Projeto Santa Cruz de Cabrália e Belterra - Memória e Vida de seus Moradores
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Neusa Matos de Oliveira
Entrevistada por Márcia Trezza e Sarah Faleiros
Santa Cruz de Cabrália, 29 de agosto de 2012
Código: SCCB_HV006
Transcrito por Fe...Continuar leitura
Projeto Santa Cruz de Cabrália e Belterra - Memória e Vida de seus Moradores
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Neusa Matos de Oliveira
Entrevistada por Márcia Trezza e Sarah Faleiros
Santa Cruz de Cabrália, 29 de agosto de 2012
Código: SCCB_HV006
Transcrito por Felipe Sorgi Augusto
Revisado por Marconi de Albuquerque Urquiza
P/1 - Dona Neusa, pra gente começar eu queria que você me falasse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - É, Neusa Matos de Oliveira, uma indígena Arari, eu moro na Rua Beira-mar, número 517, né, aldeia Coroa Vermelha… [Santa Cruz da Cabrália-BA]
P/1 - Não, ó, onde a senhora nasceu?
R - Eu nasci numa aldeia chamada aldeia Imbiriba, fica do lado do município de Porto Seguro e o distrito Caraíva.
P/1 - Hum, e que dia que a senhora nasceu?
R - 26 de março de 1963.
P/1 - Tá bom, e qual o nome do seus pais, a senhora sabe?
R - Amadeus de Oliveira Purificação e Vergolina do Espírito Santo Matos.
P/1 - É, e o que que seus pais faziam?
R - Olha, meu pai, ele era agricultor, né, trabalhava com agricultura e trabalhava com domar animal, cavalos, essa era a profissão de meu pai.
P/1 - Ele plantava o quê?
R - Plantava mandioca, feijão, milho, café, capim, gado e criava porco, galinha e animais, né, vaca e essas coisas.
P/1 - E a sua mãe?
R- Minha mãe ela era artesã e marisqueira, ela mexia com pesca.
P/1- E qual a lembrança que você tem deles?
R- Olha, a lembrança do meu pai... Da minha mãe eu tenho muito pouco, porque quando eu perdi minha mãe eu tinha três anos de idade, eu não conheci de verdade, assim, a minha mãe, eu lembro que ela era muito bonita, mas, assim, uma lembrança mesmo da convivência com ela eu não... Sei que ela era uma mãe boa, né, com três anos de idade eu sabia que ela era uma morena, uma índia muito bonita.
P/1- Ela e o seu pai eram indígenas?
R- Não, o meu pai ele é negro com índio, meu bisavô ele é índio legítimo, mas a minha vó é africana.
P/1- E do seu pai, quais são as lembranças que você tem dele?
R- Do meu pai eu tenho uma lembrança muito boa, né. O meu pai, eu ainda tive uma convivência com ele, meu pai tem 22 anos de falecido, então eu tinha convivência, é, fazer farinha com ele, ajudar ele a fazer cerca, né, viajando com ele, então eu tenho uma lembrança assim, uma amizade, era um pai muito bom pra gente, né. Essa é a lembrança, um homem muito trabalhador, pessoa muito honesta, pra gente era um... Essa é a lembrança que eu tenho dele, sendo um pai carinhoso, um herói, meu pai pra mim ele era um herói, muito trabalhador, né, então ele era pra mim o meu herói.
P/1- E a senhora teve irmãos?
R- Eu tenho 13... Nós somos 13 irmãos.
P/1- Treze? R- Treze, eu sou a mais velha e tenho mais 12 irmãos, eu tenho dois que já faleceu, um morreu assassinado e um morreu de acidente de moto, e agora nós somos 11, temos 10, tem o Belisco, que é o pescador, chamado Aloísio, é o Belisco, o Pescador, e tenho Nilzete que é minha irmã que mora aqui perto, e tem Nailza mulher, aí tem os oito "home", Averaldo, Ailton, Adevaldo, Ademilton, Denilto... Aí vai, são os oitos, essa é minha família, né, e a história de vida que eu tenho dessa turma, assim, meu pai quando morreu deixou tudo no nome do pequenininho, aí eu tive que terminar de fazer essa família chegar aonde eles chegaram, né, hoje é todo mundo formado, cada um com sua vida, uns pescador, outros artesãos, outros agricultor, e "tamo" aí todo mundo junto. P/1- E como é que era, assim, a rotina na sua casa, com esse monte de irmãos?
R - Olha, eu sempre, eu trabalhava fora, né, eu fabricava artesanato...
P/1 - Mas já na sua infância?
R - Não, na minha infância não, porque esses irmãos vieram depois, na minha infância eu só tive três irmãos, que eram do primeiro casamento do meu pai, Vergolina e Amadeus, é, Aluísio, Agrinaldo e Agrivaldo, esses três irmãos. Era muito gostoso a infância, ir pro rio, é, vocês conhecem guaiamum? Pescar guaiamum, tirar guaiamum do buraco.
P/1 - Que é?
R - É um caranguejo, que não é o caranguejo do mangue, é um caranguejo azul que aqui tem, depois eu posso mostrar algum, ele fica no seco. Então, na nossa infância a gente juntava pra ir pegar o guaiamum, fazia uma armadilha chamava ratoeira e colocava coco lá dentro, abacaxi, pra ele vir, atrair ele, ele vinha pra gente pegar ele. Também pescar que era nosso dia a dia, nós passávamos mais o dia no rio pescando de que mesmo em casa. Então, o índio ele tem um hábito de... Na pedra tem um marisco chamado ouriço e ele é cheio de espinhos, mas quando ele tá quebrado é uma delícia, faz uma moqueca que dá de água na boca. Então nós aprendemos a pescar aquele ouriço, juntava os três com a minha tia pra ir lá pescar o ouriço, pra quebrar pra fazer a moqueca para o dia a dia, né, com animal e ia e pegava aquele monte e trazia o animal pra passar e ajudar a fazer a renda da família. Também, passou uma época da minha vida assim, na minha infância o meu avô ficou doente, ele teve pneumonia, então ele não conseguia andar, ele ficou uns seis meses assim, sem conseguir trabalhar. Então a gente era pequeno, mas e aí a gente já tinha que começar a participar de ajudar a cuidar do meu avô, então a gente ia pra roça, que era longe, como daqui a Cabrália, com animal pra trazer banana, abacaxi, laranja, pra poder "coisa", porque naquela época não existia dinheiro, naquela época vivia de troca. Se eu fosse na tua casa eu levava peixe, você me dava farinha, aí ia na casa dela levava um abacaxi pra ela e ela me dava uma galinha, então não tinha dinheiro, a gente tinha que sobreviver daquela maneira. E depois disso, aí, tinha uma lagoa chamada lagoa Tola, ainda existe perto lá da praia do Espelho, que são uma lagoa linda que ela é uma lagoa encantada, e a gente gostava de ir pra lá pescar beré.
P/1 - Como que é isso que ela é encantada, como que é?
R - Ela é uma lagoa encantada, porque todo rio ele corre pra baixo, essa lagoa ela corre pra cima, o contrário. É uma história assim, como meu avô contava, esse lugar era uma cidade que chamava Juacema. Juacema é o rio e essa cidade chamava Juacema, e naquela época sempre houve, como hoje existe, a discriminação do branco, índio, negro, então naquele tempo foi na vinda dos português, eu não sei se vocês são parente de português [risos], mas na vinda dos português pra cá, era aquela discriminação de índio com branco, então nessa cidade, apareceu um índio na cidade deles e pegou, trouxe um passarinho chamado bem-te-vi, e aí o filho do branco viu o indinho com o bem-te-vi, e ele tomou o bem-te-vi, o passarinho do indinho e bateu no índio, e aí o índio foi embora. Quando o índio foi embora, os índios, os tapuios, que chamava antigamente, (polcaram?) debaixo da terra nesse lugar, então a cidade encantou. Por isso hoje existe Salvador, é a cidade que era aqui, encantou e ela foi pra lá. Se você vê na história, Salvador é cheia de índio, daqui fugiram, foram embora, e lá hoje existe um buraco. Quem passa no mar de barco, os pescador, contam, né, o pajé, até mesmo o pai do Leide, que não tá mais, quem olha na madrugada tem um padre, ele fica na parede, você olha assim, e tem a visão de um padre lá com a batina, tudo bonitinho, na pedra. Não é ninguém, mas você vê o padre lá, então ele é encantado, o galo canta... E essa lagoa tem um jacaré de ouro, então, mas todo mundo gosta dela, ela corre para cima em vez de ela correr pra cá [entrevistada aponta pra baixo], ela corre pra cima, ao contrário dos rios, chamada lagoa Tola.
P/1 - E você falou que ia lá pescar?
R - Nós íamos lá pescar beré, um peixinho pequenininho, assim, que é uma delícia, né, fazer moqueca, aí, a gente ia pra lá pescar pra fazer parte, mas também porque a gente gostava. Aquilo era a nossa infância, né, nossa infância era aquela, pra nós naquela época não tinha carrinho, não tinha boneca, não tinha nada. A boneca a gente fazia boneca de pano, com aqueles cabelos de pano, com os olhinhos, com a linha, pra poder brincar, né, porque não tinha. Então, é a lembrança que eu tenho e é lindo, se vocês puderem um dia ir lá visitar vocês vão amar esse lugar.
P/1 - E você foi à escola nessa época?
R - Não, lá nessa época eu não fui à escola, lá não tinha escola, a escola mais próxima era em Caraíva, mas ficava longe pra ir e voltar, mais do que à Cabrália, mais de uma légua, então não dava pra ir. Quando... Minha vó também não foi à escola, mas ela ensinou tudo os netos a ler algumas palavras e até hoje eu a lembro com um livro que ela conseguiu a Nova Infância, naquela época era cartilha. Eu não sei nem se ela existe por algum lugar guardada, era uma cartilha chamada Nova Infância, e lá tinha uma história de um gato que aprendeu ler e com essas coisas ela aprendeu ler naquele livro e ensinou todos os netos dela a escrever, todos os netos dela hoje alguns sabem ler porque aprenderam com ela e ela nunca foi à escola. Então, no livro se dizia assim: "Um dia estava “mimindo”, sentado diante de um livro aberto olhando com tanta atenção que até parecia que ele estava lendo". Esse foi o livro que, foi o primeiro livro que eu li e aprendi a ler na Nova Infância. Depois, a gente, é... De lá o meu avô ficou doente, foi quando o pajé Itambé veio para aqui pra esse lugar que a gente já sabia que esse lugar era da gente, mas não morava ninguém aqui, então ele veio morar aqui, e aqui ele fez a casa dele, só que naquela época esse lugar era um lugar de tiro de guerra, um tiro de guerra. Então a Marinha vinha para aqui com todos os seus homens para fazer treinamento, então a gente não podia ficar aqui, então a Marinha derrubou a casa dele nove vezes.
P/1 - [suspira assustada] Do Itambé?
R - É, e era tudo mato ele fez ali a casinha dele e a Marinha ia lá e derrubava a casinha dele. Quando a Marinha ia embora ele fazia de novo, a Marinha vinha e derrubava. Nove vez derrubou a casa dele e ele ficou lá com o filhinho dele pequeno, o único filho que ele tinha. Chegou um homem, com aquela coisa bonito lá, brasão no peito, falou assim: "Mas índio, você é teimoso, por que que você, se nós já derrubamos sua casa nove vezes, por que você não foi embora?", e ele falou: "Embora pra onde? A minha casa é aqui.", "Como aqui rapaz, isso aqui é um mato, é uma praia", e o índio disse "Sim, mas aqui não é descoberta do Brasil? É, foi aqui que Cabral chegou? Foi. Então, quem tava aqui doutor? Foram os índio, então, doutor, quando o senhor vai num lugar, que o senhor chega numa casa o senhor faz o que?", e ele falou assim "Eu bato palma e peço licença.", e falou "Então doutor, quem tá errado é eu ou o senhor? O senhor está na minha casa, então o senhor que tem que pedir licença.", aí o doutor olhou assim, era o Capitão dos Portos, ele nem sabia que tava falando com ele, ele olhou pra ele e falou assim "É, você venceu, então nesse lugar não está bom, você escolhe outro lugar e faz a sua casa e vai morar aí pro resto da vida". E assim a gente tava lá, era criança e aí meu tio achou melhor, meu avô tava doente em casa, e a gente de lá veio pra aqui, e aqui...
P/1 - Quantos anos a senhora tinha?
R - 11 anos de idade. E aqui eu comecei a minha história de vida neste lugar. Ajudando a ganhar essa terra, meu tio brigar por essa terra porque a prefeitura, os fazendeiros, não queria que viesse ninguém pra cá, então ele veio primeiro, depois trouxe a gente, então nessa época, como eu te falei, não tinha dinheiro, então que que a gente tinha, eu tinha de viver de marisco, ia pra pedra quebrar o ouriço pra, é, pra comer. Depois com o tempo (antidimento?) comecei a comercializar esse marisco chamado ouriço, então japonês, eles usam pra fazer aquela coisa lá que chama, aquele molusquinho deles lá, eles usam o ouriço, eles compram aquilo, então foi assim que eu terminei virando marisqueira, aí, ia pro mar com meus irmãos num barco pescar. Pesco também no recife, então, pescar o camarão mesmo de rede, de cesto no rio, terminei virando marisqueira.
P/1 - Voltar um pouquinho, como é que foi chegar aqui, você lembra a primeira vez que você veio aqui, que que você achou?
P/2 - Tinha outros indígenas já?
R - Não, só tinha o pajé Itambé, ele foi a primeira pessoa a chegar aqui, ele e a irmã, que chama Indiara e hoje já não está mais viva, ele foi a primeira pessoa a chegar nesse lugar. E a irmã dele, Indiara, a partir daí viemos, ele trouxe a gente, o meu avô e a mãe dele, que são aqueles dois que tão ali na parede, Isabel e Antenor, e nós viemos pra cá. É, a vida pra gente aqui foi diferente, a gente morava na beira do mar, mas, assim, no alto e aqui a gente veio morar na beirinha da praia, e depois a fartura, que era muito. Lá a gente tinha uma fartura de tudo, assim, de verdura, mas de peixe aqui era muito mais, na época que a gente chegou aqui era muito peixe, hoje não, hoje há muita dificuldade pra pegar peixe. Mas naquela época você ia ali, não precisava muito sacrifício, você já tinha bastante peixe pra comer e pra dar pra alguém, entendeu? Que o índio é assim, ele não tem ambição só em vender, se ele pega ele vende, mas ele também faz questão de dividir com o outro, né? Eu costumo dizer, assim, que as vezes você... Tem pessoas assim, a gente conhece, que tem um monte de coisas e se prende em uma coisa, e a gente não, aqui na comunidade a gente é diferente, eu costumo dizer que Cabrália é um lugar onde tudo começou mas tudo acabou. Porque tudo fala lá em Porto Seguro, a nossa história nunca vai além de Porto Seguro, só fala em Porto Seguro, Cabrália esqueceu, e pro índio principalmente é difícil, quando o índio só passa na televisão quando é 22 de abril, acho que é único dia que eles lembram que o índio existe. Então, pra gente foi muito bom chegar aqui, era uma fartura, um lugar diferente, tinha muito mato e é o que eu gosto, é disso, de viver no mato. Hoje eu já não gosto mais daqui, se eu pudesse eu já tinha ido embora daqui, eu não gosto daqui mais.
P/1 - Por que que você não gosta mais daqui?
R - Ah, perdeu o sentido, assim, eu como índia, pra mim perdeu muito o sentido, têm casas demais, até a minha casa. Eu não gosto dessa casa, eu moro nela, mas eu não gosto dela. Eu gosto de uma “oquinha” cheia de palha, cheio de barro lá, assim, porque você se sente bem de pé no chão. Eu sei que é pro bem, que é pra ficar melhor a condição de vida, mas gostoso é você estar lá numa oquinha cheia de palha, vendo aquilo ali, porque é natureza do índio.
P/1 - Como é que era a sua primeira casa?
R - Uma oca. Com palha de marimbu, marimbu dá no brejo. Aí você arranca ele coloca no sol uns dias pra ele murchar mais, aí faz a casa de madeira, põem umas varas, e vai botando ele assim, faz a primeira carreira, depois faz a segunda, depois a terceira. Por aqui na comunidade ainda tem, ali na Nova Coroa, uma aldeia que tem, ainda tem casa de marimbu.
P/1 - Quando você veio pra cá também era?
R - É, quando eu [cheguei] aqui era casa de marimbu. Todo mundo aqui a casa era de palha, depois começou a pegar fogo nas casas, de vez em quando queimava uma casa, e aí achou... Quando foram 500 anos, né, com essa vinda do governo pra cá, porque tinha que modificar, aí inventaram de fazer essas casas. A gente aceita, é bom, mas não é na verdade o que a gente queria de verdade, mas aí quando a saudade bate muito, assim, a gente vai lá pra reserva da Jaqueira, ficar lá no mato, vai pra agricultura, eu vou lá pra roça pro sitio do meu tio, vou lá pra Mata Medonha, uma outra aldeia, vou pra Barra Velha, aldeia mãe, que lá ainda é a casa natural, então vou matar saudade, né, assim.
P/1 - E tinha alguma festa da comunidade? Porque vocês vieram e só tinha seu tio aqui, depois chegou mais gente? Como que foi?
R - É, depois veio chegando gente. As pessoas foram vendo que lá na outra aldeia era difícil de conseguir as coisas e aí foi na época que abriu essa estrada e aí colocou a cruz da primeira missa, que já tinha uma cruz pequena, quando Cabral veio, mas aí colocou uma outra, não é essa cruz que tem aí, a outra era de pau brasil, pequenininha, e aí as pessoas, os turistas vinham pra cá pra ver a cruz. Foi quando as outras comunidades viam, que aí a gente sabia fazer artesanato pra gente, mas o turista via o artesanato e queria pra eles, então não era justo que a gente fosse fabricar pra dar pra eles de presente, até dava alguns, aí eles traziam roupa pra gente, então as outras comunidades vendo que aqui poderia melhorar de vida eles começaram a vir embora pra cá. Também começou a luta pela terra, porque como era o pajé Itambé só, era dali pra lá que podia, nem água a gente podia beber no rio que o fazendeiro não deixava, e aí a gente começou a luta em busca da terra, porque até hoje tem muita comunidade que não tem terra pra morar, vive, assim, trabalhando pra fazenda dos outros. Então muitos índios, como os pescadores, a maioria dos pescadores mora de aluguel, não tem terra pra morar, então a gente como índio começou a brigar. Ia nas outras comunidades e trazia pessoas da comunidade pra cá. E aqui eles foram gostando, foram ficando e hoje formou essa comunidade, aí tem a festa, o Toré, né, a dança do índio, então fazia uma fogueira, a noite, trazia o maracá, e dança, dança, dança, toma cauim, come beiju, assa peixe, assa banana no fogo e aí a gente passa o dia ali dançando. Tanto que no dia 22 no mês de abril a gente agora tem os jogos indígenas, que a gente fica de 18 a 22, aí traz toda a etnia pra cá, pra fazer uma festona e correr e brincar o dia todo. Três dias brincando, comendo, depois nós voltamos todo mundo pra sua aldeia. Mas dançava também a dança do branco, com cavaquinho, violão. Naquela época não tinha essas coisas que tem hoje, som, televisão, era o cavaquinho e o violão que eles mesmo faziam e a concertina, a rebeca. Meu tio pajé ainda tem a rebeca. Põem ela aqui, né, com rabo de cavalo é feito, tira o cabelo do rabo do cavalo, e tem o breu, que passa, aí faz a rebeca e aí você põem aqui pra... Tinha a rebeca, o violão, o pandeiro, que eles mesmo faziam, o tamborim, a cuíca, e a concertina, essa era festa. Então eles cantavam, eles mesmos inventavam e todo mundo dançava e amanhecia o dia dançando. Em algumas comunidades ainda faz assim.
P/1 - Isso a sua juventude assim?
R - Na minha juventude.
P/1 - E nessa época que você começou a ir pra escola? Como é que foi?
R - É, aí nessa época. Quando eu fui pra escola mesmo eu tinha 18 anos já, aí eu já tinha 18 anos e nessa época eu já precisava, né, necessitava trabalhar, eu não sei o que que acontecia comigo, se é com as outras pessoas, e tinha vontade de descobrir coisas, eu achava que na minha comunidade tava bom, mas eu queria ir pros lugares, pra eu conhecer coisas, como era a vida dos outros, então eu fui trabalhar em casa de família, cuidei de filho dos outros, foi quando eu fui pra Salvador, fiquei sete anos em Salvador.
P/1 - Trabalhando em casa de família?
R - Não, aí eu trabalhava como artesã, e depois eu fui trabalhar na Funai, trabalhei um ano na Funai, a Fundação Nacional do Índio.
P/1 - O que que você fazia lá?
R - Servia cafezinho, entregava documento, ajudava a levar os índios pro médico, e...
P/2 - Quando você chegou em Salvador, você foi trabalhar como artesã direto? Como foi essa chegada lá, como é que foi a vida nesse tempo lá?
R - Fui [suspira]. Difícil não conhecia ninguém, quando eu fui pra Salvador, foi uma decisão minha, tava, tinha saído de uma relação amorosa meio complicada, não dava certo porque ele era índio e ele bebia e só pensava em me matar, e eu precisava sair daqui da comunidade de qualquer jeito e fui embora. Imagine pra vocês, eu dormia na praça do mercado modelo, lá tinha umas barraquinhas e lá eu cheguei e dormia nas barracas até fazer amizade com as pessoas, não foi fácil, foi bem complicado. Mas, aí, eu fiz amizade com os hippies, com as pessoas que estavam lá, depois eu achei pessoas que me acolheram e eu convivi sete anos em Salvador, aí fiz um trabalho no Museu de Arqueologia com o professor (Pedra Cortima?), Maria do Rosário, uma outra antropóloga que chamou Maria Hilda, eu fui pegando conhecimento que eu realmente queria, o que era que eu queria, aí eu comecei a estudar, ia pra escola, mas descobriu depois que eu tinha um problema na vista e eu não podia mais estudar, eu não enxergava. Até hoje eu tenho a maior vontade de terminar meus estudos, mas eu não consigo, porque não consigo um tratamento correto, não tenho dinheiro pra fazer o tratamento correto. Então, assim, quando eu tô olhando, aí eu olho a letra de repente ela vai embora, fica só o papel, eu não vejo ela mais, entendeu, é difícil. Mas foi isso que foi a vida em Salvador.
P/1 - E aí, e de lá que quer...
R - Assim, de Salvador eu fui trabalhar na Funai, eles me mandaram pra Governador Valadares, Minas Gerais, aí eu fui trabalhar na Funai de Governador Valadares cuidar dos índios Maxakali, uma etnia que não fala português, né, aí eu trabalhei um ano e pouco.
P/1 - Como é que foi isso?
R - Foi bom. O conhecimento, aprendi muita coisa com os brancos, que hoje serve pra mim... pra passar pra minha comunidade, aprendi também muita coisa de lei que eu não conhecia, né, porque a comunidade indígena, a maioria deles não entendem muito disso e eu achava na época que, nessa época ainda tava brigando por terra, eu achava que eu precisava aprender, conhecer alguma coisa de lei pra ajudar meu povo, e assim eu fui pra Governador Valadares. Trabalhei com um administrador que chamava Lúcio Flávio Coelho, era uma pessoa branca mas gostava muito dos índios, então com ele eu aprendi. Mas um certo dia, eu deparei com a situação que eu olhei e falei assim: "Não, não foi isso que eu pedi pra mim, eu escolhi". O índio cacique Juruna saiu deputado, e ele tinha um comício nele em Campos do Rio, lá no Rio de Janeiro, mas é claro que eu queria ir, eu queria ver, eu trabalhava na Funai, então conversei com meu chefe e falei assim: "Ó, eu vou pro Rio", e era no final de semana e segunda feira eu tocava. Pro meu desencontro, quando eu fui eu perdi o ônibus no retorno no domingo, então eu só cheguei no meu trabalho na segunda dez horas. Quando foi na terça feira a moça que cuidava lá do setor de pontos, fui lá olhar na minha folha tinha cortado dois dias do meu trabalho pelo meio dia, e aí eu fiquei braba, fiquei braba e conversei e deparo com a situação, falei: "Não, eu escolhi justiça, porque hoje eu tô deparando com injustiça", e todo cidadão tem direito de ser livre, mesmo que ele trabalhe, se ele deu a satisfação, eu acho que tá, tá errado. Aí cheguei pro meu chefe e falei: "Olha, a partir de hoje eu não trabalho mais na Funai, você me dá minha conta, que eu tô indo embora.", "Não, não, não, você não vai!", "Vou, tô indo.", "Mas por quê?", "Porque tô!", aí ele "Vou te dar 30 dias pra você ir pensar". Aí eu vim pra cá pescar, fiquei por aqui 30 dias, aí eu voltei lá. "E aí, voltou pra trabalhar?", eu falei "Não, eu voltei pra você assinar minha carteira pra eu ir embora.", "Não, não, não, mas eu te dei...", e eu falei "Eu quero ser livre, eu não nasci pra ser presa, eu nasci pra ser livre.". E a partir desse dia eu decidi que eu ia ser livre, ia brigar pela minha comunidade, ia buscar o de melhor pra minha comunidade e continuei ajudando. Aí veio as dificuldades dos 500 anos, o governo queria que os índios fossem embora daqui sem direito a nada, pra desocupar as terras pra eles, e a gente começou a brigar, e aí, foi difícil, mas eu achei parceiros, aí eu já saí...Foi aí que, foi a importância que, quando eu me deparei com a importância de que aquilo que eu tinha passado lá fora, tava na hora de eu exercer a função que eu queria, porque eu tinha aprendido de lei, eu tinha visto como que o branco fazia, então eu falei: "Agora meu povo é assim, é por aqui que a gente vai. O governo quer que a gente vá embora, mas a gente não vai embora", "Mas como é que a gente vai fazer?", Itambé era o cacique nessa época e dizia assim: "Não, nós temos 'parceiros,'", que lá na etnia de vocês fala 'parceiro', né? Hoje é assim. "Então tio, vamos buscar," como é que a gente vai fazer, vamos buscar o Ministério Público naquela época, "Ó tio, a Funai fala do Ministério Público,", e a Funai é um órgão muito bom mas naquela época eles deixavam que os índios agissem pra depois eles.... Até hoje é assim, e aí fui em busca, atrás do Ministério Público, atrás das ONGs (Ancime, Naibaia?), que são ONGs que são não governamentais, pra ajudar a buscar, até que o governo decidiu que não tirava a gente daqui e ao contrário ia fazer tudo que a gente precisava. Aí fez uma troca, os índios que moravam aqui tiraram pra mais pra cá e em troca doou algumas casas pros índios, aí também doou dois barcos, algum dinheiro deu pra alguns que moravam no local. O pajé Itambé não quis sair de lá até hoje, nem o pajé e nem o meu irmão que mora nessa área nunca saiu dali pra nada, e a minha tia que chama Mirinha que também, tem uns cinco moradores que não saíram, o governo brigou e deixaram eles quietos. Mas porque tinha a importância que eu estava lá junto com eles, eu já entendia um pouco, e hoje eu tô aqui né, de volta, teve esse problema, mas pra mim eu continuo na luta, tô aí com os pescadores, sou marisqueira, né.
P/1 - Quando que vocês conseguiram a terra? Faz pouco tempo?
R - Não, foi antes dos 500 anos, em dois mil, eu não tenho a data assim.
P/1 - Tudo bem.
P/2 - Os dois barcos que vocês conseguiram nessa briga toda, nessa luta, foram esses que tão na associação?
R - É, são esses, que só chegaram ano passado, né, dos 500 anos eles só vieram chegar agora.
P/1 - Dona Neusa, e aí quando você voltou de Governador Valadares pra cá, você ficou morando aqui mesmo?
R - É, aí eu fiquei morando aqui.
P/1 - E como é que foi a sua vida nessa época, que você fazia?
R - Pescava! Pescava e fazia artesanato, foi a minha vida.
P/1 - Como é que era a sua rotina assim?
R - Amanhecia de manhã, nessa época eu morava com a minha vó, amanhecia de manhã eu ia buscar água numa ponte que tem ali em cima, no rio, com a lata na cabeça. Deixava a água em casa, fazia as coisas em casa, lavava prato e era o tempo que a maré baixava e ia pro mar pescar, pescar ouriço, pescar de linha mesmo, pescar siri, aí quando a maré tava enchendo voltava, né, e já deixava o pescado pra minha vó cuidar em casa, e aí ia mexer com o artesanato.
P/1 - E você vendia pra quem esse peixe? Vendia ou não?
R - Não, o peixe era só pro sustento da gente nessa época, nessa época ninguém comprava peixe, porque a fartura era muito grande, até mesmo os pescadores homens não vendiam peixe naquela época, a fartura de peixe era demais. Naquela época existia rede de arrasto, ainda existe, mas hoje quase não vem por aqui, então quando eles arrastavam, aqueles peixezinhos assim davam pra comunidade, então não tinha como vender o peixe. Essa era minha rotina.
P/2 - Você pescava sem barco, só ali na beiradinha?
R - É, sem barco, nessa época a gente não tinha barco, só tinha canoa, canoa era cortado de uma tora de pau grande e aí fazia ela de machado, até aí pra fazer... Aí põem uma vela, né, um pano e os reminhos pra pescar, nessa época ninguém tinha barco por aqui.
P/2 - Você saía nessa canoa pra pescar?
R - Saía!
P/2 - Sozinha?
R - Não, é difícil, a gente não sai sozinha, normalmente sai de dois, três.
P/2 - Geralmente você ia com quem?
R - Com meu irmão, meus dois irmãos?
P/2 - Eles que construíam a canoa?
R - Não, quem construía a canoa eram meu tio e meu avô, eles construíam e outras pessoas na comunidade que tinha também, que construíam.
P/1 - E como que era pescar nessa canoa, ir pro mar? Conta um pouquinho pra gente, a gente não sabe, assim, como que é a sensação?
R - Difícil, né, difícil, assim, porque ela é pequenininha e o máximo que a canoa era é dessa largura, aí você tem que ficar todo tempo sentado num banquinho, assim, com as pernas assim, e se você ficar dançando demais ela enche de água. Então quando vai dois ou três tem três bancos, um fica no meio, outro fica lá e o outro fica cá pra comandar a canoa, e tem um (chacho?), né, que joga lá pra ela não coisa... Então ali você pesca, é uma sensação boa, mas também uma sensação de medo, que se você dançar quando o tempo está muito mal não dá pra ir muito pra longe com a canoa, porque a canoa tá indo e a água está entrando, então tem que estar sempre com uma vasilha tirando a água da canoa. Uma sensação boa, é diversão, quem gosta de aventura, entendeu, e eu gostava de aventura, hoje eu tô assim com essas pernas assim, mas eu gosto de aventura, eu gosto de me aventurar [risos].
P/2 - Alguma vez aconteceu alguma coisa assim?
R - Ah, a canoa virava com a gente, a canoa vira lá no mar, tanto. Quando você vai pro mar, aí você usa um samburá, que tem tampa, samburá é feito de cipó, pra botar o peixe dentro, então você bota faca, bota tudo ali dentro, e tem uma tampa, e você amarra no banco da canoa, porque se acontecer da canoa virar, as coisas não vão embora, fica preso na canoa, então a canoa virava com a gente, e pra você não morrer você tem que passar pra cima dela, você virou. Você passa por cima dela tentar desvirar, pra você. Então, tem que ser bem inteligente, pra que quando acontece isso, se você não conseguir desvirar e o vento forte leva embora e você não consegue voltar mais pra terra. Já perdemos alguns pescadores assim, que eles vão pra longe, vem um temporal e a canoa vira, enche d’água e eles nunca mais voltam. Então, quando o tempo não está muito bom, é bom não ir muito longe. O pajé mesmo, várias vezes a canoa já tombou com ele, porque eles usam muito a rede né, a gente usa muito a rede, com a canoinha pra botar rede. Aí vai, vai muito longe, vai pra ali, põem a rede, depois retira, daí é um remando e o outro botando a rede. Na hora de puxar também, o outro remando e outro puxando a rede pra tirar os peixes. Então, mas é uma sensação boa.
P/2 - Você já tomou algum susto desses da canoa virar?
R - Ah, já.
P/2 - Mas um susto grande mesmo?
R - Um susto grande, uma vez eu saí com meu irmão pra pescar e a canoa virou com a gente na ponta dessa, de uma pedra que tem aqui , que tem um recife grande, então, a gente não tava calçado. No fundo é cheio de ouriço, se você pisa dá febre, e a canoa virou, e agora? E logo num ponto onde, aonde os tubarões passam, daquela ponta pra lá os tubarões já ficam passeando por ali também quando a maré está enchendo, e agora, e o medo? Pense aí. E não podia descer pra apoiar a canoa porque tinha os bichos lá dentro, e aí? Pendurado na canoa todo mundo tentando, uma mão na canoa e a outra remando pra que saísse daquela situação pra gente tentar. E aí, graças a deus, sempre se consegue, deu... E os outros quem vê de cá de fora fica torcendo que dê certo porque se não der certo o cara morre mesmo, afogado. Mas deu tudo certo no final, né.
P/1 - E você falou que você voltava e você fazia artesanato, né?
R - Isso.
P/1 - E com quem que você aprendeu a fazer esse artesanato?
R - Com meus avós, com a minha vó e meu avô. Meu avô fazia vários tipos de artesanato, fazia cesto, panacum {ou panacu. É um cesto de fibra vegetal grande], pra carregar mandioca, botar nos animais, fazia tipiti [Cesto cilíndrico de palha], que é um instrumento pra botar massa da mandioca dentro pra tirar a água, pra torcer a massa que faz a farinha, então bota num tipiti. Então é feito de uruba, e também fazia peneira, então aí... Porque assim, a tradição de artesanato e pescaria é passado de pai para filho, você não precisa nem ensinar pra ele, porque você está fazendo ali, quando ele tem que aprender, você nem precisa ensinar pra ele, porque você tá fazendo, ele já tá ali, junto fazendo. Eu tenho, meu irmão o Belisco, que é o pescador, ele tem um netinho que é desse tamanhinho, acho que tem um ano e pouco, quando meu irmão chega com peixe, que está pegando peixe na balança, que está pesando, ele também tá pegando peixe e está a pesando. Então tudo que o adulto está fazendo ele está lá junto fazendo, então quando você vê ele não fazer aquilo significa que ele já não vai, não dá pra aquilo. Meu irmão pega o remo, né, que vai pro mar, ele: "Vovô, também barco, barco, barco". E ele vai também junto pro barco, então sabe que ele já vai ser, vai dar pra ser pescador, não tem como, então é muito assim isso, de pai para filho.
P/2 - E aquele que não dá pra ser pescador ou não vai, como faz?
R - Aí esse normalmente vira liderança, isso normalmente vira liderança, vira professor, outro passa a ser cacique, ou vai ser conselheiro, outro agora já dá pra virar motorista, normalmente a comunidade é dividida assim, o que não é pescador é agricultor, né, outro faz só artesanato, e nossa comunidade é assim. Hoje, graças a Deus, minha comunidade tá bem distribuída, tem um monte de pescador, tem mecânico, tem motorista, tem professor, tem costureira, tem enfermeira, então hoje as coisas... Então quem não vira pescador, não é agricultor, não é artesão, ou vira liderança.
P/2 - E pra organizar essa comunidade, mais antigamente tinha um jeito, né, que o cacique tinha uma influência, agora como funciona essa organização de vocês?
R - Continua do mesmo jeito. Tem o cacique, que ele tem um... Esse cacique formou um conselho, já que ele, a comunidade cresceu e ele não pode fazer tudo sozinho então ele formou um conselho de liderança, pra que a casa não fique só em cima dele. O que que é o conselho de liderança? São os presidentes das associações que hoje tem na comunidade, as pessoas mais velhas, que são, né, tipo pajé Itambé, outros mais velhos, que se forma um conselho de liderança. Então quando ele tem que organizar qualquer coisa ele reúne primeiro o conselho de liderança e fala do assunto que tem que acontecer, aí o conselho de liderança aprova aquilo que tem que ser, agora ele chama a comunidade pra discutir, mas primeiro ele já sentou com o conselho de liderança pra poder decidir qualquer coisa. O que ele decidir, aí ele decide, olha, o conselho de liderança decidiu isso, agora joga pra comunidade, se a comunidade aprova a gente faz, se a comunidade disse não, não está certo, também o conselho de liderança não pode fazer nada, porque eles não tem o poder de decisão, eles decidem, mas, apoia, mas eles tem que ouvir a comunidade pra poder resolver. Porque o cacique em si ele não pode fazer tudo sozinho, né, já que a comunidade cresceu muito, teria que ter uns dez caciques pra poder resolver essa comunidade.
P/1 - Quantas pessoas tem hoje na comunidade?
R - Assim, em torno de pessoas não tenho certeza, mas tem muito mais de cinco mil pessoas, entendeu, muito mais. Acho que a gente tá em torno de 1500 famílias, então tem muito mais de cinco mil pessoas.
P/1 - E todo mundo mora por aqui nessa área?
R - É, não. Nossa aldeia é dividida em três partes: ela é dividida aqui na comunidade, né, em baixo na aldeia, Coroa Vermelha a mãe, é essa aqui, Bairro de Carajá que é a homenagem ao nosso ex cacique, que é liderança, outro lado que também tem essas mesmas casas, a agricultura, fica lá em cima, e a Reserva da Jaqueira, gleba A e gleba B. E além dessas gleba A e gleba B, nós temos as retomadas, que fizemos. O que chama retomada? A terra que era da gente que os fazendeiros pegaram, e que agora a gente pegou de volta pra gente, aí nós temos uma aldeia no município de Porto Seguro que chama Juerama, e temos no município de Cabrália, Aroeira, e temos Itapororoca e Nova Coroa, então tá nesse...
P/2 - É o grupo que a gente pode dizer que são os tapaxós?
R - São os tapaxós, tapaxós de Coroa Vermelha, né, porém nós estamos misturados, aqui tem todas as etnias, até xavante tem aqui na nossa comunidade. De toda etnia aqui tem um pouco, porque quem vem visitar, gosta, casa, nós temos terreno casado com pataxó, um xavante, filho de xavante, temos maxacalis, temos crenaque, entendeu, aí tá assim, mas aí fora, os tapaxós que já é tapaxós Hã-Hã mas fica do lado de Itabuna, mas tem pataxó Hã-Hã aqui também, então é mestiço, bem misturado.
P/1 - Dona Neusa, vamos voltar um pouquinho pra pesca, que a gente está curioso sobre isso, você falou que o que vocês pescavam era mais pra vocês mesmo.
R - Era, naquela época era. P/1 - E como que vocês conseguiam comprar as outras coisas, como é que?
R - Era com troca, naquela época era trocado.
P/2 - Quando começou a ser diferente, Dona Neusa, você consegue lembrar assim?
R - Hmmm...
P/1 - Não, não precisa de data não, mas como é que foi essa mudança? P/2 - Que aconteceu assim que foi mudando?
R - Aí foi isso que eu te falei, com a vinda da estrada, né, pra aqui, quando o pajé Itambé veio e as estradas vieram, que o turista começou a vir e aí já começou a mudança, porque eles vinham pra cá e eles precisava de alguma coisa pra comer também, e aí já tinha Cabrália, porque antigamente não era Cabrália, era Santo André, uma outra cidade lá, mas já tinha Cabrália uma vila e em Porto, uma vila. Então os turistas já começaram a vir pra cá, já se interessava no peixe, então os pescadores já começaram a comercializar o peixe, porém um precinho bem miudinho. Então vendia o peixe pra comprar a farinha. Mas entre a comunidade indígena era assim, pescava o peixe ia lá na agricultura levar o peixe pro outro e o outro dava farinha, mas até hoje ainda é assim na agricultura, raramente eles vem comprar o peixe, normalmente o pescador leva lá na agricultura e troca, então foi assim. Mas eu não tenho um tempo mais, eu acho que eu tinha tipo 15 anos, por aí, quando começou já a vender o peixe, entendeu, hoje eu tô com 49.
P/1 - Então você nem tinha ido pra Funai ainda?
R - Não, não tinha.
P/1 - E aí quando você voltou, você falou que você voltou a trabalhar como marisqueira e artesã, e aí nessa época você vendia o peixe?
R - Aí eu vendia o ouriço, o ouriço, siri, né.
P/1 - E vendia pra quem?
R - Pro japonês, japonês comprava pra fazer o molho deles.
P/1 - Mas o japonês tinha restaurante?
R - Não, eles vinham de Teixeira de Freitas buscar aqui.
P/1 - E dava pra ganhar um dinheirinho?
R - Dava, e também tem o polvo, né, que faz parte do marisco.
P/2 - Você pegava polvo também?
R - Pegava.
P/2 - É? Como que fazia?
R - Ah, é, a gente utiliza um bicheiro, um arama com uma volta, então você põe no buraquinho e puxa, aí ele gruda, gruda ele, uma vez ele me escapou e a gente... (troca de fita)
P/1 - Você estava contando pra gente do polvo.
R - Então, o polvo ele constrói a casa dele na pedra, então é um buraco e ele lá ele entra e pega as pedras e joga tudo na cabeça dele e tampa. Fica lá dentro e pega as outras pedrinhas com as perninhas e ele então entra na casa dele e tampa, fica lá todo tapado. Então o pescador pra conhecer o polvo ele tem que saber, porque onde ele mora. Às vezes quando você vai ouvir por aí, quando há coisas assim, um pescador fala assim: "Eita casa de fulano está igual casa de polvo", porque está desarrumado, está bagunçada, então ele come aqui, pega um siri, aí come aqui, aí sai comendo, larga um pedacinho aqui, outro lá, porque ele não quer chamar atenção pra casa dele. Que ele ficou lá mas ele comeu com a bagunça dele, então o pescador ele vem, o marisqueiro, ele vai olhando assim, se ele comeu por ali com certeza ele está morando por ali, aí você vê um montezinho de pedra lá, você “futuca”, vai tirando as pedras, ele está lá dentro deitadinho assim ó, e aí você pesca ele com bicheiro, e ele é bem confusento. Ele não gosta de sair, assim, numa boa, não. Ele tem nove pernas e aquelas perninhas dele grudam lá que dá um trabalho enorme, às vezes tem que sair meio despedaçado, na marra, ele gruda lá que quando a gente pega ele com arame ele sobe e vem até aqui no braço com a gente. Diz assim não saio, não vou, entendeu, e eu já fiz muito isso, mas hoje não dá pra ir lá pescar, mas um dia eu espero que ainda vou poder ir pescar polvo pra vocês comerem.
P/2 - A gente soube de um sistema agora de uns potes melhora assim, que trouxeram aí?
R - Olha, é um sistema bom, agora eu na verdade não sei como é que tá o resultado desses potes, se eles tão dando realmente um retorno. É, melhora, mas tem que ir lá no mar botar, no caso da gente, marisqueiro é meio que complicado, depende do barco pra ir lá no mar botar.
P/1 - Que as marisqueiras, elas não andam tanto de barco assim?
R - Não, vão, mas é mais complicado, né, pra mulher, as marisqueiras ficam mais pra cá pra terra, ficam mais, é meio complicado, lá no mar, marzão mesmo, bom, são os homens.
P/2 - E o polvo, a maioria quem pegava era mulher, o pescador não era muito de pegar?
R - Não, hoje já tem pescador que pega bastante polvo, mas mais quem mariscava era mulher mesmo, porque os pescadores não tinham tempo de pescar polvo, eles iam mesmo...Até hoje tem o Bené, o pai do Luan lá, que ele gosta de pegar polvo, também ele não tem toda época assim, ele não está fácil toda época. Ele tem as marés, que dá bastante e tem maré que quase você não vê nenhum. E você vai dá uma volta vê um, dois, agora tem maré que você vai lá e pega bastante grande.
P/1 - Dona Neusa, e a associação, como é que foi a criação dela, você lembra?
R - Hum, lembro, a associação foi criada, foi um sofrimento, sou sócia fundadora da associação, foi muito difícil, pra criar essa associação.
P/1 - Como é que foi essa história?
R - Então, a associação dos pescadores foi assim uma inspiração dos próprios pescadores, porque eles pescavam e não tinha onde vender, o que vendia era muito pouquinho, então eles também vinham falar que existia recurso, mas que só podia vir para os pescadores através de associação, e assim eles decidiram a tomar a necessidade de fazer uma associação. Aí uniu um grupo, né, inclusive me convidaram , pra gente criar a associação. Como a gente não sabia como criava, a gente saiu em busca de pessoas que no salvasse e aí ajudaram.
P/1 - Quem que ajudou?
R- Olha, assim, não dá pra me lembrar muito, porque depois que eu tive problema do derrame, teve muita, pouca que foi na verdade, um pouco apagado da memória, mas um dos fundadores é o Seu Ramiro. Que vocês vão falar com ele, o próprio Leide, Maguila, o pessoal, nessa época não tinha o Xepa, ele não fazia parte, né. O o Agenor, o Aruan, não, o Carajá, que era o cacique né, e assim formamos a associação, a associação dos pescadores, e começamos a ir em busca de algum recurso, mas sem avanço. Porque o antigo presidente, ele era meio leigo, ele não sabia muito, então deixou que a associação, foi pra mão de outra pessoa, em que essa pessoa usou a associação de má fé, e atrapalhou, passou a associação oito anos bagunçada. Ganhou alguns projetos do Ministério da Cultura, ela tinha conseguido fazer uns projetos, uma das pessoas que ajudou a gente a fazer, hoje não é vivo mais, se chamava Vladimir Murtim, ele era ministro da cultura, e ele ajudou a gente a encaminhar essa associação.
P/2 - A senhora lembra de algum projeto, Dona Neusa?
R - Olha, o nome do projeto...
P/2 - Não, o tipo.
P/1 - É o que que fazia.
R - O projeto, primeiro projeto que nós fizemos foi o projeto da limpeza do rio Mutari, né, porque ele é o rio onde Cabral abasteceu as caravelas. A gente achava muito importante que fosse cuidado dele, então nós fizemos um projeto pra que fizesse a limpeza, pra tirar a sujeira, as mulheres lavavam roupa, a comunidade e jogava lá, então fizemos esse primeiro projeto. Depois veio um projeto de umas redes, pela Bahia Pesca, né, também umas frisas ... Na verdade não teve muitos projetos, assim, esse era o maior projeto que tinha foi da limpeza do rio Mutari, das frisas conserto de barco não tinha. Depois ela ficou um tempo parada, ficou morta, morreu, aí depois os pescadores resolveram reviver ela de novo, ela ficava lá na mão do outro antigo presidente só servindo, eles pegavam dinheiro pra gastar com besteira lá, em coisa errada, depois não prestava conta, e ela morreu. Aí os pescadores resolveram resgatar ela, três anos, quatro anos atrás eles resgataram ela de volta, elegendo outro presidente que foi o Aloisio, né, apelidado com Belisco. Então foi aí que eles conseguiram a reunião, tomaram a associação da mão do outro que ele já tinha oito anos na associação e não queria devolver, mas pegaram, brigaram e tomaram, elegeram outro presidente e aí começaram a buscar. Já tinha feito o projeto de ter a casa, né, da pesca, mas nunca vinha esse dinheiro, mas aí quando eles conseguiram tomar conseguiram que se dinheiro vinha. Não tinha terreno pra fazer e tinha dois barcos lá, dois barcos velhos que vivia quebrando e não fazia nada, e assim o novo presidente em conjunto com a diretoria da pesca, os pescadores, negociaram um barco com aquele terreno que é onde está ali montada a associação, e é ali montaram, né, a associação e que ela tá ali de pé e funcionando.
P/2 - Dona Neusa, você participava desse movimento?
R - No primeiro participei e hoje ainda participo.
P/2 - E nesse primeiro, mesmo agora, a senhora lembra de alguma reunião assim que você pode contar pra gente como era?
P/1 - Algo que te marcou.
P/2 - Alguma reunião que assim, você lembra bem, que foi... Um acontecimento assim nessa reunião.
R - [silêncio]
P/2 - É que faz um tempo já, né?
R - É, isso que eu te falei, porque eu vi muita coisa que depois que eu tive o derrame, que, assim, muita coisa foi embora da memória, eu não consigo...
P/2 - A reunião de ontem, por exemplo?
R - É, eu lembro, assim, que a gente se reunia pra decisão, que viajava pra Brasília, pra ligar, mas o que mais eu me lembro é da limpeza do rio, e que, que nem eu tô falando pra vocês, não teve muito avanço, que só agora quatro anos atrás é que ela deu uma melhorada, essa é minha lembrança.
P/1 - Você chegou a ir pra Brasília também, não? R- Fui uma vez, com o Ministério da Cultura, né, pra ver os projetos.
P/1 - Ah é? Como que foi?
R - Muito bom, a reunião, foi...
P/1 - Você foi pra participar de uma reunião?
R - De uma reunião no Ministério da Cultura, com a associação e aquela ONG chamada CAR [Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional], que na época fazia parte das LBA e a CAR que faziam os projetos. P/1 - Esse era o projeto da limpeza do rio?
R - Não, esse era o projeto de rede, veio rede pros pescadores, algumas redes, era o projeto, só não lembro valores e assim...
P/1 - Ah! Legal. E como é que você conheceu o projeto Pescando com Redes 3G?
R - Olha eu conheci o projeto Pescando com Redes 3G depois da implantação do cultivo da ostra, aí o pessoal veio do projeto, né, da (RBS?). Vieram pra comunidade pra apresentar a criação de ostra na comunidade, aí implantaram, foi, a comunidade achou bom, e aí a gente criou, começamos a cultivar a ostra, mas aí foi quando a gente conheceu o projeto Pescando com Redes 3G. P/1- E que que você achou, assim, no início quando eles vieram falar?
R - Ah, no início foi meio complicado.
P/1 - Por quê?
R - A gente não entendia realmente o que que isso queria dizer, né, meio complicado, até você pegar... Até quando pensava se essa ostra vai dar certo, história de criar ostra lá no meio do mato, porque assim, a gente não tava acostumado com isso, mas aí meu irmão, né, o pescador Belisco e Leide e os outros: "Não, mas vamos tentar, vamos ver" e botou lá. Mas aí, e aí foi quando entrou o Pescando com Rede 3G, a gente conheceu, viu que é um órgão que mexe com cação, né, mas eu não tenho muita coisa a falar, assim, não conheço muito fundamento.
P/2 - Dona Neusa, quando falaram pra vocês de criar ostra, você pensou que podia ser outra coisa ao invés de criar ostra, um projeto sobre outra coisa?
R - De criar ostra, criar outro peixe? P/2 - Ou ajudar em outra parte assim.
R - É, na época a gente pensou, falamos que deveria ser um projeto de criar, talvez, camarão da Malásia, fazer um outro tipo de projeto no seco que não dependesse de lá, mas não deu certo.
P/1 - E você sabe mais ou menos o que que é o projeto, não?
R - Não sei...
P/1 - Porque eles tentam trazer várias tecnologias, assim, pra pesca, né.
R - É, eles falam aí do GPS, falam do tablet, falam do, como que fala, do amplificador, sei lá como que é, pra coisar o peixe, iam lá, quando tá pescando e anotando lá...
P/1 - E que que você acha de tudo isso, dessas ferramentas novas?
R - Eu acho maravilhoso, acho bom que as pessoas possam aprender, que tem hoje, né.
P/1 - Que é bem diferente de como era antes né, de como você contou pra gente?
R - É, bem diferente, bem diferente, eu acho que vai ser bom, já pensou, você está lá pescando e aí você pega x peixes, aí você aperta lá e os peixinhos ficam gravados lá, aí depois você pára e soma lá mesmo no mar, eu vou pra terra e eu já sei que eu peguei, vai dar x e eu vou pagar aquela conta.. Vai ser bom né, porque antigamente você nem sabia que poderia fazer isso, né, também a qualidade...
P/1 - Você acha que o projeto mudou alguma coisa aqui na comunidade?
R - Sim, com certeza.
P/1 - O quê?
R - É, porque antes, que nem eu te falei na associação, havia parado, nós tínhamos o espaço, foi feito, mas não funcionava, com a criação da ostra, quando não deu certo, acabou. A gente decidiu acabar porque não ia dar certo, não tava criando, em vez de criar, ela tava morrendo e o projeto tinha que ir embora. E aí foi quando a gente teve a ideia de falar com o pessoal do RBS, que a gente... Não podia ir embora, é que a gente ficou um ano cuidando dessa ostra, e aí, como é que ia fazer? Eles iam pegar essas ostras e ir embora, e o dinheiro e como é que a gente ficava? E aí foi quando teve a ideia de comprar freezer, né, com dinheiro da ostra, e aí a RBS, junto com a Rede Pescando 3G, financiaram o dinheiro pra abrir o estabelecimento, e aí começou, então. Através da RBS e da Pescando com Rede 3g a gente já conseguiu que movimentasse a associação, e que aí já pôde, que a gente tinha um barco, mas a gente não tinha como manter esses barcos, e hoje a gente já pode, e a gente agradece muito né, porque se não fosse o projeto e a Rede Pescando 3G, com certeza nosso projeto, a associação estaria parada, acredito que ajudou muito, já deu muito emprego às pessoas, às marisqueiras mesmo.
P/1 - Por quê? O que mudou nessa parte?
R - Olha, não sei muito explicar como é que funciona, né, mas mudou assim porque se o projeto junto com a RBS não tivesse junto, ajudando patrocinar algumas coisas pra unidade também, não estaria funcionando.
P/1 - Entendi. Pras marisqueiras mesmo?
R - Não, as marisqueiras a gente só participa lá de tratar o peixe, né, na verdade pra marisqueira não tem nada ainda, assim, de projeto nenhum ainda.
P/2 - Elas vão, elas trabalham pra unidade, elas são contratadas, recebem?
R - Não, a gente recebe pelo que faz, pelo que faz, a menos que não seja na unidade, aí cada uma marisqueira tem que se virar como pode, pescar o que sabe, pescar siri, pescar alguma coisa, ajudar seu marido, marido pesca e ela cuida do pescado, então tem que se virar como pode.
P/2 - E como que as marisqueiras ficam sabendo, ali, que vai ter o trabalho pra fazer?
R - Quando o barco chega a coordenadora avisa, avisa pra todo mundo, todo mundo já fica atento quando os barcos chegam já sabe que vai...
P/2 - Vão muitas lá, Dona Neusa, na hora que o barco chega?
R - Vai, 20, às vezes, né, quando vem muito peixe, né. Que às vezes também tem época. Agora mesmo não está dando muito peixe, eles ficaram uns cinco dias no mar e trouxeram 200 e poucos quilos, só.
P/1 - Por que que você acha que diminuiu a quantidade de peixe?
R - Olha, isso é complicado a gente dizer, por que está acontecendo isso... Não sei, camarão a gente acredita que pode ser pelo fato da embarcação da Veracel que passa no canal onde os camarões ficam. Agora o peixe, não sei, não está dando peixe aqui por perto, tem que ir muito longe, ir quatro, cinco, seis dias pra poder, está muito complicado peixe, vida dos pescadores não está fácil, viu, tão passando dificuldades.
P/2 - Mudou alguma coisa na pesca que pode ter provocado os peixes a irem embora?
R - Olha, eu acredito que pode ter mudado sim, o fato de ter muitas embarcações.
P/2 - Daqui ou de outro lugar?
R - De outro lugar, vem outras embarcações de fora e pescam... É, nós estávamos acabando de gravar um instante e o carro passou fazendo barulho não foi? Nosso ouvido ficou doendo, agora você pensa se os peixes lá quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez barcos lá, dia a dia no pé do ouvido deles lá no fundo do mar, eles vão procurar um lugar pra ir aonde não tenha ninguém enchendo. Também eu acho que assim, é um fato assim, vamos supor, todo mundo pesca, todo mundo pega, e a gente não botou nada lá, como é que acontece? Só pega, pega, pega e aí? Está acabando, né. Eu acho que tinha que ter, na minha maneira de pensar, tinha de arranjar um jeito de fazer outros projetos pros pescadores que criassem algo que ajudasse eles também deixar os peixinhos um pouco quieto, entendeu? Eu penso assim, não sei se pode, né.
P/1 - Dona Neusa, vou voltar um pouquinho, você disse pra mim no cadastro que a senhora era solteira, né? Mas você já teve algum namorado assim?
R - Já, uns quatro aí [risos].
P/1 - E filhos?
R - Filho só tenho um.
P/1 - E o que que você espera pra esse filho?
R - Ah, espero muita coisa né, espero que ele seja uma pessoa que se decida, né, ele tem 17 anos, terminou o terceiro ano, né, espero que ele seja alguma coisa. Pescador eu tenho certeza que ele não vai ser!
P/1 - Ah não! Por quê?
R - Ele não aguenta, vai pro mar pescar volta no fundo do barco [risos]. Embebeda, fica bêbado, é porque tem pessoas que vai pro mar e aí não consegue, o balanço do mar e embebeda, fica bêbado, se não tem que tomar bastante remédio. Porque é assim, se você vai pescar, você vai hoje... Você já foi no mar, não, já?
P/1 - Ah, só aqui na praia, nunca fui pra dentro.
R - Ah, no barco você não foi?
P/1- Não, nunca.
R - Devia pedir o Leide pra levar vocês ali fora pra vocês verem a sensação como é que é. Então, você vai hoje, aí você fica tonto e vomita que é uma beleza, aí você fala não vou lá mais, mas se você quer ser pescador, aí você tem que voltar lá, nem que você tome remédio. Você tem que ir sempre, toda vez que você vai vai acontecer isso, de umas cinco vezes que acontecer isso, aí não acontece mais, porque seu organismo já acostumou com o balanço do mar, o enjoo, porque quando o peixe tá lá, aquele cheiro forte assim, o estômago não aguenta, e mesmo o balanço do mar você fica assim, ó, você embebeda, é como se você tivesse tomado um monte de coisa e fica bêbado, vai pro fundo do barco. E meu filho é assim, ele já foi pescar e volta no fundo do barco, e os tios dele são tudo pescador.
P/1 - Você ensinou pra ele a pegar os mariscos?
R - Ele sabe, só não aguenta ir pescar [risos]. Diz que vai pro exército.
P/2 - E os jovens, como é que você está vendo, Dona Neusa, os filhos dos pescadores hoje, eles têm vontade de continuar essa atividade. Alguns sim, outros não, como que é?
R - Tem muitos jovens que não tão muito interessados não, eles acham, né, a maioria dos jovens acha que o pescador não tem valor, entendeu? Eles acham um trabalho muito explorado, então o jovem do antes era uma coisa, o de hoje, eles têm uma visão mais ampla, já estudaram alguns, né, então eles acham que é muito sofrido, e na verdade é sofrido a vida do pescador.
P/2 - Podia ser diferente? Tem algum jeito, teria algum jeito, de ser menos sofrido?
R - Olha, eu acho que poderia, entendeu, se tivesse um planejamento direito, assim, se tivesse o apoio também, porque agora sim já se consegue um apoio pro pescador, mas antes era muito difícil, entendeu. Eu acho que poderia ser diferente, sim.
P/1 - E por que que você acha que a vida do pescador é sofrida?
R - Porque é sofrido mesmo, eles passam oito, nove dias no mar, o peixe chega, eles chegam na terra a mão deles está toda cortada. Tem deles que não pode nem pegar coisa, passa a mão em você e dá a impressão que não é uma mão, é uma coisa lá que tá... Na verdade a vida do pescador é muito sofrida, não é fácil ser pescador, pescador e marisqueira não é fácil.
P/2 - Mas tem o gosto, né, por fazer isso, tem um amor por fazer.
R - É, você tem que ter amor.
P/2 - E tem essa parte de que jeito? Como é essa parte do amor?
R - É, porque, assim, todos nos seres humanos. Quando você quer uma coisa, que tem, eu falei que queria buscar uma coisa, esquecer uma coisa, você determina aquilo e, porque se você... Ó, o rapaz aí ele está filmando, mas se ele não gostasse de sair, ele não tava ali até agora, então ser pescador não é diferente, ele tem que gostar, porque se ele não gostar ele não consegue, entendeu. E hoje tá difícil convencer o jovem a ser pescador, é. Hoje o que a gente está tentando é fazer projeto e fazer mostrar pra eles, né. Fazer eles se orgulharem que pescador também é gente e também pode ter um futuro melhor, entendeu. Canso de ver um dizer: "Eu vou ser pescador nada, pescador é muito humilhado, pescador não tem nada". Porque o próprio pescador ele, tem deles que são tristes, por exemplo, tem pescadores que não tem mulher, aí ele chega do mar, a primeira coisa que eles fazem é parar num bar e beber tudo que eles têm direito. Aí no outro dia eles não sabem nem o que foi que ele fez com o dinheiro, fica doente, não tem como, então... Aí, não sei como fazer pra mudar esse quadro, entendeu, teria que descobrir por que que eles fazem isso, qual é a sensação de você pegar o seu dinheiro todo que você ganhou e gastar tudo naquilo que te prejudica, né? Complicado.
P/2 - E as mulheres, muitos não têm mulheres?
R - Não, alguns não tem não.
P/1 - E para as mulheres que ficam em terra, como é que você acha que é? Ser mulher de pescador?
R - Triste né. Complicado, sem saber que se eles vão, com o coração na mão né? A maioria passa os dias em claro sem dormir, sem saber se os maridos vão e vão voltar, né, e feliz quando vê que tão chegando porque sabe que voltou bem, mas a sensação de você ter um pescador lá fora é muito ruim. Eu mesmo, que sou marisqueira e já pesquei e tenho irmão pescador que fica oito, nove dias lá fora, a sensação não é boa não [barulho de fogos de artifício]. É uma sensação de medo, de tristeza, às vezes eu passo tempo nessa janela olhando pra ver se o barco já está chegando, se já está vindo. Mesmo se não é meu irmão que está lá fora, mesmo os barcos da associação, se passa de um dia, do dia de chegar, você já fica com uma sensação que aconteceu. Por isso que a gente fala que a gente vive batalhando pra que melhore os projetos pedindo apoio para as entidades, pra que se, que tenha um sistema, que crie alguma coisa pro pescador, pra que ele sofra menos, já sofre demais.
P/2 - Esse projeto da 3G que tem essa parte que põem o peixe, o quanto pescou, o quanto que gastou, também tem alguma coisa de comunicação, Dona Neusa, você já ouviu falar dessa parte?
R - Do rádio? Já.
P/2 - Isso você acha que mudou alguma coisa, não? Você já ouviu dizer deles, dos pescadores?
R - Ah sim! Porque agora já pode, né, se acontecer algum imprevisto, algum, já tem como se comunicar com outro barco e com a marinha, por exemplo.
P/1 - Porque antes...
R - Não tinha, a comunicação antes era com Deus e...
P/2 - E eles usam o que agora pra comunicar?
R - Tem um rádio.
P/1 - Celular também ou não?
R - Acho, acredito que tem, da Pescando com Rede 3G deve ter o celular, né. Também tem lugar que não pega o celular lá.
P/2 - O rádio pega?
R - Rádio pega.
P/2 - Acho que do projeto, da associação, tem alguma coisa a mais, Neusa, que você gostaria de contar pra gente assim? Dessa história toda que a gente te perguntou, do artesanato também? Que a gente já está encerrando.
R - O que que vocês gostariam de saber mais?
P/2 - A gente já perguntou bastante, né, a gente já tá terminando...
P/1 - Na verdade eu fiquei com um monte de vontade de perguntar coisas de lá de trás, o que que você acha?
R - Pergunta, ué.
P/1 - Como é que foi seu trabalho na Funai, por exemplo, eu fiquei curiosa, como é que você?
R - Ah, o trabalho na Funai. Olha, meu trabalho na Funai veio, que nem eu falei pra você, foi um trabalho bom.
P/1 - Você fazia o que quando você tratava com os outros índios, quando você foi pra Governador Valadares?
R - Levava eles pro médico, cuidava deles, né, porque os índios machadais, eles não falam português.
P/1 - E você conseguia se comunicar com eles?
R - Conseguia sim falar com eles, então eles bebem também, eles são alcoólatras, quando eles não acham cachaça pra beber eles bebem álcool, então eu os acompanhava pra ir pro médico. Hoje eu tive o privilégio de chegar até a auxiliar de enfermagem, nessa luta.
P/1 - Você estudou?
R - Estudei, sou auxiliar de enfermagem.
P/1 - Quando que foi isso?
R - Nessa minha caminhada eu consegui trabalhando em Porto Seguro, depois, né, com o secretário de saúde, e fui trabalhar no Hospital da Mulher, em Porto Seguro e aí cheguei a auxiliar de enfermagem, né. Então eu os acompanhava pra cuidar de saúde, levava. Também lia documentos, é, que ia da minha comunidade, por exemplo, se minha comunidade mandava um documento e antes de entregar pro chefe tinha que ler pra saber se realmente... Aquilo que eu te falei, eu sentia necessidade que meu povo precisava de alguém pra ajudar, quando eu aprendi o suficiente tava na hora de voltar pra dar retorno na minha comunidade, que a maioria da comunidade faz isso, eles vão embora, estuda, e depois eles voltam pra contribuir na comunidade, né.
P/2 - Neusa, antes os indígenas não usavam tanto álcool né?
R - Não, não usavam.
P/1 - Como que, porque hoje é um problema sério né?
R - Hoje é um problema sério, eu não entendo como é que eles conseguiram aprender a usar o álcool, porque na comunidade não tem álcool, na comunidade tem o cauim, que é a bebida do índio, que se você beber demais fica bêbado, deixar passar do ponto, né, porque o certo é ficar três dias, que ele é feito de mandioca e feito do milho, então ele tem que ficar três dias você pode tomar, se ele passar de três dias, vinha demais, se você beber muito você fica bêbada.
P/2 - Mas essa bebida aí podia ser, os indígenas tomavam e...
R - Tomavam porque ele serve de, ele é bebida, mas serve de alimento também porque ele é feito de mandioca, e aí, eu não sei explicar como que eles chegaram... Acho que indo pra cidade, conheceram a bebida né, alguns iam e traziam pra aldeia e hoje tá um caso sério. Outra coisa que também me deixa muito triste hoje é a droga na comunidade.
P/1 - Tem muito?
R - Muito, muitos jovens envolvidos nas drogas, isso me deixa muito triste.
P/1 - E vocês tentam fazer alguma coisa, enquanto comunidade?
R - Tenta, tenta fazer trabalho né, projetos, pessoas que vem trabalhar com jovens vem, né, tem outros jovens da comunidade que tão inseridos nos projetos pra poder ajudar, mas ainda tem muito jovem envolvido.
P/2 - E dos costumes indígenas, pros jovens ficou alguma coisa, Dona Neusa, ou poderia voltar alguma coisa pra eles até deixarem um pouco essa parte da droga? Vocês já chegaram a pensar em alguma coisa?
R - Mas tem, tudo que é da comunidade indigna, que eles poderiam estar envolvidos tem, nós temos, não sei se vocês já foram na reserva da Jaqueira, que é um centro de reabilitação aos jovens da comunidade, jovens que tão envolvidos com alguma coisa. Porque lá é um centro de, como que fala, onde a gente faz as atividades indígenas. Porque aqui, como eu te falei, eu não gosto mais daqui, mas lá tem a reserva da Jaqueira que é só o mato, tem duas cabanas, lá tem trilha, lá tem a dança, lá desenvolve a língua, a cultura lá. Então todo jovem que tem problema, aí, a gente leva a chegar até lá. Como tem o projeto, a Tribo Jovens, que eles vêm e fazem trabalho na comunidade. Acho que não falta nada, entendeu? Uma coisa que tá faltando muito na comunidade é emprego, porque hoje eles sentem necessidade de ter emprego, mesmo na área da pesca não dá trabalho pra todo mundo.
P/1 - Não?
R - Não dá... Com dois barcos quem mais vai são os adultos, os jovens de 15, 16 anos não têm, entendeu, é complicado.
P/2 - Então fala só mais uma coisa do artesanato, das coisas bonitas que você faz, como é que é isso, como que você aprendeu, como que você faz hoje?
R - Pois é, eu aprendi com meu avô e minha avó, mas em cima desse, de eu ter aprendido com meu avô e minha vó. Eu também criei alguns artesanatos, porque quando você ser artesã, você começa a fazer uma coisa parece que sua mente abre e você começa a criar coisas diferentes, Aí eu faço palito do cabelo, também faço, os colarzinhos, as pulseiras, os brincos, aí faço a gamela, tem algumas prontas ali do lado, se vocês pudessem pegar uma.
P/1 - É aqui?
R - É aqui do lado tem, então, aí eu faço garfinho...
P/1 - Com madeira?
R - De madeira. Eu faço garfo, faço....
P/2 - Essas aqui [entrega gamela]?
R - É.
P/1 - Ah que bonitas!
R - Essa aqui é a petisqueira, é um prato que você põe um pezinho nele aqui e ele fica girando pra você botar salada, botar alguma coisa pra servir.
P/1 - Que interessante.
P/2 - E você que raspa assim?
R - É, eu que faço, cavo, uma tábua e eu cavo com uma ferramenta chamada enxó, depois eu lixo num motorzinho pra ficar assim, dar o brilho com a cera, aí eu ainda vou furar um buraquinho e tem um pezinho aqui pra ficar girando.
P/1 - Que bonito.
R - Aí eu também fabrico os garfos, né, as espátulas de fazer, pra tirar hambúrguer...
P/1 - Isso você que aprendeu?
R - Eu que aprendi.
P/1 - Você aprendeu esse com seu avô, não, sozinha?
R - Aprendi com meu avô, é, fazer na mão, isso que isso tudo aqui a gente fazia na mão, manual, só com facão e raspava. Com o tempo eu desenvolvi fazendo com motorzinhos, cortava com facão e depois lixava com motorzinhos, e aí fomos criando um modelo novo, modificando, como por exemplo, o pilão. Tem um pilão também, esse aqui já é feito no torno, eu faço, aí faço também a farinheira, prendi aqui pra não sair... Então, a farinheira e aqui você pode colocar farinha e ficar....
P/2 - E você faz todas as peças sozinhas, Dona Neusa?
R - É, porque é no torno, sozinha.
P/1 - Aí você vende pra quem isso?
R - Vendo atacado, vendo pro turista... Aí esse aqui, também tanto faço no torno como faço manual, com formãozinho, cavo com formão e depois eu lixo.
P/2 - E essas cores, de duas cores?
R - É porque a madeira já é assim.
P/2 - E a madeira como que você consegue Neusa?
R - A gente tem ainda algum, aqui na mata na agricultura, a gente tem ainda madeira. P/2 - E ela vem como pra você, assim, ela vem já trabalhada?
R - Não, vem as toras, corta e lasca pra poder...
P/2 - E você que corta e lasca e tudo?
R - Não, antes eu cortava, agora eu não aguento mais cortar e pago alguém pra cortar, aí tem vários outros tipos de artesanato que eu fabrico, é que não tem... Aí fabrico arco e a flecha...
P/1 - E o pessoal ainda usa, ainda caça com isso?
R - Usa, usa arco e flecha, não deixa de usar, o cocar, né, que eu faço.
P/1 - Vocês ainda usam em festa esse tipo de coisa?
R - Usa, tem um ali em cima ainda. Todo mundo aqui usa roupa nem só na festa, quando vai fazer reunião, viajar, a roupa vai junto, todo mundo aqui usa.
P/1 - Legal. Ah, acho que é isso... Uma última pergunta só: você ainda tem algum sonho? Qual o seu sonho hoje?
R - Na verdade eu tenho, nem um sonho, dois ou três sonhos, né, mas meu maior sonho agora é andar, caminhar, largar esse carrinho e sair caminhando, pra ira para as outras comunidades, fazer um trabalho melhor na comunidade. Mas sabe qual era o meu maior sonho? Era ter um orfanato, cuidar de criança, esse é meu maior sonho, não sei de Deus vai me dar ainda, quem sabe, esse era meu maior sonho, ter um orfanato cheinho de menino, já que eu só tenho um filho, né, tive quatro e morreu, eu só tenho um, eu queria ter um monte de filhos, nem que fosse dos outros, né [risos]? Mãe é aquela que cria, né? Mais alguma coisa?
P/1 - Só isso. Mais alguma coisa?
P/2 - Não, foi muito bom!
P/1 - Obrigada, viu, Dona Neusa!Recolher