Eu me chamo Alberto Setzer, nasci em São Paulo, capital, no dia 14 de março de 1951.
Eu me formei em Engenharia e sempre tive uma atração por sistemas ligados ao meio ambiente. Lembrando de que naquela época, quando fiz Engenharia, final da década de 60, ninguém falava nisso. Comecei a trab...Continuar leitura
Eu me chamo Alberto Setzer, nasci em São Paulo, capital, no dia 14 de março de 1951.
Eu me formei em Engenharia e sempre tive uma atração por sistemas ligados ao meio ambiente. Lembrando de que naquela época, quando fiz Engenharia, final da década de 60, ninguém falava nisso. Comecei a trabalhar em empresas de controle de poluição atmosférica, e praticamente ninguém conhecia Engenharia Ambiental, controle de poluição. Eu comecei a fazer projetos nessa área. Em uma circunstância, o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) abriu um curso de pós-graduação no setor de Meteorologia voltado especificamente para a área nuclear, havia um acordo entre o INPE e o Programa Nuclear Brasileiro, o Pronuclear, e eles precisavam de alguém que mexesse com poluição atmosférica, que desse aula sobre o tema, em particular, de dispersão de poluentes na atmosfera, modelos de cálculo de dispersão. E foi assim que eu comecei a trabalhar no INPE, mais ou menos em 79. Não, 1977.
Naquela época, o INPE era o único lugar no país que mexia com imagens de satélites, e olhando algumas dessas imagens, eu percebi que era possível identificar a fumaça de algumas grandes indústrias, a poluição gerada pelas atividades industriais. Eu comecei a me interessar por essa área, usar as imagens dos satélites para ver se conseguia mapear e identificar a poluição atmosférica, e na época, só tinha um lugar no Brasil onde isso poderia ser feito, que era aqui.
Em seguida, eu fui fazer o Doutorado nos Estados Unidos e o fiz nesse tema de identificação, de poluição atmosférica usando satélites, o que na época era tudo novo, tanto na parte de poluição quanto em relação ao uso de imagens em satélites. Voltei para o INPE em 82 e, enfim, comecei a trabalhar como pesquisador, recém doutor, com muitos desafios. Por coincidência, por circunstâncias, o coordenador na época na área de Meteorologia era o Antônio Divino Moura, aliás, o mesmo coordenador atual, e ele me deu uma tarefa curiosa, ele me disse: “Está vindo uma delegação norte-americana para o Brasil, precisamos preparar a agenda de cooperação científica com essa equipe, por favor faça isso”, “Bom, eu vou fazer, só que eu vou puxar um pouco a sardinha para o meu lado, essas coisas de poluição atmosférica”, “Tudo bem, desde que você faça, a gente precisa ter alguma coisa para apresentar”.
Eu propus a agenda de cooperação, o presidente era o Reagan, quando ele veio para o Brasil e trouxe uma equipe científica. Nessa agenda de cooperação, eu coloquei a parte de estudos de poluição atmosférica e de algumas cooperações com a NASA e com a NOAA, com pessoas que eu já tinha tido contato na época em que eu fiz o doutorado nos Estados Unidos.
Coincidiu que isso também era de grande interesse da NASA, na época, eles estavam fazendo um programa para caracterizar, mapear as condições, as características, a composição química da atmosfera no planeta todo. E aquele experimento se chamava GTE (Global Tropospheric Experiment). Então, a ideia foi bem aceita dos dois lados, e a partir disso, um dos desdobramentos foi um experimento chamado GTE/ABLE 2A (Global Tropospheric Experiment/Amazon Boundary Layer Experiment) que ocorreu na Amazônia em 1985. Coube a mim organizar toda parte inicial desse experimento, foi uma responsabilidade muito grande aqui no INPE.
O experimento deu certo e, na época, a gente tinha a ideia, a hipótese, de que nós estaríamos mostrando a atmosfera mais pura do planeta, que seria sobra a região amazônica, era o que todo mundo achava que existia, provavelmente, as regiões polares e a amazônica eram as mais limpas do planeta. Tá bom. Antes de começar esse experimento, eu tive uma ideia: “Olha, vamos gravar umas imagens de satélite, sei lá, vai que depois a gente precisa de uma interpretação, uma análise qualquer. Talvez a imagem ajude”. Naquela época, não era um procedimento comum, as imagens não eram gravadas o tempo todo, o INPE tinha as estações, mas você tinha que fazer o planejamento todo para as gravações das imagens.
Nós gravamos todas as imagens durante o experimento, eu participei do experimento, estive a bordo do avião da NASA, que veio especialmente para fazer as medições, com uma equipe de dezenas de cientistas internacionalmente conhecidos. Do Brasil, tinham algumas pessoas que até hoje ainda são bem ativas nessa parte de poluição atmosférica, de química atmosférica, por exemplo, o Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, é uma das pessoas ainda muito ativas nesse campo hoje em dia. E outras pessoas do INPE, muito conhecidas na época, o Kirchhoff tinha um grupo de ozônio muito forte aqui no INPE, participou também, pessoal da área da Meteorologia também. Além de outros pesquisadores de várias universidades brasileiras. Bom, quando chegou a hora de interpretar os resultados, isso ainda durante o experimento, a gente, de noite, se reunia para olhar os dados, começaram a aparecer coisas muito estranhas, ao invés de ser a atmosfera mais limpa, que a gente imaginou que iria encontrar, entre Belém e Manaus, a contaminação era muito grande, davam picos completamente inesperados de vários poluentes atmosféricos e ninguém sabia o que estava acontecendo. As pessoas achavam até que os equipamentos podiam estar com problema, foi todo mundo conferir as calibrações, recalibrar os aparelhos, e fazíamos outros voos e voltavam aqueles dados com a poluição muito grande. Com as imagens dos satélites, depois, olhando, nós percebemos o que estava acontecendo, estavam ocorrendo grandes queimadas no sul da Amazônia, a fumaça era levada por ventos para aquelas regiões mais centrais da Amazônia, onde nós estávamos voando com o avião da NASA, e o que a gente estava mostrando eram as emissões resultantes dessas queimadas todas que estavam na região da Amazônia, principalmente.
Na hora, nós não entendemos direito o impacto, o que estava acontecendo, apenas achamos: “Nossa, que curioso, que interessante, que inesperado, bacana, vai dar boas publicações”. E de fato aconteceram várias coisas inesperadas, desde a constatação de que havia uma poluição que ninguém supôs que existisse, até os impactos que decorreram dessa constatação.
Um dos impactos foi a descoberta de que as emissões das queimadas, as emissões, principalmente, de CO2, interferiam no clima da atmosfera do planeta. Naqueles anos, ninguém falava disso, de mudanças climáticas, aquecimento global, essas coisas eram desconhecidas, desmatamento também era uma coisa que ninguém falava. Foi assim, uma… como é que eu diria? Uma convergência de ações, de eventos muito oportuna. Por um lado, de repente, os satélites começam a mostrar uma devastação que ninguém imaginava que estava acontecendo, uma devastação significativa, eram milhares de quilômetros quadrados por ano que estavam sendo desmatados e queimados, ninguém sabia disso. Por outro lado, constatar que essas emissões dessas queimadas todas se propagavam a uma distância muito grande e que isso contaminava a atmosfera toda e que estava alterando a composição química da atmosfera. Eu diria que foi um momento de virada nos paradigmas que haviam, porque na época, todo mundo falava ao contrário, falava-se em um resfriamento global, a preocupação em função de questões políticas, principalmente entre Estados Unidos e Rússia, que podiam levar a uma guerra nuclear, cuja decorrência ia ser o uso de bombas atômicas com emissão de material particular da atmosfera, e que isso iria esfriar o planeta todo. Então, a preocupação toda era em relação a esfriar o planeta. Nesse contexto, de repente, aparece uma coisa que vira, inverte esse paradigma, diz: “Não, o problema não é esfriar, o problema é esquentar, e o problema não são as bombas atômicas, o problema são as queimadas que nós estamos criando”.
Em paralelo, na mesma época começava a aparecer essa percepção mais ligada à natureza, que muita gente classifica como o movimento ecológico, embora a palavra seja um pouco distorcida, mas essa preocupação, que hoje se chama de Ecologia, também não havia na época. Então, de repente chega um pessoal e mostra: “Olha, tem uma floresta gigantesca, importantíssima que está sendo devastada, queimada e ninguém está sabendo, ninguém está fazendo nada”. Era um momento, vamos dizer, aguardado. As pessoas tinham essa tendência de querer defender alguma coisa ligada à natureza, de entender que as coisas não estavam indo bem, de repente, aparece um motivo para tudo isso, que é tentar diminuir as queimadas.
Eu tive que tomar uma decisão: “O que eu vou fazer?”, “Eu vou continuar mexendo lá com as análises químicas usando os meus modelinhos ou eu vou tentar avançar com essa nova perspectiva que está acontecendo?”. O que, na época, me parecia extremamente importante. Você estando lá, vendo aquelas queimadas, como aconteciam na década de 1980, era uma… assim, teve um impacto fortíssimo. Sempre fui muito ligado à natureza, de repente, você vê tudo aquilo sendo destruído, e a maior parte, sem motivo nenhum. Não é que eles estavam destruindo a floresta para colocar plantações produtivas, e que no lugar das florestas você via aldeias organizadas, escolas, enfim, tudo bonitinho. Não, o que você via era a destruição da floresta, relacionada ao que podia haver de pior: garimpos ilegais, cidades ilegais, tudo sendo resolvido na base do tiroteio, pior do que qualquer faroeste. Você via aquela corrida pelo ouro, que também foi encontrado na época, era um negócio que ainda não está documentado, não sei porque ninguém foi a fundo para retratar o que aconteceu no país naquela época. Para se ter uma ideia, uma cidade como Alta Floresta, que é no norte do Mato Grosso, na época tinha movimento de aviões maior do que qualquer aeroporto do Brasil, só de aviões pequenos levando e trazendo ouro, que era extraído todo ilegalmente. Você imagina os volumes, centenas de milhões de dólares sendo feitos todos… manuseados ilegalmente, tanto da extração, quanto do comércio, tudo com contrabando, tudo ilegal. Quer dizer, você está dentro do pior submundo que você pode imaginar. Não tinha ninguém lá que não andasse armado naquela época. E se você perguntasse qualquer coisa, você estava arriscado a levar um tiro, porque era uma terra sem ninguém.
Bom, percebendo a dimensão do que estava acontecendo, da destruição e principalmente, do fato disso estar sendo feito só pela ganância de poucas pessoas sem qualquer consideração com mais nada, isso me tocou profundamente. Então, eu achei que realmente havia alguma coisa muito importante para ser feita, já que eu era o único que estava vendo isso. “Eu vou em frente com isso”. E fui em frente. Não foi um trabalho fácil. Eu vou depois dar alguns materiais documentando o que eu estou falando. Na hora que a gente divulgou as primeiras imagens mostrando as queimadas na Amazônia, a reação do governo foi: “Não tem queimada nenhuma, o que estão falando é invenção”. Grandes figurões, no esquema político e financeiro da época, começaram a levantar isso como uma tentativa, vamos dizer, de desestabilizar o país. Então, esse trabalho foi atacado por dois lados: de um lado, tinha gente que chegava e dizia: “Esse pessoal que é contra as queimadas, na verdade, quer impedir o desenvolvimento agrícola do Brasil, eles estão sendo pagos pelas grandes empresas do agronegócio internacional para manter o Brasil fora do mercado, são agentes da CIA disfarçados, etc., etc.”, do outro lado, você tinha pessoas que diziam: “Esse negócio do meio ambiente, isso é tudo coisa de comunista”. Naquela época, o mundo era dividido entre dois blocos principais, de um lado estava o capitalismo e de outro, o comunismo. Então, tudo isso fazia parte de uma manobra dos comunistas para desestabilizar o governo no Brasil e tentar tomar o poder aqui, enfim, como se percebiam em outras partes do mundo naquela época, estava no auge da Guerra Fria. A gente foi chamado de agente da KGB e etc., e aí então, outras pessoas começaram a dizer: “Bom, tanto faz se a gente é da CIA ou da KGB, isso é coisa de segurança nacional, esse pessoal tem que ser investigado, não tem nada de imagem de satélite, não tem nada de queimada, tudo isso é uma invenção, vamos acabar com tudo isso”, e uma pressão muito grande para que esse trabalho todo fosse terminado, principalmente do pessoal que estava fazendo tudo isso ilegalmente, que sabia que de alguma forma, uma outra perspectiva, um outro olhar nisso mudaria a atividade deles.
Houve um debate muito grande na época, acusações de todo tipo, tive até uma situação com o Chico Mendes, com ameaça de morte, com perseguições, assim, de todo tipo. No fim, prevaleceu um pouco do bom senso, e acho que tivemos uma decorrência que eu considero fundamental, que foi a criação do que se chamou primeiro Pacote Ecológico. O presidente na época era o Sarney, que em função de toda pressão nacional e internacional decretou uma série de medidas, uma série de leis que envolveram a formação, criação do Ibama, que não existia na época, logo em seguida, a criação do PrevFogo, que foi uma instituição dentro do Ibama para administrar a questão do fogo. Naquela época ainda era muito ativo, estava praticamente por trás de toda essa legislação ambiental, uma pessoa fantástica, que faleceu agora, há duas semanas atrás, Paulo Nogueira Neto, que é um dos marcos na estrutura da legislação e da percepção ambiental no Brasil.
Foram uma série de eventos sincronizados que ninguém esperava, que foram acontecendo em sequência, um atrás do outro e com uma dimensão muito grande, vou mostrar também a documentação para vocês, saía na primeira página de todos os jornais nacionais, internacionais, enfim, assim como agora pouco você teve essas questões do impeachment, sobre eleições, na época, o que mais se falava era essa questão de queimadas. Isso adquiriu uma dimensão muito grande. Foi incrível participar desse contexto, que criou essa percepção ambiental de mudanças climáticas e uma mudança de paradigma na cabeça, não só da população como também dos cientistas.
Em 1985, quando fizemos o trabalho, você sempre tinha algumas matérias sobre queimadas, incêndios florestais, elas sempre aconteceram, no passado houveram catástrofes em várias regiões do mundo, isso sempre foi documentado, sempre foi uma preocupação. Mas a partir desse momento, quando se fez essa ligação com a destruição ambiental sem precedentes e com as alterações climáticas, o crescimento de publicações cientificas tendo o envolvimento de pesquisadores, enfim, pessoas envolvidas na gestão de fogo aumentou de uma forma exponencial. O que antigamente correspondia a poucos artigos, talvez uma dezena, duas dezenas de artigos científicos por ano na literatura internacional, passou ao nível de milhares de artigos por ano sobre essa questão da relação entre o fogo com o meio ambiente. Acabou se diversificando por muitos setores, por muitos campos de conhecimento, não só na parte de mudanças climáticas, mas também na parte de mudanças no uso da terra, os impactos sociais também, impactos em várias áreas do conhecimento. Como eu disse, foi muito interessante ter participado do início de todo esse processo e que de uma forma ainda está ativo, não é à toa que eu vim nessa entrevista com essa camisa aqui, que fala do Programa Queimadas do INPE, que seria uma continuação do que aconteceu naquela época. Então não é algo que eu estou falando do passado: “Olha, naquela época eu fiz, mas depois fiquei cansado e fui cuidar da vida” (risos).
E não foi só o INPE que mudou, houve uma mudança muito grande em vários setores científicos e políticos no país. Eu diria que a primeira fase foi deixar de negar uma coisa e aceitá-la, e dizer, inclusive: “Não só isso existe como é importante, nós vamos fazer alguma coisa para diminuir isso”. Reconhecer o problema foi uma primeira fase. Em seguida houve uma segunda fase que começou em 1998, quando ocorreu um grande incêndio nas florestas naturais de Roraima, algo que queimou, acho, mais de 12 mil quilômetros quadrados. Também acabou atraindo a atenção global, mostrando que o país foi pego desprevenido com um incêndio florestal dessa magnitude sem ter condições de atuar. Como decorrência disso, o governo criou um programa especial, na época se chamava Proarco, não existe mais hoje, e vários outros mecanismos para tentar enfrentar essa situação dos incêndios. Então, eu diria que em 98 foi outro marco importante. Esse primeiro foi em 85, com a observação por satélites das queimadas, o segundo foi em 98 com, vamos dizer, uma iniciativa do governo em criar mecanismos que pelo menos permitissem tomar algumas providências, acompanhar, monitorar, minimizar essa situação. Não que isso tenha sido a solução, que isso tenha resolvido, como a gente sabe, queimadas, desmatamentos, incêndios continuaram mesmo após 98, mas foi um segundo marco na direção, de como o governo reagiu.
Hoje em dia, em qualquer setor que você for conversar, todo mundo vai falar: “Queimada é um absurdo, desmatamento é um absurdo, tem que diminuir, tem que acabar, principalmente desmatamento ilegal”. Praticamente não há mais controvérsia sobre isso. Você vai achar um ou outro expoente, uma pessoa meio fora do esquadro dizendo que não tem mudança climática, que não tem desmatamentos, que está tudo bem, mas são raríssimas essas pessoas e, pelo menos no Brasil, nenhuma delas tem qualquer respaldo científico. O consenso é de que existe algo a ser mudado e nós estamos justamente nesse ponto: como implementar essas mudanças? A gente ainda não conseguiu fazer isso.
O Brasil tem hoje um dos melhores sistemas de monitoramento de queimadas, com envio de alertas, o número de pesquisadores no Brasil, mexendo com a temática de fogo, aumentou muito, tá aí a Eliana, para não me desmentir, mas toda essa comunidade ainda não conseguiu controlar o desmatamento nem as queimadas. Basta ter um ano muito seco em que a vegetação fica propicia ao uso do fogo, a propagação do fogo, que a população vai usar o fogo de maneira indiscriminada.
Se você for para trás, você tem anos como 2017 que foram difíceis, 2010 foi um ano muito complicado, 2007 no Acre, 2005, então basta ter um ano assim, anômalo do ponto de vista do clima muito seco, com estiagem muito prolongada, que você vê o pessoal usando o fogo de maneira descontrolada. Isso a gente ainda não conseguiu eliminar. Aliás, não somos só nós que não conseguimos eliminar, se você for olhar outros países pelo mundo, a situação é muito parecida. Se você olhar agora o que aconteceu na Austrália, há poucas semanas atrás, também foi uma tragédia. Se pegar os Estados Unidos, poucos meses atrás, foram prejuízos bilionários, principalmente na costa oeste, na Califórnia por conta de incêndios, todos eles iniciados por pessoas, de maneira proposital, e lá eles também não conseguiram controlar isso. Pega um paisinho pequeno, como Portugal, nós vimos em anos recentes, tragédias com mais de cento e tantos mortos. Tudo resultado de queimadas, incêndios iniciados por pessoas que não sabiam direito o que estavam fazendo com o fogo. Então, nós brasileiros e as pessoas em outros países estão nesse dilema: como conseguir minimizar o uso do fogo? Com o aumento da população, com a população agora em regiões que antes ela não penetrava, no caso da Amazônia, fica muito difícil você… Como evitar o uso do fogo? Nós estamos numa situação em que tem que ser feita alguma coisa e a gente não está sabendo bem o que fazer.
A gente começou esse trabalho em 85, na minha cabeça, extremamente limitada na época, a coisa era muito simples: tá aqui um problema, todo mundo sabe que o problema é sério, tem como impedir, em dois anos está resolvido, daqui três anos, eu vou cuidar de outra coisa na vida porque não precisa mais se preocupar com a questão das queimadas, vai estar tudo certo. Passados mais de 30 anos, a situação não está resolvida e a gente ainda está enfrentando desafios muito grandes. É um problema complexo de solução muito difícil que envolve desde uma parte puramente técnica, científica, que é de monitoramento das queimadas, difundir essa informação, de avisar as pessoas que necessitam da informação, de fazer previsões de onde que vai acontecer o incêndio, de tentar entender que fatores estão por trás desses incêndios. “Será que abriu uma estrada nova? Será que abriu um projeto de colonização novo? Vai aumentar, vai diminuir as queimadas?” Enfim, tem todo esse lado técnico científico.
Também tem o lado da gestão do fogo, que instituições como no Brasil, o PrevFogo, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, que cuida dos parques nacionais, das áreas protegidas tem que adotar para minimizar o uso do fogo. Nós estamos vendo que o número de campanhas aumentou muito, a divulgação do problema aumentou muito, você pega qualquer cartilha nas escolas, hoje, tem isso, os sindicatos se organizam para tentar
minimizar o uso do fogo, quase todos os Estados estão criando setores com salas de situação só para monitorar as queimadas e tentar controlar a própria população local, regional, no uso do fogo, mas ainda não se tem a solução para isso. E tem casos assim, bem ilustrativos da complexidade. Recentemente, nós vimos que sedes do Ibama foram queimadas, carros do Ibama foram também queimados, destruídos em algumas regiões na Amazônia, por quê? E quem fez isso? Foi a própria população local da cidade que atacou o Ibama, porque o Ibama tá aplicando multas contra infrações ambientais, tanto de desmatamento, como queimadas. Agora, como tudo que é feito nela é ilegal, a população tem essa noção de que se a lei for cumprida, eles vão perder o “ganha pão” deles, então, por uma questão de sobrevivência do ponto de vista deles, todas as leis ambientais, o Ibama, ICMBio, todos esses órgãos são algo que têm que ser extirpados porque, caso contrário, eles não conseguem ir para frente e continuar com as atividades ilegais deles.
Então, muitas vezes, você tem até a própria população contra uma coisa que tem que ser feita, e como vai se resolver isso? Olha, a solução ainda não existe. O que eu posso dizer é que da parte técnica científica, pega o trabalho da Eliana, pega o nosso trabalho, as coisas estão razoáveis. Tem bastante coisa para ser feita, mas o que foi feito já é suficiente para dar os subsídios necessários para os gestores, para os políticos do que tem que ser feito. Agora, falta fazer isso.
No caso do monitoramento, considerando a situação do país, com extensão territorial por volta de oito milhões de quilômetros quadrados, a maior parte das áreas protegidas não tem meio suficiente para monitoramento, para identificar o que está acontecendo. O uso de satélites funciona muito bem, a gente detecta mais de 80% de todos os casos. É usar isso ou não ter nada. Então, até aí, tá tudo certo. Por outro lado, se você for olhar assim, mais friamente, desde metade da década de 70, 1970, quando apareceram as imagens de satélite de boa resolução, que é o LANDSAT, em princípio, você já teria todos os meios para acabar com o desmatamento ilegal e com as queimadas. Se houvesse, realmente a vontade de fazer isso, em 1976, 1977, já estava tudo resolvido. Se não foi resolvido até agora, é porque existem outros elementos por trás disso. Existe o que eu costumo chamar de uma agenda paralela, então deixa eu dar um exemplo sobre isso. Pegando os desmatamentos na Amazônia e fazendo uma análise de quanto por cento desses desmatamentos ocorreram dentro da lei, com autorização, e quantos foram ilegais, você vai chegar a um número absurdo porque entre 98 e 99% dos desmatamentos foram ilegais, quer dizer, não é que 1%, 2% foi ilegal, é ao contrário, 98, 99% foi tudo ilegal. E como eu disse, com a existência das imagens dos satélites desde 1970 e pouco, todo mundo sabia o que estava acontecendo, não tem desculpa: “Puxa, como é que a gente ia saber? Não tinha jeito”. Não! Tinha. Os dados estão lá. Onde que eu quero chegar? Que é impossível você pegar municípios inteiros e desmatar, fazer isso com investimento de centenas de milhões de reais, com o envolvimento de maquinário, de pessoal, tudo, de uma maneira ilegal. Não tem como fazer isso de uma maneira ilegal, os vereadores lá do município sabem, o prefeito sabe, o governador do Estado sabe, é impossível que eles não soubessem que o município deles estava sendo completamente alterado, claro que eles sabiam e participaram disso. E inclusive, em grande parte dos casos, ganharam muito dinheiro com isso. Então, você tem de um lado uma legislação que te proíbe uma coisa, e do outro lado, você tem 98% dos casos contra essa legislação e todo mundo sabendo que isso está acontecendo. Você não vai ter uma situação dessa se você não tiver uma agenda paralela muito bem montada, que é uma agenda paralela que vai desde o jagunço com a motosserra lá no campo, até gente nos níveis mais altos do governo. Eu tenho usado uma palavra assim, eu digo: “Olha, assim como teve o mensalão, teve o petrolão, falta alguém fazer um florestão!”; porque o que aconteceu e o que acontece na Amazônia também é fruto de uma coisa completamente ilegal, desonesta, descabida, enfim, com um movimento vultuoso de dinheiro, até muito superior ao que a gente já viu nesses outros casos que eu citei.
Outra coisa que aconteceu de maneira imprevista desde que a gente identificou as primeiras imagens com queimadas foi a evolução da tecnologia. Quando nós começamos a fazer esse trabalho, nós usávamos um aparelho chamado Icem, por curiosidade, é uma máquina que está nesse corredor, você entrando à esquerda, está lá, estilo museu, uma lembrança do passado. Aquela era a única máquina que você podia processar imagens de satélite na década de 70 e começo de 80. Você tinha que gravar as imagens de satélite na estação do INPE em Cachoeira Paulista, a gente as trazia de carro ou de ônibus - a gente tinha um esquema com a Pássaro Marrom - vinham as imagens em fitas magnéticas desse tamanho, a gente carregava nessa máquina e processava. Para fazer isso tinha que ter dois Ph.D. do teu lado, senão, você não conseguia usar essa máquina, era um processo caríssimo. Acho que essa máquina custou na época entre um ou dois, acho que dois milhões de dólares, e era a única no Brasil que fazia isso. E o que essa máquina fazia? Qualquer celular hoje faz muito melhor e qualquer adolescente de, sei lá 13, 14 anos consegue fazer de maneira muito mais eficiente do que aquela máquina fazia.
Fato é que houve uma evolução tremenda da tecnologia ao longo desse tempo que ninguém previu. Primeiro, apareceu o fax que nos ajudou muito a mandar as informações. Depois do fax, começou a aparecer a internet, assim, você conseguia mandar mensagens por e-mail, o que facilitou muito. O próprio processamento das imagens por satélite melhorou muito, a qualidade das imagens melhorou e continua melhorando. Antigamente, os satélites eram grosseiros, você podia ter erros feios na localização de uma queimada. Hoje, você acerta isso com centenas de metros, às vezes, até menos. E em paralelo a isso, toda tecnologia de informática trouxe a internet, essa possibilidade de processamento em tempo real e a distribuição da informação em tempo real. Então, de um lado, a tecnologia de monitoramento melhorou, e de outro, as possibilidades de divulgar as informações também evoluiu de uma forma imprevisível. O mundo hoje é outro comparado com o que era há 30 anos.
Todo esse trabalho do Programa Queimadas foi se adaptando a essas novas tecnologias e cada vez foi exigindo mudanças completamente radicais. Na primeira versão, a gente mandava os dados por telex, que era uma máquina que hoje ninguém nem sabe mais o que é, tinha um cara sentado numa máquina, como se fosse uma máquina de escrever, gerava uma fita, isso passava num aparelho especial que era o telex, do outro lado, a pessoa recebia isso, saía impresso na folha de papel. Tudo isso é pré-histórico hoje, né? E a gente tem que se adaptar a essa tecnologia por duas razões: primeiro, porque ela permite muito mais, vamos dizer, qualidade nos dados, e também quantidade dos dados. Antes, a gente tinha um satélite, hoje a gente trabalha com dez satélites. Antes, a gente tinha uma imagem por dia, hoje a gente trabalha com 200, 300 imagens por dia. Antes, o processamento era feito manualmente, olhando na tela, procurando onde é que estavam as coisas. Hoje, a gente tem métodos automáticos que fazem todo esse processamento, então, como eu disse, a primeira razão é que você tem uma tecnologia avançando muito; e segundo, você tem uma demanda dos usuários muito interessante.
A maior parte que a gente desenvolveu no Programa Queimadas do INPE resultou de pedidos dos usuários que chegavam e diziam: “Olha, eu tenho aqui uma situação assim, eu preciso de uma solução, eu quero que vocês me mandem uma mensagem toda vez que for detectado um foco na minha unidade de conservação. Vocês têm como fazer isso?”. A gente pensa:” Claro, não é difícil, é simples, vamos lá”. Então a gente implementa isso e passa a atender os usuários. E é raro o dia, não estou exagerando, que a gente não recebe um pedido assim, específico de pessoas solicitando algum desenvolvimento particular ou mesmo de órgãos do governo, tem instituições como o ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, a FUNAI, Agência Nacional de Energia Elétrica, secretarias estaduais de meio ambiente de muitos Estados, só para dar alguns exemplos, não param de nos pedir todo o tempo coisas novas e a gente vai tentando atender esse pessoal. Acaba sendo uma coisa assim, de um lado, a tecnologia melhora, do outro lado, as pessoas têm acesso à tecnologia, pedem mais coisas e a gente no meio, tentando sobreviver dentro desse sistema e evoluir. E quando eu uso a palavra “sobreviver”, não é assim, eufemismo, exagero, para você trabalhar dentro do contexto de pesquisa no INPE, dentro da máquina federal, dentro dos institutos de pesquisa, vamos dizer, os entraves, a burocracia, dificuldade é assim, indescritível. Não é para amadores, te garanto (risos).
Os percalços, os tropeços foram muitos e causados pelas situações mais diversas possíveis, desde casos como um ano ter uma verba alta e no ano seguinte, cair para 10% do que tinha, e ninguém está nem aí se o teu programa funciona ou não funciona, se é útil, se não é útil, vire-se, divirta-se, continue aí até quando você puder. Até situações em que você tem confusões políticas, que acontecem no governo, de repente, você descobre que alguém teve uma ideia e essa pessoa tem um acesso político a não sei quem, de repente, tem um outro instituto que começa a fazer a mesma coisa que você faz e finge que você não existe e você fica naquela sinuca: “E agora, o que vai acontecer?. Amanhã, eu tô morto ou sei lá, vamos tentar corrigir isso?”. Até você pôr as coisas nos eixos é uma luta complicada, você tem dificuldades, que eu diria que são humanas, você vai ter isso nas universidades, em qualquer instituto, os próprios colegas no mesmo instituto que tentam bloquear o teu trabalho. Isso faz parte, enfim, das relações humanas nos ambientes de trabalho, sejam governamentais, sejam privadas, acontecem. Tivemos situações em que a gente esteve muito mal, e só conseguiu sobreviver com os participantes do projeto colocando dinheiro próprio para manter isso. Depois eu posso mostrar, tenho esses dados todos, durante anos, 20% do meu salário todo mês ia para conseguir manter as coisas funcionando, porque se não, de outro jeito não dava para tocar pra frente. Você tem coisas do dia a dia que você tem que… sei lá, você precisa comprar fita de computador para gravar as imagens, como acontecia na época. Você precisa, sei lá, por um modem para transmitir os seus dados, porque o modem que você tem queimou e o instituto só vai poder comprar outro daqui três anos, então você não vai esperar três anos, você tira do seu bolso e banca a coisa. Como eu disse, em alguns momentos, se não fosse o bolso de cada uma das pessoas que realmente acreditavam, acreditam no trabalho, a gente teria afundado faz tempo.
As coisas evoluem de uma maneira imprevisível, tanto pela tecnologia dos satélites, pela informática do outro, como pelas posturas, vamos dizer, das sociedades, das necessidades. É difícil prever o que vem pela frente, mas eu gostaria de continuar atendendo as necessidades que a gente descobre, e aplicar essas novas possibilidades, por exemplo, agora, o que estão nos consultando muito, é sobre um sistema de identificar automaticamente quem são os infratores que estão queimando. Nós temos leis excelentes no Brasil, mas se você for queimar alguma propriedade, você tem que ter uma autorização do órgão ambiental responsável, em geral, é o Ibama, as pessoas têm que protocolar isso, tem toda uma burocracia envolvida. Praticamente, ninguém faz isso. Porém, com uma coisa que foi feita no Brasil, única no país, que se chama CAR, o Cadastro Rural de Propriedades, em que uma grande parte das propriedades no país está digitalizada, mapeada, informatizada, você tem condições agora de cruzar isso com o monitoramento automático de queimadas. Então, se for uma propriedade mais ou menos grande, uma fazenda aí com algumas centenas de hectares, eu com 100% de certeza, te digo que a queimada foi dentro daquela propriedade. É facílimo, assim, instantaneamente, você verificar se aquela queimada foi autorizada ou não, legal ou ilegal. Isso abre uma nova perspectiva de a gente conseguir reduzir o uso indiscriminado do fogo no país, porque até agora, as coisas eram mais complicadas. Você detecta uma queimada e a polícia ambiental pega um jipe, anda quatro horas, chega na propriedade do cara, o fazendeiro não está, volta no dia seguinte, vão até o lugar, enfim, o processo leva dias e dias para ser feito, até que você possa identificar quem é o dono da fazenda, onde que aconteceu e o quê que aconteceu. Com essa estrutura de mapeamento digital das propriedades rurais brasileiras, vai ficar extremamente simples ter, vamos dizer, um novo patamar de aplicações desse sistema. Nós estamos trabalhando também numa demanda muito interessante, que é da Agência Nacional de Energia Elétrica, uma vez que no país a causa mais relevante por trás dos apagões, dessas interrupções no fornecimento de energia elétrica, está nas queimadas que ocorrem próximas às linhas de transmissão. Desde casos simples, que o fogo queima o poste de madeira, cai a linha, até as estações em que o fogo corre embaixo de uma linha de transmissão e aí, muda as propriedades do ar, você tem um curto circuito e desarma o fornecimento de energia elétrica.
Os grandes apagões que nós tivemos recentemente, com prejuízos significativos, foram causados pelas queimadas, e a ANEEL está tentando minimizar isso. Nós estamos terminando um trabalho para eles que faz duas coisas: primeiro, ajuda a verificar se a manutenção das linhas está sendo bem-feita, porque você tem que manter a vegetação cortada para evitar o fogo, certo? Então, a gente está avançando muito bem nisso, e um segundo aplicativo interessante é a parte que prevê quando que as frentes de fogo vão chegar aos ninhões, a gente sabe que o fogo está num certo local, conhecendo a topografia, a velocidade do vento, as condições meteorológicas, a gente tem uma chance de prever para onde aquilo está indo, então, com isso, você conseguiria deslocar brigadas de combate para evitar que houvesse apagões. Eu dei apenas dois exemplos, um na parte ambiental geral e outro na parte elétrica que estão nos exigindo coisas novas muito interessantes, e que a gente desenvolve com gosto, com vontade, porque a equipe tem esse perfil de criar coisas novas, desenvolver e trabalhar operacionalmente. Eu diria que esse é uma das características do nosso trabalho, trabalhar em tempo real junto com os usuários.
Atualmente, a gente depende, principalmente, de duas fontes de recursos: uma vem diretamente do governo federal, o governo federal tem lá a sua programação de uso dos recursos, e nesse contexto de programação, existem as ações prioritárias do governo. O governo identifica algo que tem que ser feito, mantém aquilo assim, numa caixinha especial. E esse monitoramento de queimadas está numa dessas caixinhas especiais. Uma ação que foi instituída pelo governo em 1998 por causa daquele caso lá de Roraima. E desde 98, nós recebemos recursos diretamente do governo com essa finalidade. Esse é o nosso, vamos dizer, principal “ganha-pão”, só que ele não é… como é que eu diria? Não sei se garantido é a palavra certa, ele não é certo, por que isso? Porque nominalmente, a gente deveria receber um milhão e alguma coisa por ano, só que aí, acontece contingenciamentos, ocorrem cortes de gastos, etc., então, no ano passado, a gente recebeu menos de 40% do que deveria ter recebido, e como é que você faz? Você tem um orçamento previsto de um certo valor, você se planeja pra aquilo, você tem gente que você contrata inclusive prevendo esse valor, de repente, você descobre que você só tem 40% daquilo. É complicado, é difícil. A gente tem uma segunda fonte de recursos que vem de projetos de pesquisa, projetos de cooperação, que são projetos abertos para todo mundo, tem editais que promovem essas atividades, sejam editais da FAPESP, que é estadual, sejam editais do CNPq, vamos dizer, nacional, sejam editais internacionais e a gente participa desses editais. Em alguns a gente consegue aprovação dos projetos, aí entram mais recursos, muitas vezes, são até para trabalhos específicos, por exemplo, nós tivemos o apoio do governo alemão por meio da agência alemã de cooperação internacional, GIZ, graças a eles, nós desenvolvemos uma parte dos nossos produtos que foi o mapeamento de área queimada. Nós tivemos o apoio do governo inglês, por meio de um projeto chamado DEFRA, graças a isso, nós conseguimos refazer toda a nossa plataforma na internet, o banco de dados, a forma de distribuição dos dados. Nós estamos neste momento com o apoio de um projeto cujo o recurso vem do Banco Mundial, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia, que é para melhorar o risco de fogo, o cálculo de risco de fogo, então a gente entra nesses projetos com tarefas especificas: “Olha, eu quero melhorar o risco, eu quero melhorar a extração de dados, eu quero melhorar o cálculo de área”. São coisinhas mais delimitadas, enquanto que o dinheiro que vem do governo, a gente usa mais para manter a estrutura dentro do INPE, em estações de recepções de satélites e outras coisas.
Nisso, a equipe varia de tamanho. No auge, nós chegamos a ter umas 30 pessoas trabalhando. Alguns desses projetos terminaram, então, naturalmente, as equipes diminuíram. Nós temos dentro da equipe, uma, duas, três pessoas que são funcionários de carreira do INPE, inclusive, o meu caso, e temos, hoje, cerca de uns 17 mais ou menos que são contratados por esses projetos de cooperação, projetos internacionais ou por meio de prestação de serviços que a gente faz com o INPE.
Nós temos exemplos fantásticos dessa equipe, uma vez que nós trabalhamos já juntos, algumas pessoas estão há mais de 30 anos nesse trabalho, que começou na década de 80, então se você for para trás, tem mais de 30 anos. Eu diria que é um marco você conseguir ter pelo menos um núcleo dentro de uma equipe que consegue se manter unido, produtivo, por mais de 30 e poucos anos. Eu diria que, no geral, está muito bem. É claro que como qualquer equipe, qualquer grupo de pessoas humanas, você vai ter gente que não se adapta, que sai, outros que vão procurar o salário melhor, outros que mudam de interesse, ontem mesmo chegou uma pessoa da equipe: “Eu tenho uma notícia para te dar, eu decidi que eu vou casar, eu quero ter filhos, então eu quero sair da equipe agora, porque eu vou mudar a minha vida”. O que você vai dizer para a pessoa? “Não, você não vai ter filhos, não, você não vai casar, você vai ficar aqui algemada nessa mesa de trabalho daqui pra frente”? Não dá, cada um tem a sua conduta, tem os seus objetivos de vida e nada impede que daqui, sei lá, cinco, dez anos, essa pessoa diga: “Agora os meus filhinhos já cresceram, eu não aguento mais ficar em casa, por favor, me arruma alguma coisa interessante para fazer” (risos). Assim são as pessoas, elas mudam, variam, não tem… mas com certeza temos pessoas maravilhosas na equipe, de uma dedicação assim, que às vezes, eu mesmo fico chocado quando vejo o pessoal trabalhando.
Os grandes incêndios eles vão acontecer, eles vão, é uma questão de tempo, assim como grandes enchentes acontecem de tempos em tempos, grandes incêndios descontrolados também vão acontecer. Não tem jeito. Eu acho que a gente tem que ter a consciência, vamos dizer, tranquila de que tudo que a gente poderia fazer, foi feito. Se você pegar em relação ao monitoramento, que é feito por satélites, eu acho que a gente está fazendo o que é possível. Você compara com outros países no mundo, eu acho que você não vai encontrar coisa melhor do que o que a gente já fez no Brasil. Então, eu acho que a gente não vai salvar o mundo, a gente vai fazer a nossa parte nesse mundo, como eu disse, a gente tem que ter a percepção de analisar quais são os problemas, ter, vamos dizer, a humildade de aceitar que, às vezes, tem coisas que você não sabe que você tem que melhorar, tentar evoluir nisso. E vamos dizer, ter a consciência tranquila que você fez a tua parte. Bom, sei lá, se chegar alguém e dizer: “Não, por lei, a partir de amanhã, todo mundo pode queimar o que quiser no Brasil”, bom, como é que você vai fazer, né? (risos) Escapou da tua alçada, não teve como enfrentar isso. Por outro lado, se a nossa comunidade for grande o suficiente com pessoas, determinadas, realmente envolvidas, até esse curso das coisas pode ser alterado. E nós tivemos exemplos bem recentes sobre isso. Chega um cara aí e diz: “Não, vamos acabar com o Ministério do Meio Ambiente, não precisa mais”, vocês viram isso aí há poucos meses atrás. Aí, começa a gritaria, ex-ministros, grandes cientistas, enfim, se organizam, mandam documentos, escrevem, etc., bom, a coisa foi revertida. Você ouve outras maluquices: “Agora, vamos liberar o desmatamento total, pode fazer o que quiser”, bom, não vai ser bem assim, existem leis que precisam ser mudadas, existem comissões que têm que ser consultadas, existe todo um arcabouço num contexto democrático que pode mudar o curso das coisas e corrigir a situação. Então, como eu falei, se você tiver uma sociedade, vamos dizer, de cientistas, pesquisadores como nós, determinados, envolvidos, a gente consegue também fazer a nossa parte. A própria criação desse Programa de Queimadas, tudo isso, decorreu da atuação de cientistas, de pesquisadores em vários setores, não só no sensoriamento remoto, mas em várias outras áreas que disseram: “Gente, não pode continuar o desmatamento, não podem continuar as queimadas, temos que fazer alguma coisa a respeito”, então foram elaboradas as leis, foram criadas as instituições, foram criados cursos, enfim, existe uma perspectiva, quer dizer, a gente não pode ser pessimista ao extremo, se é possível alguma mudança assim, produtiva, positiva, ela depende de nós, e quanto mais de nós existirem com alguma determinação, com alguma vontade, maiores as nossas chances.
Eu presenciei muitas queimadas no campo, lembro de várias cenas que foram marcantes. Eu lembro uma vez, numa região em que estava havendo… enfim, houve um desmatamento e eles deixaram várias arvores em pé, porque a lei dizia que você não podia queimar algumas áreas protegidas, castanheiras e etc., só que naquele incêndio, naquela queimada, não sobrou absolutamente nada. Então, todas as árvores que tinham que estar protegidas estavam queimadas também, e muitas delas queimaram de uma forma assim, chocante, a árvore começa a queimar por dentro, então você vê a chama sair de dentro da árvore, fica aquele esqueleto da árvore saindo a chama de dentro, e de repente dá umas explosões, como se fosse um rojão saindo da árvore. E você vendo todas aquelas árvores gigantes, algumas com um metro de diâmetro, assim, explodindo, queimando desse jeito, e ao mesmo tempo, todos os animais saindo correndo da floresta, nesse caso específico, que eu estava vendo, passa perto de mim uma sucuri, devia ter uns oito, dez metros, dessa grossura, passou, acho, que a um metro de distância fugindo das queimadas, assim como outros bichos.
Na hora que você vê toda aquela destruição, de uma riqueza natural tão grande, seja pela fauna, pela flora, por tudo. Enfim, aquilo… enfim, fortaleceu muito essa determinação de dizer: “Isso tá errado, não tem sentido isso que tá acontecendo”. Sabe, isso é um descalabro, não pode ser isso. Assim como em outras situações que eram muito comuns na Amazônia, na década de 80, 90, quando houve o pico das queimadas, o ar era… a quantidade de fumaça no ar era tanta, você não enxergava mais do que uns 20 metros, mais ou menos, a dificuldade de respirar, os olhos não paravam de lacrimejar e mais, você vendo as pessoas todas que sofriam muito com isso, principalmente as crianças pequenas, a gente mais idosa, aquelas filas nas portas dos postos de saúde de atendimento, você vendo as pessoas morrendo por causa disso, os idosos tendo ataque de coração porque não conseguiam respirar. É como se estivesse no inferno.
Esse sofrimento das pessoas também foi determinante para eu seguir por esse caminho, dizendo: “Olha, o que importa não é, sei lá, 10, 20% do meu salário, o que importa é a gente tentar mudar alguma coisa totalmente errada que está acontecendo”, porque isso, todas essas queimadas, não eram eventos naturais, não é que caía um raio e aquilo começava… era gente intencionada fazendo aquele tipo de ação.
Tenho muitos exemplos. Aqueles garimpos ilegais que apareciam e começavam a desmatar tudo, aí você visitava, você ia lá, você via, por exemplo, a questão da prostituição infantil, que era assim, direto naqueles garimpos, meninas de oito, dez anos, já envolvidas em prostituição, e como eu falei, aquele ambiente de faroeste, completamente sem lei, você vendo aquilo, você pensa: “Não é possível que nessa altura do curso da civilização, da humanidade, a gente vai promover esse tipo de barbárie, de situação”. Então, com certeza, tem uma componente pessoal muito, muito intensa de olhar aquilo e ter a sensação de que tá errado. Sei lá, assim como outras pessoas veem outras coisas erradas, outros casos de situações erradas e decidem que vão se dedicar naquilo, em qualquer campo, né?
Respondendo à pergunta, não sei exatamente como chegou, mas alguém mencionou Chico Mendes, eu disse que tinha tido um contato com ele, logo antes dele ser assassinado, e que a gente estava numa situação parecida, isso foi em 88. Acho que no final de 88, mais ou menos. Teve um evento de pessoas que estavam envolvidas nessa questão de proteção da Amazônia, naquela época, e esse evento foi em Piracicaba, acho que foi organizado pelo Woods Hole Institution, alguma coisa assim. Eu poderia achar aqui quem que organizou. Bom, teve esse evento e estava lá o Chico Mendes. Por uma questão de coincidência, eu estava sentado do lado dele, e começamos a conversar, tal: “E aí, como vai a vida?”; não sei o que lá, e aí, ele me relatou uma série de coisas que ele achava muito estranho que estavam acontecendo com ele, e que o deixavam muito preocupado, temendo pela própria vida. Ele relatou que de vez em quando, percebia que estava sendo seguido. Ele dizia que quando ele saía da casa dele e voltava, alguém tinha entrado na casa e remexido suas coisas. Então, eu disse para ele: “Puxa, tô numa situação muito parecida com a tua, quando eu venho aqui para o meu escritório no INPE, de manhã, tá tudo revirado. Eu até fiz uns testes para ter certeza que não era imaginação minha, pus as coisas numa certa ordem e eu anotei, quando eu volto no dia seguinte, as coisas estão em outra ordem, então, alguém esteve aqui de madrugada enquanto eu não estava, mexendo nas minhas coisas. Sumiam coisas, até fiz Boletim de Ocorrência para ter certeza que isso ficasse registrado”, aí ele falou a questão de ser seguido, disse: “Eu também tô sendo seguido, é comum isso, eu estou guiando e às vezes, eu vejo que tem um carro atrás de mim o tempo inteiro, eu faço uma curva, o carro faz, o que é isso? Eu entro no shopping, o carro entra atrás também, algo completamente fora do esperado, né?”. Eu também estava com essa preocupação. E aí, perguntei: “Você fez alguma coisa sobre isso?” “Eu já avisei a polícia, as autoridades”, ele perguntou para mim o que eu tinha feito e eu disse: “Já fiz um BO para documentar essas coisas, etc., etc.”, e aí, não deu outra, passaram, sei lá, umas duas semanas, ele foi assassinado e, pessoalmente, aí já é minha interpretação, eu acho que escapei do mesmo destino, porque eu tive uma viagem logo em seguida, eu participava do Programa Antártico Brasileiro, então fui lá para a Antártica, então seria muito difícil alguém conseguir me seguir (risos) até a Antártica ou fazer qualquer coisa lá no meio da estação brasileira cujo acesso é dificílimo. Essa foi uma das experiências, entre várias. Bom, sei lá, a gente fazia trabalhos de campo de validação, então, a gente voava com o avião do INPE para fotografar as áreas, confirmar as detecções dos satélites, então não foram poucas às vezes que a gente encontrou furos de balas no avião do INPE, que a gente voava, os fazendeiros ficavam atirando (risos) na gente. Que mais? Também não foram poucas às vezes que a gente estava fazendo trabalho de campo, e sem mais e nem menos, tinha um cara com um revólver apontado para você: “O que você tá fazendo aqui nessa estrada? Se você não sair já, eu te mato”, enfrentamos várias situações como essas.
Já com a população... enfim, com as pessoas participaram de toda essa expansão da fronteira agrícola, a regra com essas pessoas era muito simples: secou, queima; mexeu, atira, não tinha (risos), não ia muito além, a filosofia dessas pessoas era exatamente isso. Eles estavam indo lá em programas de colonização, para conseguirem terra, o quanto mais possível. Então é isso.
Hoje, você vê mudanças curiosas, como eu falei, esse caso de Alta Floresta, a gente ia muito para lá. Esse foi um dos exemplos de desmatamento descontrolado típico. Então, eu falei que tinha muito movimento lá, saía mais avião de lá do que qualquer aeroporto, tinha um hotel ali de um padrão altíssimo. Bom, a filha do cara que montou todo esse empreendimento, hoje é dona de um… como que é? Hotel ecológico no meio do mato, tudo para preservar a natureza, recebe turistas do mundo inteiro e faz o possível para manter a região preservada. Então, você percebe uma mudança, algumas diferenças… A geração mudou, você percebe muitas iniciativas, principalmente na Educação, tentando impedir as queimadas, tentando impedir desmatamentos, você vê programas locais, regionais, nacionais, até de cooperação internacional tentando atuar para mudar tudo isso, todas as criancinhas hoje aprendem na escola a preservar o meio ambiente. Essa parte então, mudou muito, isso não existia na época. Com certeza tem mudanças.Recolher