Projeto Conte Sua História
Depoimento de Maireny Jundurian Corá
Entrevistada por Carol Margiotte e Ane Alves
São Paulo, 19/03/2019
PCSH _ HV 742 _ Maireny Jundurian Corá
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liliane Custodio
Revisão/Edição - Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Dona Mairen...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Maireny Jundurian Corá
Entrevistada por Carol Margiotte e Ane Alves
São Paulo, 19/03/2019
PCSH _ HV 742 _ Maireny Jundurian Corá
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liliane Custodio
Revisão/Edição - Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Dona Maireny, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje.
R – Obrigada a você.
P/1 – E para começar, o seu nome completo.
R – Maireny Jundurian Corá.
P/1 – O local e a data de nascimento da senhora?
R – Guaxupé, Minas, 28 de maio de 1951.
P/1 – E a senhora sabe por que os seus pais lhe batizaram com esse nome, Maireny?
R – Sei. Papai é
descendente de armênio, ele nasceu lá, então ele queria uma filha com esse nome, que significa, na verdade, ‘ser mãe’. Maireny é ‘ser mãe’. Bonito, não é ? Bem pesadinho (risos).
P/1 – E os seus pais contavam história de como foi o dia do seu nascimento?
R – Um pouquinho só. Porque depois vieram tantos filhos atrás, que não dava mais tempo para ficar contando (risos). Bom, eu nasci... Mamãe dizia que foi num sábado, dia de pedinte, porque eu peço tudo o que eu vejo, tudo de que eu gosto (risos). E, naquela época, o parto era feito com parteira. Papai de madrugada saiu atrás, pega um táxi, chama um táxi, pega, vai à casa de outra, que também estava esperando, então foi assim, das quatro da manhã às sete horas da manhã, ficava um pouco com a mamãe, outro pouco com a mãe do Toniquinho, que era meu amigo. O que eles lembram muito mais é isso, como foi a correria para que eu nascesse. Nasci linda, maravilhosa. E pronto (risos).
P/1 – E falando nos seus pais, quais os nomes deles?
R – O papai se chama Simone Jundurian, ele veio da Armênia. Na verdade, o nome dele não era Simone. Quando ele chegou aqui, eles não souberam ler e puseram Simone, que hoje aqui, no Brasil, Simone é nome de mulher. Mas não necessariamente papai era, mas ele teve oito filhos, dos quais sete mulheres e um homem. E mamãe, Geni. Mamãe era de Minas, de Guaxupé, e era professora de Educação Física e tudo.
P/1 – E a senhora sabe como eles se conheceram?
R – Paquerando. Como chamava aquele negócio que a gente dá a volta na pracinha? Cor...
P/1 – Coreto.
R – Coreto. Dava volta no coreto, e aí um olhou para o outro, gostou e pronto, viveram felizes para sempre (risos).
P/1 – E o seu pai contava histórias de como ele veio para o Brasil, como era a vida dele lá?
R – Não. Não. Não. Papai veio com quatro anos, então ele não se lembra de nada. A gente sabe alguma coisa por causa da minha avó, do meu avô e das minhas tias também, que também não lembram. Mas os meus avós conversavam muito mais com elas do que com a gente. Então, sei alguma coisinha assim.
P/1 – E o que a senhora sabe sobre essa vinda? Ou também, como era a vida lá e o que os motivou a virem para cá?
R – Bom, eles vieram para cá fugindo da guerra com os turcos - o massacre que os turcos fizeram. E eles vieram fugidos. Minha avó veio antes, fugiu de um lado, meu avô por outro, e se encontraram. Acho que minha avó tinha treze anos quando encontrou o meu avô, que já era mais velho. Mas o meu avô tinha perdido a mulher dele, perdeu na guerra, ou foi morta, não lembro. E ele perguntou para a minha avó se ela queria casar, ela estava sozinha, aí ficou com o meu avô. Foram sofrendo toda... Foram para o Líbano, acho que do Líbano eles pegaram um navio que ia ou para a Argentina ou para os Estados Unidos, mas quando chegou aqui eles estavam cansados e ficaram por aqui. Aí, veio uma turma de armênios também, formou-se uma colônia de armênios aqui no centro de São Paulo. Eles não sabiam falar nada, a língua era difícil, e meu avô e meu tio - que não era meu tio, mas a gente chamava de tio - eles eram mascates. Vendiam limonada quando estava muito calor, às vezes eles vendiam gravata - o que tinha de oportunidade eles saíam para vender. E a minha avó ficava com os filhos e a minha outra tia - mulher do tio Michel - também ficava com os filhos, enquanto os maridos iam viajar, fazer grana. Mas eles eram bem danadinhos, brincavam, mexiam com todo mundo. Uma vez o meu avô, num dia quente de São Paulo... Venderam toda a limonada e não tinha mais, aí pegaram a água que eles lavavam a mão e os copos e fizeram limonada (risos). Ai, que vergonha (risos).
P/1 – (risos).
R – Mas era o que eles tinham para vender e eles precisavam. Então, venderam a água com sabor de sabonete, ou sabão, não sei. Tinha muita coisinha bonitinha. E eles demoraram muito para conseguir falar a língua, até se entenderem bem. E resolveram ser mascates. Alguém falou para eles, aqui de São Paulo, que tinha a cidade em Guaxupé, que era muito legal, que já tinha uma família de armênios. Eles foram, foram todos - as duas famílias. Foi a família Jundurian, que é a minha, e Gdikian, que é a do meu tio. E lá eles viveram muito tempo. E, como todo armênio, eles montaram cada um a sua fábrica de calçados e a fábrica do papai continuou até quinze anos atrás. Aí papai já não resistiu, fechou. E os meus outros... Meu tio também se mudou para São Paulo, depois de trinta, quarenta anos, continuou aqui, em São Paulo, com a fábrica dele. Porque os armênios sempre mexem com sapatos, então não adianta, que são sapateiros. Então, é isso.
P/1 – E quando os seus pais se casaram, eles foram morar aonde?
R – Foram morar na casa da minha avó, mãe da mamãe, que tinha uma casa boa, grande, e eles foram morar lá com a vovó. A minha avó era dentista prática, mas era a única da cidade. Então, a minha casa sempre ficava cheia de gente para tratar dos dentes, pôr dentadura, fazer tudo. E a minha avó, ela tinha uma Harley e ia para... Por isso que a gente é tudo doido.
P/1 – (risos).
R – (risos) A vovó ia para as fazendas tratar de dente na Harley, linda, maravilhosa. Então acho isso muito bonito. Papai também era uma pessoa muito legal, muito boa, muito brincalhão. A gente puxou todo esse lado do papai. Mamãe era séria e papai era todo debochado, brincava com todo mundo. Então, a gente sempre viveu num ambiente de brincar, uma brincar com a outra, e pronto. Foi ótimo. Até hoje a gente faz isso.
P/1 – E além de você, seus pais tiveram outros filhos?
R – É. A gente só foi sete mulheres e um homem. E esse homem, ele não aguentou e morreu de desespero. Mentira, mas a gente fala isso (risos). Ele era o quinto, eu sou a segunda filha, a Marli é a mais velha, e tudo com M. Marli, Maireny, Marisa, Marilda, Márcia, Marília e Maíra. E meu irmão, ovelha negra, era o Carlos Alberto.
P/1 – (risos).
R – Um moleque que foi criado na rua, porque mamãe e papai falavam: “lugar de homem é na rua”. De medo de virar viado, de ele virar viado. E Carlos Alberto adorou viver na rua. Então, ele foi muito, muito danado, mas era um bom menino. Porém, tinha esse lado beberrão, foi jogador de futebol, aí papai o trouxe, ele estava jogando nessa época no Cruzeiro, lá em Belo Horizonte, papai prometeu... Deu uma fábrica de calçados a ele. E ele veio, ficou, mas cidade do interior, pequena, casou e bebia muito, teve o fim que ele teve, morreu. E nós, sete irmãs, hoje, vivemos juntas o tempo inteiro, a gente se fala todo dia com as sete. E não chega perto, porque são danadas. Muito danadas.
P/1 – E ainda falando na infância da senhora, como era a relação em casa? Como todo mundo vivia junto? Como vocês se organizavam dentro de casa?
R – Vixi, mamãe. Ah, a gente era muito danada, a gente vivia na rua. Era uma cidadezinha bem pequenininha, hoje é grande, enorme. Mas a gente brincava na rua, no parque, no circo - porque ia muito circo. Ou no pessoal amigo da gente que morava numa vila perto. Então, a gente mal aparecia em casa. Era tudo na rua, moleques de rua, fazendo arte nas casas das vizinhanças, tudo. A gente era muito santinha, tá? A gente não pode nem contar, que tem muita gente ainda que está viva (risos).
P/1 – Vocês passaram a infância toda em Guaxupé?
R – Foi. Gente, a gente era umas capetas. Capetas, capetas, capetas, Nossa Senhora.
P/1 – Conta uma para a gente.
R – Deixe-me pensar. Tinha uma vizinha que morria de medo de macumba. Toda noite, a gente jogava macumba na casa dela. E ela chegava para a mamãe, falava chorando: “Geni, tem gente querendo me matar”. E éramos nós. A mamãe nunca pensou que era... (risos). Então a gente fazia isso, sabe? Tinha outra vizinha que a gente pegava, papai vinha para São Paulo, comprava aqueles cocôs de plástico, a gente entrava na casa de todo mundo, porque era tudo aberto, e punha o cocô em cima da colcha de piquet e jogava água. E elas gritavam, choravam. Então, eram coisinhas assim bem leves (risos). Fomos bem capetinhas.
P/1 – E quando seus pais descobriram que eram vocês?
R – Mas meu pai era igual, então... Mamãe ficava brava, mas papai não. Papai: “Quem sai aos seus, não degenera”. Então, pronto (risos)!
P/1 – Mas nunca teve nenhum castigo?
R – Às vezes mamãe falava que a gente ia ter castigo quando papai chegasse de viagem. Aí, quando contava para o papai, o papai já ria junto, então mamãe não tinha como. Mas papai brincava muito com todas nós e com mamãe também. Uma vez ele chegou, mamãe estava grávida, acho que da minha última irmã, aquele barrigão, o papai amarrou um cordão aqui no punho, amarrou num sapato e jogou debaixo da cama, e conforme ele roncava e virava, o sapato, que era assoalho, o sapato andava. E mamãe cutucava, falava para ele: “Simone, tem gente”. Papai olhava, olhava debaixo da cama: “Não tem ninguém, Geni. Dorme”. E quase mamãe... (risos). Então, meninas, são tantas histórias gostosas. Tínhamos a vida toda alegre, nunca a gente ficava preocupado com nada. Então tinha os vizinhos, tinha outra casa também da vizinha de baixo, da esquina de baixo, que também tinha oito filhos, só que lá eram quatro mulheres e quatro homens, e as quatro mulheres falavam para a mãe: “Mãe, nós vamos lá para o “seu” Simone”. Aí, a gente falava: “Mãe, nós vamos lá para o Estevinho”. E ninguém sabia aonde a gente ia. Era muita brincadeira. Era uma cidadezinha bem pequena, todo mundo sabia quem era quem. Então foi muito boa a minha infância. Foi ótima. De brincar muito, roubar manga na casa... Quintal e tudo. Foi muito boa.
P/1 – E como vocês faziam na hora de dormir? Como vocês se dividiam nos quartos?
R – Tinha um tanto de quarto lá em casa. Eu dormia com a minha irmã mais velha, a gente tinha nosso quarto. Depois a Marisa com a Amélia, que criou a gente. A gente tinha a Amélia, que era filha de uma escrava e que ficou com a gente. Então, Amélia era nossa mãe também, e a Marisa dormia com ela. A Marilda dormia em outro quarto com meu irmão. E as crianças dormiam no quarto dos fundos. E papai e mamãe no quarto deles. Então nunca teve problema assim de dormir. Cidade pequena, e tudo grande, então não tinha não.
P/1 – E vocês tinham alguma divisão de tarefas, os filhos?
R – Pequenos não. Pequenos não. Nós éramos crianças. Depois dos doze, quatorze anos, cada uma ajudava a limpar alguma coisa da casa, arrumava a cozinha, mas era tudo semanal, então nunca teve nenhum problema, nenhuma briga, nenhuma querendo tapear a outra.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse o nome dos seus avós, tanto por parte de pai, quanto de mãe.
R – Bom, parte do meu pai, o meu avô era Jacob Jundurian e minha avó, Eva Jundurian. Da parte da mamãe era Francisco Vi... Como chama o Tiradentes? Francisco da Silva Xavier. Então meu avô era Francisco Xavier da Silva. É o contrário (risos). E vovó é Maria Vitalina Fragoso. Então eram esses os nossos avós.
P/1 – A senhora chegou a conhecê-los?
R – Eu não conheci só meu avô da mamãe, pai da mamãe, vovô Chiquinho, eu não conheci. Ele tinha uma fábrica de cera... De velas de cera de abelha. Ele era conhecido, bem como as velas que ele fazia. E meu avô e minha avó armênios eu conheci. E vovó Mariquinha morava com a mamãe, então a gente morava junto com ela.
P/1 – E falando primeiro dos avós paternos, em que momento você ia para a casa deles?
R – Dos paternos? Quase nada. A gente, às vezes, ia chupar frutas na casa, no quintal, mas... Não vou falar. Posso pular essa parte?
P/1 – Pode.
R – Obrigada.
P/1 – Pode.
R – Então, não dá para falar. A gente, às vezes, ia roubar, pulava o quintal da minha avó para roubar manga dos outros, junto com o meu pai, o meu pai deixava.
P/1 – Dona Maireny, eu vou perguntando e a senhora vai me falando o que pode e o que não pode falar.
R – Tá.
P/1 – Mas eu vou perguntando, porque eu não sei, tá?
R – Sim. Lógico. Desculpa.
P/1 – Não, imagina. E se tiver mais alguma pergunta que eu fizer e a senhora não quiser responder, é só me falar: “Pula essa também”.
R – Tá bom. Tá bom.
P/1 – Para a gente não tem problema nenhum.
R – Sem problema.
P/1 – Sobre os seus avós paternos, a senhora vai me falando o limite, tá?
R – Paterno não pode pular, não?
P/1 – Pode pular. Tudo?
R – Acho que é melhor.
P/1 – Então tá. Não, então beleza. Então tá bom, vou pular tudo.
R – Não tenho nenhuma recordação boa.
P/1 – Então beleza. Então, da parte da mãe, que a senhora morou com a sua avó, eu queria que a senhora falasse um pouco da sua relação com ela. Como era?
R – Ela era uma pessoa muito bonita. Já estava velhinha, não sei que idade vovó tinha, a gente deitava com ela para rezar, toda noite a gente rezava, e ela já estava com a orelhinha bem... A cartilagem já tinha acabado, então a gente ficava dando... (risos). E vovó ria. A gente mexia no rosto, nas rugas dela, mexia no cabelo, desfiava o cabelo da vovó, então, era muito gostoso. E ela era uma pessoa de muito bom humor. Imagina, uma velha arretada, que andava de moto. Então, ela era uma pessoa gente boa. Mas logo depois vovó ficou doente e ficou com Alzheimer e a gente perdeu a vovó, porque ela só ia se lembrar das coisas dela passadas. Mas o tempo que a gente viveu junto, ela foi uma pessoa muito boa para nós. Ensinou a gente muita coisa: bordar, fazer tricô, tecer e brincar. Ela ensinava, a gente brincava de pique, ela brincava com a gente, pulava corda, todas essas coisas de criança. Então, foi muito bom. Muito bom. Vovó é brasileira, de Guaxupé, então a vidinha dela era sempre ali, mas bem, graças a Deus.
P/1 – Queria que a senhora falasse como eram esses momentos da reza.
R – Ela deitava na cama e chamava todas nós para a gente rezar com ela. Primeiro era: “Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém”. Aí vinha: “Salve rainha, mãe de Deus...”. Agora também não lembro. E rezava acho que umas três, quatro Aves Maria, e o Pai Nosso. “Boa noite, vovó. Boa noite, mamãe. Boa noite, papai. Boa noite, Amélia” – e a gente ia dormir. Éramos assim, comportadinhas. Também a gente brincava tanto durante o dia, que desmaiávamos à noite. Então era isso, mais ou menos.
P/1 – E a senhora chegou a acompanhá-la em algum atendimento?
R – Não. Não. Ela tinha consultório também lá em casa. Uma parte tinha o consultório. As pessoas iam lá tratar de dente, mas a gente era bem criança. Mas a mamãe conta que a gente pegava os doces que tinha e ia servir para todo mundo. Porque eles eram visitas, eles estavam lá na casa, então a gente dava doce (risos). A gente não sabia que tinha um comércio. Mas foi isso.
P/1 – E falando um pouco da comida da sua infância, a sua avó cozinhava?
R – Ah, não, eu não lembro não. Eu só me lembro de a Amélia cozinhar. A Amélia é quem fazia toda a comida - fazia o café da manhã, o almoço, o café da tarde e o jantar. Depois que a Amélia morreu, mamãe é quem ficou fazendo aquelas coisas de Minas, bolinho, bolo. Mamãe aprendeu a fazer algumas comidas árabes, que então ela fazia e eram ótimas. Quando mamãe fazia charuto, por exemplo, a gente disputava quem ganhava. Eu ganhei o prêmio, cheguei a comer sessenta e cinco. Não precisa levar susto, não. Sessenta e cinco, e não era pequenininho assim não, mas eu tinha que ganhar o prêmio. Não sei qual foi o prêmio, mas eu sei que ganhei um prêmio (risos). Era gostoso. Então, eram boas demais as nossas comidas. Também, oito filhos... Era muita coisa. E a gente sempre tinha amigo, levava amigo. Pior quando nós ficamos adolescentes, aí que foi. Porque aí mamãe fazia almoço e não... Principalmente quando mamãe fazia quibe, a gente chamava todo mundo da escola, professor, tudo para ir para casa comer. Chegava, era uma doideira. E mamãe sabia que era assim, então ela sempre fez muita comida. E a gente ia comer quibe cru, toda... Professor, o médico ginecologista da mamãe, ele namorava uma professora, e eu chamava a professora, ele ia junto. Foi médico de todas nós da família, então ele era muito querido, o Sílvio. Mamãe fazia quibe, chamava o doutor Sílvio para vir comer. Então, são recordações boas que a gente tem.
P/1 – E as filhas participavam desse momento de cozinhar?
R – Eu acho que não. Eu não me lembro de a gente olhando, não. A gente ajudava a mamãe a fazer, por exemplo, pamonha, goiabada. Doces. Tudo que era doce. Que ela não fazia pouca quantidade, ela fazia para o ano, para o ano inteiro. Então todos os... Goiabada, doce de leite, pé de moleque, tudo eram caixas assim de madeira que papai mandava fazer para guardar tudo. Então, era a parte que a gente participava, mas de comida nunca, nunca participou, nunca ajudou. Nem me lembro disso.
P/1 – E fora a parte da comida, o seu pai trazia algum tipo de costume por parte da família dele para dentro de casa? Algum tipo de festa ou...
R – Não. Não. Porque ele veio muito cedo e eles, literalmente, perderam a identidade. Porque só tinha meu avô e minha avó, então não tinha tempo para passar qualquer coisa. Às vezes contavam o que tinha acontecido. Também a lembrança era muito dolorida, então para que lembrar coisa triste? Mas a gente quando fazia almoço na minha avó, todas íamos, tudo. Juntava toda a família, mas quem fazia mais era a minha avó, ou a Amélia lá em casa, depois mamãe aprendeu a fazer também bastante comida árabe, aí mamãe passou a fazer e a Amélia fazia o trivial. E só o que eu sei, que eu lembro.
P/1 – Se a senhora puder, eu queria que a senhora contasse a história da Amélia.
R – A Amélia foi para a gente a mãe nossa, o pai, avó, o avô, o tio. Ela nasceu, eu acho que perto de casa, não sei, e a minha avó a pegou para criar e ela ficou cuidando da gente. Então, ela criou a gente como se fôssemos dela. Eu acho que eu estava com dezessete anos quando a Amélia morreu. E foi a primeira morte que a gente teve, foi muito doída, eu ainda tenho emoção, porque ela foi muito legal para nós. E o papai, em vez de dar dinheiro para a mamãe fazer compra, não, ele dava para a Amélia. E eu já fumava na época, que eu comecei a fumar com oito anos com as velhas... Minhas vizinhas tudo me ensinaram, eu fumava e pedia dinheiro para a Amélia para comprar cigarro, e a Amélia dava (risos). A gente fazia chantagem para ela dar. Mas ela era uma pessoa muito querida. Muito, muito, muito, muito. Então, a gente sentiu muito a perda dela. Ela que ensinou quase tudo para a gente, a Amélia. Mamãe era professora, então ela dava aula, não tinha tempo para a gente, e a Amélia tinha; então, a Amélia foi a nossa mãe, pai, avó, avô, tia, foi tudo para a gente.
P/1 – E tem alguma coisa que ela ensinou que tenha sido super marcante para vocês e que a senhora se lembra de alguma frase dela, alguma fala?
R – Não agora... Neste momento não lembro. Não lembro não. Mas a única coisa que eu tenho de lembrança, eu falei para a Amélia quando ela morreu, que eu teria uma filha e chamaria Amélia. E hoje minha filha - a outra filha - se chama Maria Amélia, por causa dela. Foi isso.
P/1 – Se a senhora puder contar o que aconteceu com ela, por que ela faleceu.
R – Tem muitos anos. Deixe-me pensar quantos anos. Não sei. Eu estava entrando na Faculdade, eu devia ter dezessete anos. É, por aí. Dezessete. Eu acho que foi... Espera aí, deixe-me lembrar como chama, como chama, como chama... Eu acho que foi um câncer que não durou um mês... Qual era o câncer? De onde? Não era bexiga...
R/2 – Pâncreas.
R – Pâncreas. Obrigada. Foi no pâncreas. Então ela não aguentou e foi embora. Foram dezessete anos com a Amélia, foram muitos anos de vida. Só isso.
P/1 – E ainda sobre a casa dessa infância, eu queria que a senhora fizesse um exercício de contar para a gente como era essa casa fisicamente, desde a entrada. Que recordação a senhora tem, onde as coisas ficavam?
R – Bom, era casa de... Não era avançada, então era direto na rua, onde tinha um portão de madeira, um pequeno jardim, tinha algumas plantas, que tinha begônia, tinha outra plantinha, que era... Como chama? Trepadeira. Era aquela de cachinho rosinha, bonitinha, bem miúda. A gente entrava na porta, tinha um quartinho, que era o consultório da vovó, de dentista, que tinha uma sala. Aí tinha os quartos: um, dois, três, quatro, acho que quatro quartos. Tinha o banheiro, a gente descia uma escada, era uma copa e cozinha. Depois um quintalzão. Acho que era isso.
P/1 – O que tinha nesse quintal?
R – Manga, goiaba, jabuticaba, abacate, uva - tinha parreira. E até hoje tem a cisterna. Ainda tem a casa, mas a gente reformou. A casa continua nossa lá em Guaxupé, mas sem nada mais, não tem nada de característica. Que se tiver, algum móvel dos antigos. Ah, era gostoso. Tinha pé de limão também. Tinha galinheiro. Era uma casa de interior mineiro.
P/1 – E as galinhas, vocês ajudavam a cuidar? Tem alguma recordação da...
R – Eu sei que tinha, mas não tenho nenhuma. Não lembro nem um pingo de a gente cuidar de qualquer coisa.
P/1 – E a sua avó participava desse dia a dia de falar dos dentes de vocês? Como era esse cuidado com o dente?
R – Ela mandava a gente escovar os dentes todo dia, ainda vinha ver se a gente tinha escovado. Ela cuidava bem da gente. Eu não sei por quê, minha avó me pôs um dentinho de ouro, eu era a menina do dentinho de ouro. Eu o tenho até hoje (risos). Eu era chamada de dentinho de ouro. O bispo de Guaxupé, quando eu ia à igreja, ele ficava: “Oi, dentinho de ouro”. Todo mundo sabia quem eu era por causa do dentinho de ouro. Era chique (risos).
P/1 – E como foi isso? Por que ela fez isso?
R – Porque ela mexia com ouro para fazer os dentes, então ela tinha ouro. Ela fez um anel. A Mariana tem um anel que ela fez. Eu dei para Mariana de presente. Lindíssimo o anel que ela fez. Ela mexia também assim. Fazia, decerto, alguns artesanatosinhos de ouro.
P/1 – Em que momentos que a família - ainda pensando nessa infância - em que momentos que a família toda ficava reunida? Quais eram os eventos que reuniam a família? A família toda, eu digo, com todos os filhos, o pai, a mãe e a avó.
R – Ah, não, todo dia a gente se reunia. Almoçava, jantava, isso todo dia. Mamãe e papai não deixavam a gente sair de casa sem almoçar, sem jantar. E o tempo inteiro tinha que ser todo mundo junto para conversar, rir, ou tomar bronca também. A gente tomava bronca. Mais da minha mãe, do papai não. Mas também o dia que ele pegava, que ele ficava bravo, era ruim (risos). Uma história gostosinha do meu pai... Do me pai não, da mamãe, no dia em que mamãe morreu. Pode ser? Mamãe morreu com Alzheimer, viveu dezesseis anos com Alzheimer, nunca a gente a deixou dormir sozinha, sem uma das filhas. E dormia com a moça que cuidava da mamãe, com a cuidadora, e uma de nós. Mamãe morreu, eu já morava aqui em São Paulo, fui para casa, para Guaxupé, e estamos lá no velório, eu me levantei do velório, fui para fora para fumar e fiquei olhando para o cemitério, que era em frente, aí olhei para o papai: “Papai”. Ele olhou: “O que foi?” “Papai, o senhor pode ficar feliz, que a sua mulher não vai pular a cerca, é cerca elétrica”. Todo mundo riu, que distraí todo mundo (risos). Pronto. Lá em casa a gente é assim. Até hoje a gente é assim uma com a outra. Nós irmãs somos... Uma briga com a outra, isso faz parte da nossa vida. Primeiro de abril, sai de perto, porque ninguém aguenta. Então, são coisas que a gente vai fazendo. Primeiro de abril, eu dava aula aqui, todo primeiro de abril as crianças tinham prova de Matemática: “Mas, professora, você não marcou”. “Problema de vocês”. Passava, entregava de novo: primeiro de abril. Queriam me matar. Sempre passei primeiro de abril. Eu gosto de brincar muito. Sou brava, muito brava, mas também eu brinco muito.
P/1 – Ainda para quase finalizar a parte da infância, eu queria saber se tinha alguma festa que era super esperada no ano.
R – Acho que era Natal, assim, para a gente ganhar presente. Acho que era Natal. Não tinha Dia da Criança. Não sei. Mais era o Natal que a gente esperava. Porque a gente tinha muito brinquedo, então tirava todos os brinquedos, era o dia que a gente podia brincar com todo mundo, todos os nossos brinquedos. Imagina oito, se tivesse, quantas bonecas, o que ia dar? Cama, casinha, tudo. Então era só dia de Natal que papai e mamãe punham tudo para a gente brincar. Mas festa... A gente fazia festa o tempo inteiro, então não tinha... Nada disso representou para mim. Querendo ou não, a gente brincava, o almoço se transformava em festa, em risada e pronto. Então não... Uma coisa eu sei: que a gente foi muito feliz quando criança. Fomos bem felizes. Tivemos uma infância bem bonita.
P/1 – E a senhora tem recordação dos primeiros dias de aula, na escola, de a senhora indo?
R – No primário?
P/1 – Qual a memória mais antiga que a senhora tem da época da escola?
R – Talvez o primeiro ano, que era uma professora muito brava. Ela apontava os lápis com a pontinha fininha, e se alguém falasse, ela vinha e enfiava o lápis com a ponta na nossa cabeça. Não, isso aqui não está fininho. Ela: “Fulano”. Então todo mundo era quietinho. Juro que era. Oh, você não é dos anos 50, 60 (risos). Então, era assim. Mas eu nunca tomei lapisada na cabeça não, eu era quietinha.
P/1 – Qual era essa escola, a primeira que a senhora…?
R – Grupo Escolar Barão de Guaxupé. Depois tinha vários grupos, mas era o mais perto de casa, então a gente... Quase todas nós estudamos no Barão. Tinha briga com o outro colégio, Delfin; depois tinha briga com o colégio em que mamãe era professora lá. Mas a gente era do Grupo Barão. Não tenho o que falar, foi muito bom. Depois, fomos para o ginásio, estadual, nunca... Eu pelo menos nunca fui para colégio particular, sempre no estado, e foi aí que começou a minha vida de malandra, sem vergonha, de roubar prova, fazer tudo que tinha direito.
P/1 – Vocês nunca estudaram na escola em que a sua mãe dava aula?
R – Nós, filhos mais velhos, não. Deixe-me ver. Não. Não. Nenhuma. Mamãe dava aula num grupo pertinho de casa, mas a gente estava acostumado em outro colégio, então a mamãe quis pôr todos nós, juntos, na mesma escola.
P/1 – E, Maireny, como era acompanhar as gravidezes que a sua mãe teve? Porque a senhora é a segunda, não é?
R – Sou a segunda.
P/1 – Como foi acompanhar cada nova gestação da sua mãe? Tem recordação?
R – Não lembro. Mamãe contava para a gente que quando a minha irmã... Depois de mim, nasceu a Marisa... Ela devia estar com um mês, a mamãe procurava a Marisa e não achava, a Marisa sumiu do berço e a mamãe procurou, procurou e não achou, perguntou para mim e para Marli: “Não, mamãe, não sei”. A gente era dois anos, três anos, dois anos... A Marisa é um ano e pouquinho mais nova que eu. A gente a pegou do berço e jogou debaixo da cama. Então, a única coisa que a mamãe contou que a gente fez, mas não sei se é verdade (risos).
P/1 – E, Maireny, nessa cabeça de criança ainda, o que a menina Maireny queria ser quando crescesse?
R – Professora. E sou. Eu sempre quis ser e fiz o que eu queria ser. Não tinha... Acho que é por causa da mamãe. Mamãe era professora, então acho que todas, quase todas as minhas irmãs fomos professoras. Cada uma seguiu uma carreira. Marli foi para Letras; eu fui para Matemática; a Marisa, Ciências Biológicas; a Marilda não estudou, Carlos Alberto não estudou, não quiseram. A Márcia foi para Educação Física, a Marília é engenheira e a Maíra é dentista. Então, cada uma seguiu o que quis, não teve influência nenhuma, papai não reclamou, não queria tal profissão... Ele só não queria que as filhas saíssem de Guaxupé.
P/1 – E entrando nessa parte da adolescência, a sua mãe conversava com você a respeito das mudanças no corpo?
R – Não. Não. Existia um tabu muito grande. Mamãe era muito pudica, então ela não... Era o oposto da gente, a mamãe. Nenhuma, graças a Deus, puxou a ela (risos). Então mamãe não conversava, acho que ela tinha medo, vergonha e tudo. Acho que a gente tem que respeitar, que era o período de época. Minha mãe às vezes me batia, às vezes não, mas foi o que ela aprendeu, eu não posso questionar, não tem o que fazer. Nunca bati nas minhas filhas, mas eu aprendi. Mas ela não sabia, eu acho. Ela sofreu, porque a gente fugia muito de casa para ver os mocinhos, e tal. Então, mamãe tinha que ter muita responsabilidade, achava que tinha que tratar a gente assim. Se não tivesse tratado, sei lá o que teria acontecido.
P/1 – Mas como foi entender o que estava acontecendo com o corpo da senhora? Com quem a senhora conversava sobre isso?
R – Com a minha irmã mais velha e com as amiguinhas, então era um troca-troca. Quando a minha irmã, a quarta, menstruou a primeira vez, ela começou a chorar. Eu cheguei: “Marilda, o que foi?” “Olha, Maireny, o que aconteceu”. E me mostrou. “Oh, você está com câncer”. (risos). Foi a única coisa. Ela chorava. Gente, eu sou santa (risos).
P/1 – (risos) E a sua irmã?
R – Coitadinha, ela chorou tanto. A outra, a mais velha, falou: “Marilda, vem cá, vamos lá com a mamãe, você conversa com a mamãe”. Essa sofreu muito.
P/1 – Dona Maireny, então ainda nesse assunto sobre adolescência, eu queria saber como foi com a senhora a primeira vez de ficar menstruada.
R – Ah, eu também não lembro não, menina. Eu já estou com sessenta e oito, poxa, não sei. Eu sei que fiquei menstruada. A Marli talvez tenha contado à Amélia. Não sei. Não sei. Não tenho lembrança. A gente tinhas as amigas, deve ter sido essas coisas. Mamãe não foi. Por mamãe não foi. Deve ter sido as amigas, a Marli, sei lá, a Amélia. Sei não.
P/1 – E tinha alguma recomendação para esse período? Não poder fazer alguma coisa, ou...
R – Não. Era bem cidadezinha, mas também... Lá na Bahia, até hoje tem algumas crendices disso, que não pode lavar a cabeça, não pode... Tem cada coisa, que você fala: “Gente, não acredito”. E ainda existe em muitos lugares. Mas a gente não teve não. Nada que eu lembre assim de... Não sei. Só Deus é que sabe. Eu estou esquecendo muito. Não sei se é por causa dessa infecção, eu não lembro muita coisa, eu vou perdendo lapsos de memória. Eu fui tratada, no mês de novembro, só com morfina. Então eu não sei. De repente, eu falo alguma coisa, mas não sei o que eu falei.
P/1 – Não tem problema. Para a gente não tem problema nenhum.
R – Às vezes eu não lembro. E, de repente, pode vir - não sei.
P/1 – E se, de repente vier, e a senhora quiser voltar alguma coisa, não tem problema nenhum também, tá?
R – Sim. Sim, senhora.
P/1 – Bom, nesse período da adolescência, o que vocês faziam para se divertir? Quais eram as programações para os jovens?
R – A gente tinha baile da jovem guarda todo sábado e todo domingo, mas papai não deixava a gente ir, porque ele tratava a gente a sete chaves. E a gente fugia para ir. Então, era só fugindo para passear. Corria, voltava, corria, voltava. Mas também paquerava os moços bonitos, íamos para a avenida passear. E isso foram quatro, cinco, seis anos, sei lá como foi, da adolescência até chegar a adulto. Fiz Faculdade, vim embora morar em São Paulo, aí você começa a ter outro tipo de responsabilidade. Mas sempre brincando com as pessoas, brincando o tempo inteiro.
P/1 – Mas eu fiquei interessada em saber como eram essas fugas. Como vocês se organizavam? Quem ia? Como era?
R – Não, mas éramos eu e a minha irmã mais velha, com as duas filhas do Estevinho. Depois tinha as duas filhas do “seu” Moacir também, que eram do professor de Física, e tinha mais duas filhas do diretor da escola - a
ngela e a Carmem. Então a gente marcava de se encontrar na catedral. Da catedral, a gente ia para a avenida. Ou roubava o carro de uma e a gente ia fazer arte na rua, passar a mão na bunda dos homens, fazer coisas assim, coisinhas simples, que não teve problema nenhum. As minhas filhas não fizeram nada do que nós já fizemos na vida. Mariana, principalmente, é uma tonta. O que eu posso fazer?
P/1 – Vocês pulavam pela janela?
R – Não. Não. “Mãe, nós vamos à casa do Estevinho.” Do Estevinho, as meninas: “Mãe, nós vamos à casa do Simone”. Então era assim, uma ia para a casa da outra, e íamos. Uma vez só que nós pulamos. Papai estava viajando, a gente pulou o muro. Não sei por quê, eu peguei uma lata, comecei a jogar, aí minha irmã Marilda, tonta, começou a gritar, mamãe saiu gritando socorro para os... Chamou a polícia. Foi um problema seriíssimo. Eu e a Marli ali, aí a gente batia na janela assim, mamãe falava: “Seu pai vai chegar amanhã, vocês vão ver a surra”. Não tomamos nenhuma.
P/1 – E as primeiras paixões?
R – Que saudade. Foi tão bom. Foi. Passou bonitinha. Mas o meu pai e minha mãe não deixavam a gente... A gente era muito nova. E eu tinha medo de apanhar, porque eu que apanhava mais, não sei por quê. Eles me batiam mais - em mim e no meu irmão. Então, se eles falavam: “Não é para fazer” – eu não fazia. E eu era meio que a líder, então dava problema. Mas foram paixões gostosas. Mas papai e mamãe não deixavam, eu tinha medo de apanhar, não ia. A Marisa e a Marli iam e apanhavam quase que toda noite, então eu não apanhava. Às vezes, eu apanhava porque eu não contava para o papai e para a mamãe. Também tinha isso. Eu não fazia, mas levava. Então não sei o que era bom. Mas teve algumas paixões gostosas, bonitas. Mas várias das minhas paixões já foram embora, inclusive meu marido. Tchau. Foi-se. Mas foi muito bom.
P/1 – Mas dessas primeiras, ainda tem alguma especial que dá para contar para a gente como foi viver essa paixão, como era?
R – Não. Não. Nada de interessante, não. Eram aquelas coisinhas. A gente era muito boba. A gente era criança. A gente era moleca, não era mulher para se apaixonar. Então era brincadeira mesmo, coisa assim. E papai e mamãe não deixavam mesmo, tinham medo de a gente... Aí, tinha os irmãos do papai que cuidavam da gente quando a gente saía. Então, era muito rígido. E foi. Não teve nada que... Mas a minha maior paixão foi o pai da Mariana. Eu já estava velha, com vinte e cinco, e a gente se conheceu, conheceu e casou em oito meses e quatro dias. Papai e mamãe foram conhecer a minha sogra e o meu sogro no dia do meu casamento. Queriam morrer. Papai, na noite, falava: “Filha, toma, vai para a Europa. Toma um carro”. “Não, papai, eu vou me casar”. Mas me casei e vivemos quarenta anos. Ele quis ir embora antes, foi. Faz parte da vida.
P/1 – Podemos falar sobre ele, ou a gente volta para essa cronologia de Faculdade? Tem alguma preferência?
R – Falar sobre ele quem? O marido?
P/1 – Sim.
R – Não. Eu acho que não. Deixa. Foi. Amei de paixão, talvez eu chore, e eu não quero.
P/1 – Então vamos começar falando da Faculdade e a gente sente esse... Pode ser?
R – Pode. Pode.
P/1 – Então... Ainda nessa parte da adolescência, dona Maireny, como você se programava para o futuro? Quais eram os planos feitos? O que você planejava para...
R – Eu ia ser professora e só. Não tinha nenhuma... Gente, a gente morava tipo numa roça. Não tinha coisas assim. Teve, teve baile de debutantes, a gente participou, tal, mas era um negocinho tão pequenininho que as aspirações, as coisas nossas não eram diferentes de quem morava numa Capital ou numa cidade bem maior, a gente estava satisfeito com o que a gente tinha. A gente tinha comida, roupa lavada, estudava, aprontava fazendo brincadeiras. Porque a gente fazia brincadeiras, não era nada de prejudicar uma pessoa ou outra, a gente descobria se você tinha medo de rato, eu punha rato para chegar a você. Chegou agora, agora esse ano que passou, eu vindo para cá, para São Paulo, de Minas, entrei no ônibus, tinha uma moça, eu falei: “Nossa, Irene”. Ela olhou para mim, falou: “Você é a Maireny?”. Eu falei: “Sou”. “Você me pôs um sapo na minha carteira, você lembra?”. Falei: “Lembro”. A gente estava a fim de fazer só esse tipo de brincadeira. Paquerávamos, mas eu, por exemplo, tinha medo de apanhar, então não paquerava; porque papai e mamãe não deixavam. Mas a Marli e as outras paqueravam. Eu não. Não tinha problema. Eu queria fazer bagunça. Então fazia muita bagunça na Faculdade... Faculdade não, no colegial. Na Faculdade também fiz bastante. Eu não era flor que se cheirasse não, sabe? Eu só tenho carinha boazinha, mas eu pintava muito. Então, a gente... Acho que papai e... Papai mais, educou a gente para brincar, levar a vida mais leve. E o que a gente sempre levou. Todas. A gente estudou, eu fiz Faculdade de Matemática, cada uma foi para um lado, mas sem querer muito, porque não tínhamos a ambição daqui. A gente não tinha... As lojas que tinha lá eram aquelas lojas, então a gente tinha que estar satisfeita com aquilo. É diferente hoje das minhas filhas como eu eduquei, como elas hoje... Maria Amélia educa a filha dela. Então, são momentos de histórias. Eu acho que foi bom. Eu fiz Normal, estudava à noite e fazia científico de manhã, então eu fazia os dois cursos. E coitado do pessoal da noite, onde eu fazia o Normal. Éramos cinco mulheres que estudavam à noite, seriam as filhinhas de papai que
não tinha o que fazer, então a gente não trabalhava, a gente nunca precisou trabalhar. A gente estudava de manhã para científico, e à noite, porque os nossos pais queriam que a gente tivesse um diploma, porque o científico, na época, não era diploma. E o Normal, porque queria ser professora. A gente fazia, mas também tinha o científico, que é onde tinha os moleques. Então, era a coisa melhor do mundo. E, à noite, o pessoal era muito mais simples, tinha que trabalhar, vinha do trabalho para estudar. E eu meio que mandava: “Ninguém vai ter aula”. Eu desaparafusava lâmpada, eu fazia essas coisas... “e quem vai, eu pego na esquina”. Nunca peguei ninguém na esquina, tá? Mas eu falava. Então era para brincar. Éramos molecas. Política também, a gente... Eu me lembro de o papai ler o Estadão, porque ele sempre foi assinante do Estadão, mas não tínhamos com quem discutir, era época da recessão, então também não podia abrir a boca. Depois que eu vim para São Paulo é que foi mudando a minha vida.
P/1 – Então... E em que momento se deu essa escolha pela Matemática?
R – Acho que foi no colegial, no científico. Porque aí você começa a ver a Matemática gostosa. A Álgebra então... Aí eu fui para essa área. Fui eu e uma amiga, que nós somos amigas até hoje, desde um ano de idade, até hoje a gente é amiga. E ela sentava aqui, eu sentava aqui, nós estávamos numa aula, um professor chegou e pediu para cada uma levantar, falar quem era, de onde era e o que fazia. A Lígia levantou: “Lígia Maria Ribeiro Calique, de Guaxupé. Não faço nada”. Pum. Levanto eu: “Maireny Jundurian, de Guaxupé. Ajudo ela”.
P/1 – (risos).
R – Na Faculdade então, imagina! Depois outra vez, numa aula de Cálculo, o professor ensinando alguma coisa, que eu não lembro qual era a matéria, aí tinha arranjo, permutação e combinação, estava explicando. Eu levantei assim, como uma tímida, e ele era um padre: “Irmão, eu entendi tudo, eu só não entendi quando eu uso combinação”. O coitado foi me explicar tudo, eu tive que ficar ouvindo, e a classe toda rindo, dando gargalhada, não sei por quê. E o coitado, burro, não pegou a malícia (risos). É muito difícil, sabe, ser... O tempo inteiro tudo é brincadeira para a gente. A freira... Tinha as freiras do colégio lá de Guaxupé, ela era professora minha de Português, na Faculdade, porque o primeiro semestre a gente fazia tudo igual. E eu nunca me dei bem, não é que... Como eu ia bajular uma freira. Porque eu bajulava, os homens eu sabia, as professoras também, mas uma freira, eu nunca tinha tido convivência. Eu fui, um dia, para a frente, conversando com ela e fui arrancando os alfinetinhos tudo dela aqui. Na hora em que ela levantou, caiu. Porque eu queria saber se ela era careca; falavam que ela era careca. Essa mulher quase me matou, a Sor. Sor Encarnação.
P/1 – E ela era careca?
R – Não. Ela tinha cabelo (risos).
P/1 – (risos).
R – Eu morria de curiosidade. Como eu ia fazer? Eu fui tirando. Fazia carinho nela e tirava, ora bolas. E vi que não era. Falei: “A senhora não é careca, não é, Sor?”. Gente, é muita brincadeira.
P/1 – E ainda nessa parte dos estudos, como foi receber a notícia de que tinha passado na Faculdade?
R – Ah, mas eu passei numa Faculdade de Guaxupé. Ah, que é isso? Você era inteligente para lá. O nível meu era de inteligência, nada de... Uma cidade, desculpa, gente, mas não era uma USP. Então, fiquei feliz. Feliz. Nem lembro se a gente fez calouro. Não lembro, não. Talvez tenha passado batido isso. Mas quisera eu, papai deixar a gente vir para cá, estudar aqui. Mas papai não deixava. Só depois que a gente se formou, que já éramos maiores, aí ele deixou. Deixou nada, a gente veio. Veio morar aqui, para trabalhar aqui. Então eu comecei minha carreira aqui de professora. E andei aí por São Paulo sendo professora de Matemática. Mas como se deu essa decisão de querer vir para São Paulo?
Papai tinha apartamento aqui, então a gente já tinha uma boa andada, uma caminhada boa, não saber onde morar ou não, a gente já tinha um apartamento. E lá em Guaxupé não tinha onde trabalhar. Aí viemos, eu e minha irmã, a menor que eu. Papai deixou a gente... E viemos trabalhar aqui e aqui ficamos. E formamos a vida. Daqui eu saí, fui embora morar na Bahia, depois de uns anos aí.
P/1 – Mas ainda aqui em São Paulo, como foi esse começo de vida em São Paulo? Qual era a impressão da cidade? Como foi...
R – Tudo muito grande. Era muito doido. Mas a gente vinha muito, porque todas as férias a gente vinha a São Paulo. Como papai tinha o apartamento, a gente vinha. Então, São Paulo nunca foi aquele mistério, porque a gente já desde pequena convivia aqui. E foi a consequência, fomos trabalhar, já éramos adultas e viemos para cá para trabalhar. Eu fui, trabalhei o primeiro ano, acho que o primeiro ano em Franco da Rocha, que eu não conhecia nada, depois larguei e vim e fiquei para cá, para São Paulo mesmo. Dei aula nas Perdizes, ali na Padre João... João Ramalho, Miss Browne. Depois fui para a Prefeitura, no Bonfiglioli. Terminei com o meu... Aqui no Hugo Sarmento, aqui em cima, na Vila Madalena também, eu acho, eu não sei se é Pinheiros, ou Alto de Pinheiros, o que vem a ser. E foi muito bom. E lá na Bahia também eu dei aula. Na Bahia foi legal, porque lá você chega, qualquer pessoa que chega, como tem uma carência, uma vilinha pequena, qualquer um pode ser professor. Mas não tem a didática, não sabe nada. Uma pessoa que fez, sei lá, um curso qualquer, pode dar aula de Inglês. Ele aprendeu a falar Inglês, mas ele não tem o curso, mas lá ele pode dar aula, porque não tem ninguém que fale, então tem que dar aula. E o meu... Eu fui uma das primeiras professoras de Matemática lá. Então, foi muito bonito, as crianças, de repente, passaram a gostar de Matemática, porque é uma coisa bonita. Você tem que saber gostar, você tem que gostar, e eu gostava. Então eu ensinei. E todo mundo vibrava, porque eles não faltavam mais à aula. Eu dava aula na praia, todo mundo sentado, escrevendo. Era tão bonito, tão gostoso. Era uma coisa bonita, sabe? As crianças tinham dificuldade? Tinham muita dificuldade. Mas você tem alguns macetes que você pode ensinar. Como uma pessoa que fez o quê, por exemplo... Quem dava aula de Matemática? Pessoas que não tinham feito curso nenhum, então não tinham didática, não sabiam de onde vinha. Então, de repente, você vai ensinando a descobrir que Matemática não é um horror, é delícia, uma beleza. Então, uma vez eu estava dando aula na praia, tinha um bar, e as crianças todas sentadas. E eu dando aula. Eles eram uma turma da sétima série e eu estava dando fatoração. Só que não tinha onde escrever, eu falava: “Primeiro caso...” – explicava e dava um exemplo. “Vocês entenderam?” “Entendemos.” E foi. E tinha pessoas ouvindo, porque eles iam ver como aquela louca... Porque eu sempre fui tida muito como louca lá, porque eu faço sempre. E todo mundo comportado, bonitinho, me assistindo. Teve uma mulher de Belo Horizonte, uma turista, olhou para mim, falou assim: “Escuta, você sabe se eles estão entendendo?”. Eu falei: “Eu não sei, pergunta para eles”. Ela perguntou. Ela era uma administradora de empresa, uma empresária, perguntou: “Vocês sabem o que ela está falando?” “Sabemos. Ela está falando isso, isso, isso”. Ela saiu assim e até hoje ela vem e me beija e abraça, fala assim: “Você foi f..., mulher”. Falei palavrão (risos).
P/1 – Então voltando, a senhora estava contando de quando estava dando aula na praia.
R – Isso. Então... Eu acho que foi um dos períodos mais bonitos que eu tive, porque estava num lugar em que ninguém conhecia Matemática, coitadinhos, e eles foram aprendendo e gostaram. Mas eu resolvi que não queria mais dar aula, aí eu larguei. Mas sempre ajudava lá, as crianças vinham atrás de mim, e querer entender. E todo dia - eu aprendi isso aqui em São Paulo, na escola em que eu dei aula - eu brincava todo dia, todo mundo tinha que pôr as mãos aqui em cima na carteira, e os pés tinham que ficar retinhos, sem mexer, e eu ficava dando conta para eles, somando, diminuindo, dividindo, multiplicando, e tinha que dar um número. Uns dez números você falava: dois mais três, aí eles tinham que fazer de cabeça, não podiam usar a mão. E eu tinha que ver a mão, porque eu sabia que eles não estavam pensando nisso. Porque eles nunca tinham feito. E isso eu fiz durante o tempo em que eu dei aula. E tinha dia que eu esquecia: “Professora, você não vai fazer as continhas?”. Então, eles foram começando a gostar da Matemática. E, por incrível que pareça, essa turma da sétima série, que eu estava lá na beira da praia, todos foram estudar fora, fizeram Medicina, Engenharia, Engenharia de Petróleo. As meninas e os meninos todos saíram, voaram. Acho que foi muito bonito, eles precisavam de alguém que os ensinassem a viajar pelo mundo. E eu ensinei esse mundo para eles, foi muito bonito. Bonito. Bonito. Até hoje - já estão formados - todos vêm me beijar e me agradecer por ter aprendido a pensar em alguma coisa. Então, para mim, foi uma das coisas melhores que a Bahia me trouxe foi esse período em que eu fui ensinar...
Dar aula de Matemática para as crianças.
P/1 – Eu queria voltar um pouco. Eu queria entender por que Bahia. Como se deu essa escolha?
R – Eu trabalhava aqui, a gente tinha... Meu marido trabalhava com artes gráficas e eu fiquei doente, eu peguei uma hepatite, que na época foi titulada não A, não B, eu fui um dos primeiros casos a ter hepatite C. Eu tinha feito uma cirurgia e uma transfusão, e a transfusão me trouxe a hepatite C. E eu fui ficando muito mal e larguei de dar aula. E fomos mudar de vida, mudamos para a Bahia, para uma vilinha. A gente foi passar o Natal, o Ano lá, para Porto Seguro. Era um Guarujá menor, mas era um Guarujá cheio, aquele movimento, aquela música axé tocando, que ninguém aguentava. A gente saiu de lá e foi conhecendo, descendo o litoral e foi conhecendo as praias. E a gente estava no Prado e o dono da pousada virou assim: “Por que vocês não vão a Cumuruxatiba, que lá é a cara de vocês?”. E a gente foi e pirou. Acho que levamos de janeiro a dezembro, a gente já fez a mudança e fomos embora morar lá. Então, a Maria Amélia fez a quarta série primária - acho que a quarta - e a Mariana foi fazer o primeiro ano dela lá. Ela saiu daqui para fazer o primeiro ano lá. Então, foi uma diferença muito grande. E elas eram as melhores alunas. Porque as crianças, coitadinhas, eles não punham para pensar. E com as meninas, começou a evoluir, começou a chegar gente de cabeça. Começou a evoluir, melhorar. Dali de Cumuru, a gente ficou acho que dois anos, fomos para Ilhéus para elas estudarem numa escola que tivesse mais conhecimento. Ficamos morando em Ilhéus, mas com as coisas lá em Cumuru. Terminou, veio a época da Faculdade da Mel, e a gente se mudou para Vitória, porque todo mundo da classe da Mel foi para Salvador, e a gente não tinha nenhuma ligação com Salvador, não representava nada, e estava a mil quilômetros de Cumuru. Aí, a gente foi para Vitória, achou bonitinho, fomos para lá. Maria Amélia prestou vestibular, passou na Federal, e Mariana passou na Federal, na técnica, na Escola Técnica Federal. Aí, eu e Corá voltamos para São Paulo e elas ficaram morando lá sozinhas. Depois elas vieram para cá, aí voltamos a ficar juntos novamente. Mel transferiu para cá e Mariana não. Você conheceu a Mariana agora - faz pouco tempo - não é da turma da Mel, que é grande, a turma daqui de São Paulo.
P/1 – E lá em Cumuru, como vocês foram acolhidos? Vocês chegaram e o que fez vocês falarem: “Não, a gente tem que ficar mesmo”?
R – Ah, era encantador. Porque eu estava doente, estava meio que com os dias contados, e aí vamos mudar para ter uma vida melhor. E a gente mudou. Daí eu fui para lá, fui melhorando, tomei injeção, tomei quimioterapia, e sarei. Eu zerei. Da época, eu sou uma das poucas que zerou. Tanto que, quando eu vinha para São Paulo - eu fazia tratamento aqui nas Clínicas - e a minha médica pedia para eu conversar com todo mundo, eu fazia palestra pela minha garra, que eu tive de sarar e sarei. Então, ela sempre queria que eu passasse para os novos a vontade de viver. Aí, a gente resolveu mudar para lá, era um lugar de paz. E essa brincadeira já tem vinte e oito anos que a gente está lá. A Bahia é um encanto, mas agora para mim já está deixando de ser, porque se você fica doente, você não tem como. Você vir para São Paulo, você leva, pelo menos, para chegar até Porto Seguro, você leva seis horas, é muita coisa. Então, com essa minha... Porque eu tive uma infecção, eu estou desde novembro sofrendo. Então eu tive que vir para São Paulo para resolver isso. O negócio tem que ser mais perto de São Paulo, ou uma cidade que tenha aeroporto, que é o melhor.
P/1 – E, dona Maireny, se a senhora se sentir confortável de contar para a gente, nessa etapa anterior, o que aconteceu com a senhora para que a senhora precisasse receber a transfusão?
R – Ah, eu fiz cirurgia plástica. Não foi nada de doença, foi coisa para o meu bem-estar. Então fiz. Na época, era muito demorada, então precisava. E eu tinha tirado o meu sangue, não deram o meu sangue, deram um sangue contaminado, foi onde eu me contaminei. E então vamos deixar, vamos deixar a vida, vamos aproveitar enquanto a gente pode. Foi aí que a gente resolveu mudar. E agora meio que... O quê, uns quinze anos? A gente voltou, sempre teve uma casa aqui, e fomos. Eu ficava mais lá, no verão todo eu ficava, julho eu ficava. Como a gente tem negócios lá, eu e Corá íamos para lá, ficávamos sempre lá. E até que ele ficou doente, morreu e foi embora. Mas está lá. Está enterrado lá. As cinzas estão lá. E eu tive que ir daqui para cuidar das coisas. E é uma dificuldade, porque a Bahia é um estado muito machista, uma mulher não pode, em momento nenhum, mandar. Então como eu fiquei viúva, eles poderiam invadir a minha casa, sempre roubavam quando eu saía, ou invadiam a fazenda que a gente tem lá, qualquer coisa, aí eu fui para lá. Mas estou pensando agora em sair de lá. Gosto muito, tudo, adoro, mas acho que agora é outro momento, não dá para ficar mais.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse como conheceu seu esposo.
R – Eu dava aula aqui em São Paulo e, na época, a gente tinha férias dois meses, era diferente de hoje. Então eu fiz primeiro o Brasil todo, eu conheço todo o Brasil. Enquanto eu morava aqui, eu ia viajar para conhecer. E numa dessas, eu estava em Fortaleza, eu o conheci. E a gente se apaixonou e se casou. Eu falei que eu me casei em oito meses e quatro dias. E foi. Ele estava morando em Fortaleza, eu fui visitar uma amiga, e foi amor à primeira vista. E Pedro Álvares Cabral descobriu.
P/1 – Mas onde vocês se conheceram?
R – Mais ou menos o quê?
P/1 – Onde vocês se conheceram? Qual foi a situação?
R – Eu tinha uma amiga lá em Fortaleza e ele estava morando com a amiga. As coisas quando têm que ser, são. Eu sabia dele, o conhecia de histórias, e ele sabia de mim, também de histórias. Mas não eram... Era amigo do amigo que conhecia... Foi interessante, porque eu sabia toda a história do Corá, o que ele fazia aqui em São Paulo - ele viveu fora - toda a história dele. E ele também sabia toda a minha história. E, um dia, a gente se encontrou em Fortaleza. E ficamos juntos e pronto.
P/1 – Mas por que essas histórias de vocês eram compartilhadas?
R – Amigos em comum. Por exemplo, eu morava com uma amiga de Bauru, o Corá era de Bauru. E ela foi da turma da escola do Corá, então ela sabia quem era... Às vezes ia contar alguma coisa, falava: “O Corá, que é o fulano, tal, não sei o quê”. Eu já sabia da existência. E a mesma coisa, os amigos do Corá, tinha alguns que me conheciam. Mas nunca se falou para mim do Corá e nem... Foi coincidência. E a gente ficou. Ficou junto esse tempo.
P/1 – Se a senhora puder compartilhar um pouco sobre a origem dele.
R – Ele é de origem italiana. Tanto que no ano passado a gente foi para a Itália, as meninas conseguiram o passaporte italiano por causa do pai. Eu não consegui nada, porque como ele morreu, cessa o parentesco meu com ele. Então quem tem direito são só as meninas. Mas o pai e a mãe dele eram filhos de italianos mesmo. O que mais? Ele era de Bauru, mas vivia para o mundo. E eu também era do mundo, eu gostava de viajar muito.
P/1 – Vocês se casaram aqui em São Paulo?
R – Em Guaxupé.
P/1 – Guaxupé?
R – É. Você nunca viu um casamento ao meio-dia numa catedral, não é? Eu me casei ao meio-dia. Tinha que ser tudo diferente (risos). Minha sogra e meu sogro foram conhecer papai e mamãe no dia do meu casamento. Deveria ser dez horas quando eles chegaram. Papai queria morrer. Imagina ele entregar a filha que ele... Cada uma de nós era única para ele. E o que ele fazia para mim, ele fazia para a outra, para outra, para todas. Nunca... Era interessante a postura do papai, ele nunca passou a mão: “Filha...”. Ele punha: “E aí, tudo bem?”. A mesma postura que ele fazia com você, ele fazia com todas, não tinha aquela coisa: o papai gosta mais de mim. A mamãe não, a mamãe já era mais elitizada com as filhas. Então, mamãe tinha os puxa-sacos dela. Mas o papai não, papai sempre foi assim bem igual para todos. Eu não sei, perdi, viajei nessa.
P/1 – E nesses oito meses que vocês começaram a se conhecer...
R – Não, ele morava em Fortaleza, menina, e ele ficou lá e eu fiquei cá. E a gente só se falava por carta. Eu fui visitá-lo em Fortaleza. Quando o Corá veio para cá para São Paulo? A gente se conheceu em janeiro, aí Corá veio para cá... Nós nos casamos em setembro, acho que ele veio em junho. Aí que a gente conviveu mais e resolvemos nos casar. Porque tinha que casar, porque meu pai e minha mãe não deixariam nunca a filha morar com o namorado, tinha que casar, então nos casamos.
P/1 – E como foi avisar a família do casamento em cima da hora?
R – Telefone para que existia na época? Não teve convite, não teve nada, eu ligava para as pessoas que eu queria. Então o meu casamento foi assim, se teve cinquenta pessoas foi muito, mas eram pessoas minhas queridas. Só que teve muita gente que eu esqueci, e foi uma pena. Porque muitos ficaram com raiva, mas eu esqueci. Inclusive um irmão do meu pai, que eu amava de paixão. Esqueci. Para mim, ele era convidado, não precisava ligar para ele: “Tio Quico, o senhor vai ao meu casamento?”. E ele ficou magoado e morreu e nós não nos falamos. Mas foi interessante, foi numa capela. O Corá ia sair daqui de São Paulo para Guaxupé, aí ele pegou carona, mas eles ficaram aqui em São Paulo bebendo, porque ele ficou de chegar. E não chegava, e não chegava, e o papai andava da sala até a cozinha, aquilo enorme, ele falava assim: “Minha filha, ele não vai vir. Vá embora, foge”. Ele não queria que eu me casasse. “Não, papai, ele vem.” Quando chegaram eles, bêbados, aí deitaram, dormiram, o casamento era meio-dia... Não, dez horas era no Fórum. A gente foi para o Fórum. Ele acordou, tomou banho, fomos para o Fórum. Aí viemos para casa, tinha caipirinha, tinha as coisas, bebemos, fomos para o casamento. Choveu a noite inteira naquele dia, então não teve... Não tinha como... As pessoas que eu contratei para tocar a música não vieram, porque não teve estrada. E eu entrando de mãos dadas com papai na igreja, e olhava para as pessoas, aquele pouquinho, falava assim: “Que estranho não ter música” (risos). E fui cumprimentando todo mundo. Foi muito bonitinho o casamento. Viemos para cá e o Corá estava desempregado. Ele não tinha emprego, só eu que tinha. Aí fomos para o apartamento do meu pai em Santos. A minha lua de mel foi em Santos, olha que chique. Lindo. Maravilhoso. E foi muito bom. Foram momentos que a gente passou junto.
P/1 – E qual o nome dele?
R – Luís Augusto.
P/1 – E os seus pais também o conheceram no dia do casamento?
R – Não, conheceram antes.
P/1 – Como foi esse encontro?
R – Quando a gente foi entregar os papéis no Cartório. Eles ficaram com receio, mas o que podiam fazer? Eu já era dona do meu nariz, já tinha vinte e cinco, ou ia fazer vinte e seis, eu não sei, acho que fiz vinte e seis. Então, não tinham o que falar. Mas que papai tentou, tentou, não casar. Mas o Corá acho que foi só umas três vezes a Guaxupé. Então ele era muito quieto. Ele era o oposto que eu, ele ficava quieto, ouvindo, pensando, enquanto eu só falava. Mas dois opostos se atraem. E ficamos quarenta anos, quase, juntos. Teve os altos e baixos, como qualquer pessoa. Aí vieram as meninas e fomos tocando a vida.
P/1 – Ainda sobre o casamento, eu queria saber como foi o seu vestido de noiva. Como você se arrumou?
R – Não tinha cabeleireira, essas coisas, nunca iria. Eu mandei fazer meu vestido numa moça que sempre costurou para mim lá em Guaxupé, alta costura. Mas eu nem me preocupei, porque ela estava tão acostumada a fazer roupa para mim que eu não precisava experimentar. O do casamento do civil, eu liguei para ela uns dois dias antes: “Lázara, eu quero ver o meu vestido de casamento do civil”. Olha que louca que eu sou. Por que eu não queria ver o de noiva? Não, eu queria ver o de civil. Ela falou: “Vá para a p... que a p…., Maireny”. Falei palavrão.
P/1 – Não tem problema, pode falar. Não tem problema.
R – “Como você quer ver o vestido do civil, e não o do casamento?” Eu falei: “Ah, do casamento é surpresa”.
P/1 – Mentira.
R – Juro por Deus. Eu experimentei, ele era todo plissadinho com... Não lembro que tecido era, o nome. E tinha o cinto, e a gola, e o punho, de seda pura, e uma coisinha na cabeça. Aí nos esquecemos de flor. Na hora em que nós estávamos descendo para a catedral, a gente roubou, na própria igreja, a rosa. E eu entrei com uma rosa na mão, roubada. Quando terminou o casamento, a gente ia para a festa, passávamos pelo cemitério, aí eu fui levar a minha rosa para a Amélia, que estava lá. Eu dei para a Amélia a minha rosa. Então, foi isso o meu casamento.
P/1 – E como foi a reação ao ver o seu vestido de noiva?
R – Ah, achei que ia ser mais perua. Não, foi muito... (risos).
P/1 – (risos).
R – Sabe essas saias hoje, que estão plissadinhas? Era um vestido assim, com manguinha aqui e o cinto. E um laço, não sei se era atrás. E só. Não tinha nada. Ela fez o simples. E ela nunca fazia roupa simples para mim. O do civil, que era um tecido que eu comprei em Manaus, antes de conhecer o Corá, aí eu queria vê-lo, porque era um corte indiano, todo rebordado, não sei o quê; para mim aquele era o... Nem imaginava como a Lázara ia fazer o meu vestido. Mas foi ótimo.
P/1 – E depois disso, como casal já, vocês foram morar aonde?
R – Aqui em São Paulo. A gente alugou uma casinha. Hoje é o Einstein, das Perdizes - ali era a minha casa. Tinha pé de goiaba, pitanga, limão. Era uma casinha simplesinha, mas no fundo um quintalzão, uma delícia. Ali, a gente ficou acho que uns quatro, cinco anos, ou mais, não me lembro. Quando nós fomos morar na outra, na Minerva, a Mel nasceu. Aí, a gente comprou apartamento, fomos para a Cerro Corá. Aí, nasceu a Mariana, a gente veio para cá, para as Perdizes - na Linda Ferreira - compramos uma casa e fomos para a Bahia. Foram mudando as coisas da vida.
P/1 – E ainda nesse comecinho, pós-casamento, como foi descobrir a vida a dois? Como era esse começo do...
R – Então.. O Corá veio de Fortaleza, ele não tinha trabalho aqui, quem trabalhava era eu, eu dava aula de manhã, tarde e à noite. E meu pai, discretamente, percebeu, porque nós não contamos, aí ele trazia uma feirinha para a gente, às vezes ele me dava dinheiro, e ajudava. E o Corá arrumava, passava e fazia comida - e fazia maravilhosamente bem. Foi um bom período em que eu comi muito bem. O arroz, o feijão, o bife e o ovo frito, era lindo o prato que ele servia, todo desenhado. Ele era artista gráfico, então era todo aquele elaborado. Quando as meninas eram crianças, ele sempre... Sábado e domingo era ele quem cozinhava. Você nunca sabia o que ia almoçar. E as meninas... Ele fritava ovo de codorna para elas, então o prato delas era todo enfeitadinho de ovo de codorna, lindíssimo. Ele curtia fazer isso. Foi quando a gente se mudou, depois, tal, aí montamos um bar lá na Bahia, que era o sonho dele. Ele ficou um ano trabalhando, mas você tem que seguir métodos, regras, cada dia tem... Você não pode fazer cada dia um prato. Lá a cabeça não era aberta. Então eles queriam o peixe, queriam... Corá não gostou, perdeu o tesão, me deu o bar e eu toquei. E toco até hoje.
P/1 – Como chama o bar?
R – Barraca Porto Belo. Eu tenho mais ou menos um bom bar, tenho setenta mesas, mas só funciona no verão. Eu tenho vinte e cinco funcionários trabalhando comigo. É bem... É um sucesso.
P/1 – E por que vocês deram esse nome para o bar?
R – Porque a gente tinha vindo de Porto Alegre... Passamos por Santa Catarina e tem a Praia do Porto Belo, que é linda, maravilhosa. E a gente gostou e pôs Porto Belo, que seria um porto para a gente. E foi. E é um bom bar. Não gosto de esnobar, mas eu acho que o fato de a gente estar há muito anos no mesmo lugar, sempre inovando, cada vez uma coisa... Então, cada ano tem uma... Ah, tem uma história boa. “Seu” Corá me deixou, quando morreu, com cinquenta e cinco carneiros. E eu não sei cuidar de roça. Eu não nasci para ser roceira. E eu falava para ele: “Corá, se você morrer, no dia seguinte eu vendo a roça”. A gente tem uma roça lá, bela, tem dois quilômetros e meio de praia nossa, você vê o Monte Pascoal, então é um desbunde, mas para mim, tanto faz, tanto fez. E ele me deixou com esse bando de carneiro. E o que eu vou fazer? Vou matar. Como? Não sei. Vim para Guaxupé, estávamos conversando lá, eu falei: “Gente, eu tenho cinquenta e cinco carneiros, o que eu faço”? Um falou assim: “Faz linguiça”. Eu falei: “Mas eu nunca fiz” “Ah, o fulano sabe. Vá atrás dele que ele sabe”. Eu fui atrás. Ele me ensinou, me ensinou o segredo. Aí matei os carne... Não, dois carneiros.
P/1 – Como?
R – Mandei funcionário meu matar. Tirou a carne, me entregou a carne todinha já na bacia, aí eu levei ao açougue para moer, tal, não sei o quê. E fizemos a linguiça de carneiro. Naquele ano que o Corá tinha ido embora, quatro amigos da gente tinham ido também. Então foi o Corá; o Jorge - um grande cliente nosso, mas era de Brasília, era o rei da noite de Brasília, tinha um bando de bar, que tem até hoje, então ele tinha ido também - o Álvaro Apocalypse, não sei se vocês já ouviram falar, é um cara magnífico de Belo Horizonte, ele que inventou o Grupo Giramundo, de teatro de marionetes, ele era nosso freguês, foi um dos primeiros fregueses, também tinha morrido. Eu acho que uns três tinham morrido: o Corá, o Jorge e o Álvaro. Então, vamos fazer uma homenagem a eles. Vamos pôr um prato para cada um de presente. E, lógico, que do Corá saiu qual? A linguiça do Corá. Ele não me deixou os carneiros? Então, linguiça do Corá. Do Jorge foi baião de dois, que era o Jorge que mexia com todo mundo, todo mundo gostava do Jorge. E do Álvaro Apocalypse foi a moqueca com arte de Álvaro Apocalypse. Foi a homenagem. E nessa época, esse Jorge Ferreira, ele morreu depois do Corá. O Corá morreu em fevereiro, no outro verão que eu fiz a linguiça, que foi a primeira vez. E o Jorge morreu depois do verão, desse verão aqui. Corá morreu em 11, verão 12. Na época era o PT que comandava, então o Jorge era da turma do PT lá de Brasília, aí ia ‘n’ mais um político para lá. Estava o Jorge com a mesa enorme, cheia de gente, aí mandam me chamar para perguntar da linguiça: “Maireny, conta para todo mundo...” – vou falar besteira, pode? “Conta para todo mundo como é a linguiça do Corá?” Eu contei a história, porque o Corá morreu e me deixou com cinquenta e cinco... Não sabia o que fazer, parará, parará, parará, parará. Eu resolvi... Um amigo meu me ensinou a fazer a linguiça e eu fiz a linguiça do Corá. E o Ricardo Berzoini virou para mim assim: “E a linguiça do Corá é boa?”. Eu falei: “Eu não sei. Eu usei durante quarenta anos, eu nunca tinha visto... Via lá em Brasília”. Então, até na morte, a gente brinca (risos). Você nunca riu tanto, hein, cara?
P/1 – E qual prato fez mais sucesso desses todos?
R – O meu é casquinha de siri. É o carro-chefe. O quibe armênio também, o meu quibe. Este ano... Este ano eu não sei direito, porque eu mal fui, tenho ficado doente. Temos, também, na roça lá, pupunha; aí, resolvemos fazer pupunhas. Então, agora, a gente está com quatro pratos que foram bons, muito bons. E a linguiça de carneiro este ano não teve, porque eu fiquei doente e sou eu quem faço.
P/1 – Mas ainda tem carneiro lá?
R – Tenho carneiro ainda. Eu deixo só para matar no final do ano. Eu fico com dó, vou e compro de outro (risos). Então, foi isso.
P/1 – Mas por que carneiro? Quando surgiu essa história de carneiro?
R – Ah, mas é fazenda, meu bem. O sonho dele era ter uma fazenda. Então ele estudava tudo para montar coisa, o que vai montar ali, foi quando ele montou a pupunha, da pupunha vai para o carneiro, do carneiro vai não sei o quê, a galinha caipira. Mas isso era sonho dele. Ele morreu, não tem mais... Só tem os carneiros porque eu não tive coragem mais de matar, porque eram os filhos do “seu” Corá, então eu não posso...
P/1 – A fazenda tem nome?
R – Fazenda Areia Preta. Porque lá na Bahia, lá em Cumuru, tem muita areia que eles chamam de monazítica - mas é um mínimo de coisa - e ela é preta. Então é lindo, porque aquele mar todo turquesa, lindo, a areia branquinha, e tem a areia preta junto. E a gente tem muita areia preta lá na roça.
P/1 – Nesse momento ainda na Bahia, eu queria que a senhora me descrevesse uma cena que vem à cabeça em que estão os quatro juntos, as duas filhas, a senhora e ele.
R – A gente almoçava sempre junto, todo dia, enquanto morávamos lá. Almoçávamos, jantávamos, tomávamos café da manhã, tudo. Festa, a gente sempre estava junto. Não teria acho que nenhuma coisa assim de momentos especiais, umas coisas assim. Não. Porque sempre a gente estava junto. Talvez do dia que a gente foi para Corumbau, de barco, assim, que a gente chegou a morar lá, aí a gente contratou um cara que não sabia dirigir barco, e a gente foi sem saber, e não contamos, lógico, para o Corá. Então, estavam as meninas, eu, uma irmã minha e uma amiga, e fomos para... Primeiro fomos para Corumbau, que é lindíssimo, maravilhoso também, depois fomos à Aldeia dos Índios. E quem falou que a gente conseguia andar, no sol de meio-dia, na areia? Todo mundo esqueceu o chinelo no barco. E foi muito difícil a gente... Esperamos baixar o tempo para conseguir voltar para pegar o barco. Só que quando a gente chegou, a gente não sabia que lá em Barra Velha a praia é quase que mar...
P/1 – Aberto.
R – Aberto. Então aquelas ondas, aquela coisa, já estava escurecendo. E a gente... A Márcia, a minha irmã e a Vânia tomaram acho que uns dez, doze banhos cada
uma, inclusive o pobre coitado do barqueiro. E o mar estava muito agitado. E elas não conseguiam subir. O cara dava a mão, elas derrubavam o cara, mas não subiam. E isso foi até de noite, que aí já virou noite, aí conseguiram subir, viemos embora. O Corá achou que tinha perdido a gente. Então, esse foi o momento em que ele juntou as quatro aqui, os quatro aqui, e chorava. Então, foi, acho, que o mais triste, mas o mais interessante. Porque nós éramos sempre assim, juntos. Não tinha nenhuma data. Vamos ali? Vamos. Aí, iam os quatro. Porque as crianças eram pequenas, então não tinha com quem deixar lá. E fomos. Mas eu tenho um amigo - que faz dez anos que ele está lá - aí eu fiquei sabendo que ele ia morar lá, morar não, tinha comprado uma fazenda, ia construir uma casa lá. Não posso dar o nome, é uma pessoa que não pode ser falada, e o arquiteto que estava fazendo a planta dele é meu amigo de Ilhéus. Aí me liga: “Maireny, o fulano vai aparecer aí, um fulano que comprou uma fazenda e eu que vou construir. Agora eu vou mais para Cumuru, então a gente vai se ver aí mais”. Está bom. Registrei. Um belo dia estou na barraca, mandam me chamar numa mesa, eu fui, estava o cara com a mulher. Ele se apresentou, eu tum, falei: “Acho que é ele”. Falei: “Ah, você comprou uma fazenda aqui?” “Comprei” “Ah, uma fazenda em tal lugar?” “É” “E o arquiteto é Ruy Córes e Alana Córes?” “Como você sabe?”. Eu falei: “Eu sou a delegada da cidade”.
P/1 – Ainda sobre esse tempo na Bahia, eu queria saber como ficava o contato com a sua família. Como era saber das notícias, o que estava acontecendo?
R – Todo dia. A gente tinha telefone lá, um telefone para a comunidade toda. Então a gente... Ainda era de telefonista, de discagem, a gente pedia o número. E demorava para fazer, assim quando a gente chegou. Demorava para fazer a ligação, você marcava a hora. E quando papai ou alguém quisesse falar com a gente daqui, eles ligavam e falavam: “Olha, avisa o Corá que fulano ligou, que nós vamos ligar meio-dia, para ele estar aí na telefônica meio-dia”. E isso era no centro. E todo mundo ia para lá para ficar ouvindo a conversa dos outros. Não tinha o que fazer. Gente, foi novidade chegar telefone em Cumuru. Era uma delícia, ninguém sabia o que era. Uma vez tocou o telefone, avisaram que iam para a casa do Corá e que eles iam chegar em carro diferente. Eu não sei por que a Virgínia fala isso: “Fala para o Corá que nós estamos chegando e que nós estamos indo de Parati branca” – que eles tinham comprado aqui. E todo mundo sabia que ia chegar um casal, de São Paulo, lá em casa. A hora em que eles entraram na cidade, passaram onde era a telefônica, aí eles abaixaram o vidro, o cara falou assim: “Pode ir em frente, que a última casa é a do Corá”. Paulino e Virgínia olharam um para a casa do outro, não acreditaram. “Mas como você sabe?” “Ué, você falou que vinha com um carro branco, uma Parati branca, a gente sabia que era você.” Era tudo isso. O tempo inteiro sabiam. Todo mundo sabia da sua vida. E o ponto de encontro era o ponto onde tinha o telefone. Então, a gente só falava por telefone com a família. Acho que duraram uns cinco anos, ou mais. Aí foi a linha de telefone para lá. A gente a tem até hoje. Como todo mundo tem - a turma velha - tem ainda. Porque hoje ninguém mais tem telefone de linha. E a gente tem, porque nós fomos os primeiros. O meu telefone é dez, quinze. Eu tenho amiga que dez, cinco. Então, a gente sabia os números, porque era tudo peque... Não era dez, quinze. Era três, cinco, cinco, um, pá pá pá, a gente sabe, mas o final era igual para todos - dez... Não, zero um, zero dois, até o zero nove, zero dez, depois onze, doze, e foram cinquenta telefones que instalaram na vila - então, a gente sabia todos. Era assim que a gente se comunicava.
P/1 – E nesse período, vocês receberam, por telefone, alguma notícia de alguma coisa que tenha acontecido na família?
R – De morte? Nós recebemos do meu tio, que eu falei que nos esquecemos de convidá-lo, e da minha avó - mãe do papai - também morreu e eu estava lá; então não dava para vir. E outros amigos e coisas assim. Mas isso também é muito difícil você estar lá, receber uma notícia assim, você pira e você tem que ir para Porto Seguro. Agora tem pela Azul perto, uma hora, uma hora e meia de Cumuru, mas é muito cara a passagem, então você tem que fazer... Vai até Belo Horizonte, de Belo Horizonte até São Paulo. E é um voo só, então se você perdeu, perdeu, não tem como. É muito difícil essa coisa de morar longe e não ter comunicação boa e não ter meio de transporte rápido, você leva quatro horas para chegar. É muito difícil isso.
P/1 – E a senhora falou que depois esteve em Vitória.
R – É.
P/1 – Eu queria saber qual foi o fator determinante para a decisão de voltar para São Paulo.
R – Vitória, nós não nos adaptamos. As meninas se adaptaram, e eu e o Corá não. E o Corá já estava querendo voltar, porque tinha que trabalhar, alguém trabalha nesta casa, não era só no verão. E ele tinha sido convidado para trabalhar numa firma, ser diretor, e ele veio. E eu vim atrás, deixamos as meninas morando lá, estudando sozinhas, lá em Vitória. Eu ia muito para lá, para Vitória; depois ia para Cumuru, então, sempre a gente estava junto.
P/1 – E como foi voltar para São Paulo sem as meninas? Como foi…?
R – Ah, foi muito estranho. Foi muito estranho. Mas isso... Foram, talvez, seis meses, porque elas terminaram o ano e vieram. Mariana veio, terminou a Federal aqui, a Escola Técnica; e a Maria Amélia entrou na PUC. É, aí ela se transferiu para a PUC. Ela estava na Federal, fez PUC aqui. E Mariana depois terminou o curso técnico, foi para a USP e ficou fazendo lá, estudando.
P/1 – Falando nas meninas, eu queria voltar de novo no tempo para falar sobre a gestação. Como foi o período da gestação? Como foi descobrir que estava grávida da primeira, da Maria Amélia?
R – Foi emocionante, porque eu nunca pensei que eu ia ter filho. Eu já estava com trinta naquela época, há quase quarenta anos - há trinta e oito anos que a Mel tem hoje - nem imaginei que ia ter. Eu não queria filho, porque para mim já estava velha. Aí veio, fiquei grávida da Mel, foi tranquilo, não teve nada de doença, nada, foi tudo muito tranquilo. Só teve assim, que eu engordei muito e tive pré-eclâmpsia, então a Mel também... A Mel é de oito meses. Foi um pouquinho assustador só o final da gravidez, que foi a Mel um pouquinho... Mas depois foi tranquilo. E depois de três anos veio a Mariana.
P/1 – Mas antes disso, eu queria saber como foi compartilhar com o seu esposo que a senhora estava grávida. Qual foi o sentimento que...
R – Sei não. Não lembro. Deixe-me lembrar. Revendo velhos papéis, acho que eu cheguei para ele e falei: “Corá, não menstruei”. Aí começamos a rir. Então foi isso. Acho que a gente estava a fim, já estávamos quatro anos casados, então a gente já estava a fim de ter.
P/1 – E Amélia, a gente sabe por quê. Mas, por que Maria?
R – Ah, porque é bonito. É um nome composto, Maria Amélia. Amélia puro não é tão bonito como Maria Amélia. É um nome quatrocentão, uma coisa bem mais antiga, aquela coisa... Os princípios da vida mineira, eu acho. É um nome mineiro. Então eu acho que ficou bonita a composição Maria Amélia. E o Corá, quando a Mariana nasceu, eu queria Maria Rita. E uma amiga falou para mim: “Maireny, não põe, não. Eu sou Maria Rita, eu sou muito sofredora”. Que é Santa Rita. Aí eu não sabia que nome pôr. O Corá foi, chegou lá no Cartório, perguntaram: “Que nome o senhor quer?” “Ah, não sei”. “Ah, põe Mariana. Pronto”. Aí foi. Sem questionar, sem nada. Mariana. Veio o nome, veio Mariana, é Mariana.
P/1 – E como vocês foram receber essa... Ver que iam ter mais uma gestação?
R – Ah, mas acho que a gente queria também, para não ser uma filha única, não. Então não teve nada de “aahh”. Veio.
P/1 – Veio.
R – Veio. A gente queria, pronto, acabou. Veio. Mas também não queríamos mais. Chegou. Aí Corá operou e pronto. E assim viveram felizes para sempre.
P/1 – E a descoberta do que é a maternidade? Como foi ser mãe?
R – Ah, para mim foi difícil, porque eu não sei ficar quieta. Ter que... Hora para marcar, tinha que marcar hora para dar de mamar, isso não fazia parte de mim, porque eu nunca fui assim. Eu sempre fugia. Eu sou muito elétrica, então para mim, ter que ficar quietinha foi bem difícil. O ato de ser mãe. Mas mamãe veio, ficou comigo, me ensinou bastante, depois eu arrumei uma pessoa maravilhosa, que ficou comigo dezoito anos. Então, foi bom.
P/1 – E tem alguma história boa dessa parte da maternidade? Por ser uma mãe tão diferente, tão...
R – Não sei.
P/1 – Por ter diversão sempre, toda hora.
R – Não. Eu me lembro de uma vez que nós dois estávamos... Isso foi piadinha besta, mas passamos na Raposo, tinha um pessoal vendendo melancia, eu: “Corá, para o carro, vamos comer melancia”. Corá parou, pegou a melancia, pôs na minha barriga, falou: “Maireny, cuidado”. Eu falei: “Cuidado com o quê, com o neném ou com a melancia?”. Os dois caíram na risada. Olha que besteira. Coisa mais idiota da vida. E ria, como se aquilo fosse uma piada linda. Agora a mais bonita foi da Mel, estou eu quase para parir, dava aula lá no Bonfiglioli, e gorda - eu acho que engordei trinta quilos, gorda, boca tudo inchada, nariz - veio assim, eu estava indo para dar aula, dirigindo, pego o caminho, em São... Já nem lembro mais os nomes aqui. Praça Panamericana para ir, tal, não sei o quê, aí um cara buzinou para mim, eu buzinei. Ele não sabia quem eu era, nem viu nada, então eu sorri. E ele começou a fazer gesto, conversar, eu ali, e fui indo, e ele foi indo atrás de mim. Entrei na Raposo, ele entrou atrás de mim, e buzinava, não sei o quê. E eu fui paquerando o homem e ele mais do que... E eu dei sinal de que ia entrar, ele deu sinal de que ia entrar. Eu dei sinal para entrar e buzinei na escola, para eles abrirem o portão para eu entrar. Eles entraram, aí saio eu do carro, com aquele barrigão desse tamanho. O cara, na hora em que ele viu: “Ei, ei, ei...”. E foi embora me xingando de tudo quanto era... Gente, eu cheguei dentro da escola, e ria. “O que você fez?” Eu falei: “Gente, eu paquerei um homem, ele veio até aqui. Hora que ele viu que eu estava prenha, foi embora e me xingou ainda”. A primeira coisa, cheguei em casa: “Corá, você não sabe o que aconteceu” “O quê?” “Isso, isso”. “Não acredito”. Falei: “Foi, Corá. Pelo menos eu estou bonita”. Gorda, feia, inchada, mas foi assim. Essa é uma das coisas que eu lembro.
P/1 – Muito bom.
R – Já imaginou? Levar o cara daqui... Porque aqui estou quase que perto de casa, até a Raposo... O cara falou: “Essa daí eu vou pegar”. Pegou o quê? Com aquele barrigão. Gente, mas eu descia, que eu não conseguia descer do carro. Aquele barrigão. Olha que louco. Mas, naquela época, era melhor, gente, não era tão perigoso como agora. Então não tinha... Então, uma historinha dessas assim que eu lembro.
P/1 – E a senhora, mãe de duas meninas, e a vida toda sempre muita mulher.
R – Sim. Sim.
P/1 – Pensando nessa parte de mulher para mulher, que você contou como a sua mãe não foi em alguns momentos, como foi essa sua diferença de falar sobre a mulher para as suas filhas? Como vocês conversavam?
R – A gente, desde pequenas... A gente as criou sempre conversando, falando, então nunca teve momento para se falar qualquer coisa. Lá vou eu falar... Não sei se é bom falar agora, mas... Corta!Recolher