-a-dia, tinha essas instruções em educação física, e desmontar e montar um fuzil, exercícios de tiro, a gente tinha que ir para fora, para a fazenda do exército, em Itu, por exemplo, para uma fazenda do exército para gente dar tiro, né, tanto com armas portáteis como com armas coletivas, né, com tiro de morteiro, de canhão, então a gente ia para essas fazendas para fazer esses tiros e calcular os tiros, então tinham cálculos de tiros, não é só você chegar lá e ficar dando tiro: “Esse não deu certo, joga mais para cá”, tem todo um cálculo que você faz, analisa, e a gente aprendia a fazer isso. Às vezes passava uma semana no mato, era interessante, ralava muito, se comia mal, dormia mal, passava frio, fome, sede, mas tudo fazia parte do treinamento, era para analisar a resistência do homem, para dizer que, numa época de guerra, aquilo ali não era nada perto do que você poderia passar numa guerra, ter que enfrentar uma situação real, então eles passavam querendo condicionar a gente. A parte de topografia eu gostava muito, eles davam uma carta, que era o mapa, te dão uma carta com cotas onde você enxerga só linhas de contorno te indicando a forma de terreno daquilo, com essas cartas e com uma bússola, eles te dão um azimute, uma direção para você seguir, te soltam lá em determinado ponto e você tem que conseguir chegar no outro a alguns quilômetros para frente. E com a bússola você vai para cá, vai para lá, e vai chegando. Então uma parte chegava, outra se perdia (risos), tinha que ir resgatar os que se perderam, então eram experiências muito boas, né, fantásticas. Eu me lembro que foi realmente um divisor de águas na minha vida, né, entre o garoto, o adolescente, até um tanto quanto ingênuo, né, e, assim, o adulto, isso deu uma amadurecida bastante grande em um ano que eu fiquei no exército.
P/1 – Você era preso por quê? Quais eram os motivos para esse castigo?
R – Ah, na vida de escola militar tudo é motivo, então se o sapato não tá bem engraxado, a barba não tá bem feita, o cabelo não tá bem cortado... Eu me lembro que nós recebemos,em determinado período lá, uma bota nova, tinha recebido uma no começo do ano, e acho que no meio do ano eles deram uma bota nova, falaram: “Toma a bota nova, vocês engraxam e tal”. Ela vem limpinha, mas eles queriam que engraxasse, né, deixasse brilhando. E aí no dia seguinte ia ter uma revista, uma verificação desses uniformes novos que a gente tinha recebido, então o pessoal foi lá, engraxou, e tinha uma parte, que é entre o cabedal e o solado que como era de couro, ficava branco, mas você engraxava por cima e determinadas partes daquilo não ficavam pretinhas na primeira engraxada. O sargento passava anotando: “Tá branco, tá branco, tá branco”, o troço brilhando, mas tinha uns pontinhos brancos em volta, aquilo já era motivo para você responder um pernoite, tinha que ir lá no sábado a noite, e por conta do oficial que tivesse no dia lá, você teria que dormir ou não no quartel. Então coisas desse tipo te deixavam. Alojamento sujo deixava todo mundo, entrava lá, o pessoal na correria, porque correria? Ah, tem aula de educação física, tô na educação física agora, corre: “Daqui há dez minutos todo mundo na sala de aula”. Então são sessenta caras para entrar num vestiário, que não era pequeno, mas tem aí dez chuveiros para tomar banho, se trocar, e em dez minutos estar na sala de aula, né, dez minutos e um segundo não são dez minutos, então também era possível ficar preso. Na vida escolar militar tudo é assim, na academia não era diferente, também era o mesmo esquema, então logo que a gente entrava lá eles falavam uma frase que marcava, era assim: “Antes da hora não é hora, depois da hora não é hora, a hora é na hora”. Se falou dez minutos não é um pras dez e nem dez e um, são dez minutos, você tem que estar lá, não tem desculpa: “Não, mas é porque a hora que eu fui entrar, entrou dois, aí...”, não, não tem tolerância, a tolerância é zero: “Então azar, da próxima vez você seja o primeiro a entrar, essa já foi”. O termo é esse, “já foi”, o que é esse “já foi”? É: “Já foi anotado para fins de punição”, mas não era assim tão... A anotação ensejava um julgamento do major, e o major é que chamava um a um dos que fossem anotados e dava a dosimetria da pena: você ia tomar uma paulada, agora o tamanho da paulada era com o major, o tenente ou o sargento que anotavam, e passavam isso pro major. Aí a gente tinha o que nós chamávamos de “a hora do parto”: tinha que sentar lá na frente do major, tremendo lá, e explicar o que era aquilo. Aí eu sei que um dia eu fui anotado por questão da bota, né, que um dos pés da bota tinha os tais dos pontinhos brancos, aí fui lá sentar na frente do major: “E aí, o que aconteceu?”, “O sargento, né, viu que o pé direito da minha bota tinha uns pontinhos, a bota era nova”, aí ele falou para mim assim: “Um pé, um dia, os dois pés, dois dias; como foi um pé só, é um dia só para você” (risos), e me deu um dia de pernoite, eu tinha que ir lá no sábado participar da revista noturna, e era o castigo, né, aquele castigo para você atentar que você tem que engraxar a bota como se deve, e por conta do tenente que estivesse lá no dia, você era obrigado ou não a permanecer lá no quartel. Teve uma passagem, por exemplo, que eu me lembro, eu tinha uma namoradinha lá em Santana mesmo, eu peguei a namorada, deixei ela no carro, falei: “Olha, eu vou responder o pernoite e já volto” (risos), aí fui lá, tô lá, né, aquele discurso, vai lá e chama a atenção de todo mundo, tal, falou: “Cabo Digel, como nós estamos de alojamento aí?”, “Tá pronto, senhor, tem condições para todo mundo”, não era muita gente, eram cinco ou seis: “Bom,
então como tem como alojar todo mundo, todo mundo vai dormir aqui, vai ficar no quartel”, aí eu: “Ô, meu Deus do céu, não posso” (risos), como eu vou falar pro tenente: “Tenente, eu não posso ficar que eu to com a namorada lá e ela não dirige, eu tenho que, no mínimo, levar ela em casa”, mas não existia essa possibilidade de falar pro tenente, não tinha celular, não tinha nada, eu fiquei ali naquele desespero tentando ver como eu ia me arranjar, já tava preso no quartel, não podia nem sair para ir avisar, não me atrevi a falar isso pro tenente. A minha sorte é que o tenente tava só sacaneando, só dando um trote na gente, né, em dado momento ele falou: “Bom, mas eu não quero esse...”, ele usava um termo lá para falar indisciplinado, né, não me recordo agora: “Não quero esse bando aqui, vai estragar meu serviço, libera esse pessoal aí”. Aí o cabo deu mais uma meia hora de ordem unida para gente, vai para lá, marcha para cá, vira para a direita, vira para a esquerda e tal, né, mais essa meia hora de ordem unida, aí: “Fora de forma, marchem”, opa, aí deu aquele alívio, mas eu já vi a viola em cacos, né, e a menina lá ouvindo musiquinha dentro do carro, na rua do lado do quartel, esperando eu voltar, graças a Deus deu tudo certo.
P/2 – Sobre esse olhar, já depois de tantos anos, é que muitas das pessoas que passaram aqui falaram sobre a disciplina na escola, tem sentido a disciplina?
R – Tem, tem sentido.
P/2 – De que forma, o que ela muda?
R – A própria estrutura militar é baseada em algumas coisas, e como a gente mesmo fala, os dois pilares mestres na estrutura militar são a hierarquia e a disciplina, então ela é formada em cima de uma estrutura hierarquizada, que não é muito diferente de qualquer empresa por aí, onde tem o big boss, os gerentes, os chefes e os índios também, para fazer. Não é tão diferente assim, é hierarquizada e em cima de uma disciplina que faz com que toda essa estrutura hierarquizada funcione, e as pessoas aceitem se subordinar às ordens das outras, que é o que às vezes falta em determinadas empresas. Você tem uma hierarquia, tem uma estrutura, e falta essa disciplina, a pessoa, por algum motivo, ela não aceita se subordinar àquela outra, ou porque é mais velha de casa, ou porque tem uma preparação cultural maior, aí não aceita que o outro é chefe dela, aí boicota e tal, uma série de coisas… E no nosso meio existe uma cultura muito forte para que a disciplina esteja aliada a toda estrutura hierarquizada, então é uma regra do jogo, siga a regra e você vai se dar bem, não siga e você vai se dar mal dentro da estrutura militar, ou até vai descobrir que não é do ramo, que tá no lugar errado, e fora toda uma questão disciplinar, e essas regras são claras, já foi no passado algo, assim, muito mais subjetivo, né: “Eu não sei porque eu to batendo, mas você sabe porque tá apanhando, então já é suficiente, você vai ficar três dias preso e depois a gente discute se tá certo ou não”. Hoje não, você tem os regulamentos disciplinares que estabelecem o que é uma transgressão disciplinar e o que não é, e o que extrapola, inclusive, a transgressão disciplinar e que vira crime militar, aí já é código penal militar, já é justiça militar, já é algo mais elevado, que realmente dá cadeia na restrita concepção da palavra, né, no Ramal Gomes que é o nosso presídio militar, que existe não por ser diferenciado, mas porque não existe pena de morte no Brasil, então você não pode colocar um policial junto com um bandido porque você vai estar condenando um ou outro à morte. Normalmente o policial porque não tem tantos policiais assim que cometem crimes, e tem muito bandido, então você vai juntar na cadeia, é lógico que o bandido vai matar o policial, então se tem um presídio específico para policiais ou ex-policiais, né, na grande maioria. Por que eu digo na grande maioria? Porque você só se torna ex-policial, só é mandado embora da polícia, se você tiver uma pena condenatória acima de dois anos, e muitas vezes o policial é preso em flagrante e vai pro presídio militar Ramal Gomes, só que depois no julgamento ou ele é absolvido ou não pega uma pena acima de dois anos, então continua policial militar. Mas a grande maioria acaba sendo condenado acima, e cumpre a pena lá, então se tornam ex-policiais, mas continuam lá no presídio militar. Então, terminando, você quis saber se realmente contribui, essa rigidez, essa... Ela contribui à medida que você está falando que é de uma escola de formação, né, e você mostra lá pro jovem que existe uma série de regras dentro da escola, e no mundo não é diferente, e que quem não segue regras está sujeito a alguma penalidade, e no fim se mostra que aquilo é o mínimo que pode acontecer, que numa situação real quando ele sair para rua e tomar decisões erradas, se forem contra tudo o que foi estabelecido, ensinado para ele, dentro daquilo ali, as penalidades serão muito maiores, ele pode causar um mal para sociedade, causar um mal até para ele mesmo, dar um tiro errado na hora errada, numa pessoa errada, ele acaba com a vida da pessoa, acaba com a vida dele, acaba com a carreira dele. E isso vem das pequenas coisas, então a gente acaba enxergando toda essa rigidez e disciplina e tal, para incutir no jovem esse reflexo de obediência, de disciplina, com finalidade, e não pura e simplesmente porque um é capitão e o outro é tenente e um quer mandar no outro, é porque tem suas responsabilidades, e aquele, com responsabilidade, dá determinada ordem e o outro de baixo cumpre porque vai ter certeza que aquela ordem é correta, e se for manifestamente absurda ele tem os mecanismos também até de não cumprir, mas essas punições que surgem dentro da academia acabam tendo essa finalidade de repercutir o reflexo no jovem, né, de obediência, de disciplina realmente.
TROCA DE FITA
P/1 – Então, você tava falando da disciplina, dos pilares, extrapolando isso, como você comentou de estar num período turbulento do país, de abertura, como seria tudo isso estando no exército e vendo que tava mudando o regime, como estava isso na sua cabeça, e o seu pai também, que tinha um sonho de ser militar, como era isso tudo?
R – Alguns anos antes, como eu disse, a minha irmã entrou na USP, na verdade quatro anos antes, eu tinha ali quinze, dezesseis anos, ela entrou na USP, era um momento de turbulência muito maior, onde os cursos de comunicações, etc. em que pese do dela ser de matemática, era um pouco mais afastado, mas tinha uma atividade política forte, a UNE, a União Nacional dos Estudantes, outras Organizações Estudantis batiam muito forte na questão governamental. Então ela é que começou a tomar a consciência um pouco mais política e com momento político porque os meus pais, e eu não me ligava muito nisso, né catorze, quinze anos, não tava muito preocupado com isso, e o que a gente via era o que a TV divulgava, e o que o rádio divulgava, que existia um grupo que era do mal, que era terrorista e queria fazer mal pras pessoas, e o governo que era do bem e queria fazer o bem pras pessoas, era o que se passava, o resto era censurado, não passava, tocavam algumas músicas que para nós não faziam o mínimo sentido, “caminhando e andando e seguindo a canção…”, era uma música, né, se era melodiosa a gente gostava de cantar, se não era, não gostava, e a parte subliminar dela não fazia o mínimo sentido para gente. Então a minha irmã que começou a tomar essa consciência política maior e trazer algumas coisas para dentro de casa, ela falava: “Gente, não é bem assim não, a arena não é uma maravilha não, o MDB não é...”, que eram os dois partidos que existiam, então: “Tem muito mais por aí, não é só o mocinho e o bandido, também tem mocinho do lado do bandido e também tem bandido do lado do mocinho”, né, ela que trazia algo mais assim. Nessa fase de exército, é como eu disse, já tinha passado a turbulência maior que era até o início dos anos 1970, eu já tava no fim dos anos 1970, né, foi em 1979, então já tinha passado isso, e como já
tava num movimento de abertura, então não era mais aquela coisa: “Que livro você tá lendo? Não pode ler”, já tava num processo realmente de abertura, tanto é que alguns garotos que queriam fazer jornalismo, o pessoal até brincava: “Essa aqui vai ser terrorista também, vai pro lado dos terroristas”. E estavam lá dentro, coisa que há alguns anos atrás seria inconcebível até de se falar dentro de um exército, né, de se cantar determinadas músicas, a gente não estava nem aí, então em que pese eu ter vivido naquele momento, eu não senti o momento político, né, as coisas aconteciam, eram atos chamados de terroristas, morriam terroristas, mas era como se tivessem matando um bandido, tinham alguns bandidos famosos na época, o bandido da luz vermelha e outras coisas, que acabavam confundindo um pouco o que era o bandido comum e o que era o bandido político, o ativista político que é contrário ao governo e que portanto é o fora da lei, eu vou chamar assim, não bandido, né, era o fora da lei daquele momento. E eu me lembro que a minha irmã não gostou de eu ter entrado no exército porque ela já tava numa coisa, né, e eu chegava e falava algumas coisas para ela que a gente ouvia no quartel: ‘Não, a coisa é assim e tal”, ela falava: “Tá vendo, estão fazendo lavagem cerebral em você”, e eu: “O que é lavagem cerebral?”, e eu tentando imaginar o que era lavagem cerebral: “Estão fazendo lavagem cerebral, esses caras não prestam, são assim, são assados, esses milicos”, que era a linguagem que ela ouvia na USP, e eu tinha a linguagem que eu ouvia dentro do quartel, né, no exército. Mas ver mesmo, de ter algum sentimento ou de ter medo e coisa e tal a gente não tinha, era afastado do povo por conta da censura, o povo não tinha acesso a isso, o povo que tinha era o povo que tinha uma certa cultura e tal, que não era o caso lá em casa, meus pais não tinham essa cultura, não tinham essa visão política, essa consciência política, né, queriam saber se tinha emprego pro povo ou se não tinha emprego pro povo: “Ah, tem emprego? Então tá tudo bem. Não tem emprego? Tá ruim”.
P/1 – E a sua irmã do meio nesse momento é mais alheia a isso tudo?
R – Sim, sim, ela não entrava nessa discussão, para ela tanto fazia porque era isso, né, a censura era forte, as coisas não chegavam, ou se chegavam, chegavam se uma maneira codificada que meus pais não entendiam, eu, como adolescente, também não entendia, né, aqueles panfletos, aquelas coisas, as coisas que estavam acontecendo eram colocadas de uma maneira como se fosse um fora da lei qualquer que tava sendo caçado, né, preso, morto, então a gente viveu o momento, mas não presenciou, não afetou em nada a periferia da zona leste.
P/1 – E sobre o seu pai, você contou que chegava em casa e ele ficava todo orgulhoso, colocava o quepe, marchava, para ele deve ter sido um momento importante também.
R – Importante, muito importante, ele era plenamente realizado, né, porque os três filhos dele com nível universitário, e a família, assim, bastante grande, mas a dificuldade de se colocar um filho na faculdade era um troço absurdo, hoje não é tão fácil, você imagina lá atrás, né, há trinta e tantos anos, e ele conseguiu colocar os três filhos dele para terem formação universitária, então ele se realizou plenamente, o que ele imaginou lá atrás, de ralar pros filhos estudarem, ele conseguiu, então ele era realmente realizado nessa parte. E particularmente comigo porque era na parte militar, então, putz, ele que sempre gostou disso. Realmente se realizava.
P/1 – Então conta, acabou esse um ano de exército, qual é o próximo passo da sua vida?
R – No ano seguinte o exército ainda obriga você a fazer um estágio de um mês e meio, eu fui fazer cursinho, eu tava com dezenove para vinte anos, fui fazer cursinho, tinha acabado de fazer vinte anos, só que chegou no meio do ano, em julho, eu fui para Lorena fazer um estágio no exército, num quartel do exército. Eu já era aspirante, eu era aluno, no ano anterior, do CPOR, e virei aspirante e fui trabalhar como aspirante, e a gente auxiliava os tenentes que eram de academia e outros tenentes que eram também R2, que a gente chama, né, que são esses temporários aí, esses oficiais da reserva, tinham alguns que eram R2 e a gente ajudava os R2 nos exercícios e no dia-a-dia com os pelotões de recrutas lá no Vale do Paraíba, em Lorena, fui para lá, e foi uma experiência também muito boa, era diferente do que a gente tinha vivido na capital porque lá tinha área para se fazer exercício, então tudo aquilo que a gente tinha visto em apostilas de forma teórica a gente pôde ver na prática. Como essas progressões no terreno, como você faz, vamos imaginar que... Progressão no terreno é quando tem um inimigo em determinado ponto, eu to num outro ponto e quero chegar lá, e isso, para chegar lá, não é simplesmente caminhar ou andar, você chama de progressão, ela pode ser através de uma caminhada numa estrada e pode ser também no meio do mato, no meio do pasto, então, principalmente quando você começa a se aproximar, para você não ser visto, ou ser visto e não tomar um tiro, né, porque um fuzil desse pode atingir até mais de um quilômetro com precisão, então você tem que progredir, e progride por lanços, você vai até um determinado momento: “Ó, daqui a dez metros tem lugar para se abrigar”. Então você dá um comando, todo mundo sai no mesmo tempo e pula mais dez metros, entendeu, então vai em saltos, pode ir todo mundo junto ou em parte: “Vai essa parte primeiro, aí vai aquela parte”, depois de uma tempinho: “Vai essa agora”, então vai caminhando, progredindo, e isso dava para se perceber lá, in loco, coisas que a gente só tinha visto teoricamente, então foi uma experiência muito rica, muito boa.
P/1 – E aí depois que acabou o estágio, você...?
R – Acabei o estágio, depois prestei vestibular normal, não quis continuar, tinha a opção de continuar, né, mas eu não quis continuar, queria prestar a minha engenharia, aí continuei fazendo cursinho, consegui entrar em algumas faculdades: Mauá, FEI, algumas coisas assim, mas eu optei por fazer mais um ano de cursinho em 1981, para tentar a Poli ou o ITA. Aí era a minha irmã que me bancava, ela que pagava tudo isso, esse cursinho que o meu pai não podia, né, a renda dele não era suficiente, ela já tava trabalhando, tudo, ela falou: “Não, eu pago o cursinho”, então ela pagou o cursinho para mim: “Mas você vai estudar mesmo?”, “Não, vou estudar”, e eu estudava de domingo a domingo, de domingo a domingo eu ralava para entrar no ITA, que não era brincadeira, tinha que acertar 100% e ainda contar com a sorte (risos), e a Poli também, é um troço muito forte para entrar, então eu estudava muito, estudava direto, fazia cursinho de manhã, a tarde continuava estudando, a noite, no domingo ia fazer aulas específicas de desenho geométrico pro ITA, foi quando, conversando com um amigo, o pai dele era um oficial da polícia militar já aposentado, né, uma pessoa que tinha sido, inclusive, diretor daquela sociedade que eu te falei em frente a minha casa, uma pessoa muito bem quista no bairro, então, ele falando comigo: “Pô, você já fez exército e tal, por que você não presta academia?”, eu já sabia o que era academia e tal, mas não tinha, até então, atentado, né, para isso, eu falei: “Academia?”, ele falou: “É, presta academia, você já fez exercito, já é oficial, já está familiarizado com o meio militar”,
eu falei: “É, é uma opção, como é a academia?”, “Ah, a academia é assim e tal”, na época eram três anos, né: “São três anos que você faz, fica lá num semi-internato, tem uma ajuda de custo”, que não chegava a ser um salário, vamos dizer uns duzentos reais hoje, menos do que meio salário, um terço do salário, mas: “Você tem uniforme, tem isso, tem aquilo, você vai trabalhar”, eu falei: “É uma opção”, eu já tinha realmente, dentro da vida militar, uma vivência, né, de exército, tudo, então era uma opção, não era a única, não era a primeira, mas era uma opção. O que aconteceu foi que o exame da academia foi antes dos vestibulares, ele foi em setembro, outubro, e os vestibulares iam acontecer só em novembro, dezembro, e eu prestei e passei, até porque quem fazia na época, eu acho que era a Fundação Carlos Chagas, e o exame que eles faziam o vestibular que eles faziam lá era muito a quem o da Fuvest, e a minha preparação era Fuvest, era ITA, então para mim a prova escrita foi absolutamente tranquila, eu não tive dificuldade nenhuma, passei em terceiro lugar no concurso lá, o primeiro lugar foi um cara que já tava na academia fazendo curso preparatório, naquela época tinha um preparatório na academia, e não era preparatório como o cursinho, era o equivalente ao ensino médio, que você prestava um vestibularzinho quando terminava a oitava série, e ia fazer o ensino médio já na academia, e eles chamavam de preparatório porque ele te preparava automaticamente para você ir pro curso de formação de oficiais depois. Então eu prestei, passei em terceiro lugar, o primeiro lugar foi um rapaz desse que já tava lá dentro no curso preparatório, mas não foi isso que fez a diferença, porque ele era realmente muito bom, tanto é que ele nem fez a academia porque logo em seguida ele prestou um concurso pro Banco do Brasil, que na época era top, né, era um dos concursos top, como é hoje o de auditor fiscal, o Banco do Brasil era um concurso top, ele passou no concurso e foi pro Banco do Brasil, acabou não ficando na academia. E o segundo lugar empatou comigo em nota, e ele era o segundo porque ele já era praça, então no critério de desempate ele ficou em segundo e eu fiquei em terceiro, mas os dois com a mesma nota, então eu tava muito bem preparado pro exame teórico, e o mais difícil nem foi a prova escrita, essa aí teve coisas lá que eu acertei tudo, então, tranquila. O posterior que foi o complicado (risos), o exame psicotécnico, psicológico, médico, então a cada hora que eu voltava para casa, o meu pai: “E aí, filho, como foi?”, “Ah, pai, eu não sei, os caras perguntaram, eu respondi, agora se...”, eu não tinha ideia do que era ir bem num exame psicotécnico: “Não sei, tem uns PMK lá, uns negócios, puseram uma folha na minha frente, mandaram eu riscar, eu risquei, saiu tudo torto, agora o cara que vai analisar se aquele torto lá e bom ou ruim”, como você vai saber? Ninguém faz reto, todo mundo faz torto, né, só que uns fazem um torto para direita e não pode, o outro faz para esquerda e pode, então, é coisa de psicólogo, como você vai saber, né? Não sabe. Aí depois vem a entrevista, você vai para entrevista com o psicólogo, exame psicológico, aí o cara fica olhando para sua cara, não fala nada, você... Tem um programa, não sei se é Pânico, ou o que é, mas de vez em quando o cara para e coloca assim o microfone, né, e fica olhando, e a pessoa esperando a pergunta, então, daqui a pouco ele pergunta: “Tá, por que você quer ser policial?”, “Ah, agora perguntou alguma coisa”, aí você responde, mas você fica preocupado não em dar a sua resposta, mas em responder algo que agrade o cara, né, afinal de contas é um concurso, você quer dar a resposta... Como se houvesse a resposta certa, né, não é isso, hoje eu sei que o que o cara quer saber é a sua motivação para profissão, se você quer realmente ser, você pode responder qualquer coisa, né, nem que seja: “Olha, eu to aqui porque eu preciso de dinheiro, a polícia vai me proporcionar uma renda, mas eu quero na verdade ser outra coisa”, lógico que não é isso que o cara quer ouvir, mas também não vai ser isso que vai ser o determinante para ele te reprovar, tem outras coisas em cima dessa resposta que são importantes para ele: “Bom, o cara é honesto, o cara é sincero, ele não tá aqui me enrolando”. Então tem uma série de outras coisas na resposta que também contam pontos, e que o contrário não, o cara fica tentando agradar: “Ah, eu to aqui porque eu sempre quis ser policial, desde pequenininho o meu sonho é ser policial, eu colecionava carrinho de polícia, não podia ver uma sirene que...”, o cara vai falar: “Ah, pára com isso, menos, menos”, né (risos). Então tem algumas coisas que hoje a gente sabe, mas na época perguntavam e eu chegava em casa: “Putz, pai, não sei, não tenho a mínima ideia, ele perguntou, eu respondi, mas não sei se era aquilo que ele queria ouvir”, e aí na hora que saiu o resultado que eu passei, né, para mim... Eu acabei não prestando mais as outras coisas, né, porque algumas coisas até coincidiam com etapas dessa, né, da academia, e acabaram inviabilizando eu prestar ITA, prestar outras coisas, então eu deixei para lá e fui seguir a academia realmente.
P/1 – E aí, como foi essa entrada?
R – Bem menos do que naquela época do exército, até porque aí eu já tinha um amadurecimento, eu já tava com vinte e um anos, já tinha um nível de amadurecimento bem maior, já tinha passado pela experiência militar inicial de impacto do exército, então não teve aquele choque de disciplina, eu já tinha passado por isso num momento de imaturidade realmente, em que eu precisava desse crescimento, então já não era mais o caso aí, já tinha uma consolidação do que seria a vida lá dentro. Então foi absolutamente tranquilo de focar para estudar, que seria importante tirar boas notas e sair bem colocado, que você leva isso, e não é diferente até hoje, para sua carreira inteira praticamente, a nota que você tira lá na academia, os primeiros anos de academia e tal, você acaba carregando na sua carreira inteira, por quê? Porque você entra numa fila, e nessa fila você entra a partir do momento que você sai da academia, porque lá você tem uma classificação, a cada ano entra uma determinada quantidade no edital, vamos supor que entrem duzentas pessoas, dessas duzentas vai ter o primeiro colocado e o último colocado, isso forma uma fila, e isso é principalmente pela nota que você tira, tem alguns outros critérios que são de analise, né, de comportamento, de desempenho… Mas o forte da coisa é a sua nota, a nota que você tira nas provas, no dia-a-dia lá, né? E você vai entrar e dificilmente você pula essa fila, acontece, porque ao longo da sua carreira existem também critérios subjetivos de promoção, não são só coisas objetivas. Existe um critério que é chamado de antiguidade: é o tempo que você tá ali naquele determinado posto, e um outro critério que é por merecimento, que seria por desempenho, etc. Até pelo chefe gostar de você ou não gostar (risos), que é esse de merecimento, então só por conta disso é que você pode eventualmente passar alguns números na frente de alguém. E isso pode determinar aí alguns meses de diferença, porque as promoções acontecem em datas específicas, para oficiais por exemplo, elas acontecem em 24 de maio, 25 de agosto, que é o dia do soldado, né, e 15 de dezembro que é o dia da polícia militar, então só nessas três datas durante o ano é que os oficiais são promovidos. Então se ele não for promovido dia 15 de dezembro porque ele tava para ser promovido e dois ou três passaram na frente dele, ele só vai cinco meses depois, só em maio, então isso atrapalha a carreira, significa dinheiro, significa a promoção em si, mas não é muito comum isso, são coisas esporádicas que acontecem na carreira. Então você tem que se preocupar na própria academia em tirar essa nota boa, para que mesmo que aconteça, o seu prejuízo seja menor, se eu tô lá na frente, né, como se diz, passar na frente no jargão policial é tomar cangalha, então se eu tomo alguma cangalha eu ainda fico na frente, se eu tomo umas cinco ou seis cangalhas, mas eu to entre os vinte primeiros, eu ainda tô ali, e se eu to para o fundo, eu vou tomar cangalha e vou mais para o fundo ainda, né, então é importante essa nota, você sair bem classificado. Então tinha todo um foco nisso, e como a gente passava praticamente interno lá dentro, você acaba desenvolvendo uma série de mecanismos e métodos mnemônicos para estudar para provas. Tinham os alunos que se especializavam em fazer resumos e passar pros outros,
alunos que criavam esses métodos mnemônicos aí para você estudar determinadas coisas, né, que requeriam ler uma lista de coisas. Então o cara pegava a letra e criava uma palavra, ou uma frase com as primeiras letras, né, mas que às vezes só para você decorar o que era cada letra daquela, era pior do que você decorar a matéria inteira (risos), mas a gente se virava, né, com métodos até de cursinho, de musiquinha, de fazer algumas musiquinhas pra... E no dia-a-dia tinha que descontrair também, porque você ficava interno, né, só homem, quinhentos, seiscentos alunos dentro daqueles corredores, a gente tinha que criar algumas coisas pra... Mas tinham as práticas esportivas, depois do horário de aula tinham as equipes esportivas que você se inscrevia e participava, depois, até às dez horas da noite podia ir para um determinado alojamento onde tinha um aluno que tocava um violãozinho, aí ficava tocando violão, cantando e tal, né, até que dava dez horas, aí tocava uma corneta lá, que era o silêncio, aí dez e um tinha que estar tudo apagado e silêncio, era hora de dormir. As camas, são alojamentos grandes onde você tinha uma fileira de camas, e as camas com cabeceiras, então você imagina, assim, um alojamento aonde a profundidade seja maior do que a largura, nos cantos ficam os armários, e aqui no meio camas com cabeceiras, e essas camas tinham os cobertores, que a gente forrava a cama de manhã, depois que a gente levantava para ir pras atividades, e esses alojamentos tinham que estar arrumadinhos, e você tinha os cobertores lá com o logotipo da polícia, e você tinha que forrar a cama com o lençol, o travesseiro por baixo do lençol, depois punha o cobertor, tinha uma dobra específica para colocar o cobertor, e as camas tinham que estar alinhadas, né, a hora que você olha daqui essas duas camas tinham que estar na mesma reta das outras duas e das outras duas e das outras duas, e eram, assim, dez, quinze, então você olha daqui, as camas tem que ter uma reta só, depois você olha aqui, a dobra do cobertor também tem que estar alinhada, porque o cobertor não cobre a cama toda, ele vem até... Tem o travesseiro aqui, a cobertinha, e ele vem até determinado ponto, fica ali, sei lá, uns cinquenta centímetros de fora, então você faz a dobra do cobertor, ele fica dobrado aqui e ainda aparece aquela parte branca do lençol, então a dobra do seu aqui tem que coincidir
com a dobra da cama do lado lá, tem que estar alinhado, então isso é feito com linha mesmo, o cara pega uma linha lá, estica aqui e você tem que dobrar e deixar no mesmo alinhamento.
P/2 – Você cobra isso da sua esposa hoje? (risos)
R –(risos) Então, são detalhes que deixavam o chefe de alojamento preso se não acontecessem, cada semana tinha um dos alunos que eles chamavam de chefe de alojamento, que era o cara que ia ficar preso se não acontecesse, não era ele que fazia, mas se não fizesse era ele quem ficava preso, era o chefe de alojamento, então a responsabilidade era dele, então ele cobrava, brigava: “Pô, não tá alinhado, arruma para cá, puxa para lá e tal”, e tinha aqueles que já tinham feito a dobra, mas a dobra tinha ficado um pouquinho fora, aí o cara ia e empurrava a cama pro cobertor chegar na linha, né, só que aí você desalinhava a cama, aí a hora que olhava a cama estava desalinhada: “A cama do fulano tá desalinhada”, aí puxa de novo e tem que dobrar de novo o lençol, então de vez em quando gerava uns atritos lá logo cedo. Então, a noite tocou o silêncio, é silêncio, apagam-se as luzes, e quem ainda... Tem que andar com a sua lanterninha, né, era tudo apagado, e vem fiscalização, os próprios alunos dos anos superiores vinham fazer as fiscalizações passando de alojamento em alojamento para ver se tava tudo apagado e em silêncio. Se não tivesse, aí anotações, as penalidades aí, de escola, e de manhã também, tocava uma corneta lá, que era a alvorada, tocou a corneta, levanta, é tudo com horário, né, se quiser ficar, fica, mas na hora certa tem que acontecer, então não dá para ficar, é tudo muito apertado, então tem que levantar, fazer a higiene pessoal, se trocar, arrumar todo esse alojamento, cama, dobra, tudo, e correr para entrar em forma para ir pro café. Tem um pátio enorme lá, não sei se vocês conhecem a academia, mas tem um pátio bastante grande, os prédios de alojamentos e salas de aula em volta desse pátio, e aí você tem que entrar em forma, cada um no seu pelotão, conferem, aí tem a ordem para ir entrando no refeitório, ocupando as mesas em determinada disposição, não é aleatório, cada um senta em um lugar, vai preenchendo as mesas da ponta para o fundo, os anos superiores entram primeiro, depois os outros, até os últimos recrutas, os últimos anos, cada mesa tem oito lugares, na hora que você vai chegando, vai ficando em pé, e na hora que completou os oito lugares, o aluno mais antigo, que é o aluno mais graduado da mesa, ele autoriza a sentar, aí senta aquela mesa, enquanto não preencheu não senta, fica em pé até chegar o último, aí senta,
P/1 –Aí, só para mim entender, quando você acaba, você sai formado policial, é isso?
R – É, você sai aspirante, ainda não é oficial, é um aspirante a oficial, aí vai ficar em torno de um ano aspirante, é um interciclo que tem, é como se fosse um estágio. E depois você é promovido a tenente, mas já sai para ir trabalhar na rua, inicialmente, como a gente chama, “coroinha”, né? Trabalhando junto com outro tenente que já tá lá há mais tempo e depois vai trabalhando sozinho dando um policiamento regional.
P/1 – E você começou aí a sua carreira de policial?
R – Isso.
P/1 – Conta um pouco desse momento.
R – A minha turma toda foi mandada pro interior, até então era o contrário, todo mundo que se formava ficava primeiro aqui na capital trabalhando e depois é que ia pro interior, logicamente aqueles que são do interior, né, um ou outro que eram da capital e tinham interesse de ir, né, mas normalmente os da capital ficavam na capital e o pessoal do interior ia pro interior, quando era promovido a tenente, por exemplo. E com a minha turma foi o contrário, eles mandaram todo mundo pro interior e depois quando a gente tava para retornar para ser promovido é que eles trouxeram todo mundo para São Paulo e fizeram esse processo, que era o normal até então, né, os de São Paulo ficavam em São Paulo, os do interior vão pro interior, e com isso muitos que eram de São Paulo acabaram gostando do interior e foram pro interior também, optaram pelo interior. E como eu tinha passado pelo Vale do Paraíba e Lorena no exército, eu optei por São José dos Campos, e fui trabalhar em São José dos Campos quando eu saí aspirante. Depois numa companhia destacada de Jacareí, os últimos dois meses que eu fiquei lá como aspirante eu fiquei em Jacareí, aí eu ficava a semana inteira lá, o momento em que a computação tava surgindo, e até por influência da minha irmã, que era analista de sistemas, ela falava muito disso em casa, aí eu fui... Por ser acostumado, até então, a todo dia estudar, estudar à noite, a gente ficava na academia estudando pras provas, eu falei: “Caramba, eu não vou fazer nada aqui? Preciso fazer alguma coisa”. Estava lá em São José dos Campos: “O que eu vou fazer? Ah, vou fazer um curso de computação”. Então fui fazer um curso de programação de computador lá, a noite, para ocupar as minhas noites, né, mas era algo, assim, muito incipiente ainda, aquele comecinho, o computador era uma caixinha desse tamanho aqui, você conseguia fazer coisa muito básicas, o próprio programa que fazia isso se chamava Basic, depois é que foram surgindo outras coisas, né, mas era para me ocupar lá, né, e final de semana a gente vinha para São Paulo, vinha para curtir a vida normal, né, de jovem, namorar.
P/1 – Você tava morando com os seus pais ainda?
R – Sim.
P/1 – E quais as atribuições do aspirante? O que ele faz efetivamente?
R – É o responsável pelo policiamento de determinada área, então quando você vê as viaturas por aí, elas sempre estão sobre o comando de um sargento, mais de um sargento, dois, três sargentos em uma determinada área, e de um tenente que comanda todo esse efetivo aí, né, de cinquenta, sessenta homens, um sargento para cada dez mais ou menos. Se você imaginar aqui ao redor, de Pinheiros até a Praça Panamericana aqui, neste momento tem um tenente que é o responsável por essa área aqui, trabalhando nesse momento, e quando dá algum problema com algum policial e tal, chama-se o tenente, o tenente que é o oficial que vai resolver as coisas.
P/2 – Em que momento dessa sua carreira você decidiu entrar pro Corpo de Bombeiros?
R – O Corpo de Bombeiros foi em decorrência dessa minha ida pro interior, porque quando eu voltei, em que pese de eu morar na zona leste, quando eu voltei acabaram me mandando ir trabalhar na zona sul, e tinham várias unidades minhas na zona leste, né, de policiamento, e eu tinha que atravessar a cidade para trabalhar. Eu fui lá, argumentei, tentei e tal, e o pessoal: “Ah, uma hora você vai embora, fica aí que você tá bem, tá tudo certo”, um aspirante a mais, um a menos, não estavam preocupados, né, e eu comecei: “Pô, eu preciso sair daqui, o que eu vou fazer? Os caras não vão me mandar embora, eu vou ficar quanto tempo aqui? Quero ficar mais perto de casa”. Eu não tinha afinidade nenhuma com a zona sul, né, e bombeiro foi uma área que eu sempre gostei, mas que não era a minha opção para trabalhar, então quando eu comecei a pensar: “Como eu faço pra...? Ah, só se eu sair do policiamento”, né, falei: “Pô, bombeiro, bombeiro é legal, é uma área técnica também”. Para quem tinha imaginado lá atrás ser engenheiro, né: “Eu acho que eu vou me dar bem no bombeiro”, eu achava que ia me dar bem como engenheiro, então bombeiro eu ia me dar bem, foi aí que surgiu a ideia de prestar o concurso para bombeiro. Não era inicialmente o meu foco, eu gostava, mas como gostava de outras coisas, aí comecei a pensar no bombeiro, prestar mais atenção, com mais carinho, inicialmente como sendo uma opção para sair da zona sul e ir para zona leste, porque aí era outra coisa, né, eu ia fazer um curso de bombeiro e a minha classificação é que ia contar para onde eu iria depois. Aí é só dar uma rachada e vou lá para zona leste, já no bombeiro, aí comecei a analisar e comecei a ver que mais do que isso, ia ser interessante, que eu tinha uma afinidade, eu falei: “Não, não é só para fugir daqui, eu acho que eu vou gostar”. E eu realmente estava certo, mas aí tem uma curiosidade dentro disso, eu prestei o exame e como o bombeiro faz parte da polícia militar e o oficial, aqui em São Paulo, ele tem que entrar na academia de polícia para depois prestar um concurso interno para ir pro bombeiro, diferente de outros estados aí que você pode entrar direto no bombeiro, aqui ainda não, você entra para policia e depois você presa um concurso interno para ir pro Corpo de Bombeiros, e eu prestei esse concurso, passei. Mas por uma questão interna da polícia militar, a polícia não deixou eu ir fazer o curso, ela alegou que tinha uma necessidade dos policiais trabalhando em policiamento, que era prioridade, que não era prioridade o bombeiro e que eu não ia ter o curso de bombeiro. Então, eu fiquei mais um ano com vaga assegurada porque eu tinha passado no concurso, mas eu fiquei mais um ano para ir fazer o curso, e nesse ínterim eu acabei conhecendo a minha esposa, né, que é lá da zona sul, e depois a gente veio a se casar e eu mudei lá para a zona sul, e tô na zona sul até hoje. Ela agradece a polícia, porque eu não fiz o curso em 1986 (risos), como eu ia fazer, né, e não a teria conhecido, teria ido embora, só fui fazer em 1987, acabei conhecendo ela em 1986 e a gente se casou em 1988.
P/1 – Vocês se conheceram como?
R – O pai dela era policial, era capitão da polícia, e eu a conheci porque eu tava estagiando lá na zona sul na companhia que ele trabalhava, e na hora do almoço ele me levou para almoçar na casa dele, ele falou: “Ah, você tem lugar?”, “Não, vou almoçar por aqui mesmo em algum lugar”, “Não, vamos almoçar lá em casa”. Aí ele me levou para almoçar lá, ela tava lá almoçando, ia sair para trabalhar também, ela era professora, aí ela se encantou comigo (risos), ela diz que é ao contrário, mas não é, ela se encantou comigo e acabou me arrebatando, vamos dizer isso.
P/1 – Ela é professora do que?
R – Ela era professora de português e inglês, hoje ela é vice-diretora de uma escola pública do estado, lá na zona sul mesmo. Aí depois desse episódio a gente acabou se encontrando em outros eventos da polícia, e acabamos, três anos depois, casando, e to até hoje pro lado de lá por conta dessa questão. A polícia que me mandou errado para a zona sul, sendo que tinha opção na zona leste, e eu sai muito bem classificado da academia, devia ter ido para lá. E depois que eu quis sair fazendo o curso de bombeiros a polícia de novo falou: “Não, só no ano seguinte”, aí isso acabou engrenando o namoro e o casamento.
TROCA DE FITA
P/1 – E aí você entrou nos Bombeiros, conta um pouco desse começo, o que você encontrou lá, como é a sua carreira?
R – Nos Bombeiros a gente faz um curso, né, eu fiz esse curso de bombeiro em 1987, naquele momento o bombeiro não tinha uma escola própria, era uma improvisação no prédio do Comando de Bombeiros, que fica lá na Praça da Sé, tinham lá dois corredores com salas de aula, tudo, assim, meio improvisado. Hoje não, hoje tem uma academia maravilhosa em Franco da Rocha, uma coisa realmente para se ver que é muito bonita a Escola de Bombeiros lá em Franco da Rocha, mas na época não, era lá na central mesmo que a gente fazia os cursos, existia um convênio com a Fatec em matérias como física, matemática, eletricidade, a gente fazia tudo com professores da Fatec, eles vinham dar aulas para gente e às vezes a gente ia lá na Fatec ter essas aulas. E outras matérias eram dadas por oficiais do próprio Corpo de Bombeiros. A turma era, assim, a grande maioria já se conhecia porque eram contemporâneos de academia, ou eram da minha turma ou eram de turma próximas, e nós tínhamos o que a gente chamava de estrangeiros, que era um tenente do Amapá, um da Bahia, um de Pernambuco e um de Alagoas, o de Pernambuco, o de Alagoas e do Amapá. Chegaram a ser comandantes gerais dos bombeiros nos locais deles lá, então tinham esses aratacas, que a gente falava para eles que passou do Rio, para gente era arataca, que para nós eram os estrangeiros, os oficiais de outros estados que faziam curso com a gente. Principalmente esse do Amapá, ele tinha uma dificuldade muito maior, ele até já tinha mais idade, né, e uma dificuldade muito grande com física, com química, com as matérias técnicas e projetos, a gente fazia e tinha que ajudá-lo a estudar, a fazer os trabalhos, mas acabou se formando, foi bem, e todos eles são grandes amigos hoje, que toda turma tem, a gente tem um carinho muito grande por eles.
P/1 – Como é começo de atuação como bombeiro? Quais os primeiros passos?
R – No próprio curso você faz estágios, depois de uns quatro meses você começa estagiando nos quartéis, acompanhando os oficiais que cobrem as áreas, né, que são oficiais de área, os tenentes que vão pras ocorrências, vamos dizer aí, de média gravidade, eles vão de média para cima, as ocorrências de grande gravidade já vão capitães, majores, coronéis, outros, mas os tenentes sempre vão nessas de média gravidade para cima, e os oficiais do curso acompanham. Mas são estágios de finais de semana porque na semana a gente tá tendo aulas, né, aí normalmente depois do meio dia da sexta feira a gente se apresenta em algum quartel pré-determinado para acompanhar as 24 horas do oficial, ir pras ocorrências junto com eles, ver as providencias, um estágio, né, então esse é o primeiro contato que a gente vai tendo na prática de como trabalhar como bombeiro. Depois que se forma você também passa um período em que você corre e é supervisionado, não é junto com oficial na mesma viatura, mas você tem a supervisão de um tenente, que em determinadas ocorrências ele vai junto, ou em determinadas ocorrências que você ainda não tem aquela segurança para decidir você o chama, para ver se aquela decisão que você tomaria é correta, ou até para que ele mesmo decida, né, falar: “Olha, isso aí eu não sei nem pensar como faz”. Durante um período, e depois deslancha, é designado para trabalhar em um determinado quartel, aí conta a escolha do oficial por conta também de uma classificação do curso de bombeiros, né, quem vai melhor tem opção de escolher, né, os demais acabam indo pro interior: “Ó, a vaga que tem é lá em Presidente Prudente”, o cara vai trabalhar, afinal de contas somos funcionários estaduais, então, no território estadual, você pode ser designado a trabalhar em qualquer lugar.
P/1 – Conta então, o que é uma coisa leve e grave, só para eu ter uma ideia do que você tá falando, o que significa?
R – Uma ocorrência, vamos dizer, de resgate, né, uma queda acidental; não é uma ocorrência que precise de um tenente, uma guarnição de resgate nossa, que às vezes é comandada por um cabo. Ela é suficiente, é treinada, tem todos os procedimentos padrões que ela segue que são mais do que suficientes para resolver aquele caso, então você não precisa de um... Às vezes até casos um pouco mais graves você não precisa mandar o tenente, porque você sabe que tem um sargento, e o sargento vai dar conta tranquilamente daquela situação, mesmo envolvendo vítimas. Uma ocorrência, por exemplo, de panela no fogo, a pessoa sai, esquece a panela no fogo, começa a sair fumaça na casa, ou no apartamento, então pelo horário a gente até sabe que não é um incêndio no apartamento, é uma panela no fogo, mas por que vai o tenente? Essa é uma ocorrência que vai o tenente, por causa da responsabilidade da casa, entendeu, então você vai entrar na casa, você vai ter que fazer um arrombamento da casa, vai ter que quebrar uma janela, uma porta para entrar, lá existem bens, existem uma série de coisas, então você tem um nível maior de responsabilidade, o nosso pessoal não tem essa cultura de chegar lá e pegar qualquer coisa que seja, mas com o tenente você tem como responder a qualquer questionamento do proprietário, imprensa, seja quem for: “Por que vocês quebraram a porta? Não dava para jogar água de fora e tal?”. Então você tem um nível um pouco maior para isso, em que pese não envolver vítimas, né, quase nunca envolver vítimas, já aconteceu casos de a pessoa estar dormindo, enfumaçar tudo lá e ela não perceber, e é um risco muito grande, ela acaba asfixiada pelo monóxido de carbono e acaba morrendo, mas na grande maioria é muito mais por conta da responsabilidade do local. Uma ocorrência, para dizer assim, o que é leve... Uma ocorrência que envolve vida humana ou vida de maneira geral é sempre uma ocorrência de maior vulto, que requer um oficial, salvo algumas exceções. Ocorrências que envolvem várias vítimas requerem um nível de oficial maior ainda. A gente não deixa só o tenente, deixa o capitão também. Ocorrências de repercussão você aumenta mais ainda a coisa, porque além do risco, além do trabalho, você tem o entorno da coisa, você tem que pedir vários tipos de apoios, né, de fazer aquele contato com a nossa central, e a pessoa que tá focada no serviço em si, está focada no serviço, você vai ter que tirá-la dali para ela pensar na segurança do local, para ela pensar no apoio de outras viaturas, então você manda alguém para se encarregar disso, e também o contato com a imprensa, então quem tá fazendo o trabalho faz o trabalho, deixa que eu falo o que o bombeiro tá fazendo, porque é assim, porque é assado, então você coloca aí até um porta-voz, e normalmente, dependendo da ocorrência, né, é alguém com um posto acima daqueles que estão trabalhando.
P/1 – Conta um pouco da sua trajetória, um pouco dos momentos importantes que marcam, as suas histórias, enfim...
P/2 – Você se lembra, por exemplo, da primeira grande ocorrência que você participou?
R – É, a primeira foi no curso ainda, a gente ainda tava no curso, final de tarde, quando pegou fogo num prédio da Avenida Paulista, o prédio da CESP, a gente ainda tava fazendo o curso, né, pegou fogo no prédio da CESP. A gente foi lá para dar um apoio, porque lá havia um risco de queima em cadeia dos prédios, queima um e passa pro do lado, e passa pro outro… E esse prédio acabou implodindo, foi um troço atípico na época, ele poderia ter caído para frente, ia cair em frente ao Conjunto Nacional que é do outro lado da avenida, poderia ter caído pro lado e pego os do Safra, né, que são dos dois lados, dos dois lados tinham prédios do Banco Safra, mas ele implodiu, só ficou a caixa de escadas intacta. Onde, inclusive, tinham vários bombeiros. E acabou ruindo a parte central dele, e a gente foi para lá, acompanhando, e foi a primeira grande ocorrência, em que pese o número de vítimas foram uma ou duas pessoas só, que eu me lembre, uma só, que era o garagista, né, que na hora que implodiu estava lá embaixo na garagem e acabou vindo a falecer, as outras tinham saído, e os bombeiros Deus abraçou, assim, e não deixou (risos), é a única explicação porque num prédio que cai todo e onde o pessoal está não cai, sabe, não tem muita explicação.
P/2 – Você tava aonde nesse momento, tava de fora?
R – A gente tava de fora porque a gente era aluno ainda, né, não tinha nem autorização para entrar, a gente tava bem afastado.
P/2 – E como foi para você, ainda em curso, sentir essa pressão de como seria ser bombeiro?
R – Tem um “q” de deslumbramento, de você ver a força de tudo aquilo, de um incêndio daquela proporção, uma certa ansiedade, em que pese no momento a gente não tinha, assim, uma condição de avaliação muito grande, porque a gente ainda tava na parte inicial do curso, né, mas aquela ansiedade praticamente do público mesmo: “Por que não chegam mais carros? Por que não jogam mais água?” (risos). Algumas coisas assim e tentando entender tecnicamente o que tá acontecendo diante do pouco que a gente já sabia, do que era possível, tentando entender tudo aquilo. Ao mesmo tempo, eu me lembro que eu me sentia orgulhoso de ser bombeiro, né, e estar participando daquilo, estar naquele momento e poder tentar fazer alguma coisa, que no caso lá, foi bastante coisa, porque o bombeiro acabou conseguindo evitar que os prédios do lado pegassem fogo, sendo que aquele lá já tava praticamente tomado, não tinha muito o que fazer, né? Mas a gente começa, no início de curso assim, vendo o que seria possível, né, ou o que eu teria pela frente como carreira, como desafio, de poder ajudar pessoas, aquilo era muito bom, essa sensação era muito boa naquele momento, e ao mesmo tempo uma preocupação: “Pô, a gente não tá conseguindo apagar isso aí e não vamos apagar”, e a hora que ruiu então: “Morreu gente? Não morreu? Aonde estavam os bombeiros?”. Algo que aconteceu com as torres gêmeas aconteceu lá, numa proporção bem menor, né, mas aconteceu e teve um efeito êmbolo da... Tem uma escadaria da Paulista até chegar no primeiro andar do prédio, e quem tava em cima foi jogado na Paulista por um efeito êmbolo, desceu e veio fazendo aquele pressão, né, o ar vai sair ali pelas portas. Então quem tava em cima na porta do prédio, começou, o cara foi tentar correr, o troço veio e jogou lá no meio da Paulista, teve algumas escoriações, mas nada mais grave do que o que poderia ter acontecido. Outros só esperaram a poeira baixar e: “Ó, tô vivo”, que estavam realmente dentro, numa área que não desmoronou, não desabou.
P/1 – E as ocorrências, talvez, mais engraçadas? Não sei, conta um pouco para gente desse dia-a-dia, essas de grande porte, quem está de fora ainda consegue acompanhar um pouco porque tem a repercussão, mas como é esse dia-a-dia mais miúdo? Conta um pouco da sua rotina.
P/2 – Estar dentro da ocorrência.
R – A ocorrência do tenente, que era o meu caso, depois capitão, né, sempre são ocorrências um pouco mais graves, vamos dizer assim, que envolvem vítimas. Agora, lógico que tem ocorrências curiosas, né? Eu tava em serviço num sábado a noite e a central falou: “Ó, tem um chamado aqui de um cidadão que quer que abra a porta do apartamento dele”, eu falei: “Pô, mas eu vou lá abrir a porta do apartamento?”, ele falou: “Não, ele tá insistindo, vai lá dar uma olhada”, “Então vamos”. Eu estava na Vila Mariana e era em Moema, chegamos lá, era um prédio de muito luxo, aqueles de um por andar ou dois por andar, não sei, mas o apartamento enorme. Nós chegamos lá, estava o cidadão, ele falou: “Ó, eu to com vergonha de ter chamado o Corpo de Bombeiros, mas eu não tenho alternativa, na verdade eu chamei vocês para abrirem a porta porque o prédio aqui é com cartão, não é com chave”. A porta é com um cartão magnético, hoje é comum nos hotéis, tudo, naquela época era novidade, eu, particularmente, desconhecia qualquer lugar que tivesse cartãozinho para abrir, aí: “Ah, é com cartão?”, “É, e o que aconteceu? Eu saí e o meu filho estava, eu saí para comprar uma pizza e deixei meu cartão lá, e agora que eu voltei meu filho saiu, ele levou o cartão dele, o meu cartão está lá dentro, e não existe chaveiro no mundo que abra a porta, e os caras também não abrem a porta, não arrombam, então eu pensei que nem que seja para vocês arrombarem a porta lá...”. Num sábado a noite quem é que vai fazer um troço desse? Quase meia-noite, né, ninguém vai fazer, nem que tenha que pôr a porta abaixo, só o bombeiro vai fazer isso, ninguém vai fazer, aí eu lembro que a gente acabou indo no apartamento de cima, entramos lá com a autorização da pessoa e descemos pelo lado externo com um rapel, uma corda lá, descemos com o rapel para entrar pela janela, por sorte a janela estava aberta, né, aí entramos pela janela para abrir a porta do cidadão lá, que ficou imensamente agradecido, queria dar as pizzas para nós: “Leva as pizzas” (risos), então as pessoas querem dar dinheiro, querem dar pizza, é bastante comum, no trabalho de bombeiro, esses agradecimentos assim, e muitas vezes as pessoas se surpreendem porque a gente não pega nada, né, nada, nem a pizza: “Pega a pizza, você pode estar com fome”, “Não, não quero”, e ele queria até dar a pizza: “Eu até perdi a fome, tá quentinha, pode levar, é Pizza Hut, boa qualidade”, “Não, obrigado, pode comer a sua pizza tranquilo”. Era a última alternativa que o cidadão tinha, né: “O que eu vou fazer, vou chamar o...”, não tem Batman, não tem Chapolin: “Vou chamar o bombeiro que também é vermelho”. A gente foi lá abrir a porta do cidadão, então isso foi curioso… E esse lado das pessoas, em várias oportunidades da gente ir e fazer o trabalho, e a pessoa, de alguma forma, ou fica constrangida: “E agora? Eu não consigo pagar isso”, e você fala: “Não, você não tem que pagar nada, já tá pago” (risos). É um serviço público, os Bombeiros. E isso aconteceu muito na época de resgates, no início dos resgates, era muito comum uma pessoa não querer o atendimento achando que depois ela não ia conseguir pagar aquilo, hoje é comum, mas quando surgiu o resgate no formato dos atendimentos que eram feitos com os protocolos americanos, as pessoas não estavam acostumadas com aquilo, com aquele tipo de viatura, com o tipo de atendimento,
protocolar, onde as pessoas vem, esse faz isso, aquele faz aquilo, já coloca aqui, o outro mede a pressão, então aquilo, não raramente a pessoa: “Não, não, não, pára, eu não vou ter como pagar isso não” (risos), era comum esse tipo de sentimento das pessoas.
P/2 – O clássico do gato na árvore existe mesmo nos bombeiros?
R – Existe, existe sim, não só gato, existe gato, papagaio, né, macaco, mas existe, tem uma série de animais que sobem nas árvores, nos telhados, e que é chamado o bombeiro para retirar, acontece sim, e o bombeiro vai, vai para tirar (risos).
P/2 – As pessoas contavam dos cursos, que ao longo da carreira você faz cursos que vão te ajudando a subir no escalão da carreira e tal, tem algum curso em particular que te marcou?
R – Eu também fiz alguns, né, mas eu sou especialista em produtos químicos, e depois eu fiz até engenharia química, a engenharia que eu fiz foi engenharia química, e por quê? Foi um incêndio que teve na USP, teve um incêndio na USP no Instituto de Química, e naquele momento queimaram alguns laboratórios e se formou uma atmosfera lá dentro que ninguém sabia o que era aquilo, então o químico sabe quando ele mistura uma coisa com a outra o que vai dar mais ou menos e tal, mas e quando mistura tudo? E ainda, aquecido, o que forma? Ninguém no mundo sabe, nem os doutores em química, e o bombeiro tinha que entrar lá para apagar e para tirar as coisas e ele ficou exposto a aquela atmosfera. Então isso ocasionou uma série de discussões, o quanto aquilo teria sido prejudicial para os bombeiros, era uma época onde a nossa proteção respiratória não era grande coisa, nós não tínhamos roupas para ambientes químicos, as roupas eram para combate a incêndios, então surgiu uma série de discussões, depois disso sim, se importaram. Hoje para entrar num lugar desse é com a roupa de astronauta, né, aquela capsulada, a roupa nível A para produtos químicos. E eu tava num grupamento que era exatamente o grupamento que fazia essa parte aqui da USP, né, tava ligado ao grupamento lá, e a gente foi encarregado de fazer alguns estudos nesse sentido aí, então despertou essa parte de combate a incêndio em locais com produtos químicos, eu passei a estudar isso e logo em seguida fui fazer engenharia química e acabei me especializando nessa área de produtos químicos dentro do corpo de bombeiros. Em determinado momento da minha carreira eu era membro da Comissão Estadual de Transporte de Produtos Perigosos, Comissão Municipal, Comissão Intergaláctica, tudo me chamava, né, ABNT, tudo, para falar ou para dar opiniões de como transportar, como armazenar, como proteger locais com produtos químicos, então aquilo me chamou atenção, e a química que nunca foi o meu forte na escola, aliás eu tinha até uma certa dificuldade, e acabou alavancando a minha carreira dentro do próprio Corpo de Bombeiros.
P/1 – E a engenharia química você fez durante... Você não era aposentado ainda, né?
R – Não, era tenente.
P/1 – Como conciliava?
R – A noite, né, fazia a noite, mas eu ainda tirava alguns plantões noturnos, quando era época de prova eu trocava com os companheiros, né, aí eu só trabalhava no final de semana e durante a semana eu estava livre para estudar, para ir fazer as provas, então dei uma estendida no curso também, fiz um ano a mais de curso para poder ter como cumprir a grade toda. Realmente num momento ficou apertado, aí eu acabei fazendo só algumas matérias e estendi mais um ano para poder fazer, fiz.
P/1 – E a sua trajetória nos bombeiros então, você começa tenente e vai parar aonde?
Como foi?
R – É, como tenente, e aí o que aconteceu? Tinha aquela ideia inicial que era sair da zona sul, só que quando eu terminei o curso de bombeiro eu já tava namorando com a minha esposa, que era da zona sul, e a gente já com planos de casar e tudo, então quando terminou, invés de eu ir para zona leste eu escolhi zona sul (risos). Aí eu acabei indo, era o Quarto Grupamento na época, cuja sede era lá na Domingos de Moraes, mas tinha também posto em Santo Amaro, tinha esse posto aqui, que até hoje é o Quarto GB, né, na Sumidouro aqui, que é o posto de Pinheiros. Então acabei indo para a zona sul e trabalhando cobrindo essa área da zona sul. Depois fui para central do bombeiro trabalhar na área administrativa, na área de finanças e patrimônio, o pessoal me levou para lá, eu já era primeiro tenente, já era mais antigo, aí me levaram para lá, fiquei trabalhando na área administrativa, mas o tenente da área administrativa também tira serviço operacional, não é só administrativo, ele concorre a essa escala operacional, né, mesmo trabalhando lá eu continuava tirando esses serviços pelo menos uma vez por semana em algum lugar. Aí quando eu fui promovido a capitão eu voltei novamente para a zona sul, tinha vaga, né, em Santo Amaro, eu voltei já como capitão. Isso foi em 1995, em 1996 nós tivemos a queda do avião da TAM, o 402, eu era capitão naquela área, porque era um Sub GB, né, uma estrutura de companhia, e tinham vários postos que eram subordinados a mim, e um deles era dentro do aeroporto de Congonhas, e o outro era do lado de fora onde tem a unidade de policiamento, que a gente chama de Campo Belo. Eu tinha um no Campo Belo e tinha um lá, tinha mais um, e esse já não era subordinado a mim, que era o do Jabaquara, mas esses dois que ficavam próximos, né, eles foram, e nesse dia, era uma quinta-feira, 31 de outubro de 1996, eu tava saindo de Santo Amaro para ir numa reunião na sede que era lá na Domingos de Moraes, era um pouco antes das nove da manhã, e eu não tinha motorista, eu mesmo ia dirigindo a viatura, que era uma caminhonete, e no rádio eu escutei que já tinha caído o avião, e eu tava indo para lá, peguei o rádio, pedi informação, me disseram, né, que era do lado da cabeceira do Jabaquara, tinha caído. Eu tinha trabalhado como tenente naquele posto do aeroporto, foi o primeiro posto que eu comandei nos Bombeiros quando eu cheguei no Quarto GB, que era da Infraero e hoje tá administrado pela Infraero mais os Bombeiros, né? Então eu conhecia bem aquela região, e eu fui para lá, e aí quando eu cheguei na rua, e eu cheguei por uma rua de baixo, né, pelo trajeto que eu fiz, o que me causou espanto, assim, é que o avião caiu, explodiu, e o combustível da asa, incandescente, desceu pela guia e foi pegando fogo nos carros que estavam parados na rua, então no cenário assim, e eu tentando entender: “Caramba, por que esses carros estão pegando fogo há duzentos, trezentos metros para baixo da ocorrência?”, e era o combustível incandescente que tava descendo e queimando, aí eu subi, já tinham algumas viaturas nossas, eu avisei pro pessoal, até porque o cenário lá nem era de combate a incêndio, era realmente de destruição total, né? Peguei uma viatura e pedi para ela descer e ir apagando, jogando espuma e pó naquele combustível porque se não ia causar uma série de outros incêndios, porque já tava causando, né, tinha carro com pneu totalmente tomado pelas chamas, isso era umas nove e meia da manhã mais ou menos, a partir daí começaram a chegar várias outras viaturas da capital toda, e o avião veio caindo, tinha uma escola de um lado da rua, do outro lado era um predinho de uns três andares, ele inclinou, a asa pegou em cima desse prédio, infelizmente tinha um trabalhador lá que foi atingido, não sei se estava arrumando o telhado, embaixo também tinha outras duas pessoas, né, no quintal da casa e ele caiu em cima, então pela destruição que foi, fora as do avião, morreram só três pessoas, realmente uma coisa, assim, da mão de Deus, destruiu uma série de casas, um quarteirão de casas. Um Fokker 100, não é um avião tão grande assim, é um avião para cem passageiros, ele tava com, acho que noventa, e mais a tripulação de cinco ou seis, mais três que morreram fora dá quase cem pessoas que morreram no acidente, então um acidente desse, imagina, poderia... Se cai na Avenida Jabaquara é uma destruição, assim, inimaginável, e aí a gente vai fazer um trabalho de retirada de corpos carbonizados, praticamente quase nenhum dava para você ter alguma ideia do que era, né, se era homem, se era mulher, muitos esqueletos carbonizados, eram colocados em sacos plásticos e enfileirados aguardando vir um caminhão para levar pro IML porque um carro de IML cabem dois, né, era um caminhão baú para colocar e levar para identificação por DNA, que ainda era algo muito caro, muito difícil de fazer, mas foi a alternativa que se fez. E desapareceu um professor, a gente não achava, e a família dizia: “Não, o cara tava em casa”, a gente remexeu tudo e não tinha: “Tem certeza que ele não saiu não?”, “Se tivesse saído, tinha voltado, né?”. E isso na quinta-feira, e a sexta-feira já dia primeiro, no sábado era dia de finados, dois de novembro, e como eu era o capitão eu fiquei todos esses dias lá, eu a para casa, dormia um pouco, né, depois de passar o dia inteiro, ia para casa, chegava meia-noite, meia-noite e pouco, quando eram umas seis da manhã eu já levantava, voltava para lá, e remexendo: “Vamos, tem que achar”, reviramos tudo aquilo, aí o que aconteceu? A Eletropaulo começou a vir e começou a refazer toda a rede elétrica, já no dia seguinte, já na sexta-feira já estava refazendo a fiação elétrica e telefone, né, já dava para eles trabalharem, né, e a gente vasculhando lá para ver se achava pelo menos algum vestígio do professor, e também é um negócio, assim, sem explicação, mas eles foram fazer uma broca para colocar um poste, aí vem aquela broca, né, que é um caminhão na verdade, um troço dessa largura, aí foi e furou um buraco, aí furou lá e alguém me chamou: “Ô, capitão, parece que tem algum pedaço de corpo ainda lá onde eles estão furando”. Aí eu peguei e olhei, e vi que realmente era a parte de um braço, né, há mais de um metro de profundidade, eu falei: “Então para tudo, vamos escavar, pode ser só um braço, pode ser algo mais”, e era o professor, depois que a gente arrancou tudo, era o cara, estava soterrado há mais de um metro de profundidade, como ia achar isso? Não ia achar, nunca, não ia achar nunca, não tem a mínima chance, aí como os caras perfuraram é que achou, se perfura dez centímetros para cá não achava, foi exatamente aonde... A explicação disso eu não sei, mas é algo para se pensar, né, caramba, alguém que já estava sepultado, né, ele tava, seria assim, quase na calçada já, né quando caiu, e na queda, o arrasto da calda, que arrastou coisas, trouxe todo aquele entulho para cima dele e a própria pressão achatou, afundou realmente, o peso, tudo, né, veio e jogou em cima, e com o peso ficou mais de um metro embaixo. Então por mais que tivesse alguma coisa em cima para se escavar não ia chegar naquela profundidade nunca, não tinha porque você escavar um buraco de um metro num terreno que já tá plano, um meio metro que tivesse em desnível, tá, mas o outro meio metro não, já estaria aonde qualquer máquina, para limpar o terreno, limparia para deixar plano, e fora esse nível ainda tinha mais meio metro de terra para baixo. Acabamos achando a última vítima dessa maneira aí, com alguma ajudinha divina, acredito eu.
P/1 – Como é para você esse momento trágico de achar corpos ou carbonizados ou inteiros, enfim, e como os bombeiros dão suporte para esse tipo de impacto pros funcionários?
R – Nós não temos esse suporte não, não existe um trabalho psicológico, isso não existe, no dia-a-dia a gente vai convivendo com isso, vai vendo a todo momento essas coisas, né, e a vida acaba te preparando de certa forma para isso. Mas toda ocorrência desse tipo é traumatizante para gente também, a gente sente um baque, sente um conforto quando você pode fazer alguma coisa, isso nos conforta, mas também é difícil, né, então não é, assim, incomum você ver um bombeiro até chorar numa ocorrência, quando envolve criança por exemplo, é algo muito forte para gente, você chegar e ver que não pôde fazer nada, ou o pior para gente, né, você chegar e a pessoa estar viva ainda e você não consegue manter a vida, não consegue salvar, né, então a gente toma como uma perda pessoal: “Perdi aquela vida, perdi, não consegui salvar”. Então isso dá um impacto na gente, mas como eu disse, depois de muitos anos a gente acaba: “Não, peraí, não é assim”, né, sei lá, acaba...
P/1 – Qual o momento que você passou pessoalmente que mais te marcou?
R – Ah, eu peguei uma ocorrência com três crianças que foi muito forte, assim, o pai das crianças vivia com uma mulher, né, que já tinha outros filhos grandes, tudo, e aí o pai viajava, era vendedor, não lembro exatamente do que, mas ele viajava e as crianças ficavam com a mulher. Era um sobrado e no fundo desse sobrado, como era um terreno em desnível, não tinha saída, tinha um muro que não era tão grande assim, mas embaixo era uma profundidade muito grande, tinham outras casas, não tinha como sair, então era algo, assim, meio enclausurado, e a família, a mulher e os filhos maiores dormiam nos quartos de cima e as crianças na sala, três crianças, uma delas brincando com fogo, com vela, sei lá com o que, acabou incendiando o sofá, acabou pegando fogo no sofá, as crianças começaram a gritar e quando os adultos perceberam o ambiente já tava tomado de fumaça, inclusive eu subi pela escada e tal, e eles desceram pela escada que era central e viram que na frente já tava pegando fogo, a sala, era uma sala na frente, né, e depois tinha a porta da rua, mas já tava queimando o sofá, e eles foram pro fundo que era uma área aberta, uma lavanderia, para respirar...
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